Aplicação das Normas Mercosul no Plano Interno

Internalização de Normas do Mercosul

PRIMEIRO PAINEL - APROVAÇÃO DE NORMAS PELO CONGRESSO

1. Aplicação das Normas MERCOSUL no Plano Interno

O SR. JORGE FONTOURA — Bom-dia a todos. É grande minha satisfação em estar aqui nesta sala emblemática do Legislativo brasileiro. Acredito que estamos no lugar certo para fazer a discussão certa.
Nas minhas atividades de pensar o MERCOSUL tenho feito uma divisão entre o MERCOSUL real e o MERCOSUL imaginário. Infelizmente, vemos o MERCOSUL imaginário caminhar mais velozmente, sem os descaminhos do MERCOSUL real. Um dos problemas desse descompasso é justamente discutir o tema certo no lugar certo, com a institucionalidade certa.
Meus cumprimentos ao Deputado Dr. Rosinha, a quem já admirava e tenho aprendido a admirar cada vez mais em sua missão de presidir a Comissão Parlamentar Conjunta do MERCOSUL; aos ilustres colegas participantes da Mesa; aos professores presentes e à comunidade acadêmica.
Como nota introdutória gostaria de dizer que aqui estamos como pensadores acadêmicos, aqui exercemos o Direito da liberdade de cátedra, aqui dizemos aquilo que imaginamos seja correto — não, evidentemente, com a certeza da correção da idéia, mas com o posicionamento maiêutico de podermos estar errados, porém ousando pensar o que deve caracterizar a atividade acadêmica.
A primeira nota concreta de minha comunicação é uma nota otimista. Eu gostaria de lembrar que nunca o MERCOSUL esteve politicamente tão forte como hoje, embora, nos jornais, encontremos notas desconcertadas a respeito dos descaminhos econômicos, das guerras comerciais, das guerras das geladeiras com a Argentina — o Brasil falando da Argentina e a Argentina falando do Brasil.
Isso é fruto da inexperiência da América Latina de maneira geral no comércio internacional. Só temos conflitos comerciais com países amigos, e devemos tratar nossos adversários comerciais fundamentalmente como aliados políticos. Só há comércio entre aliados políticos — os dois países politicamente mais próximos hoje no mundo, não só pela geografia mas também pelos desígnios da História, talvez sejam Canadá e Estados Unidos, que são os grandes contendores comerciais do mercado internacional.
Nossa imprensa precisa aprender que adversidades comerciais, contrastes de entendimento comercial ou adversidades tributárias são normais na relação entre países amigos, e que somos, na América Latina, fundamentalmente amigos, e mais amigos hoje porque temos conflitos comerciais, porque temos comércio, conflitos que não tínhamos antes porque éramos amigos de retórica, amigos de palavras, porém não tínhamos comércio.
O tom positivo do início de minha comunicação diz respeito também ao fato de o Brasil não estar negociando a ALCA (Área de Livre Comércio das Américas), de a Argentina não estar negociando a ALCA — o MERCOSUL negocia a ALCA. Estamos exercendo a personalidade jurídica permitida juridicamente pelo fato de sermos uma união aduaneira nesta negociação, e isso, evidentemente, preocupa muito aqueles que têm de negociar conosco.
Não hesitaria em dizer que a América Latina entrou na agenda internacional porque nela existe um bloco que é um partner, um interlocutor válido das relações comerciais internacionais.
Lembro ainda que nessas negociações da ALCA — também em relação à União Européia, mas não com tanta intensidade — o MERCOSUL se expressa com uma só voz, enquanto nossos parceiros do NAFTA se expressam individualmente como Estado: o Canadá fala pelo Canadá, os Estados Unidos falam pelos Estados Unidos, e assim por diante.
Gostaria de dizer ainda que seria muito temerário desistirmos desta convicção, desta hegemonia das idéias que caracteriza hoje a integração e que pode ser vista com muita clareza no processo de eleição em curso no Uruguai, onde, apesar da eleição presidencial efetivamente polarizada em ideologias, nenhum dos contendores hesita em dizer que o MERCOSUL é uma prioridade — claro que cada um com suas leituras, muitas vezes ideológicas, que ainda sobrevivem na América Latina. O fato é que têm ambos compromisso com a integração.
Um bloco econômico é fundamentalmente uma comunidade de leis, e essa é uma deficiência muito grande do MERCOSUL. Aqui entramos naquela idéia do MERCOSUL imaginário.
O MERCOSUL imaginário em nenhuma hipótese é uma cópia, uma mimese da União Européia, como se imagina na academia. Acredito que admiramos sabiamente a União Européia e exortamos seus valores, mas sabemos que ela não é a solução de todos os problemas, que não é a virtude da democracia sem os vícios da República; a União Européia é uma comunidade, um bloco composto de homens, com todos os vícios e virtudes que caracterizam a condição humana.
Na União Européia há corrupção, há descaminhos políticos, há clientelismo, há empreguismo, enfim, todos os vícios que podemos encontrar em muitas partes do mundo, inclusive na América Latina. E não é esse modelo que irá mudar o mundo, porque se modelos mudassem blocos econômicos, a Comunidade Andina de Nações, que importou o modelo da União Européia, seria um sucesso estrepitoso de comércio, estabilidade política, progresso e bem-estar social, quando todos nós sabemos que, infelizmente, isso não ocorre.
O MERCOSUL procura seguir seu próprio caminho, na minha opinião muito bem escolhido. O que nos permite estar aqui, 12 ou 13 anos depois, discutindo o MERCOSUL, é o fato de ele ser uma estrutura intergovernamental. O MERCOSUL é, juridicamente, Direito Internacional Clássico, e tudo o que imaginarmos que não seja isso é o MERCOSUL imaginário, que não dará certo, apesar de ser um belo discurso, uma bela lei, porque temos uma formatação jurídica — os Estados são frutos jurídicos de seu passado, de sua história. Todos os países que compõem o MERCOSUL são repúblicas presidencialistas cientes de sua história presidencialista, gostam do Presidencialismo; todos os 15 Estados que compõem a União Européia são cepas, modelos diferentes de Parlamentarismo.
Todos os países da América Latina são profundamente vinculados ao conceito de soberania — ouso chamá-los "soberanófilos" e "estatólatras", porque a história nos ensinou assim. A soberania foi nosso último escudo; fomos espoliados, fomos saqueados, fomos roubados, não só por piratas de navios, que vieram e vêm à América Latina, e nosso último bastião, nossa defesa última sempre foi a soberania. Amamos a soberania, e, evidentemente, imaginar um bloco econômico no modelo europeu, onde há o compartilhar da soberania...
Os europeus nos perguntam por que não relativizamos isso. Não relativizamos porque temos história, temos nossa cepa, nossa tradição jurídica. E isso, claro, muitas vezes cria problemas à institucionalização de um bloco, como aquele que existe na Europa e este, nosso vizinho, da Comunidade Andina.
Então, começar a falar do MERCOSUL — e isso é fundamental — é começar a falar de sua persona. O MERCOSUL tem uma persona intergovernamental, porque os negociadores do Tratado de Assunção quiseram assim e porque, sabiamente, os governos, pela sua idéia "soberanófila", por sua "estatolatria" e por sua tradição, querem que as coisas continuem assim.
Pode haver discurso que diga que precisamos avançar, precisamos de instituições supranacionais, que é o outro lado da intergovernabilidade. O que significaria isso? Que precisamos ser como a União Européia, onde há — e a expressão é deliciosa — a "alta autoridade", que decide acima da autoridade do Estado.
Mas é óbvio que, na nossa cepa, na reunião em que discutíssemos como as decisões seriam tomadas, acabaria a integração, porque teríamos de adotar modelo segundo o qual existisse a tomada de decisões por maioria, e não a tomada de decisões que caracteriza o modelo intergovernamental e que é a compatibilidade de todas as vontades, tudo se decidindo por oportunidade do momento político e também por unanimidade dos votos.
A partir disso, passamos a abordar o problema da internalização das normas, e entramos em um vazio semântico, se olhamos a questão pelo prisma político.
Trago ao debate decisão recente que está sendo objeto de discussão dos fóruns políticos e acadêmicos e que diz respeito à norma proveniente das autoridades do MERCOSUL, que são autoridades intergovernamentais, ou seja, decidem tudo aquilo que for interesse comum — o que significa que tudo se decide com o oportunismo do momento político, com a presença de todos os membros, pelo interesse da decisão em um determinado processo. Em nenhum momento se pode imaginar uma decisão da maioria sobre a minoria, até porque, se assim fosse, os Estados se retirariam da integração.
Essa decisão diz respeito ao fato de procurarmos imitar a União Européia. Porque temos problemas de internalização, vamos então imitar a União Européia? Esse foi o caminho escolhido, na minha opinião de grande fragilidade institucional. Vejamos por quê.
Diz a decisão que normas que não requeiram aprovação legislativa deverão ser incorporados, quase que com efeito direto, como no Direito Comunitário europeu — que não existe, em nenhum momento, no MERCOSUL. Uma forma, portanto, supranacional.
O vazio semântico diz respeito ao fato de nós não sabermos exatamente o que sejam normas que não requerem aprovação legislativa, porque este tema não é um tema de Direito de Integração, mas um tema de Direito Constitucional de cada um dos países que compõem o bloco.
O Prof. João Ricardo, aqui na frente, que já estudou as assimetrias constitucionais do MERCOSUL, sabe que o problema está justamente no livrinho, na Constituição, e não iremos mudar isso apenas com a vontade do momento a que acabei de me referir.
Então, aqui, surge também um problema de lógica. O documento que trago à colação é uma decisão que estabelece um efeito direto para as normas que não requeiram aprovação legislativa; esta decisão "decide sobre ela mesma" — entre aspas.
E aqui temos este vazio semântico: normas que não requerem aprovação legislativa terão incorporação direta aos ordenamentos jurídicos nacionais, derrogarão as normas que lhe forem contrárias, serão hierarquicamente superiores às normas que lhe forem contrárias, tudo como no modelo europeu, no mundo ideal de Bruxelas.
Porém, normas do MERCOSUL, assim ditas, não têm existência no ordenamento jurídico brasileiro, porque o que existe nele é o art. 59 da Constituição Federal, que fala do processo legislativo.
Uma ordem de serviço de uma autoridade pública brasileira é hierarquicamente superior a essas propaladas normas que não requerem aprovação legislativa e que seriam objeto dessa decisão. Mais uma vez estamos em uma chuva de palavras e um deserto de idéias, como, infelizmente, foi a integração da América Latina.
A construção de blocos econômicos é uma tarefa eminentemente jurídica. Não se constrói um bloco econômico com o discurso político. A vontade política é fundamental. A base econômica é o plasma da integração. O comércio é o sangue da integração. Porém, o trabalho de construção institucional é eminentemente jurídico e os operadores do Direito — não gostam da expressão, mas ela está em voga — sabem que faremos a integração mudando nossos Direitos internos, preparando os nossos países para a integração? Não importando modelos que não darão em nenhuma hipótese certo.
Os argentinos podem nos dar lições em relação a isso. Eles mudaram a sua Constituição recentemente, em 1994, mas, antes de fazê-lo, submeteram-se a uma lenta jurisprudência da Corte Suprema em relação à abertura institucional, à abertura da Argentina para o mundo — uma série de decisões da Suprema Corte, entre elas principalmente o caso Cafés la Virginia, decidido em 1992, para se chegar finalmente à reforma constitucional de 1994, que permitiu evidentemente à Argentina aderir a instituições internacionais, submeter-se, mediante reciprocidade, a altas autoridades — a Argentina já estaria pronta para a supranacionalidade.
No Brasil, temos uma série de dificuldades institucionais que se explicam pela nossa história institucional. Explica-se pelo fato de sermos uma federação de três andares. Os argentinos não conseguem entender — e enquanto não conseguirem entender essa diferença, estaremos em dificuldades institucionais — a diferença entre estadual e estatal. Aliás, no Brasil, muitas vezes também não entendemos essa diferença.
Temos as nossas dificuldades institucionais. E, apenas para encerrar e suscitar o debate na expectativa de ouvir a Dra. Maria Cláudia, gostaria de dizer que as histórias conformam os povos. Temos nessa conformação coisas certas e erradas. Hoje, o Brasil é muito acusado por ser pré-histórico em relação ao modelo de incorporação de tratados.
Vejam que, enquanto discutimos a incorporação das normas do MERCOSUL, esquecemos que temos um problema maior, a própria incorporação dos tratados. O Brasil ainda não ratificou a Convenção de Viena sobre o Direito dos tratados, o tratado dos tratados. Porém, isso é fruto da nossa história. Temos razões, temos porquês. Esse é um problema político e, quando instado a falar sobre ele na presença de colegas de outros climas, de outras falas, de outras culturas comunitárias, costumo dizer que cada povo tem a tessitura do seu passado. E talvez tenhamos esse apreço pela soberania pela mesma razão que os europeus têm um apreço pela política agrícola comunitária. Porém, não há a menor dúvida que a política agrícola comunitária é muito mais lesiva ao mundo, causa muito mais miséria, muito mais sofrimento, muito mais pobreza do que o apego que temos no Brasil pela soberania.
Precisamos mudar com o nosso próprio modelo e sem modelos de outras falas.
Muito obrigado.