Artigo 09 Luiz Olavo Baptista

Analise da funcionalidade do sistema de solução de disputas do Mercosul

Luiz Olavo Baptista
Professor Titular da Faculdade de Direito da Universidade de S. Paulo
Advogado, Membro do Órgão de Apelação da OMC.

Têm-se falado, apaixonadamente, bem e mal do Sistema de Solução de Disputas do Mercosul. Esse debate justifica que se esboce a análise da sua funcionalidade.

Funcionalidade é um substantivo feminino derivado de funcional. Esta palavra, adjetivo oriundo do francês fonctionnel, designa o que é "relativo à função".

Função é, segundo o mesmo dicionarista, "a atividade natural ou característica de algo (elemento, órgão, engrenagem, etc.) que integra um conjunto, ou o próprio conjunto", podendo ser ainda, uma "obrigação a cumprir, papel a desempenhar, pelo individuo ou por uma instituição".

Assim, a funcionalidade compreende, de um lado as qualidades que integram o conjunto ou o Sistema de Solução de Disputas do Mercosul e, de outro, do papel que desempenha no quadro dos objetivos do Mercosul, e que justificaria sua classificação como funcional.

A - Qualidades intrínsecas do Sistema de Solução de Disputas do Mercosul.

Para a análise da funcionalidade, como se disse, é preciso atender em primeiro lugar, às qualidades da coisa. Qualidades, - no sentido que a palavra é usada neste contexto - são os atributos típicos do sistema e que decorrem da natureza jurídica do mesmo.

1. - Natureza jurídica do Mercosul

O Mercosul é uma organização internacional de molde clássico, aonde não existe efeito de supranacionalidade. A soberania, entendida no sentido tradicional pós Westphaliano, clássico, é o fundamento do sistema.

Nele, cada um dos Estados-Membros, aceita a criação de normas mediante as quais exerce junto com os demais, de forma coordenada, sua soberania, que, todavia, é preservada.

Não há renúncia nem redução da mesma. Mas, todos assumem uma obrigação de ação conjunta e coordenada como forma de exercício da soberania. Mas isto somente para as finalidades do acordo. Isto é, os Estados que integram o Mercosul, não poderão exercer a sua soberania de modo independente no que tange aos objetivos da organização, estabelecidos pelo tratado fundacional; devem exercê-la juntos atuando "um por todos e todos por um", como na fórmula societária usada por Dumas como lema dos seus Mosqueteiros. Essa ação deve desenvolver-se de acordo com os padrões que estabeleceram, voluntariamente, vinculando-se através dos tratados que firmaram.

O mecanismo tradicionalmente usado neste modelo jurídico, faz com que as normas que vão reger esta ação conjunta nasçam de acordos internacionais e vão produzir efeito no interior de cada um dos países membros através de um sistema, também clássico e conhecido já de há muito, que é o da promulgação interna dos tratados. Este obedece a regras internas de cada um dos Estados partes. Do ponto de vista do Direito Interno, esse ato jurídico será regido e qualificado pela Constituição do país que internalizou o Tratado.

No caso brasileiro, passa-se pela aprovação do acordo pelo Congresso e após esta, pela promulgação pelo Presidente da República, através de um decreto. Com este procedimento, o que era uma obrigação internacional torna-se uma norma interna, e impõe-se aos cidadãos e à administração. O procedimento segue regras não muito diferentes, nos demais paises integrantes do Mercosul.

Do ponto de vista das Relações Internacionais, trata-se de uma obrigação de natureza convencional que o País assume em relação aos demais co-signatários do Tratado. Assim, o lado convencional tem um reverso normativo.

Este lado normativo produz efeitos na conduta do Estado e na conduta dos seus cidadãos. Na conduta do Estado brasileiro porque, internalizada a norma contida pelo Tratado, ela passa a representar um comando dirigido aos membros do Poder Executivo para sua execução dentro do sistema tradicional do princípio da legalidade aplicado à administração. Nos demais Países Membros do Mercosul os efeitos são parecidos.

Ao mesmo tempo, a norma convencional dirige seu comando também aos cidadãos daquele Estado ou às pessoas que ali residem, orientando as condutas que elas vão seguir e impondo ao Estado a obrigação de cobrar a execução dessas condutas.

Este, sistema evidentemente, difere dos sistemas de natureza federativa ou confederativa porque, nestes ocorreu por parte das unidades que os integram a renúncia (total ou parcial) da soberania em favor de uma entidade que está acima. É esta que terá a última instância na matéria.

Se quisermos comparar com os exemplos mais conhecidos historicamente, vamos ver que o Benelux corresponde ao primeiro modelo, cujo precursor nos tempos modernos foi o Zollverein, fórmula utilizada pelos alemães, ainda então divididos em 39 Estados, reunidos na Confederação Germânica, que, sob a liderança da Prússia, implantaram em 1834, uma zona aduaneira. O outro modelo é o dos Estados Unidos — como federação — imitada pelo Canadá e Austrália, em que a "clausula de livre comércio dá o cimento econômico para a unidade nacional. Esse modelo, que é também o da Suíça — ou Confederação Helvética — aparece de forma ainda larvar no projeto da União Européia, que, sucedendo às Comunidades Européias, corresponde a um segundo estágio no iter que leva á federação.

A evolução do modelo confederativo usualmente conduz para o modelo federativo e este, tende para maior concentração de poderes no Órgão Federal. A história das 13 Colônias fundadoras dos Estados Unidos e da evolução posterior daquele país até chegar ao número de Estados que o integram hoje, é significativa. Tão significativa quanto a memória que persiste pela escolha da palavra Estado em lugar da palavra Província, empregada de preferência nos países de regime mais unitário.

Estado, no mundo do direito é aquele organismo internacional que tem atributos de soberania. E os Estados norte-americanos, que formaram através de um pacto, esta grande nação da América do Norte, foram perdendo pouco a pouco, no curso da evolução histórica, a sua soberania que foi sendo adquirida pelo poder central ou federal.

Elemento fundamental dessa construção na Constituição dos Estados Unidos foi a cláusula de comércio que impedia os diferentes Estados de discriminarem-se uns aos outros nessa matéria. A outra coluna foi o estabelecimento de regras comuns em matéria de direitos das pessoas e cidadãos. Sobre ambas colocou-se a Corte Suprema, que tinha o poder de implementar as regras comuns a todos (pois era a guardiã dos direitos assegurados pela Constituição).

Se formos examinar um outro modelo de organismo - não federativo, nem unitário, - podemos usar o caso clássico das organizações internacionais. Vamos ver que nele existe muito mais latitude de ação para os paises que integram a organização internacional, que para os estados integrantes de uma federação, e que mesmo o Direito derivado desta organização depende do consentimento dos Estados para que se internalize e produza efeitos. É exemplo disto a Organização Internacional do Trabalho.

Este mecanismo procede à solução das divergências e conflitos no seu interior por métodos diplomáticos e jurídicos.

A estrutura básica para os sistemas de solução de conflitos foi definida há mais de um século nos tratados originários das conferências da paz de Haia, onde se definiu o modelo de solução de disputas típico do Direito Internacional Público, e que ainda hoje vige.

Este modelo avança através de etapas que vão da fase das conversações (formais ou não) entre os Estados que tem uma divergência à outras etapas em que há participação crescente de algum terceiro que os ajudará na solução das disputas. O terceiro será um mediador, um conciliador, um perito que constatará os fatos no procedimento do fact finding, e, finalmente, ao se chegar á fase final, tendo falhado todos estes métodos, um tribunal arbitral dirá o direito e confirmará a existência ou a negativa de determinados atos.

Além desse iter, a fórmula tem duas outras características.

Uma é ser destinada exclusivamente a resolver litígios entre pessoas de direito internacional público, Estados e Organizações internacionais, o que faz com que os agravos a direitos de particulares só sejam examinados se algum Estado lhes conceder acesso pela via da proteção diplomática.

Outra característica é que, em razão da introdução das normas originárias do tratado nos sistemas jurídicos dos Estados, as pessoas físicas e jurídicas de direito privado terão que recorrer aos tribunais de algum Estado para obter o seu direito. Assim, a violação de alguma norma do Mercosul pelo Estado brasileiro, que ofenda algum direito de um cidadão argentino poderia ser objeto da ação deste no Brasil, onde o Poder Judiciário resolveria o litígio.

No sistema tradicional, só quando o remédio a esse agravo fosse negado pela recusa do Estado condenado a cumprir a decisão judicial, ou caso ocorresse denegação de justiça, é que haveria a possibilidade de acesso — via proteção diplomática — ao mecanismo internacional de solução de divergências.

2. - O modelo de solução de disputas adotado

Este modelo tradicional do Direito Internacional Público é o que foi transposto para o Mercosul através de um trajeto que passou pela adaptação do mesmo a

às peculiaridades do comércio internacional na prática do GATT, e, pela da então área de livre comércio Estados Unidos — Canadá.

Resumindo: - uma fase diplomática, portanto, política, de negociações, é sucedida pelas recomendações de terceiros, a que se segue a convocação de um painel arbitral que decide a questão do ponto de vista jurídico. Há que notar que nesse sistema o grau de jurisdicisação da solução da controvérsia é crescente, na razão inversa do decréscimo do conteúdo político da fórmula adotada

Por coincidência, vamos encontrar o modelo, com grandes semelhanças, no Benelux, aonde esse mecanismo de solução de disputas vem funcionando desde 1942 quando foi celebrado o primeiro tratado dos que deram origem ao que hoje é uma perfeita união aduaneira, financeira, etc.

Mas esta fórmula de solução de disputas impõe a integração dos poderes judiciários dos Estados Membros, para que se alcance eficácia na solução de disputas entre pessoas privadas, ou entre estas e os Estados, porque podem ocorrer conflitos de jurisdição.

Por isto o Benelux criou uma corte que, usando a expressão da moda poderíamos chamar de virtual, - a Corte de Justiça do Benelux, - que é quem tem competência para resolver estes conflitos.

O Mercosul tem um traço de originalidade, em relação ao sistema tradicional, admitindo a presença dos particulares que podem ter a iniciativa em certos casos. De fato é mecanismo que passa através da proteção diplomática.

O Tratado de Assunção, que colocou os fundamentos desse subsistema no seu anexo III, dispõe que as controvérsias entre os Estados serão enfrentadas: primeiro por negociações diretas entre os litigantes, depois, em etapas sucessivas pela atuação do Grupo Mercado Comum ou do Conselho do Mercado Comum.

Nada se falou, no Tratado, sobre as controvérsias que porventura surjam entre pessoas privadas e um dos Estados. Estas vão aparecer e são objeto do Protocolo de Brasília.

Este, como se sabe, deriva de uma determinação expressa do referido Anexo, parágrafo 2, dirigida às Partes contratantes, a quem assinava um prazo de 120 dias para estabelecer um "Sistema de Solução de Controvérsias, que vigerá durante o período de transição", estabelecendo mais, que "até 31 de dezembro de 1994, os Estados Partes adotarão um Sistema Permanente de solução de Controvérsias para o Mercado Comum".

São submetidos ao sistema de solução de controvérsias, Estados Membros do Mercosul, na qualidade de litigantes, reconhecem, expressamente, pelo artigo 8°. do Protocolo de Brasília: "como obrigatória, ipso facto e sem necessidade de acordo especial, a jurisdição do Tribunal Arbitral que em cada caso se constitua para conhecer e resolver todas as controvérsias a que se refere" o referido Protocolo.

Entretanto, embora o artigo 1° . do Protocolo de Brasília diga que as controvérsias serão as que surgirem entre os Estados-Partes, na verdade as pessoas privadas também são acolhidas sob o pálio desse sistema, mercê do disposto no Capítulo V, que trata das reclamações efetuadas por particulares.

Nesse caso, como a reclamação dos particulares é encaminhada pela Seção Nacional, fica subentendido que é o Estado Parte envolvido quem se apresenta como litigante, se ela for acolhida.

O que distingue o sistema de solução de controvérsias do Mercosul daquele tradicional do Direito Internacional, é justamente a sua especificidade - e essa, "ratione personae", reside na exclusividade do acesso dos Membros da Organização, enquanto que, "ratione materiae", como ora veremos, reside nas fontes de direito.

Por outro lado, a existência deste conteúdo misto, político e jurídico, é sempre oposta pelos críticos, ao conteúdo predominantemente jurídico do modelo da União Européia aonde um tribunal, formado em boa parte por pessoas oriundas de carreiras ligadas à Magistratura legisla e decide sobre matérias de cunho eminentemente jurídico.

Não é que o lado político desapareça lá. Não, o que ocorre na realidade é que ele se esconde, acometido de uma modéstia que não se imaginava, e tem que faze-lo para que o órgão judicante possa desenvolver-se e evoluir. Com efeito as criaturas do ser humano, como este seguem uma evolução — nascem, crescem (ás vezes reproduzem-se) decaem e morrem. As organizações internacionais, e seus órgãos (como os órgãos criados no interior de qualquer corpo social) tem sua própria dinâmica. Buscam sempre ampliar a própria esfera de poder e influência, ainda que ao custo da sua eficácia. A funcionalidade que buscam os seus integrantes é, consciente ou inconscientemente, a da dinâmica do próprio órgão. Os estudos históricos sobre a Corte Européia mostram como este foi pouco a pouco aumentando seu poder por meio de decisões que estendiam sua competência sob o argumento da interação comunitária. Construindo a União Européia, essas decisões construíram a importância e poder da Corte e de sus juízes.

Vistos esses aspectos, que nos mostram a razão de ser das regras adotadas, vamos poder nos voltar, agora, para a funcionalidade do sistema do Mercosul, partindo de sua função no seio da organização.

B - Para que serve e o que se espera do Sistema de Solução de Disputas.

O Sistema de Solução de Disputas serve, evidentemente, para eliminar as divergências que os Estados tenham entre si, e espera-se dele que seja eficiente no sentido de que dê uma resposta rápida e a um custo barato, atendendo aos objetivos do sistema maior em que se insere.

Então, será preciso que vejamos as características de funcionalidade desta organização interestatal e internacional que é o Mercosul, aonde o chamado de Direito Derivado, é o Direito Interno ou internalizado pelos Estados Membros e as regras internacionais vigentes são apenas as dos tratados firmados entre os Estados.

"As controvérsias que possam surgir entre os Estados Partes como conseqüência da aplicação do Tratado..." constituíam a competência original do sistema de solução de divergências do Mercosul.

Portanto, do ponto de vista da matéria, a competência seria interpretativa. Interpretar a letra do Tratado, dar-lhe o devido alcance pois de sua leitura correta dependeria a aplicação. Viu-se logo que era pouco. Por isso, o Protocolo de Brasília, no seu artigo 1°. veio ampliar a competência, determinando que fosse atinente à "interpretação, a aplicação ou o não cumprimento das disposições contidas no Tratado de Assunção, dos acordos celebrados no âmbito do mesmo, bem como das decisões do Conselho do Mercado Comum e das Resoluções do Grupo Mercado Comum".

O Protocolo de Outro Preto, ao regulamentar a nova fase, mais permanente (a palavra definitiva não é adequada) do Mercosul, estabeleceu no seu Capitulo V - Fontes Jurídicas do Mercosul, que são: -

Artigo 41.

I. O Tratado de Assunção, seus protocolos e os instrumentos adicionais ou complementares;

II. Os acordos celebrados no âmbito do Tratado de Assunção e seus protocolos;

III. As Decisões do Conselho do Mercado Comum, as Resoluções do Grupo Mercado Comum e as Diretrizes da Comissão de Comércio do Mercosul, adotadas desde a entrada em vigor do Tratado de Assunção.

Artigo 42.

As normas emanadas dos órgãos do Mercosul previstos no Artigo 2 deste Protocolo terão caráter obrigatório e deverão, quando necessário, ser incorporadas aos ordenamentos jurídicos nacionais mediante os procedimentos previstos pela legislação de cada pais.

Dessa forma a competência "ratione materiae" do sistema de solução de controvérsias viu-se, mais uma vez, ampliada com a inclusão das Diretrizes da Comissão de Comércio, e pelo uso da expressão "seus protocolos e os instrumentos adicionais ou complementares", entendendo-se aí que são não só os protocolos já firmados, como, também, os que vierem a serem contratados, e entrem em vigor.

Essas competências foram determinadas em razão da função que se quis atribuir especificamente ao sistema de solução de controvérsias de ser mecanismo misto, diplomático-jurídico, e não predominantemente jurídico.

A lógica do sistema o impunha, pois não havendo edição de normas supranacionais — mas apenas internacionais e nacionais — o modelo clássico seria o único adequado. Caso contrário estar-se-ia criando mais um degrau na estrutura do poder judiciário dos países membros, porém situado acima dos demais ramos o Poder Executivo e o Legislativo, de cada um deles.

No modelo Europeu, isso não ocorre, pois, como há um órgão com dupla função — legislativa e executiva — que é a Comissão, situado acima dos Estados Membros da União, criou-se um tribunal no mesmo plano daquela (e como a Comissão, a Corte tem sua competência limitada à alçada determinada pelos tratados constitutivos).

Por isto mesmo, no sistema Europeu o Tribunal de Luxemburgo (como a Corte dos Direitos Humanos de Estrasburgo) atua como uma instancia a mais no curso de algumas demandas — pois é para onde elas vão, por iniciativa das partes ou dos juízes, que pedem manifestações sobre o direito europeu aplicável ao caso, antes de decidi-lo.

Isto teve como conseqüência alongar os tempos de decisão e encarecer consideravelmente as demandas.

Uma padaria em Portugal pode ser forçada a fechar suas portas no Domingo por uma decisão de Bruxelas, assim como um fabricante de queijo camenbert pode ser obrigado, contra a tradição a usar leite pasteurizado para fazer seu produto, com prejuízo da qualidade e da originalidade do mesmo. Ambas as empresas terão que agir a partir do poder judiciário local, antes de ir ter a Luxemburgo.

Assim, por exemplo se o Brasil participasse da União Européia, algumas demandas teriam que percorrer da primeira instância ao STJ, com um salto para a Corte de Justiça, que decidiria preliminarmente sobre a aplicabilidade e interpretação das normas comunitárias, estabelecendo os parâmetros para a decisão judicial, e o processo voltaria ao ponto em que ocorreu o recurso para ser decidido pelo juiz competente.

Porém esse curso era inevitável, diante da estrutura que se construiu na Europa, que criava um regime quase-constitucional (e, agora, se fala em uma constituição) para um mercado comum que evoluiu para o regime de união econômica, e, que terá, no futuro, além da moeda e do mercado comuns, um exército e uma diplomacia, também comuns. A União Européia então terá chegado a concretizar o sonho de Victor Hugo, e será os "Estados Unidos da Europa".

As normas do Protocolo de Brasília e do Protocolo de Ouro Preto, obedecendo á lógica do processo de integração que se visava na ocasião, estabeleceram um Sistema de Solução de Controvérsias que ou começa na Comissão de Comércio do Mercosul (CCM), conforme o anexo ao Protocolo de Ouro Preto, ou inicia no Grupo Mercado Comum (GMC), segundo dispõe o Protocolo de Brasília.

Há, então a possibilidade de um "fórum shopping" para as reclamações. Isto ocorria tanto nas reclamações próprias dos Estados Membros e naquelas originárias dos particulares.

Entretanto, a experiência prática mostrou que a maior parte das controvérsias ingressou na CCM e não diretamente no GMC. E levou, na seqüência dos fatos, a que CCM fosse regulamentando melhor o procedimento de consultas (cf. a DIR/CCM/17/99) para facilitar este diálogo, permitindo a solução das controvérsias.

No GMC, as respostas satisfatórias são tantas quanto na CCM. É que o GMC é uma instância recursal das consultas concluídas insatisfatoriamente (artigo 7º da Diretiva 17/99) ou o lugar em que as controvérsias são enfrentadas, após consultas diretas. Mas, parte delas não encontrou solução aí, e, por isso foram ter aos Tribunais Arbitrais, que resolveram com rapidez as questões.

Na prática, parece haver maior procura pelas soluções mais técnicas e menos políticas e, como o CCM tem caráter mais técnico que o GMC (que é um órgão formado por diplomatas) pode responder melhor a isto.

Certamente foi por consideração a esta preferência que nas negociações que conduziram ao Protocolo de Olivos chegou-se à conclusão de que era preciso revogar o Protocolo de Brasília (artigo 55, § 1º) mantendo a vigência do procedimento do Protocolo de Ouro Preto com o que, o recurso ao GMC tornou-se facultativo.

Ainda que a solução negociada ainda seja valorizada (artigo 4º do Protocolo de Olivos) pois "os Estados Partes numa controvérsia procurarão resolvê-la, antes de tudo, mediante negociações diretas", o artigo 6º, § 1º autoriza que frustradas as negociações diretas entre as Partes, estas recorram à instância judicial: — "se mediante as negociações diretas não se alcançar um acordo ou se a controvérsia for solucionada apenas parcialmente, qualquer dos Estados Parte na controvérsia poderá iniciar diretamente o procedimento arbitral previsto no capítulo 6º". Assim, após a entrada em vigor do Protocolo de Olivos, as controvérsias podem continuar a ingressar na CCM, mas se uma solução não for encontrada aí, não há necessidade mais de elevá-la ao GMC. Pode-se partir diretamente para a decisão arbitral.

Aliás, o Protocolo de Olivos pode também dar ensejo a que as partes se dirijam ao procedimento arbitral sem que haja negociações na CCM. Estas medidas resultaram em abreviar o procedimento o que é um grau maior na institucionalização do mecanismo de solução de controvérsias do Mercosul, mas ao mesmo tempo diminuem a margem de atuação política dos Estados. Mas isto resulta em que, embora não se tenha mudado a estrutura do sistema, ele tenha sido aperfeiçoado.

São esta flexibilidade, caráter evolutivo e capacidade de reagir ao impulso da necessidade que valorizam os mecanismos estabelecidos desde a criação do Mercosul, para sua implantação.

É muito importante, do ponto de vista do Direito, que a norma sirva para orientar as condutas, mas isto somente onde estas precisam de orientação, e que a regra jurídica corresponda aos anseios programáticos ou ideológicos do legislador.

As condutas decorrem inevitavelmente da cultura em que as pessoas se inserem.

Por isso mesmo, existem no mundo grandes famílias de Direito, e dentro dessas famílias os sistemas jurídicos de cada Estado são diferentes uns dos outros. Já dizia o velho João Monteiro que o Direito não é como fogo que arde da mesma maneira em todos os lugares.

Por isto, do ponto de vista da sua flexibilidade e capacidade de aperfeiçoamento, pelo fato de que responde a uma realidade política concreta, aos desejos dos participantes e aos limites que estes impõem quanto à renuncia de suas soberanias, o sistema de Solução de Disputas do Mercosul, é funcional.

Os estudos mais modernos de ciência política, quando focalizam o desenho ou o projeto das instituições internacionais, tem passado pela teoria da cooperação e pela teoria do projeto racional (racional design).

A cooperação é baseada no conhecido "folk theorem.", que diz que a cooperação entre as pessoas é possível em uma série de jogos (Friedman 1971, Fudenberg & Masking 1986).

A densidade da interdependência internacional estabelece uma interação que torna a cooperação viável entre os Estados. Esta é maior quando nos achamos diante de um mecanismo de integração regional, como no caso do Mercosul.

É claro que as crises são incentivos imediatos para que se salte as considerações de longo prazo, o que leva a diminuir o grau de cooperação. Mas, os problemas da cooperação estão ligados, e muito de perto, aos problemas da distribuição (aqueles em que é preciso atribuir algo a alguém, e em cuja atribuição, não é possível que ambos recebem da mesma forma).

Na teoria dos jogos, o exemplo clássico do problema de distribuição ocorre quando há escassez de um objeto essencial, situação que é estudada através do chamado "dilema dos prisioneiros", e que conduz à negociação chamada de "lose-win", onde o ganho de um é a perda do outro, e que os que viajaram com mais de uma criança no carro viveram, quando da escolha por elas do lugar junto à janela.

As diferenças de objetivos (sobretudo os imediatos) quando são consideráveis minam a cooperação, e, por isso, tornam-na difícil. Daí porque é preciso estabelecer válvulas de segurança e mecanismos que previnam a criação de impasses distributivos.

Assim, o mecanismo adotado pelo Mercosul é também eficaz do ponto de vista da sua modernidade porque ele parte de uma atitude de cooperação que é resultante do diálogo estabelecido na CCM ou no GMC buscando o resultado através do acordo. Valoriza-o, como ocorre em outros modelos modernos, como o da OMC.

Entretanto, quando os problemas distributivos levarem a diferenças insuperáveis entre as Partes, de tal forma que o diálogo não possa vencê-las, abre a porta para o mecanismo arbitral ou judicial.

A falha destes mecanismos, arbitral e judicial, adjudicatórios, é de que nunca levam à cooperação, mas sempre para a a forma mais extrema de solução distributiva.

Esta, se tem a vantagem da eliminação das zonas cinzentas tem a desvantagem evidente da criação da insatisfação quando repetida. Não é por outra razão que a lei que, nos Estados Unidos, aprovou a entrada em vigor dos acordos de Marrakesh estabeleceu que o USTR deverá elaborar um relatório para o Congresso informando-o, sempre que um certo número de casos tenha sido decidido de maneira que considere injusta ou orientada contra os Estados Unidos.

Também é por esta razão que se criaram as medidas de salvaguarda (embora estas atuem a posteriori) e que, no sistema do GATT era preciso obter o consenso positivo para aplicar as recomendações dos painéis.

O que se sinaliza no primeiro caso é que a aceitação do mecanismo adjudicatório da OMC, para os Estados Unidos, está condicionada a "fairness of decision", isto é, que haja uma justa equidade no trato entre as Partes, e que não se desvie de uma certa idéia de justiça e de legalidade.

Ora esta regra só apareceu no direito Norte Americano quando se acentuou o grau de jurisdiscisação da decisão no seio da OMC. Antes, no tempo do GATT, a regra interna do Direito Americano não exista. Por quê? Porque a predominância do mecanismo político permitia um exercício mais largo do sistema de cooperação. E, é claro que o sistema de cooperação atuava de forma mais favorável aos interesses da nação do norte, pela vantagem relativa que ela mesma gozava, pelo seu peso específico.

Vemos então que o respeito que os governos devem aos seus cidadãos e aos interesses destes levam em conta que, nem sempre, as decisões tomadas no âmbito de acordos internacionais são aceitáveis.

A criação de situações politicamente insustentáveis levaria a um processo em que o governo de um país ver-se-ia forçado a romper, denunciar ou mesmo desrespeitar os seus compromissos internacionais, ou enfrentar conseqüências políticas que pode considerar piores. Há, pois, um balanço delicado a ser mantido.

Num quadro como o do Mercosul, em que os paises Membros da organização internacional tem tantas dessimetrias, quantas crises econômicas, a sabedoria leva a buscar a flexibilidade, antes que a rigidez crie problemas mais graves e que inviabilizem a estrutura. Assim, deste ponto de vista, o Sistema de Solução de Disputas do Mercosul também é eficaz.

Já no que concerne à parte do Sistema de Solução de Disputas do Mercosul que se desenvolve dentro dos Estados Partes e que depende do Poder Judiciário dos mesmos, a resposta é negativa. Em nenhum dos quatro Estados integrantes do Mercosul o Poder Judiciário tem um grau de eficácia satisfatório que possa transmitir à Solução de Disputas. Em todos os quatro Estados, há a necessidade urgente de uma reforma que torne mais ágil e mais adequada a forma de decidir do Poder Judiciário, além de corrigir outras mazelas que não cabe discutir aqui.

O peso da tradição ibérica e uma série de outros fatores sociológicos, inclusive uma visão de Estado em que predominou por muito tempo o totalitarismo, levaram a que o Poder Judiciário não atingisse o ideal democrático de ser um órgão a serviço do povo e não a serviço do soberano.

A lógica do sistema vai levar, então, a que se busquem outras formas de atuação e controle, que também são apenas referidas para estabelecer o raciocínio sem que se possa aprofundá-las pela limitação de espaço. Hoje em dia, em todos os Estados do Mercosul, o recurso à arbitragem vem sendo o caminho pelo qual as pessoas vão escapando das dificuldades colocadas pela inadaptação do Poder Judiciário. A arbitragem vai-se tornando numa espécie de "plano de saúde" substituindo o "INPS" das soluções judiciais.

Somente se for alcançada maior eficácia no Poder Judiciário dos Estados Membros, haverá funcionalidade do Sistema de Solução de Disputas.

Não nos esqueçamos que mesmo que se chegasse a um sistema similar ao europeu, seria necessário passar pelo Poder Judiciário. No sistema europeu, quem recorre a maior parte das vezes para a Corte de Luxemburgo, não é o particular ou o interessado, mas é o próprio juiz que pede uma decisão interpretativa. E o recurso a uma corte comunitária seria uma ótima maneira de esvaziar as pautas dos tribunais...

Por essas razões, o balanço final é de que no quadro sociológico, como no histórico e econômico, a evolução do Sistema de Solução de Disputas do Mercosul demonstra que ele vem atuando de maneira adequada e que a sua funcionalidade, é mais que razoável embora não seja perfeita.