Artigo 05 Carlos Cozendey e Daniela Benjamin

Laudos arbitrais no marco do Protocolo de Brasília: a construção jurídica do processo de integração

Carlos Márcio Cozendey e Daniela Arruda Benjamin
Diplomatas, respectivamente Chefe e assessora
da Divisão do Mercado Comum do Sul,
Ministério das Relações Exteriores do Brasil

INTRODUÇÃO

Concebido como um mecanismo transitório, que deveria permanecer em vigência até a conformação do sistema definitivo de solução de controvérsias do Mercosul previsto no Anexo III do Tratado de Assunção,o Protocolo de Brasília conjuga uma série de elementos que são tributários do modelo clássico de solução de controvérsias do direito internacional público - negociações diretas, mediação, e recurso a arbitragem ad hoc - com procedimentos específicos — jurisdição obrigatória, prazos peremptórios e certa automaticidade das etapas procedimentais. Procurou-se, dessa forma, assegurar, de um lado, ampla flexibilidade, que possibilite levar em conta as injunções políticas inerentes à própria consolidação do processo de integração nos moldes previstos no Tratado de Assunção e, de outro, a segurança jurídica necessária para proteger os interesses das partes.

Desde o início do funcionamento do mecanismo de solução de controvérsias estabelecido no Protocolo de Brasília, que entrou em vigência em 16 de julho de 1993, foram emitidos oito laudos arbitrais.

Levando em conta o tempo de vigência do Protocolo de Brasília e os níveis alcançados pelos fluxos econômicos no Mercosul, é um número de casos relativamente reduzido. Por um lado, isto reflete a opção de privilegiar, sobretudo durante a fase inicial de consolidação do processo iniciado com a aprovação do Tratado de Assunção, a solução política das divergências surgidas entre os Estados Partes. Por outro lado, o recurso mais freqüente aos procedimentos arbitrais requer um grau mínimo de desenvolvimento do direito em termos de consolidação das regras e tradução dos compromissos entre os Estados em normas, com progressivo detalhamento e especificação das obrigações. Ou seja, foi necessário alcançar um grau mais avançado de maturidade do processo de "construção normativa" do Mercosul.

A despeito do número reduzido de laudos, os ditames emitidos estabelecem um conjunto significativo de indicações sobre como devem ser interpretados e aplicados o Tratado de Assunção e as normas emanadas dos órgãos do Mercosul.

O presente trabalho pretende, através de uma leitura desses laudos arbitrais, contribuir para elucidar como se vem paulatinamente concretizando a dimensão jurídica do processo de integração, tanto no que se refere a aspectos do funcionamento do sistema de solução de controvérsia e ao alcance e natureza do sistema normativo do Mercosul, quanto no que se refere à interpretação dos compromissos assumidos pelos Estados Partes do Mercosul para estabelecer e fazer avançar o processo de integração.

Cabe recordar que os resultados do sistema de solução de controvérsias do Mercosul, dada sua natureza arbitral e "ad hoc", aplicam-se apenas às partes envolvidas na controvérsia que produza estes resultados. Entretanto, como ocorre também em outros sistemas de solução de controvérsias vinculados a acordos comerciais, como é o caso da própria OMC, embora não exista formalmente o estabelecimento de precedente obrigatório, cada laudo procura valer-se das conclusões de laudos anteriores, garantindo, ainda que informalmente, a preservação de certa coerência entre as interpretações ao longo do tempo, o que nos permite então falar de uma "construção jurisdicional" do Mercosul que, ao lado da "construção normativa" resultante das negociações entre os Estados partes, conforma o processo de "construção jurídica" do Mercosul.

O reforço da construção jurisdicional foi um dos objetivos da reforma prevista no Protocolo de Olivos, que dotará o sistema de novos elementos que favoreçam a coerência dos resultados ao longo do tempo, como o novo processo de seleção do "terceiro árbitro" e a conformação de um Tribunal de Apelação. Mesmo não havendo a obrigatoriedade do precedente, é de se esperar que prevaleçam ao longo do tempo e sejam retomadas pelos sucessivos laudos as interpretações que alcancem grau amplo de aceitação e reforcem o processo de integração.

I - ÂMBITO DE APLICAÇÃO DO SISTEMA DE SOLUÇÃO DE CONTROVÉRSIAS

De acordo com o artigo 1º do Protocolo de Brasília, com as adaptações operadas por força do disposto no artigo 43 do Protocolo de Ouro Preto, que estende a aplicação do Protocolo de Brasília às Diretrizes da Comissão de Comércio, o procedimento de solução de controvérsias do Mercosul aplica-se às controvérsias que surgirem entre os Estados Partes sobre a interpretação, a aplicação ou o não cumprimento das disposições contidas no Tratado de Assunção, seus Protocolos e normas complementares, nos Acordos celebrados no âmbito do Tratado de Assunção e nas normas emanadas dos órgãos decisórios do Mercosul.

À luz desse preceito geral, vários laudos arbitrais foram chamados a se pronunciar sobre eventuais limitações ou condicionantes ao recurso ao sistema de solução de controvérsias em geral e ao procedimento arbitral em particular.

1 — Alegação prévia de inexistência de norma aplicável

Os tribunais arbitrais têm adotado postura favorável à amplitude da possibilidade de recurso aos procedimentos de solução de controvérsias. Até o momento, não houve caso em que tenha sido denegada a um Estado Parte a abertura de um procedimento arbitral ou em que uma questão prévia de impugnação do recurso aos procedimentos de solução de controvérsia tenha sido considerada procedente.

Nos dois casos em que foram especificamente suscitadas questões prévias, com base na alegada inexistência de normativa MERCOSUL pertinente, os árbitros indeferiram as pretensões da demandada de que não prosperasse a arbitragem, considerando que a própria divergência sobre a existência ou não de norma aplicável já constituía uma controvérsia pertencente ao âmbito de aplicação do Protocolo de Brasília.

No caso de Produtos têxteis, a Argentina alegava a inexistência de normas Mercosul que regulassem especificamente a adoção de salvaguardas no setor têxtil no comércio intrazona, razão pela qual não haveria obrigações entre os Estados Partes nessa área. Em não havendo obrigações, não se caracterizaria, no entendimento argentino, descumprimento de normas passível de ser objeto de um procedimento de solução de controvérsias no marco do Protocolo de Brasília. O Tribunal, contudo, recorrendo aos princípios de direito internacional para precisar a noção de controvérsia entre Estados, entendeu que se havia configurado um conflito entre as partes sobre a existência de um direito ou obrigação, expresso nas diferentes posições sobre o alcance e interpretação das disciplinas Mercosul com relação aos produtos têxteis e à utilização de salvaguardas no comércio intrazona. Essa diferença, no entendimento do Tribunal seria " evidência suficiente para considerar que a [presente] controvérsia cai dentro do sistema de solução de controvérsias previsto pelo Protocolo de Brasília".

Nos termos do parágrafo 101 do laudo de Frangos " o simples fato de que o Brasil e a Argentina discrepem sobre a existência ou não de normas do Mercosul que regulem a investigação do dumping intrazona e a aplicação de medidas antidumping, assim como sobre o eventual alcance dessas normas, determina claramente a existência de uma controvérsia nos termos do PB (art 1º), ou seja, sobre a interpretação, aplicação ou descumprimento das normas do Mercosul, o que torna aplicável o sistema de solução de controvérsias".

Em conseqüência, em ambos os casos, a questão da existência de norma aplicável não foi considerada uma questão prévia, mas uma questão de fundo a ser resolvida no contexto dos procedimentos arbitrais.

O laudo de Produtos têxteis foi taxativo a respeito, afirmando que "o consentimento expresso para a aplicação de medidas de salvaguarda pelo Mercosul sob o seu direito e a existência ou não de uma obrigação que emane dessas disposições são questões que devem ser consideradas e decididas como uma questão de fundo e não como uma questão preliminar".

Nessa mesma linha, no caso de Frangos, os árbitros, entenderam que caberia tratar a alegação de inexistência de normas aplicáveis conjuntamente com as demais alegações das partes e não de forma preliminar, já que "a ausência de normas daria lugar a indagar qual seria o efeito dessa ausência. E, naturalmente, o resultado dessa análise está relacionado com as inconsistências legais aduzidas pela Parte Reclamante. Decidir essa trama de questões ligadas e dependentes entre si implica decidir o fundo da controvérsia apresentada".

2 - Condições de Admissibilidade ao Procedimento Arbitral

   Existência de dano ou ameaça de dano

Por força da redação do artigo 1º do Protocolo de Brasília, no caso das controvérsias movidas diretamente por iniciativa dos Estados, no marco dos Capítulos II a IV do PB, o recurso ao procedimento arbitral não está condicionado à demonstração de que a medida imputada à parte demandada causou ou ameaça causar danos economicamente mensuráveis à demandante, o que se confirma, ainda, pela ausência de menção ao assunto nos laudos arbitrais.

Os procedimentos específicos previstos no Capítulo V do Protocolo de Brasília para demandas oriundas de particulares, cujo âmbito de aplicação é definido pelo artigo 25 do PB em termos distintos daqueles vigentes para controvérsias iniciadas pelos Estados, prevêem, por sua vez, etapa prévia de exame da demanda do particular pela Seção Nacional do Grupo Mercado Comum do país a que pertence, na qual devem ser examinadas a veracidade da violação da normativa e a existência de dano ou ameaça de dano aos interesses do particular.

Nesse contexto, parece evidente que, para que a controvérsia prospere, o Estado tenha que comprovar o dano perante o tribunal arbitral. A exigência parece lógica na medida em que, embora originada de reclamação de particular, a controvérsia é conduzida pelo Estado que lhe encampa a demanda. Se estivesse na alçada exclusiva do Estado a que pertence o particular, o exame de admissibilidade estaria sob controle do próprio demandante e ficaria desprovido de valor.

O alcance dessa condição de admissibilidade foi objeto de exame arbitral no caso de Carne de porco. Embora a controvérsia não tenha seguido todas as etapas do Capítulo V, já que foi tramitada com amparo no anexo do Protocolo de Ouro Preto sobre Reclamações perante a Comissão de Comércio, o laudo é bastante claro quanto à necessidade de que seja comprovada, no caso de demanda originada de particulares, a existência de dano.

De acordo com os árbitros, se depreende do artigo 26 do Protocolo de Brasília, que "a Seção Nacional analisa o que no Direito Processual é conhecido como "fumus bonis juris", ou seja, em que elementos se apoia a verossimilhança do direito que possa assistir o particular concretamente no caso formulado e de seu prejuízo. Evidentemente, nesta etapa, ainda não começou a funcionar o procedimento arbitral, seu único efeito é - no caso em que a avaliação da Seção Nacional seja positiva - habilitar o ingresso à etapa seguinte (...) No âmbito do processo arbitral propriamente dito regem as normas e princípios gerais em matéria jurisdicional, razão pela qual deverão ser provadas as afirmações realizadas pelas partes. Assim como ocorre nos Direitos Processuais Internos, a certificação prévia que possa ter sido realizada em processos anteriores ou cautelares, não exime as partes da apresentação da respectiva prova no processo principal. Conseqüentemente, conforme o parecer do Tribunal, não é suficiente que se alegue a sanção ou a aplicação, por parte de qualquer dos Estados Partes, de medidas legais ou administrativas de efeito restritivo, discriminatório, ou de concorrência desleal contra o sistema normativo do Mercosul, sendo também necessário que apresentem provas da existência ou da ameaça de um prejuízo derivado de tal violação".

A prevalecerem ao longo do tempo estas interpretações, e se levarmos em conta que um Estado sempre poderá apresentar diretamente uma controvérsia solicitada por um particular sem exigir-lhe o cumprimento dos procedimentos do Capítulo V, estes procedimentos parecem estar destinados aos casos em que o Estado, embora não deseje dar curso à demanda, não se dispõe, possivelmente por razões políticas internas, a impedir-lhe o avanço.

   Cumprimento das fases anteriores

Embora a questão do cumprimento das fases anteriores não tenha surgido como uma questão controversa relacionada à admissibilidade, todos os laudos mencionam o cumprimento das fases anteriores como requisitos necessários cumpridos.

O laudo sobre Carne de porco, ao analisar aspectos de procedimento (parágrafos 31 a 42), assinalou, por exemplo, que tanto nas controvérsias movidas por iniciativa direta dos Estados Partes, quanto no caso de controvérsias iniciadas a pedido de particulares, o Protocolo de Brasília prevê um procedimento composto por etapas necessárias e sucessivas, cujo cumprimento habilitaria passar à fase seguinte.

A obrigatoriedade desse requisito é confirmada também no contexto das discussões sobre a definição do objeto da controvérsia (vide item seguinte), em que os Tribunais invariavelmente têm-se pronunciado sobre a impossibilidade das Partes irem diretamente à fase arbitral, obviando as etapas anteriores previstas no Protocolo de Brasília, ocasião em que se delimitaria o objeto da lide. Nos termos do parágrafo 43 do laudo supra mencionado "o procedimento de solução de controvérsias no Mercosul se desenvolve em diferentes fases (...) estes procedimentos formam parte de um mesmo item, destinado a encontrar uma solução para o conflito"

Em geral, à parte a delimitação do objeto, os árbitros têm atribuído à culminação das etapas prévias à arbitragem valor procedimental, de habilitar à instância seguinte. O laudo de Frangos esclarece, a propósito da fase de negociações diretas, que a obrigatoriedade não implica qualquer compromisso em termos de resultados ou da efetividade das gestões realizadas, sendo suficiente, para todos os efeitos, que a parte demandante dê oportunidade à parte demandada de resolver a questão antes da fase arbitral, mediante pedido de abertura de negociações diretas. A não participação na negociação direta não impediria, portanto, que a mesma fosse dada por concluída, nos prazos estabelecidos pelo Protocolo, com vistas ao início da fase subseqüente. De acordo com os árbitros, "uma solução diferente seria incongruente com o conjunto do sistema de solução de controvérsias e o privaria de sentido, ao fazê-lo potestativo da parte reclamada".

O raciocínio, em tese, aplicar-se-ia também à fase de intervenção do GMC, instância, aliás, em que raramente é possível, na prática, lograr consenso para a adoção de medidas tendentes à solução de controvérsias, o que levou os Estados Partes a considerá-la como facultativa por ocasião das negociações do Protocolo de Olivos.

3 - Definição do Objeto da Controvérsia

Na ausência de disposição específica sobre o assunto no Protocolo de Brasília, os Tribunais viram-se na contingência de se pronunciar em diversas oportunidades sobre a questão da delimitação do objeto da controvérsia, isto é, sobre em que momento se define a pretensão das partes.

Cabe ressaltar inicialmente que nunca se questionou o fato de que os Tribunais Arbitrais devem ater-se às pretensões das partes, não estando previsto no âmbito do Mercosul a possibilidade de julgamentos ultra petitae.

Nesse contexto, em geral as Regras de Procedimento adotadas pelos Tribunais estabelecem como preceito básico, acompanhando o regulamento do Protocolo de Brasília, que o objeto da lide se define por ocasião da apresentação dos textos de apresentação e resposta das Partes, que, de certa maneira, demarcam suas fronteiras, não se admitindo ampliações posteriores do objeto.

No caso de Produtos têxteis, o Tribunal afirmou, por ocasião do pedido de esclarecimentos apresentado pela Argentina, que uma interpretação textual e de boa-fé do artigo 28 do Regulamento do Protocolo de Brasília levava a estabelecer que o objeto da controvérsia é aquele determinado pelos textos de apresentação e resposta submetidos à apreciação do Tribunal, já, portanto, na fase arbitral.

Em realidade, tendo presente o valor das fases anteriores do procedimento, os árbitros, em geral, têm reconhecido que não se pode sequer acrescentar na fase arbitral questões não levantadas nas fases anteriores, sob pena de frustar-se o disposto no artigo 2 º do Protocolo de Brasília, segundo o qual se deve procurar resolver as controvérsias, antes de tudo, mediante negociações diretas.

De acordo com o preceito consagrado no laudo sobre os Comunicados Decex, o qual vem sendo reiterado nos demais casos, "está claro que tanto o Protocolo de Brasília como o de Ouro Preto, ao prever etapas prévias à arbitragem, determinam que não se pode agregar, nesta última instância, questões não processadas nas etapas anteriores, e os textos de apresentação e de resposta perante o Tribunal devem ajustar-se a essa regra." Nos termos do laudo sobre Carne de porco, "se admitíssemos na fase arbitral reclamações não alegadas na fase anterior, estaríamos aceitando que se pode desprezar a fase diplomática para ir diretamente à fase arbitral, o qual violenta a letra e o espírito do procedimento de solução de controvérsias do Mercosul".

No caso sobre Pneumáticos, o Tribunal entendeu que o texto do artigo 28 do Regulamento do Protocolo de Brasília, "interpretado de boa fé e em conformidade com o objeto e fim do tratado que o contém, claramente expressa que a Parte Reclamante e a Parte Reclamada determinarão o objeto da controvérsia até a apresentação perante o Tribunal Arbitral Ad Hoc dos escritos de reclamação e resposta e nunca após a mesma", Para os árbitros, "os princípios elementares de lógica jurídica e razoabilidade impõem, em face de cada caso particular, apreciar se, em razão da intensidade e dos alcances das negociações diplomáticas como passo prévio necessário para recorrer à arbitragem, as Partes fixaram o objeto da controvérsia". Neste contexto, citando, o laudo sobre Carne de Porco, o Tribunal assinala que " se o objeto da controvérsia foi fixado na etapa de negociações diplomáticas, a partir de então já não pode haver modificação do objeto da lide pelas partes envolvidas". O laudo parece, assim, buscar conciliar a referência simples aos texto do regulamento do Protocolo de Brasília, adotada no caso de Produtos têxteis, com a linha seguida nos demais casos.

Cabe registrar, a propósito, que, na mesma linha do entendimento comum à maioria dos Tribunais Arbitrais, o artigo 14 do Protocolo de Olivos estabelece expressamente que as alegações constantes dos textos de apresentação e resposta apresentados perante o Tribunal devem basear-se nas questões consideradas nas etapas prévias previstas no Protocolo de Brasília e no Anexo do Protocolo de Ouro Preto.

Observe-se, finalmente, que, segundo os diversos laudos que já se pronunciaram sobre o assunto, a impossibilidade de levantar perante o Tribunal questões não mencionadas nas etapas anteriores não significa que as partes não possam complementar ou aprofundar os argumentos inicialmente apresentados, nem tampouco prejulga a possibilidade de o Tribunal vir a considerar atos internos, posteriores ao início da controvérsia, que modifiquem o ato anterior contestado "se a questão controvertida se mantém nos novos atos jurídicos (já que) uma solução contrária levaria à possibilidade de que por modificações formais sucessivas nos atos administrativos nunca se pudesse chegar a um pronunciamento arbitral sobre o fundo"

II - MARCO JURÍDICO APLICÁVEL ÀS CONTROVÉRSIAS

Um outro aspecto que vem sendo abordado pela maioria dos laudos arbitrais, ainda que, em muitos casos, de forma indireta, é a questão do marco jurídico aplicável às controvérsias, seja no que se refere às regras que deverão ser utilizadas pelo intérprete para analisar o caso, seja no que se refere ao método de interpretação utilizado.

1. Norma aplicável para solucionar os conflitos

De acordo com o artigo 19 do Protocolo de Brasília, o Tribunal deve decidir a controvérsia com base no disposto no Tratado de Assunção, nos Acordos celebrados no âmbito do Tratado de Assunção e nas Decisões, Resoluções e DIretrizes emanadas dos órgãos decisórios do Mercosul, bem como nos princípios e disposições de direito internacional aplicáveis na matéria.

O laudo IMESI explicita, a propósito do assunto, os limites de atuação dos árbitros no que se refere aos fundamentos de suas decisões, ao considerar que, como órgão ad hoc do MERCOSUL, integrante de um organismo internacional, o Tribunal toma como critério para informar sua decisão, dentro dos limites de seu mandato, a "razoabilidade e a obediência aos textos, sem atrever-se a editar normas novas, posto que não é essa sua função".

Cabe registrar que não parece existir qualquer dúvida de que a redação do artigo 19 do Protocolo de Brasília contempla a totalidade das fontes jurídicas do Mercosul, definidas de forma explícita apenas em 1994 com a aprovação do Protocolo de Ouro Preto.

Carece, contudo, de maior precisão, a prerrogativa do Tribunal de analisar o caso à luz dos princípios do direito internacional aplicáveis à matéria, cujo alcance não resulta evidente da leitura dos laudos arbitrais.

É importante ressaltar também que, apesar de o artigo 19 do Protocolo de Brasília prever a possibilidade de o Tribunal decidir a controvérsia ex aequo et bono, se as partes assim o convierem, nenhuma decisão arbitral até o momento foi adotada com base na eqüidade, permanecendo os árbitros adstritos aos textos legais e aos princípios do direito internacional.

   Aplicação das normas emanadas dos órgãos Decisórios do MERCOSUL

À luz do sistema previsto no Protocolo de Ouro Preto para adoção e vigência das normas do MERCOSUL, os Tribunais que se manifestaram sobre o assunto entendem que, com vistas à aplicação da normativa Mercosul no marco do sistema de solução de controvérsias, não deve permanecer dúvida quanto à sua vigência nos termos do artigo 40 do Protocolo de Ouro Preto.

De acordo com o laudo de Frangos, o cumprimento dos requisitos previstos no Protocolo de Ouro Preto no que se refere à incorporação da normativa MERCOSUL ao ordenamento jurídico dos Estados Partes e ao procedimento de notificação tem caráter de "requisito indispensável para a vigência e a aplicação das normas

O Tribunal de Fitossanitários esclarece, a propósito, que "no obstante la obligatoriedad de la normativa Mercosur (se configure) desde su perfeccionamiento por el consenso de los Estados Partes, la vigencia de las mismas es postergada hasta la efectiva incorporación de dicha normativa al derecho interno de cada uno de los Estados Partes, en los casos que esto es necesario". Citando o laudo de Frangos, o Tribunal recorda que, por força do mecanismo de vigência simultânea estabelecido no artigo 40 do Protocolo de Ouro Preto, "la vigencia (das normas do Mercosul) sólo se produce simultáneamente para todos los EPM cuando todos ellos han dado cumplimiento al procedimiento del art. 40"

   Aplicação dos Princípios Gerais de Direito Internacional

Embora, em geral, reconheçam, como veremos mais adiante, certa especificidade ao sistema normativo do Mercosul, os laudos arbitrais não têm hesitado, com base no artigo 19 do Protocolo de Brasília, em valer-se, para informar suas decisões, de princípios gerais do Direito Internacional como, entre outros, o pacta sunt servanda - segundo o qual todo tratado em vigor obriga as partes e deve ser cumprido por elas (artigo 26 da Convenção de Viena) - da boa fé - que estabelece não somente o apego formal à letra dos textos, mas a obrigação de não frustrar os objetivos dos compromissos assumidos— e mesmo o estoppel — que veda a qualquer das partes no litígio atuar em contradição com comportamento prévio com base no qual a outra parte terá agido em seu próprio detrimento, ficando, a parte que adotou o comportamento, a ele obrigada pelo princípio da boa fé.

Tais preceitos, se bem não constituem uma categoria particular de direito internacional, estabelecem, em geral, o marco em que se desenvolvem as relações jurídicas em um sistema específico, evitando os impasses causados pelos vazios jurídicos eventualmente existentes .

O laudo de Pneumáticos recorda, a propósito, que, com base no artigo 19 do Protocolo de Brasília, o Tribunal deverá levar em consideração a utilização de critérios integradores da normativa MERCOSUL com as normas e princípios que regulam o direito internacional, no entendimento de que o Protocolo de Brasília "expressamente consagra como fonte normativa do Mercosul os princípios e disposições do direito internacional aplicáveis à matéria. (Conforme Laudo Arbitral sobre "Restrições de acesso ao mercado argentino de bicicletas de origem uruguaia")".

No mesmo sentido, o laudo sobre Fitossanitários reconhece que, em função do artigo 19, são aplicáveis à controvérsia submetida à decisão do Tribunal os princípios de pacta sunt servanda, boa-fé e razoabilidade. De acordo com o laudo, a aplicação desses princípios permite ao intérprete completar o vazio normativo e delimitar o alcance dos compromissos assumidos no âmbito do MERCOSUL, "llenando de contenido el concepto jurídico indeterminado" (no caso, a ausência de prazo para incorporação das normas Mercosul objeto da controvérsia).

Seguindo essa linha de raciocínio, o Tribunal de Frangos valeu-se do princípio de direito administrativo de "desvio de poder", tomado como um princípio geral de direito, para avaliar se a aplicação de medidas antidumping pela Argentina havia sido utilizado como forma de violar, de forma direta ou indireta, o princípio da livre circulação previsto no Tratado de Assunção.

A inclusão dos princípios gerais de direito internacional na categoria de fonte normativa do Mercosul, contudo, não é pacífica. No laudo sobre Produtos têxteis, por exemplo, os árbitros referem-se a esses princípios como elementos a serem considerados no contexto da interpretação das normas Mercosul. No laudo sobre os Comunicados Decex, os princípios gerais de direito internacional são tratados na parte relativa ao marco conceitual interpretativo utilizado pelo Tribunal para conhecer a controvérsia.

De fato, a questão abre-se ao debate, na medida em que o artigo 41 do Protocolo de Ouro Preto lista de forma exaustiva as fontes jurídicas do Mercosul sem que haja referência, como no artigo 19 do Protocolo de Brasília, a "princípios e disposições de direito internacional". A tomar-se esta diferença como significativa, os princípios gerais de direito, preservada, evidentemente, sua vigência para os Estados Partes do Mercosul enquanto princípios reguladores das relações entre países da Comunidade das Nações, figurariam no sistema jurídico do Mercosul como elementos supletivos no marco do sistema de solução de controvérsias. Neste sentido, se manifesta o laudo sobre o IMESI, ao afirmar que "a referência que se faça às demais normas de direito internacional, como os Tratados de Montevidéu e a OMC, só serviria para integrar lacunas"

Independentemente da acepção adotada, parece haver uma certa tendência em interpretar os princípios gerais aplicados no âmbito de uma controvérsia à luz da especificidade dos compromissos assumidos no marco do Tratado de Assunção, conferindo-lhes matizes próprias.

Nos termos do laudo de Pneumáticos, por exemplo, a aplicação do princípio do estoppel a uma situação particular no contexto das relações entre Estados vinculados por tratados de integração econômica, como no caso do Mercosul, "não pode fazer abstração da relação especial que tais tratados criam entre seus signatários. A existência desta relação básica, constituída por um tratado e logo desenvolvida através dos anos por outros atos jurídicos, assim como por atividades comerciais e produtivas, deve ser levada em conta ao considerar-se a possibilidade de aplicar a uma situação particular a teoria do ato próprio ou estoppel".

Da mesma forma, o laudo IMESI, pronunciando-se sobre o princípio da exceptio non adimpleti contractus dispõe que o princípio "tem o alcance mais limitado que se possa imaginar dentro de uma organização de integração regional que visa tornar-se um mercado comum, porque nessa o que se procura é a concretização de uma situação de direito para que seja mais pronunciada ainda do que já é no direito internacional público."

   Aplicação de normas específicas do sistema multilateral de comércio

Se a aplicação dos princípios gerais de direito parece ser, como fonte normativa ou como marco conceitual interpretativo, amplamente aceita, o mesmo não se pode dizer da aplicação direta de princípios e regras específicas já consagrados em outros foros de que participam todos os Estados Partes, em especial no âmbito da Organização Mundial do Comércio. Regras, aliás, que costumam ser invocadas com freqüência pelas partes, ao formular suas respectivas pretensões, em função da ausência de definição explícita de vários dos conceitos que figuram no Tratado de Assunção, e mesmo no direito derivado, e do natural paralelismo dos temas regulados no âmbito regional e multilateral.

A despeito de vários laudos terem reconhecido que a aplicação das normas e objetivos do Tratado de Assunção devem realizar-se a partir de uma ótica integradora com as normas e princípios de direito internacional, em especial com as regras da OMC (pela natureza dos temas tratados) , parece haver certa relutância, por parte dos Tribunais Arbitrais Ad Hoc, em aplicar diretamente aos litígios entre os Estados Partes do Mercosul disposições concretas estabelecidas nas regras de comércio multilateral, que vinculam os quatro Estados Partes do Mercosul.

O laudo de Frangos evidencia claramente essa tendência, afirmando textualmente que "a existência em todos os EPM de uma mesma normativa em matéria de comércio internacional resultante da ratificação por todos eles dos acordos de Marraquesh não significa, contudo, que se trate de uma normativa Mercosul, ou seja, de uma disciplina comum adotada formalmente para reger suas relações recíprocas comerciais dentro do sistema regional de integração. A partir deste ponto de vista, a semelhança das legislações através da ratificação dos acordos com os que se finalizou a Rodada Uruguai do GATT não é um traço distintivo e próprio dos países do Mercosul, e sim um fator comum com a maior parte dos estados da comunidade internacional do qual não cabe derivar nenhum compromisso específico de caráter regional (...) O fato de que todos os países da área tenham uma mesma legislação não significa per se que tal legislação constitui normativa Mercosul, ou seja, um disciplinamento comum de uma determinada matéria a propósito do qual se possam formular questões de interpretação, aplicação ou descumprimento que suscitem o funcionamento do sistema de solução de controvérsias do Mercosul (...) A aplicação da normativa OMC como normativa Mercosul é possível apenas por referência expressa àquela por una norma Mercosul".

O que vale para as regras, com mais razão vale para as exceções: no caso de têxteis, o Tribunal considerou que não deveria acatar o argumento da demandada de que poderia aplicar salvaguardas a produtos têxteis porque eram permitidas no âmbito da OMC, no entendimento de que, de qualquer maneira, as salvaguardas somente poderiam ser utilizadas no comércio intrazona "desde que tais medidas sejam tomadas de acordo com uma norma expressa desse sistema que assim o autorize". À juízo do Tribunal, " se os Estados Membros consideram necessário aplicar normas do GATT com o objeto de permitir salvaguardas dentro do MERCOSUL, possuem capacidade para fazê-lo, de qualquer maneira, de forma explícita." (mediante remissão expressa em norma Mercosul à normativa da OMC)

Assim, o recurso às regras da OMC foi pacífico para os árbitros apenas quando da existência de remissão explícita nas normas do Mercosul, como deixou claro o laudo sobre Carne de porco, em função da menção específica da Decisão CMC Nº 10/94, cujo artigo 1 º estipula que os Estados Partes se comprometem a aplicar incentivos às exportações que respeitem as disposições resultantes dos compromissos assumidos no âmbito do GATT, sem prejuízo do respeito às disposições da norma MERCOSUL. Nesse contexto, os árbitros consideraram que para dirimir a controvérsia seria indispensável analisar o caso à luz dos preceitos estabelecidos na OMC, ressaltando que a referência aos princípios e disposições do direito internacional aplicáveis na matéria no artigo 19 do Protocolo de Brasília "adquire relevância especial num processo de integração em formação e em pleno curso de aprofundamento, o qual requer uma constante elaboração normativa interna e a coordenação das políticas do bloco com as normas que regem o comércio internacional".

No mais, o recurso às regras da OMC foi aceito com função clarificadora de conceitos, mas não como direito aplicável. No próprio laudo de Frangos, as disciplinas da OMC foram utilizadas para esclarecer o conceito de direitos antidumping e para esclarecer o conceito de área de livre-comércio (no contexto de definir se os direitos antidumping devem ser eliminados numa área de livre comércio), mas não para a avaliação da correta aplicação dos direitos antidumping questionados, mesmo havendo o Tribunal determinado a inexistência de disciplinas vigentes no Mercosul sobre o tema.

O laudo IMESI, por outro lado, abre uma possibilidade distinta, na medida em que afirma, a propósito do alcance do princípio da liberalização comercial, que "as exceções, embora não sejam diretamente contempladas pelos Tratados do MERCOSUL, serão apenas as previstas pelo art. 50 do Tratado de Montevidéu e pelos arts. XX e XXI do GATT/1994" . Cabe a ressalva, contudo, de que a eventual aplicação da normativa do GATT mencionada ao comércio intrazona não estava em questão na controvérsia (sobre discriminação tributária), que foi resolvida com fundamento na normativa Mercosul vigente sobre a matéria (artigo 7 º do Tratado de Assunção). Assim, não fica claro o alcance que pretenderiam os árbitros dar à utilização da normativa OMC no sistema de solução de controvérsias do Mercosul. Com efeito, ela termina sendo utilizada apenas para reforçar as conclusões, na medida em que as regras da OMC sobre a aplicação de impostos internos a produtos importados são coincidentes com as do artigo 7º do Tratado de Assunção.

Dessa forma, até aqui, os laudos arbitrais em seu conjunto parecem reconhecer no Mercosul uma ordem jurídica própria que, se bem que inserida no direito internacional e relacionada com as regras do sistema multilateral de comércio, compõem um campo delimitado dentro do qual atuam as faculdades jurisdicionais do sistema de solução de controvérsias do Mercosul. Portanto, para que uma regra da OMC possa ser invocada no âmbito deste sistema, é preciso que tenha sido recepcionada pelo conjunto normativo próprio do Mercosul.

Esta concepção é corroborada pelas regras introduzidas no Protocolo de Olivos para evitar o "duplo foro", uma vez que só se prevê a necessidade de opção de foro para controvérsias que tenham o mesmo objeto — ou seja, só há o risco de gerar resultados divergentes entre o sistema de controvérsias do Mercosul e da OMC nos casos em que é possível trazer o mesmo objeto (aí entendida a medida questionada e a norma alegadamente violada) a qualquer um dos dois sistemas.

2. Método de interpretação

Seguindo a linha estabelecida no primeiro caso, sobre os Comunicados Decex, os Tribunais Arbitrais têm sistematicamente privilegiado uma interpretação sistêmica e finalística das normas do Mercosul. Nota-se uma convergência quanto à necessidade de interpretar as regras aplicáveis à luz dos objetivos do Tratado de Assunção, sem prejuízo da aplicação de outros métodos de interpretação. Ainda no entendimento do primeiro laudo, a interpretação teleológica "acha-se controlada por sua combinação operacional com os outros métodos e, em si mesma, ao associar as noções de objeto e de fim que equilibram seus conteúdos reais e ideais".

Nos termos do enunciado 49 do laudo, reproduzido, com maior ou menor grau de detalhe por Tribunais posteriores, "a tarefa do Tribunal não consiste em decidir acerca da aplicação de alguma ou algumas disposições específicas e isoladas, mas em situar e resolver a controvérsia apresentada sob a perspectiva do conjunto normativo do Mercosul (Protocolo de Ouro Preto, art. 41), interpretando-o à luz das relações recíprocas que emanam do conjunto dessas normas e dos fins e objetivos que os Estados Partes assumiram explícita e implicitamente ao adotarem tais normas, confirmados por seus atos posteriores no contexto de um projeto integrador comum" Mais adiante, o Tribunal enfatiza que "o enfoque teleológico resulta ainda mais claro nos tratados e instrumentos que conformam organismos internacionais ou configuram processos ou mecanismos de integração. Diferenciam-se de outros instrumentos de certo modo estáticos, onde os direitos e obrigações se esgotam em alguns poucos atos de execução, (...) (já que) constituiem um marco, uma estrutura, para desenvolver variadas e múltiplas atividades, onde a valorização teleológica das obrigações e das atividades ocupa um lugar central sob pena de perder todo o sentido. É que não se trata de um "direito acabado" segundo palavras de Lecourt mas de um processo dinâmico". Nesse contexto, "os fins e objetivos não são um adorno dos instrumentos de integração mas um guia concreto para a interpretação e para a ação (...) especialmente (...) quando apresentam-se situações duvidosas ou quando existem lacunas ou vazios em parte da estrutura jurídica e faz-se necessário suprir as insuficiências".

Em geral, conjuga-se ao método de interpretação finalística, o recurso freqüente ao princípio do efeito útil ou da eficácia mínima das normas, que, sem chegar a uma aplicação efetiva do princípio in dúbio pro comunitate utilizado no âmbito do direito comunitário europeu, permite ao intérprete optar, dentre duas interpretações possíveis, por aquela que empreste à disposição pleno efeito à luz dos objetivos do tratado.

Assim, no caso dos Comunicados Decex, diante da imprecisão das normas sobre restrições não-tarifárias no Mercosul, o laudo abre caminho em meio a uma profusão de dispositivos imprecisos para arbitrar, por analogia aos compromissos mais claros no campo tarifário, que o prazo para a eliminação das restrições não-tarifárias não justificáveis à luz do artigo 50 do Tratado de Montevidéu deveria ser coincidente com a eliminação final das tarifas, com o fim do regime de adequação final à união aduaneira, em 31/12/1999.III - NATUREZA DO SISTEMA NORMATIVO DO MERCOSUL 1 - Natureza das normas Mercosul

O surgimento de formas aprofundadas de cooperação entre os Estados fez nascer um novo ramo do direito, derivado do direito internacional, para regular as relações mútuas das partes no contexto desses mecanismos preferenciais de cooperação.

Direito novo, de um tipo específico, "tertium genus" que se situa entre o direito interno e o direito internacional, esse novo ramo possui, em geral, objeto próprio, métodos e princípios informativos específicos, e sua forma mais avançada é, na atualidade, o direito comunitário europeu.

No caso do Mercosul, embora estejamos longe de um direito comunitário, com autonomia, aplicabilidade direta e primazia, os árbitros têm reconhecido certa especificidade às normas que conformam o sistema normativo do Bloco, que, nesse contexto, constituiria um conjunto normativo dotado de características próprias.

O laudo IMESI, por exemplo, embora reconhecendo que as normas originárias do Tratado de Assunção e as normas de direito derivado só adquirem vigência interna mediante sua integração ao direito interno dos países membros, segundo os procedimentos previstos nas respectivas Constituições, atribui à normativa Mercosul, per se, efeitos jurídicos concretos. Essas normas criariam para os Estados Partes do Mercosul, no plano internacional, a obrigação de adaptar sua normativa interna aos propósitos da integração. Essa obrigação implicaria não apenas a adoção de medidas concretas, tendentes a implementar os compromissos que foram assumidos, mas também uma obrigação de modificar normas internas anteriores, contrárias ao objetivo do Tratado de Assunção e abster-se de qualquer ato que possa frustar seu compromisso.

A especificidade do sistema normativo do Mercosul também se revela no sistema de incorporação de normas previsto no Protocolo de Ouro Preto e que foi objeto de análise no caso de Fitossanitários (sobre a não incorporação ao ordenamento jurídico brasileiro de Resoluções do Grupo Mercado Comum sobre registro de produtos fitossanitários). De acordo com os árbitros, "no obstante la obligatoriedad de la normativa Mercosur desde su perfeccionamiento por el consenso de los Estados Partes, la vigencia de las mismas es postergada hasta la efectiva incorporación de dicha normativa al derecho interno de cada uno de los Estados Partes, en los casos que esto es necesario" .Citando o laudo de Frangos, o Tribunal esclarece mais adiante que por força do mecanismo de vigência simultânea previsto no artigo 40 do Protocolo de Ouro Preto a obrigatoriedade das normas Mercosul traduz-se em "una obligación de hacer, la de incorporar al derecho interno dicha normativa, y una obligación de no hacer, la de no adoptar medidas que por su naturaleza se opongan o frustren el propósito de la norma aprobada pero aún no incorporada", cujo não cumprimento compromete a responsabilidade internacional dos Estados Partes.

À luz desse entendimento, e considerando que a existência de uma obrigação carente de prazo não se coaduna com a natureza intrínseca de obrigações jurídicas, o Tribunal desenvolveu a tese de que nos casos em que a norma Mercosul não preveja prazo para o cumprimento da obrigação de incorporação, cabe ao intérprete, estabelecer, caso a caso, qual seria o prazo razoável para esse fim. Em espécie, entendendo já haver transcorrido um tempo mais do que razoável para que o Brasil cumprisse com a obrigação de incorporar as Resoluções em questão, o Tribunal concluiu que havia se caracterizado uma violação das obrigações previstas no Protocolo de Ouro Preto.

2 - Alcance das normas adotadas no Mercosul ( normas programáticas e normas auto-aplicáveis)

A despeito de conter dispositivos que formulam compromissos concretos, não há que se negar que o Tratado de Assunção é, em suas grandes linhas, um Acordo Quadro. Ele estabelece um conjunto de princípios gerais, de natureza programática, que conferem às Partes certa margem de discricionariedade na elaboração das disciplinas específicas necessárias à implementação de seus objetivos.

Nesse sentido, como regra, não estamos diante de normas auto-aplicáveis, mas de normas que requerem uma série de instrumentos complementares que vêm sendo adotados de forma gradual, sendo freqüentes os ajustes e as reavaliações de prazos. Trata-se, em realidade, como reconhece o laudo sobre os Comunicados Decex, de um conjunto normativo de formação sucessiva, ordenada em função da dinâmica do processo de integração .

Sem prejuízo disso, o laudo não hesitou em afirmar que, se existem no Tratado de Assunção normas que "normas que estabelecem objetivos e princípios que, com vocação de permanência emolduram e guiam a atividade das Partes em direção ao Mercosul e dentro de seus limites (...)há outras disposições que são por si mesmas exeqüíveis, impondo obrigações concretas às Partes, sem necessidade de novos atos jurídicos por parte dos Estados. Estas (...)desempenham o papel de instrumentos dinamizadores do projeto integracionista, o impulso operacional que, sem necessidade de nenhum ato adicional das Partes, dá de início a um grande salto à frente. De fato para o laudo sobre os Comunicados Decex, o Tratado de Assunção "vai além de um tratado quadro, constituindo um esquema normativo que flutua entre um "direito diretivo" com bases jurídicas gerais e "um direito operacional" constituído por compromissos concretos".

De acordo com o Tribunal de Bicicletas, reproduzindo preceito consagrado nos laudos arbitrais anteriores, a "particularidade de que determinadas normas requeiram implementação posterior não significa que as mesmas sejam ineficazes, mas sim que os Estados têm a obrigação de não frustrar sua aplicação assim como o cumprimento dos fins do Tratado de Assunção". Admite-se, assim, que há normas que não são auto-aplicáveis, mas se recorda que mesmo estas normas programáticas possuem eficácia.

No entendimento do laudo sobre o IMESI, as regras do Tratado de Assunção teriam caráter auto-executável não no sentido de implicar o afastamento imediato das legislações internas das partes, como no caso do direito comunitário, mas no sentido de impor aos Estados Partes a obrigação de modificar sua legislação de forma a adaptá-la às obrigações assumidas em seu marco. O laudo parece querer confirmar que não há no Mercosul aplicação direta das normas, referindo-se aqui a um outro debate que não o do exame da natureza auto-aplicável ou programática das normas.

Assim, a questão da auto-aplicabilidade versus caráter programático tem surgido nos laudos basicamente em relação às obrigações contidas no próprio Tratado de Assunção, por natureza menos preciso que as normas de direito derivado. E se parece haver concordância em que este Tratado possui dispositivos com as duas naturezas, não surge dos laudos até aqui um critério geral para classificar os dispositivos em auto-aplicáveis ou programáticos, mas um exame caso a caso em função do texto do dispositivo em questão e da leitura do problema à luz dos objetivos do Tratado de Assunção.

3. Natureza dos compromissos assumidos pelos EP

Subjacente à discussão sobre a natureza jurídica das normas emanadas dos órgãos do Mercosul, encontra-se a questão mais ampla da natureza e do alcance dos vínculos estabelecidos entre os Estados Partes do Mercosul, tidos como necessários para a consecução dos objetivos do Tratado de Assunção, no entendimento de que a efetiva criação de um mercado comum pressupõe compromissos mais estreitos que não se ajustam necessariamente à natureza de soft law do direito internacional clássico.

Nesse sentido, o laudo de Pneumáticos ressalta que a assinatura do Tratado de Assunção limitou "a reserva de soberania dos Estados Partes" no que se refere à adoção de medidas unilaterais restritivas ao comércio, que estariam circunscritas às situações previstas no artigo 50 do Tratado de Montevidéu.

Nesse contexto "as razões invocadas pelas autoridades nacionais (para adotar normas internas de comercialização de produtos), embora relevantes, estão sujeiras ao princípio da proporcionalidade, ou seja, pela lógica do processo de integração não se admitem entraves ao comércio (....) outro princípio que deve ser considerado é o da razoabilidade, vale dizer que (em função dos compromissos assumidos no marco do Tratado de Assunção) as ações das autoridades dos Estados Membros não podem exceder a margem do necessário para alcançar os objetivos propostos. Em outras palavras, essas ações não podem ser arbitrárias e não podem violentar os princípios da livre circulação", em função da necessidade de assegurar a devida "previsibilidade comercial" nas relações entre as partes, essencial para a consolidação do Tratado de Assunção.

Para os árbitros de Pneumáticos, os princípios da "proporcionalidade", "limitação da reserva de soberania", "razoabilidade" e "previsibilidade comercial " dão fundamento ao MERCOSUL, constituindo condição sine qua non para consolidação do processo de integração em bases de reciprocidade, condições de igualdade e equilíbrio.

Na concepção do Tribunal no caso de Produtos têxteis, as relações comerciais dentro de um sistema tão integrado como o do Mercosul deveriam basear-se em regras de direito que permitissem um mínimo de certeza jurídica para todos os operadores comerciais. Nesse contexto, medidas de natureza comercial deveriam basear-se em acordos juridicamente vinculantes e não sobre medidas unilaterais, que careceriam de fundamento jurídico. Consequentemente, no entendimento dos árbitros, enquanto "os membros do Mercosul não atuarem em conjunto para acordar de forma expressa a aceitação de medidas restritivas ao comércio, os Estados Membros estarão impedidos de aplicar tais medidas unilateralmente"

No mesmo sentido, o laudo sobre os Comunicados Decex afirma que "são incompatíveis as medidas unilaterais dos Estados Partes nas matérias nas quais a normativa requer procedimentos multilaterais".

O laudo sobre o IMESI, por sua vez, como visto acima a respeito da invocação a invocação do princípio da "exceptio non adimpleti contractus", esclarece que, dada a especificidade dos compromissos assumidos no marco do Tratado de Assunção,"o que se procura é a concretização de uma situação de direito para que seja mais pronunciada ainda do que já é no direito internacional público" e, assim, mesmo o eventual descumprimento de uma obrigação pela outra parte não afasta, a priori, a obrigação de cumprimento pela parte demandada.

IV - INTERPRETAÇÕES DOS COMPROMISSOS VIGENTES CONSAGRADAS PELOS TRIBUNAIS ARBITRAIS

Com base nesses traços específicos, os Tribunais têm enunciado uma série de princípios e interpretações relativos aos compromissos assumidos pelos Estados Partes no âmbito do processo de integração.

De acordo com o artigo 1 º do Tratado de Assunção, a criação de um mercado comum entre Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai implica:

  1. a livre circulação de bens, serviços e fatores produtivos entre os quatro países mediante, entre outros, a eliminação dos direitos alfandegários, restrições não tarifárias ou de qualquer outra medida de efeito equivalente;
  2. o estabelecimento de uma tarifa externa comum e a adoção de uma política comercial comum em relação a terceiros Estados ou agrupamentos de Estados e a coordenação de posições em foros econômico-comerciais regionais e internacionais;
  3. a coordenação de políticas macroeconômicas e setoriais entre os quatro Estados Partes a fim de assegurar condições adequadas de concorrência entre eles e:
  4. o compromisso de harmonizar as respectivas legislações as áreas pertinentes

Em consonância com os princípios do gradualismo e flexibilidade que orientaram a condução a processo de integração, à exceção do programa de desgravação tarifária, que foi objeto de um cronograma de redução progressiva, automática e linear - abrangendo a totalidade do universo tarifário- o Tratado de Assunção não definiu, de forma categórica, os instrumentos necessários para a consecução desse objetivo, limitando-se a estabelecer disciplinas genéricas e diretrizes para esse fim, cujo real alcance tem sido objeto de várias controvérsias entre os Estados Partes.

Nesse contexto, coube aos Tribunais Arbitrais precisar determinados preceitos que, no entendimento dos árbitros, deveriam orientar a conformação do Mercosul, em especial no âmbito do programa de liberalização comercial, que segundo o laudo arbitral sobre o Comunicado Decex, "tem um papel central e é uma peça estratégica na configuração do Mercosul", constituindo (...)alicerce escolhido no sistema do TA para adiantar e desenvolver o Mercosul", dentre as quais destacaríamos:

1 - Alcance do princípio do livre comércio

De acordo com vários dos laudos arbitrais, o programa de liberalização comercial previsto no Tratado de Assunção implica eliminação de todas as restrições ao comércio entre os Estados Partes após a conclusão do período de transição.

A proibição de impor restrições ao comércio, seja qual for sua natureza, nos termos do laudo de Pneumáticos, possui caráter absoluto, ou seja "não pode ser empregada por um Estado Membro mesmo que a medida não se destine à discriminação do produto estrangeiro".

O fato de não ter sido previsto, como no caso das restrições tarifárias, um procedimento específico para o desmantelamento das barreiras não tarifárias, não afeta o amplo compromisso dos Estados Partes com sua efetiva eliminação no comércio intrazona, de forma simultânea à desgravação tarifária.

Nos termos do laudo sobre o Comunicado Decex, "não fica ao arbítrio das Partes decidir se a eliminação das RNT será levada a efeito ou não. Da mesma forma, tampouco fica a seu arbítrio a data para finalizar tal eliminação. A data não é outra que a mesma assinalada para as RT" "(...) isso deverá ocorrer no máximo em 31-12-99, data em que se completa o programa de liberação comercial após a reavaliação do Mercosul, realizada pelos Estados Partes", já que, no entendimento dos árbitros "haveria uma contradição com o fim do programa de liberação e com seu papel central na arquitetura do MERCOSUL se, abandonando o paralelismo entre a eliminação de RT e RNT, se chegasse ao desmantelamento tarifário total enquanto o manejo das RNT ficasse ao arbítrio unilateral das Partes que poderiam assim manter indefinidamente as restrições não tarifárias e inclusive aumentá-las. Nessa hipótese, o programa de liberação perderia todo o sentido e o próprio fundamento do Mercosul estaria em crise".

Cabe ressaltar, por fim, que a obrigação de eliminar as RNT alcançaria não apenas aquelas existentes antes do Tratado de Assunção, como aquelas adotadas posteriormente, prevalecendo desde o aprovação da Decisão CMC 22/00 em 29 de junho de 2001 a obrigação de não adotar novas restrições.

O laudo de Pneumáticos afirma claramente que "a Decisão CMC Nº 22/00 reafirma o caráter vinculatório da proibição de alterar o fluxo comercial existente na data de sua aprovação. O conteúdo da Decisão CMC Nº 22/00 condiciona a capacidade dos Estados Partes de alterarem ou modificarem, a partir da data de sua aprovação, os alcances de suas legislações internas quanto à imposição de novas restrições ao comércio".. No entendimento dos árbitros, "resulta claro que num processo de integração - seja qual for o estágio de desenvolvimento em que estiver - não podem variar as regras do jogo a qualquer momento "

Refletindo esse mesmo espírito, o laudo sobre Produtos têxteis afirma que "as provisões do Anexo IV ( do TA, que estabelece o Regime de Cláusulas de Salvaguardas para o período de transição) não podem ser separadas deste contexto (programa de liberalização comercial); ao contrário, devem ser interpretadas com a leitura do resto do Tratado. (...). Nesse sentido, os árbitros concluem que, "como resultado da implementação do Programa de Liberação Comercial e do fato de haver sido alcançado o livre comércio intra-zona, o uso de medidas de salvaguardas já estava proibido desde o momento em que estas últimas foram alcançadas"

Em realidade, em função de seu papel central na consolidação do processo de integração, os Tribunais Arbitrais Ad Hoc invariavelmente tendem a reconhecer certa presunção a favor do livre comércio entre os Estados Partes do Mercosul. Nesse contexto, eventuais exceções ao princípio do livre comércio somente prevaleceriam por força de acordo expresso dos quatro Estados Partes, como explicitado, por exemplo, no laudo de Produtos têxteis.

2 - Definição de Restrições Não Tarifárias

Refletindo essa mesma linha de raciocínio, e tendo presente que, de acordo com o artigo 2 º do Anexo I ao Tratado de Assunção, entende-se por restrições não tarifárias qualquer medida de caráter administrativo, financeiro, cambial ou de qualquer natureza, mediante a qual um Estado parte impeça ou dificulte por decisão unilateral o comércio recíproco, não compreendida nas situações previstas no Tratado de Montevidéu de 1980, os Tribunais arbitrais têm invariavelmente optado por uma interpretação bastante extensiva do conceito de RNT, prevalecendo o entendimento geral de que a partir do fim do período de transição, somente medidas adotadas ao amparo do artigo 50 do Tratado de Montevidéu de 1980 poderiam subsistir.

Assim, de acordo com o laudo sobre o Comunicado DECEX, "a obrigação de eliminar as medidas NT (apenas) não atinge aquelas compreendidas no artigo 50 do TM 80, desde que estejam efetivamente destinadas aos fins ali indicados e não constituam obstáculos comerciais". Ademais, no entendimento dos árbitros, caberia aos Estados Partes continuar o processo de harmonização dessas medidas a fim de facilitar a implementação do mercado comum.

Por tratar-se de uma exceção ao princípio do livre comércio, a aplicação do artigo 50 no comércio intrazona tem sido interpretado de forma bastante restritiva.

No caso de Fitossanitários, os árbitros consideraram que a exceção prevista no artigo 50 não poderia ser invocada de forma genérica, já que como toda restrição ao princípio da liberdade de circulação de mercadoria em um processo de integração na natureza do Mercosul, sua aplicação deve ser "excepcional, específica y de interpretación restrictiva" , (....) "para restringir una importación de una partida o de un producto en particular", mas jamais para afastar, de forma genérica, a aplicação de regimes comuns acordados de forma quadripartite.

À luz, contudo, do texto do artigo 50, que instaura um poder de exceção amplo para os casos que lista ("nenhuma disposição" vide nota 79 acima), a interpretação pareceria ser um convite a um exame caso a caso das situações em que o artigo é invocado afim de evitar o abuso de sua invocação.

Observe-se, ainda, que, conforme comentado acima, no caso IMESI os árbitros admitiram conceitualmente - mas sem aplicação ao caso em questão - que, seriam também legítimas as exceções previstas no artigos XX e XXI do GATT/1984, algumas das quais não estão contempladas no artigo 50. Tendo em vista que não há menção no Tratado de Assunção a estas normas, pareceria prevalecer, na visão dos árbitros deste caso, que as razões de ordem pública que justificam as exceções ao livre comércio têm um alcance, enquanto princípio geral, que não está limitado pelo texto estrito do artigo 50 do TM-80. Como indicamos acima, porém, o fato de não ter havido aplicação de tais dispositivos ao caso concreto não permite determinar com exatidão a visão dos árbitros a respeito.

Cabe ressaltar, por outro lado, que, não obstante a importância atribuída à eliminação das restrições não tarifárias pelos laudos, não se encontra uma clara definição do conceito — o que não é de surpreender dada a natureza multiforme deste conceito definido pela negativa.

No caso específico dos Comunicados Decex, em que se analisava a compatibilidade do regime de licenças à importação vigente no Brasil com a normativa Mercosul, o Tribunal reconheceu, por exemplo, que a emissão de licenças automáticas, para fins de mero registro aduaneiro, que não implicasse demora ou condicionantes ao comércio, não constitui violação ao princípio do livre comércio e, nesse contexto, poderia ser admitida. Assim, ao mesmo tempo em que classifica as licenças não-automáticas não cobertas pelo artigo 50 do TM-80 como restrições não-tarifárias proibidas, exclui dessa categoria as licenças automáticas, sem nunca chegar a definir RNT.

3 - Regime de subsídios e defesa comercial

Coube ao laudo arbitral sobre Carne de Porco precisar o alcance dos compromissos assumidos pelos Estados Partes em matéria de subsídios.

No entendimento dos árbitros, à luz do disposto no artigo 1 º da Decisão CMC Nº 10/94, segundo o qual os Estados Partes se comprometem a aplicar subsídios às exportações de acordo com os compromissos assumidos no âmbito do GATT, as disposições sobre subsídios que figuram no Acordo sobre Subsídios e Medidas Compensatórias da Organização Mundial do Comércio aplicam&mdashse; ao Mercosul, confirmando a noção de que as disciplinas da OMC explicitamente recepcionadas por normas do Mercosul são aplicáveis no contexto das controvérsias resolvidas pelo sistema inaugurado pelo Protocolo de Brasília.

Tendo presente, ademais, que a Decisão CMC Nº 10/94 estabelece disciplinas específicas para uma série de categorias de subsídios à exportação - tais como benefícios cambiais, créditos de fomento e financiamento às exportações, devolução e isenção de impostos indiretos, regimes de admissão temporária, deposito aduaneiro - limitando-se a dispor, com relação aos demais subsídios, em seu artigo 11, que os Estados Partes instrumentalizarão as medidas que resultem necessárias para evitar sua aplicação no comércio intrazona, a juízo do Tribunal, não haveria, no atual estágio do processo de integração, uma proibição a priori de aplicação de subsídios internos.

Para os árbitros, nos termos em que está redigido, o referido artigo não poderia ser diretamente invocado como fonte de direitos e obrigações, requerendo medidas adicionais de implementação. Temos aqui, portanto, desta feita fora do contexto do Tratado de Assunção, o reconhecimento da existência de normas programáticas no acervo jurídico do Mercosul e uma atribuição de efeitos bastante limitados a estas normas.

Nesse contexto, e na ausência de previsão expressa sobre a matéria, prevaleceria para os Estados Partes tão somente o compromisso de assegurar que a aplicação interna de subsídios se dê de acordo com as regras da Organização Mundial do Comércio e não tenha efeito distorcivos sobre o comércio intrazona e sobre o desenvolvimento do processo de integração, tendo sido estabelecido, pela própria Decisão Nº CMC 10/94 um procedimento de consulta específico para exame das dificuldades que porventura sejam identificadas na aplicação de incentivos não regulados na normativa MERCOSUL.

No que se refere, contudo, à aplicação de medidas antidumping no comércio intrazona, a situação no Mercosul seria diferente, no entender do laudo de Frangos, com relação à aplicação das normas da OMC. De acordo com o referido laudo, ainda que se assevere possível, por força do artigo 19, utilizar, no marco do sistema de solução de controvérsias do Mercosul, as definições e conceitos de antidumping consagrados no âmbito da OMC, na ausência de normas específicas vigentes, nos termos do artigo 40 do Protocolo de Ouro Preto, não há obrigação jurídica específica entre os Estados Partes nessa matéria que possa ser utilizada no âmbito do sistema de solução de controvérsias do Mercosul.

Reconhece, contudo, o Tribunal, que não se trata, na espécie, de matéria alheia ao quadro normativo do Mercosul, afirmando que a aplicação de medidas antidumping no comércio intrazona deve ser analisada à luz do Tratado de Assunção. Nos termos do parágrafo 148 do laudo, "o regime de livre circulação de bens consagrado pelo TA, por seu Anexo I e pelo Regime de Adequação Final à União Aduaneira, a ampla definição de restrições proibidas ao comércio que consta do artigo 2º do Anexo I ao TA, o disposto no artigo 4 º do TA sobre o regime aplicável na zona (concorrência desleal e não antidumping); e a audiência de norma hábil expressa que permita recorrer a medidas antidumping na região indicam que a aplicação de medidas antidumping intrazona não é compatível com o princípio da livre circulação de bens".

Conclusão que, segundo recorda o próprio Tribunal "é acorde com a jurisprudência dos anteriores Tribunais Ad Hoc e também conforme a normativa do GATT-OMC em matéria de áreas de livre comércio e uniões aduaneiras".(...) nestas, ante supostas práticas comerciais desleais devem ser aplicadas as regras de defesa da concorrência""

Para o Tribunal, as distintas regras aprovadas pelo Mercosul, sobre a matéria, ainda que não estejam vigentes ( e portanto não possam ser aplicadas no caso concreto) são indicativos de que, para os Estados Partes do MERCOSUL, o procedimento antidumping é considerado um elemento de vigência limitada, destinado a desaparecer, já que, "mesmo quando o procedimento antidumping possa estar destinado efetivamente a combater uma conduta comercial desleal, pode também ser utilizado como um recurso de natureza comercial e de cunho protecionista para impedir ou limitar as importações de outros mercados regionais e, assim, evitar a concorrência com a produção nacional". "Nessa última hipótese, o procedimento antidumping se torna um instrumento restritivo do comércio que cabe na definição do artigo 2 º do Anexo I do TA e, como tal, é absolutamente incompatível com o regime de livre circulação de bens"

Não obstante isso, como até o presente não teria sido possível ao Mercosul avançar na definição de uma política de concorrência comum, que permitisse sancionar, de forma compatível com o princípio do livre comércio, comportamentos comerciais desleais, de acordo com o Tribunal, haveria uma espécie de "tolerância implícita" à aplicação de medidas antidumping, desde que tais medidas tivessem como objetivo exclusivo combater práticas abusivas da concorrência.

Ressalte-se que, para o Tribunal, na ausência de uma norma específica do Mercosul regulando a matéria, não seria tarefa do Tribunal realizar um exame de fundo sobre a existência ou não de dumping ou sobre o procedimento de investigação em si, dada a inexistência de parâmetros para tanto, já que como assinalamos acima, não se poderia aplicar ao caso as regras da OMC.

Nesse sentido, o Tribunal conclui que, para examinar a compatibilidade de uma medida antidumping unilateral adotada por um Estado Parte caberia avaliar se o procedimento foi utilizado como instrumento de restrição comercial, "violador da regra de livre circulação de bens", desviando-se de sua finalidade ou se, ao contrário, foi empregado como meio lícito para assegurar a defesa da concorrência. A legitimidade da aplicação de medida antidumping no comércio intrazona estaria, portanto, condicionada ao respeito dessa "finalidade legal".

Cabe registrar, contudo, que não resulta evidente, da leitura do laudo, quais são os elementos que devem ser levados em conta pelo intérprete para efetuar de forma objetiva essa avaliação, limitando-se o ditame a fazer menções genéricas à razoabilidade da conduta das autoridades internas, ao respeito às garantias do devido processo legal e a esclarecer que, no caso de eventuais discrepâncias sobre pontos específicos da investigação, somente corresponde ao Tribunal "determinar se, na aplicação dos critérios controvertidos, existiu abuso manifesto ou excesso que revele que o procedimento foi empregado com a finalidade de obstruir o comércio". Adicionalmente, cabe comentar que a relação "necessária" identificada pelos árbitros entre a eliminação do antidumping e a criação de mecanismos de defesa da concorrência em nível regional, embora encontre inspiração em algumas das normas, não vigentes, do Mercosul sobre o tema, é questionada pela literatura, que identifica nos dois instrumentos, defesa comercial e defesa da concorrência, objetivos distintos .

Se, no caso de medidas antidumping, persistem dúvidas importantes quanto à natureza dos compromissos que vinculam os Estados Partes, a proibição de aplicação de medidas salvaguardas no comércio intrazona após o fim do período de transição parece inquestionável, à luz do disposto no artigo 5 do Anexo IV ao Tratado de Assunção, segundo o qual em nenhum caso a aplicação de cláusulas de salvaguarda poderá estender-se além de 31 de dezembro de 1994.

No entendimento do Tribunal sobre Produtos têxteis, "do conteúdo das provisões relativas ao Programa de Liberação Comercial, assim como da regra contida no Artigo 5 do Anexo IV, surge que, no momento em que a liberação comercial fosse alcançada, as partes explicitamente renunciariam à utilização de obstáculos ao livre comércio, neste caso, a aplicação de medidas de salvaguarda. Originalmente, na intenção daqueles que projetaram e acordaram o sistema MERCOSUL, este objetivo deveria ter sido alcançado em 31 de dezembro de 1994. No entanto, as partes decidiram adiar a implementação completa do Programa de Liberação Comercial até 1999 (...) A proibição sobre a aplicação de medidas de salvaguardas contidas no Artigo 5 é explícita e não dá lugar a nenhuma confusão". Nesse sentido, o uso de salvaguardas intrazona somente poder-se-ia dar na hipótese de uma norma específica, devidamente adotada no âmbito do MERCOSUL, autorizando expressamente o uso de salvaguardas.

4 - Princípio do Tratamento nacional

Com base no disposto no artigo 7 º do Tratado de Assunção, que estabelece que em matéria de impostos, taxas e outros gravames internos, os produtos originários do território de um Estado Parte gozarão, nos outros Estados Partes, do mesmo tratamento que se aplica ao produto nacional, o laudo IMESI esclareceu que " a regra de igualdade no MERCOSUL, em sua essência, é a mesma que se deduz dos Tratados de Montevidéu e que aparece no GATT de 1947, persistindo ainda hoje na OMC, dos quais fazem parte todos os Estados Membros(...), mas adquire especificidade no MERCOSUL.(...) (já que) será concretizada, em primeiro lugar, pela existência de fato e de direito de uma obrigação de não discriminação entre os Estados Membros na prática. Ou seja, uma norma aparentemente não discriminatória, na verdade é discriminatória se em si mesma contém discriminação, a qual é incompatível com a igualdade de tratamento estabelecida no tratado do MERCOSUL".

No caso específico de tributos, embora reconhecendo que no atual estágio do processo de integração, dada a ausência de avanço em termos de iniciativas concretas de coordenação macroeconômica, os Estados Partes preservam a capacidade de tributar os bens que circulam dentro do seu território de acordo com suas respectivas legislações internas, o laudo foi taxativo ao afirmar que o artigo 7 º do Tratado de Assunção impede que um produto originário de outro Estado Parte seja tratado de forma discriminatória relativamente a produtos similares nacionais. Estabeleceu assim que o referido artigo, longe de ser cláusula programática no marco dos objetivos de coordenação macroeconômica, é cláusula auto-aplicável, com efeitos tanto sobre novos tributos como sobre os anteriores ao Tratado de Assunção.

5 - Certificação de Origem

A certificação de origem no Mercosul foi objeto de análise no laudo sobre Bicicletas, que tomou como ponto de partida o caráter de exceção ao princípio do livre comércio do regime de origem. Enfatizou, em conseqüência, a necessidade de que a aplicação do Regulamento de Origem, em especial no que se refere ao procedimento de controle e verificação de Certificados de Origem, se dê de forma equânime e transparente, mediante o adequado cumprimento dos procedimentos que o próprio Regulamento estabelece.

No entendimento dos árbitros, ademais, as normas contidas no Regulamento de Origem não autorizam um procedimento de impugnação a toda a atividade de uma empresa baseado numa investigação genérica, permitindo tão somente impugnação da autenticidade dos Certificados de origem, documentos específicos, que se referem à origem de uma mercadoria em particular. Nesse sentido, "estender o questionamento genérico a toda a exportação de uma empresa, além de não se ajustar no presente caso ao desenvolvimento dos procedimentos, surge como uma medida de resultados excessivos não acorde com o espírito do MERCOSUL de favorecer e estimular as relações comerciais entre os Estados Partes".

Por outro lado, o Tribunal considerou que o certificado de origem, emitido de conformidade com a normativa Mercosul, goza de "uma presunção relativa (juris tantum) de veracidade, (que) (...) determina a existência de uma inversão no onus probandi de modo tal que o Estado do país importador da mercadoria terá a carga de provar sua falta de veracidade, através dos procedimentos estabelecidos no próprio Regulamento".

Finalmente, tendo identificado no caso em tela um descumprimento dos requisitos procedimentais pelo Estado importador no curso da investigação de origem, o laudo assinala que "num processo de integração como o MERCOSUL, o respeito aos cursos processuais estabelecidos resulta especialmente exigível, à medida em que, através desses se tutela de maneira mais cuidadosa e afinada a adequação aos objetivos, fins e princípios do Tratado de Assunção", no entendimento de que eventual desrespeito ao iter procedimental previsto pode ocasionar ( como seria o caso) a "indevida extensão objetiva da matéria de verificação de origem e a distorção final de seu resultado", em violação da normativa Mercosul e dos princípios gerais de direito que requerem uma "razoável adequação ou proporcionalidade entre a infração (não devidamente comprovada pela Argentina) e a sanção imposta ( suspensão do tratamento preferencial para todos os produtos da empresa investigada)".

CONCLUSÃO

O arcabouço jurídico inicial do Mercosul foi elaborado com base nos antecedentes provenientes da tradição da ALALC/ALADI. De fato, diversos artigos do Tratado de Assunção, em particular no que se refere ao programa de liberalização comercial, seguem a linha, quando não o texto, dos acordos negociados no âmbito do Tratado de Montevidéu &mdash1980; (TM-80). Por outro lado, o próprio Anexo I do Tratado de Assunção foi "protocolizado" na ALADI como Acordo de Complementação Econômica N° 18. A ALADI, porém, não possui um sistema de solução de controvérsias de alcance geral. Os acordos de alcance parcial assinados no seu âmbito que incluíram mecanismos próprios de solução de controvérsias o fizeram com posterioridade ao Protocolo de Brasília.

O cumprimento das obrigações no contexto da ALADI repousava apenas no interesse de manter vigente um equilíbrio de preferências comerciais. Talvez por isso o avanço da integração no marco da ALADI tenha praticamente se restringido ao campo das preferências tarifárias, com poucos resultados no que se refere à eliminação das restrições não-tarifárias ou harmonização regulatória.

Isso significa que, até o início do funcionamento do sistema criado pelo Protocolo de Brasília, os conceitos e definições que embasaram a construção normativa inicial do Mercosul, relativos, entre outros, à definição e tratamento das restrições tarifárias e não tarifárias, ao regime de origem e à aplicação do artigo 50 do TM-80 entre os sócios do Mercosul, não haviam sido submetidas ao crivo de um sistema jurisdicional, e talvez por isso, apresentassem deficiências quanto à precisão.

O Protocolo de Brasília introduziu, neste sentido, uma modificação importante, abrindo caminho para a possibilidade de um processo de integração mais profundo no âmbito do Mercosul. Para que os agentes econômicos e sociais aceitem atuar num ambiente que supere o quadro jurídico nacional a que estão habituados e, portanto, tornem efetivas as potencialidades do processo de integração, é necessário que existam mecanismos jurídicos e institucionais que lhes assegurem vigência, eficácia e estabilidade das normas aprovadas neste marco de cooperação.

Na medida em que assegura eficácia e estabilidade às normas adotadas no âmbito do Mercosul, sua simples existência já fornece, aos agentes sociais, um quadro de maior garantia de cumprimento dos compromissos. Mas é apenas com a emissão dos primeiros laudos arbitrais, a partir de 1999, que o sistema de solução de controvérsias passa a conferir maior precisão, e portanto, eficácia, às normas do Mercosul. O que faz não apenas pelo esclarecimento dos conceitos e obrigações que chegam a ser objeto de interpretação, mas também pela influência de sua existência sobre o processo de negociação. No plano específico, as interpretações plasmadas nos laudos arbitrais são levadas em consideração pelos negociadores ao tratar uma questão correlata, ou mesmo geram a necessidade de novas normas específicas. No plano geral, os negociadores passam a estar conscientes da possibilidade de submissão de um compromisso à interpretação arbitral, sendo, portanto, de crescente importância a precisão e adequada explicitação dos compromissos assumidos.

Por outro lado, se bem que no âmbito do Mercosul a autoridade da coisa julgada seja mitigada, já que a decisão expressa nos laudos é obrigatória entre as partes apenas no litígio em questão, e ainda que seus efeitos jurídicos se apliquem apenas às partes na controvérsia, parece evidente que as decisões arbitrais exercem influência e autoridade que extrapolam os limites do caso concreto.

Nesse sentido, embora não cheguem a constituir jurisprudência por seu caráter arbitral e ad hoc, os laudos arbitrais tendem, com o tempo, a constituir fonte complementar do direito do Mercosul. Têm, assim, papel relevante na consolidação do processo de integração ao complementar e reforçar a construção normativa do Mercosul com uma construção jurisdicional que fornece bases mais sólidas para a construção jurídica do processo de integração.

Dada a tendência de reproduzir nos laudos posteriores decisões passadas, vão aos poucos se concretizando conceitos ainda vagos em função dos antecedentes aladianos da construção normativa do Mercosul e da natureza de direito em evolução do seu sistema jurídico. O Protocolo de Olivos, com sua preocupação com a coerência ao longo do tempo das decisões arbitrais, tende a acentuar esse aspecto , facilitando o aprofundamento do processo de integração.

Obviamente a aplicação do sistema de solução de controvérsias do Mercosul não cria as normas necessárias ao aprofundamento do processo de integração no interior do Mercosul, tarefa que na atual estrutura institucional do Mercosul cabe exclusivamente ao consenso dos Estados Partes, mas, na medida em que possa continuar a garantir a eficácia das normas vigentes no Mercosul, abre a possibilidade do avanço à integração profunda na região.

Neste contexto, é crucial que os Estados Partes do Mercosul continuem a dar o respaldo político mais completo às decisões arbitrais do Mercosul, assegurando todos os esforços para seu cumprimento integral.