Artigo 07 José Carlos Magalhães

OS LAUDOS ARBITRAIS PROFERIDOS COM BASE NO PROTOCOLO DE BRASÍLIA PARA A SOLUÇÃO DE CONTROVÉRSIAS

José Carlos de Magalhães
Advogado.
Professor de Direito Internacional da Faculdade de Direito da USP;
Membro do Corpo de Arbitros do Brasil no Mercosul;
Membro dos Grupos Especiais do Sistema de Solução
de Controvérsias da OMC, indicado pelo Brasil;
Presidente da Seção Brasileira da International Law Association

 

Sumário: Partes nas controvérsias; A ausência de previsão sobre o esgotamento dos recursos internos; O esgotamento de fases antecedentes; Os laudos arbitrais; O cumprimento dos laudos arbitrais; O laudo arbitral como decisão internacional; A atuação do particular contra o Estado reclamado. 

Com os laudos arbitrais já proferidos, com base no Protocolo de Brasília para a Solução de Controvérsias, firmado pelos países que integram o Mercosul, é oportuno examinar-lhes a natureza jurídica, os seus efeitos no âmbito interno dos Estados e seus reflexos nos setores privados interessados.

Segundo o Protocolo de Brasília, as controvérsias entre os Estados que integram o Mercosul sobre a interpretação ou o não cumprimento das disposições do Tratado de Assunção, do Protocolo de Ouro Preto e demais acordos celebrados no seu âmbito, bem como das decisões do Conselho do Mercado Comum e das Resoluções do Grupo Mercado Comum, serão submetidas aos procedimentos nele previstos

Partes nas controvérsias

Uma primeira consideração é a de que o sistema de solução de controvérsias adotado pelo Protocolo de Brasília aplica-se tão somente à controvérsias entre Estados. Os particulares estão dele excluídos, não possuindo capacidade postulatória para provocar a instauração do procedimento de arbitragem nele estabelecido, que é exclusiva dos Estados. Aos particulares ficou facultado postular às autoridades de seu próprio Estado, a adoção de iniciativas destinadas a solução de controvérsias sobre matérias que lhes afetem os interesses. São os Estados, assim, que considerarão se devem ou não provocar o sistema de controvérsias, tendo a última palavra sobre o acolhimento ou não de pretensões privadas que requeiram a sua instauração.

O Protocolo de Brasília, seguindo a mesma linha do Sistema de Solução de Controvérsias da Organização Mundial do Comércio, adotou o procedimento similar ao da antiga proteção diplomática, segundo a qual, o indivíduo, cujos direitos foram violados pelo Estado estrangeiro, não tem capacidade postulatória própria, ficando sujeito à decisão de seu próprio Estado de defender-lhe os interesses. O Estado, por razões de política internacional ou de conveniência diplomática, poderá não acolher a pretensão do setor privado prejudicado por ato que considera contrário às normas do Mercosul, deixando de provocar o sistema de solução de controvérsias. O interessado dependerá exclusivamente de eventual acolhimento de sua pretensão pela autoridade competente de seu Estado. Outra alternativa a ser considerada é a de postular no Poder Judiciário do Estado que emitiu a norma considerada infratora da normativa do Mercosul, o acolhimento de sua pretensão, o que poderá ocorrer se for constatada pelo juiz local essa violação.

O sistema adotado pelo Protocolo de Brasília contraria a tradicional doutrina exposta pelo jurista argentino Carlos Calvo, observada no passado por alguns países da América Latina, como forma de se precaver contra as intervenções de potências estrangeiras. Segundo aquela doutrina, o estrangeiro não poderia gozar de mais direitos do que o nacional, razão porque não se reconhecia a proteção diplomática, como mecanismo de defesa do estrangeiro por atos do governo local. Haveria sempre que se exaurir os recursos internos propiciados pela ordem jurídica nacional, como condição para se qualificar eventual denegação de justiça, como ilícito internacional.

Embora contestada pelos países europeus em geral e pelos Estados Unidos, a doutrina Calvo — e a cláusula Calvo dela derivada — constituiu um marco nas relações dos países da América Latina com os demais e deu margem a diversas controvérsias internacionais (The Mexican Claims Commissions, 1923-1934; American Dedging Co. Claim e outros mencionados por Briggs, in The Law of Nations, Appleton Century Crofts N. Y,1952). A não concordância com os princípios que informam a Doutrina Calvo provém da idéia de que os Estados são obrigados a observar um padrão mínimo de conduta na esfera interna, no tratamento dos estrangeiros. A matéria encontra-se, atualmente, de certa forma, superada diante da prevalência da aplicação de princípios de direitos humanos universalmente consagrados, sobre eventuais normas nacionais que com eles conflitem.

A ausência de previsão sobre o esgotamento dos recursos internos

O Protocolo de Brasília não estabeleceu procedimento prévio à instauração da arbitragem, salvo a observância dos mecanismos de consultas e negociações nele reguladas, sem fazer qualquer referência ao esgotamento dos recursos internos do Estado reclamado, como proclamado pela doutrina Calvo. Em outras palavras, ainda que a medida ofenda a ordem jurídica interna do Estado, não exige o Protocolo que o interessado recorra aos mecanismos internos para obter a reparação ou o reconhecimento da ilegalidade do ato. Os atingidos pela medida considerada infratora das normas do Mercosul devem apresentar seu pleito à Seção Nacional do Grupo Mercado Comum de seu Estado, a qual compete decidir encaminhá-lo ao Grupo Mercado Comum, como preceitua o Capítulo V — Reclamações de Particulares.

Caberá sempre à Seção Nacional a faculdade de aceitar ou não a reclamação e provocar a intervenção do Grupo Mercado Comum para convocar especialistas, pedindo-lhes parecer sobre a matéria objeto do pleito. Se o resultado da análise feita for favorável, poderá o Estado reclamante pleitear a adoção de medidas corretivas ou a sua anulação. Se o pedido não for acolhido, abre-se a oportunidade para se iniciar o procedimento arbitral.

Ratifica-se, com esse procedimento, a não participação direta do particular do processo internacional de solução de controvérsias, ficando sempre na dependência da decisão das autoridades de seu próprio país.

Não obstante não haja previsão de utilização prévia de mecanismos propiciados no âmbito do Estado reclamado, nada impede que o particular afetado pelo ato considerado contrário às normas do Mercosul possa socorrer-se do Judiciário do país responsável pelo ato e nele buscar a reparação fora do âmbito do Protocolo de Brasília. Isto porque, se as normas do Mercosul estão integradas no regime jurídico dos Estados membros, uma decisão administrativa que as contrarie pode ser revista pelo Judiciário, com aplicação das normas internas de hierarquia superior, dando prevalência às emanadas da organização regional.

O esgotamento de fases antecedentes

Embora não estabeleça, como premissa, o prévio esgotamento dos recursos internos, o Protocolo de Brasília previu uma fase preliminar de negociações diretas entre as Partes, que, salvo acordo, não poderá exceder o prazo de 15 dias. Essa fase de negociações diretas, como se depreende do artigo 2º do Protocolo, constitui providência preliminar para a adoção da arbitragem. Essas negociações observam certo rito próprio, em que as Partes devem informar ao Grupo Mercado Comum sobre as gestões realizadas para compor a controvérsia e os resultados dessas gestões.

Não se alcançando acordo, poderão as Partes submete-la à consideração do Grupo Mercado Comum, que avaliará a situação, dando a cada Parte oportunidade para expor suas posições, devendo esse procedimento terminar no prazo de 30 dias (Capítulo III).

Somente após o término dessa fase prévia é que surge a oportunidade para o início do procedimento arbitral, regulado no Capítulo IV do Protocolo.

Da forma como está regulada essa fase procedimental, surge a inevitável questão de sua obrigatoriedade, como condição prévia necessária à instituição do procedimento arbitral. Ou seja, se não for observada, o procedimento arbitral não poderia ser iniciado. A redação do artigo 7º do Protocolo dá a entender que se trata de fase preliminar obrigatória, ao dispor que "quando não tiver sido possível solucionar a controvérsia mediante a aplicação dos procedimentos referidos nos capítulos II e III, qualquer dos Estados Partes na controvérsia poderá comunicar à Secretaria Administrativa sua intenção de recorrer ao procedimento arbitral que se estabelece no presente Protocolo".

Segundo essa redação, somente após exauridos os procedimentos das negociações diretas e da intervenção do Grupo Mercado Comum é que se poderia iniciar a arbitragem. Há que se levar em conta, todavia, que o inciso I do artigo 4º do Protocolo, ao regular a intervenção do Grupo Mercado Comum indica tratar-se de mera faculdade e não um dever: "...qualquer dos Estados Partes na controvérsia poderá submete-la à consideração do Grupo Mercado Comum". Mas essa faculdade pode também ser interpretada como uma possibilidade de o Estado Parte na controvérsia não se interessar em levá-la avante e se contentar com o resultado das negociações, resolvendo não a apresentar ao Grupo Mercado Comum.

Diante, contudo, da redação precisa do inciso I do artigo 7º, a fase prévia é indispensável, sem a qual o procedimento da arbitragem não poderia se iniciar.

A matéria foi abordada pela Argentina na arbitragem sobre a imposição de salvaguardas a produtos têxteis brasileiros. Segundo a Argentina, a pretensão brasileira no procedimento arbitral não corresponderia inteiramente à objeto das negociações e da intervenção do Grupo Mercado Comum. O laudo considerou que são as alegações das Partes que definem o objeto do litígio, e não o das negociações, considerando cumpridas as etapas anteriores, em conformidade com o artigo 16 do Protocolo. Em outras palavras, ainda que as pretensões deduzidas no processo de arbitragem não coincidam com as objeto das negociações empreendidas com a intervenção do Grupo Mercado Comum, o que prevalece são as apresentadas na arbitragem.

Os laudos arbitrais

Os laudos arbitrais proferidos foram provocados por pretensões de um Estado contra atos de outro, considerados violadores de normas do Mercosul, não obstante afetassem interesses de setores privados.

O primeiro, emitido em 28 de abril de 1999, examinou pretensão da Argentina contra as disposições dos Comunicados 37/97 e 7/98, do Departamento de Operações de Comércio Exterior (DECEX), da Secretaria do Comércio Exterior (SECEX), do Brasil, que continham medidas restritivas ao comércio recíproco.

Esses Comunicados estabeleceram sistema de licenças automáticas e licenças automáticas condicionadas e, portanto, não automáticas, sujeitas a procedimentos especiais, para a importação de produtos do exterior, com exigências zoosanitárias ou sanitárias expedidas pelo Ministério da Agricultura e outras. O objeto da controvérsia foi a compatibilidade ou não do regime de licenças com o conjunto normativo do Mercosul.

Concluiu o Tribunal Arbitral que (i) as licenças automáticas são compatíveis com o sistema normativo do Mercado, desde que não contenham condições ou procedimentos restritivos e se limitem a um registro realizado sem demora, durante o trâmite aduaneiro e (ii) as licenças não automáticas somente são compatíveis com esse sistema, desde que se refiram a medidas adotadas sob condições e fins estabelecidos no artigo 50 do Tratado de Montevidéu , com a eliminação de medidas não aduaneiras, que configurem obstáculos comerciais.

Determinou o Tribunal Arbitral que o regime de licenciamento adotado pelo Brasil deveria ajustar-se ao estabelecido no laudo, até o dia 31 de dezembro de 1999. Vale dizer, determinou ao Brasil a revisão do Comunicado 37, para adequá-lo às normas do Tratado de Montevidéu.

Note-se que os Comunicados em questão constituem normas infra-legais, cuja legalidade poderia ser examinada pelo Poder Judiciário brasileiro, em confronto com as do Mercosul incorporadas no regime jurídico vigente no país. Se a matéria fosse levada ao conhecimento do Judiciário, provavelmente o resultado seria o mesmo do laudo arbitral, prescindindo, portanto, do recurso ao Protocolo de Brasília.

O segundo laudo, emitido em 27 de setembro de 1999, examinou a pretensão da Argentina de caracterizar como subsídios a adoção, pelo Brasil, de medidas regulamentares sobre a produção e exportação de carne de porco, Essas medidas consistiam em (i) programas de regulação de estoques de milho (CONAB); (ii) equalização da taxa de juros para a exportação de suínos (PROEX) e (iii) a utilização de mecanismos de financiamento à exportação, por meio das antecipações de contrato de câmbio (ACC). O laudo considerou regular o programa de regulação de estoques, procedente a reclamação da Argentina sobre o PROEX, de equalização da taxa de juros - com o que o Brasil já concordara no curso do processo - e improcedente a pretensão relativa aos adiantamentos de contratos de câmbio.

Com a concordância do Brasil sobre a equalização da taxa de juros, a controvérsia deixou de existir, ocorrendo o cumprimento integral da decisão.

O terceiro laudo versou sobre a pretensão do Brasil contra a imposição, pela Argentina, de medidas de salvaguarda na importação de produtos têxteis brasileiros, com base no Acordo de Têxteis e Vestuários, da Organização Mundial do Comércio. Entendia a Argentina que não existiriam normas no âmbito do Mercosul que proibiam a imposição de salvaguarda, para proteção de determinado setor industrial e, assim, ocorreria uma lacuna na normativa no Mercosul, o que permitira aos Estados adotarem medidas de salvaguarda. O Brasil, por seu turno, sustentou que havia essa proibição desde de 1º de janeiro de 1995, com o término do prazo estabelecido no Tratado de Assunção. O laudo considerou que as normas editadas pela Argentina violavam o Tratado de Assunção e seu Anexo IV, que regulam a proibição de salvaguardas após 31 de dezembro de 1994.

O quarto laudo teve por objeto a reclamação do Brasil sobre a prática de dumping pela Argentina, não acolhida pelo Tribunal Arbitral. Entendia o Brasil que a Resolução ME 574/2000, do Ministério da Economia da Argentina e os procedimentos de investigação antidumping em que se baseia, não seriam compatíveis com as normas do Mercosul sobre investigação e aplicação de direitos antidumping no comércio entre os Estados Partes. Segundo a Argentina, os procedimentos de investigação antidumping e a Resolução 574/2000 não estão sujeitos às regras do mercado comum e sim à legislação nacional e nenhuma norma do Mercosul habilita o Tribunal a rever procedimentos adotados por um Estado Parte, sob sua legislação nacional.

Concluiu o Tribunal não haver previsão sobre a matéria no Tratado de Assunção, em seu Anexo I, e no Regime de Adequação Final à União Aduaneira. Decidiu, por isso, que os procedimentos de investigação e a Resolução ME 574/2000, da Argentina, não violam a regra de livre circulação de bens no Mercosul. Entendeu, também, que o Tribunal Arbitral possui competência para apreciar se um procedimento de investigação de dumping e as medidas antidumping constituem restrições à livre circulação de bens no âmbito da Organização.

O cumprimento dos laudos arbitrais

Em todas as controvérsias, bem como as que se lhe seguiram, as Partes foram Estados e o procedimento de solução de controvérsias foi o do Protocolo de Brasília. O cumprimento das decisões arbitrais deve ser feito pelo Estado vencido no prazo de 15 dias, salvo se outro for fixado pelo Tribunal. O eventual descumprimento do laudo acarretará a adoção, pelos demais Estados, de medidas compensatórias temporárias, tais como a suspensão de concessões ou outras equivalentes, visando a obter o cumprimento da decisão, como dispõe o artigo 23 do Protocolo de Brasília, assim redigido:

"Artigo 23 — Se um Estado Parte não cumprir o laudo do Tribunal Arbitral, no prazo de trinta (30) dias, os outros Estados Partes na controvérsia poderão adotar medidas compensatórias temporárias, tais como a suspensão de concessões ou outras equivalentes, visando a obter seu cumprimento."

Essa disposição permite concluir que, tratando-se de controvérsia entre Estados, cabe sempre aos que dela são partes exigir o cumprimento do laudo na esfera do Mercosul. E, prevendo o Protocolo de Brasília a sanção, será esta aplicável no quadro das relações intra-regionais. A suspensão de concessões, a imposição de tarifas aduaneiras especiais, ou a imposição de barreira não tarifária, podem ser adotadas, desde que destinadas a visar ao cumprimento da decisão do Tribunal Arbitral. Nesse caso, trata-se de sanção de caráter internacional — e não de medida protecionista — que pode atingir outro setor que não o objeto da decisão não cumprida.

Outra questão suscitada nos laudos arbitrais diz respeito ao direito dos que integram setor privado interessado de exigir do Estado vencido o cumprimento da decisão arbitral. Se, em princípio, o laudo resolve uma controvérsia entre Estados, o particular está afastado dos seus efeitos, pois a não observância de suas disposições implica na adoção de medidas compensatórias pelo Estado afetado e pelos demais Estados membros da organização.

Esse efeito, contudo, não esgota a questão, pois o exame da controvérsia e da norma interna considerada violadora da normativa do Mercosul não impede a adoção de medidas judiciais no âmbito do próprio Estado vencido na decisão arbitral. Se houver o descumprimento do laudo e, por esse motivo, ocorrer a imposição de medidas compensatórias que afetem outros setores privados do Estado vencido, as empresas e pessoas atingidas poderão reclamar indenização, na esfera interna, com fundamento no ilícito verificado. Seria a hipótese, por exemplo, de, em virtude de não atendimento das disposições do laudo, o Estado vencedor na arbitragem suspender concessões deferidas a outro setor empresarial não envolvido na controvérsia objeto da arbitragem. Seria uma medida retaliatória, imposta como sanção. Os interessados, vítimas do descumprimento do laudo, teriam legitimidade para pleitear reparação em seu Estado, ou o cumprimento da decisão, a fim de fazer cessar os efeitos da retaliação.

O laudo arbitral como decisão internacional

Outro aspecto a ser considerado é o de que o laudo arbitral emitido com base no Protocolo de Brasília é uma decisão internacional que obriga o país na órbita internacional e produz efeitos internos. A sentença internacional não se confunde com a sentença estrangeira, que é a proferida pelo poder judiciário de outro Estado, para ser executado no país. A sentença estrangeira provém de uma autoridade judiciária estatal, cuja execução no território de outro requer a prévia aprovação do judiciário local por meio de sentença homologatória. E o que se executa é a sentença homologatória nacional da sentença estrangeira.

O mesmo não ocorre com a sentença internacional, emanada de uma autoridade judiciária, ou arbitral, internacional instituída ou reconhecida pelo país, que se obrigou a acata-la. Possui autoridade própria e, por essa razão, executável no âmbito interno dos Estados que participaram do processo onde foi proferida.

Sentença internacional proferida em processo do qual o país é parte não requer homologação, pois se aplica contra o Estado parte no processo. E o Judiciário integra esse mesmo Estado, cabendo-lhe, se provocado, simplesmente dar cumprimento à decisão internacional, não possuindo, dessa forma, a prerrogativa de aceitá-la ou não. No Brasil, a Constituição confere competência ao Supremo Tribunal Federal apenas para homologar sentenças estrangeiras (art. 102, I, h), nada dispondo sobre sentenças internacionais.

É verdade que a lei 9307/96 (parágrafo único do artigo 34) considera estrangeiro o laudo arbitral proferido fora do território nacional. Sendo assim, o laudo arbitral emitido de acordo com o Protocolo de Brasília fora do Brasil poderia ser interpretado como estrangeiro, para os efeitos da lei, que, sendo posterior àquele Protocolo, poderia ter o efeito de derrogá-lo, uma vez que o Supremo Tribunal Federal tem entendido que lei revoga tratado anterior (Acórdão 8004, in RTJ 83/809). Todavia, esse efeito não ocorre, uma vez que o Protocolo de Brasília constitui norma especial, não derrogada pela lei geral sobre arbitragem (§ 2º do art. 2º da Lei de Introdução ao Código Civil).

Ademais, o caput do artigo 34 da lei estabelece que "a sentença arbitral estrangeira será reconhecida ou executada no Brasil, de conformidade com os tratados internacionais com eficácia no ordenamento interno e, na sua ausência, estritamente de acordo com os termos desta lei".

Portanto, seja por se tratar de laudo emitido com base em tratado internacional, seja pela aplicação da própria lei 9307/96, não há que se confundir o caráter internacional do laudo proferido com base no Protocolo de Brasília, com os de que trata a lei ordinária brasileira.

A atuação do particular contra o Estado reclamado

O particular interessado no resultado da controvérsia resolvida pelo laudo arbitral pode provocar o Poder Judiciário do Estado vencido, para que a norma tida como violadora da normativa do Mercosul seja revogada, como já enfatizado.

Tanto na arbitragem sobre o Comunicado 37, da Secretaria do Comércio Exterior, do Brasil, como na que decidiu sobre a Resolução emitida pelo Ministério da Economia da Argentina, que aprovou salvaguarda em relação a produtos têxteis brasileiros, os laudos abordaram normas editadas por autoridades administrativas competentes para regular o comércio exterior. Em ambos os casos não se cogitou de lei, mas de normas derivadas, sem força de lei e, portanto, a ela subordinadas.

Em ambos os casos, as normas administrativas consideradas infringentes do Tratado de Assunção ou do Protocolo de Ouro Preto, ou, ainda, de normas integradas na normativa do Mercosul, tal como definidas pelos laudos arbitrais, também violaram as leis dos Estados vencidos na arbitragem e, assim, ilegais, por isso mesmo inconstitucionais.

Examinando-se a questão sob o prisma exclusivo do direito interno do Brasil, o Comunicado 37 do DECEX violou a norma brasileira que deu vigência no país ao Tratado de Assunção (Dec. Leg. 197, de 25/09/91 e Dec. 350, de 21/11/91). Dessa forma, poderia o Judiciário brasileiro, independentemente da provocação do sistema de solução de controvérsias do Protocolo de Brasília, considera-lo ilegal, por ferir o decreto legislativo que aprovou o Tratado de Assunção, com publicidade conferida por decreto de promulgação. A ilegalidade consistiu na violação da lei brasileira que regula o comércio exterior com países do Mercosul. A ilegalidade do Comunicado 37 poderia, assim, ser reconhecida pela própria autoridade judiciária brasileira, provocada por particular interessado na importação de produtos de outros países do Mercosul, sem a observância das condições consideradas atentatórias às normas do Mercosul.

O mesmo poderia ocorrer na Argentina, no caso da imposição de salvaguarda contra produtos têxteis brasileiros. Um importador poderia pleitear ao Judiciário a declaração de ilegalidade da Resolução do Ministério da Economia que lhe proibia realizar importação de produtos têxteis do Brasil e obter sentença favorável. Sobretudo porque naquele país ao contrário do Brasil, as normas do Mercosul tem prevalência sobre as de direito interno.

Em ambos os casos, o Judiciário está apto a apreciar diretamente a questão sob o prisma de direito interno, pois a controvérsia versou sobre norma de caráter administrativo infra-legal que limitava a importação de produtos oriundos de país membro do Mercosul. O exame da legislação nacional levaria à mesma conclusão dos laudos arbitrais, que se limitaram a verificar a compatibilidade das normas contestadas, com as do Mercosul, vigentes em cada um daqueles países.

Se, todavia, os dois países, vencidos naquelas arbitragens, se recusassem a revogar as medidas administrativas tidas como violadoras das normas do Mercosul, ou, se o Judiciário, provocado por qualquer interessado, igualmente, não as considerasse ilegais ou inconstitucionais, caracterizar-se-ia, então, o descumprimento do laudo arbitral, autorizando o outro país a adotar medidas compensatórias.

Da mesma forma, se o laudo arbitral considerar que uma lei infringe o Tratado de Assunção, ou outra norma convencional acordada no âmbito do Mercosul, essa lei deveria ser revogada em cumprimento à decisão arbitral.

Aqui haveria que se levar em conta que, no Brasil, segundo a polêmica decisão do Supremo Tribunal Federal, já mencionada, e que tem prevalecido, a lei revoga o tratado e é por esta revogado, pois ambas estariam no mesmo nível hierárquico.

Sendo assim, o juiz brasileiro poderia não acatar pretensão sobre a violação das normas do Mercosul, pela lei nacional, cabendo unicamente aos Poderes Legislativo e Executivo, por meio de outra lei, revogar a lei infratora da convenção internacional.

Neste caso, o Poder Judiciário, em virtude do entendimento que o STF confere à matéria, daria prevalência da lei interna sobre a do Mercosul, considerando-a derrogada. Caracterizar-se-ia, então o descumprimento do laudo arbitral, com a possibilidade de os outros países do Mercosul partes na controvérsia por ele decidida, adotarem medidas compensatórias contra o Brasil.

Em tal situação, se o laudo arbitral considerar uma lei nacional em contradição com as normas abrangidas pelo Tratado de Assunção, o seu cumprimento somente poderia dar-se mediante a revogação dessa lei. Enquanto isso não ocorresse, estaria o país sujeito à sanções dos demais países que integram o acordo.