O Avanço Constitucional para a Recpção Imediata das Normas Mercosul


4. O Avanço Constitucional para a Recepção Imediata das Normas MERCOSUL

O SR. JOÃO RICARDO CARVALHO DE SOUZA - Exmo. Sr. Ministro Bruno de Risios Bath, Chefe da Divisão do Mercado Comum do Sul do Ministério das Relações Exteriores, mediador deste painel, na pessoa  de quem cumprimento todos os ilustres colegas da Mesa e distinta platéia. Minhas primeiras palavras são de agradecimento ao Deputado Dr. Rosinha pelo honroso convite que me foi formulado para participar deste painel.
Hoje, pela manhã, tivemos a oportunidade de ouvir, ao início da exposição do meu dileto amigo Prof. Jorge Fontoura, com quem já tive a oportunidade de dividir outras mesas de debate, uma observação sobre o Mercosul real e o dos sonhos. O tema que abordarei, O Avanço Constitucional para a Recepção Imediata das Normas do Mercosul, situa-se dentro do campo do Mercosul dos sonhos. Por isso, toda vez que o Prof. Jorge Fontoura tece esse comentário, fico procurando uma frase que possa exprimir como me sinto. Finalmente, encontrei: sinto-me o próprio nefelibata falando sobre tema onírico, ou seja, estou nas nuvens, falando de algo que só  existe em sonhos.
Na verdade, não é bem assim.
A primeira questão a ser formulada seria: Por que há essa preocupação com a recepção imediata das normas do Mercosul?
A resposta é simples. Por uma questão de segurança das relações que devem ocorrer dentro do Mercosul. E, tratando-se da segurança dessas relações, de forma quase instintiva, pensa-se na idéia de uma recepção imediata das normas do Mercosul, tendo-se por inspiração o modelo do ordenamento jurídico da União Européia.
Por isso, minha exposição será dividida em duas partes. Na primeira, tratarei dos elementos que distinguem a União Européia do Mercosul e que nos impedem de pensar em uma recepção imediata das normas secundárias do Mercosul. Na segunda parte, tratarei dos avanços constitucionais — e aí me permitiria fugir um pouco do tema e modificá-lo — para aperfeiçoamento da recepção das normas do Mercosul. 
Para entendermos a distinção entre Mercosul e União Européia, devemos identificar o que caracteriza a União Européia como um processo de integração completamente distinto dos demais processos de integração desenvolvidos, tanto no continente americano, como em diversas outras tentativas de integração no continente europeu. Da análise do ordenamento  jurídico da União Européia, percebe-se que a nota singular desse processo de integração europeu consiste no surgimento de um novo ramo do Direito, denominado Direito Comunitário, o qual muitos entendem ter surgido como resultado de uma mera construção jurisprudencial do Tribunal de Justiça das Comunidades Européias, posição da qual discordo, com a devida vênia de todos os autores que a defendem, porque entendo que o surgimento do Direito Comunitário deveu-se a uma conjugação de três fatores específicos.
O primeiro fator foi a previsão específica, nos textos constitucionais dos países que integram a União Européia, de dispositivos que possibilitavam a transferência do exercício de poderes soberanos por organismos supranacionais.
O segundo elemento essencial, é a previsão, no Tratado que instituiu a Comunidade Econômica Européia (CEE), da obrigatoriedade de cumprimento, pelos países signatários do Tratado, das normas emanadas da CEE.
 Por fim, o terceiro elemento seriam as decisões judiciais que destacaram as características essenciais do direito comunitário. É no processo de identificação dessas características que reside a relevante participação do Tribunal de Justiça das Comunidades Européias. Destaque-se, porém, que ele nada mais fez do que revelar as características do Direito Comunitário, à luz dos textos dos Tratados institutivos das Comunidades Européias e da vontade política dos países que as formaram, manifestada essa vontade nos seus textos constitucionais que previam a possibilidade do exercício, por um órgão supranacional, de poderes soberanos estatais.
No Direito Comunitário, poderíamos destacar quatro características básicas, que determinam a singularidade desse ramo específico do Direito, que não se confunde com o Direito Internacional clássico e com o Direito de Integração, que é o que temos no âmbito do Mercosul.
A primeira característica é a chamada primazia das normas de Direito Comunitário. E, qual seria o conteúdo dessa característica? (Peço desculpas àqueles que já têm maior intimidade com o tema, mas como observo que há muitos estudantes presentes, estou apenas procurando, inicialmente, fazer um nivelamento para podermos avançar na segunda etapa).
A característica de primazia das normas de Direito Comunitário significa que as normas emanadas das Comunidades, em matéria comunitária, têm primazia sobre a norma infraconstitucional dos Estados Membros e até sobre a própria norma constitucional desses países.
Essa característica está ou poderia estar presente no Mercosul? Não, de forma alguma. Por quê?
Vamos começar pelo caso brasileiro.
A questão da primazia dos tratados sobre a norma infraconstitucional, no Brasil, passou por um processo evolutivo, apresentando posições antagônicas. Do início do século XX até o início da década de 70, do século passado, o entendimento do Supremo Tribunal Federal era, inicialmente, no sentido de que o tratado tinha primazia sobre a norma interna e, portanto, ele não poderia ser revogado por uma lei brasileira. Essa posição foi firmada no julgamento das Apelações Cíveis nºs 7.872/43 e 9.587/51. Posteriormente, tivemos uma representação em relação à Convenção 110, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), na qual o Supremo Tribunal Federal concluiu que, ingressando a Convenção no ordenamento jurídico brasileiro, ela não poderia ser modificada posteriormente por lei. Isto é, seria hierarquicamente superior à lei.
No entanto, em 1969, houve um julgamento, que poderíamos denominar de "leading case" da atual posição do Supremo Tribunal Federal sobre a primazia do tratado em relação à norma interna. Foi o julgamento do Recurso Especial nº 80.004, que tratava da lei do cheque, ou seja, da convenção que versava sobre o cheque, que tinha dispositivos que entraram em contradição com uma lei feita pelo Estado brasileiro. No julgamento desse recurso extraordinário, firmou-se o entendimento, que persiste até hoje, de que uma norma interna pode revogar um tratado. E ao revogá-lo, embora fique o Estado brasileiro submetido à sanção internacional peculiar ao descumprimento do tratado, sob o ponto de vista do ordenamento jurídico interno, prevalece a norma interna pelo princípio temporal, ou seja, a norma mais nova revoga a mais antiga.
Esse entendimento avança mais um pouco em um julgamento recente, na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.480, em que se tratava da Convenção 158, da OIT, que disciplinava o tratamento a ser dado ao despedimento arbitrário de trabalhador — matéria reservada à lei complementar ,pela Constituição, nos termos do art. 7º, inciso I. Entendeu o Supremo Tribunal Federal que um tratado, por ingressar no ordenamento jurídico em nível de lei ordinária, não poderia disciplinar matéria reservada pela Constituição à lei complementar; ou seja, reforçou-se a idéia de que os tratados, dentro do ordenamento jurídico brasileiro, têm nível de lei ordinária, portanto, podem ser revogados por outra lei ordinária e não podem tratar de matérias reservadas à lei complementar.
 No que diz respeito à Constituição, em razão do princípio da supremacia da constituição, nenhuma dúvida há quanto à primazia do texto constitucional brasileiro em relação aos tratados, já sendo entendimento consolidado no Supremo Tribunal Federal a possibilidade de controle de constitucionalidade de tratados.
 Também no Uruguai não existe condições constitucionais para que se reconheça o princípio da primazia dos tratados sobre a norma interna.
O Estado uruguaio reconhece a soberania nacional (não a soberania popular, como no caso brasileiro), reservando-se à nação uruguaia o direito exclusivo de estabelecer leis. Portanto, não há qualquer possibilidade de ingresso direto, no ordenamento jurídico uruguaio, de qualquer norma do Mercosul ou que esta norma tenha primazia em relação à norma nacional.
A Constituição do Paraguai dá aos tratados posição hierarquicamente superior à das leis e admite a ordem jurídica supranacional.
A mais avançada, como disse o Prof. Márcio, é a da Argentina, que não é uma Constituição rígida, pode ser alterada pelo mesmo processo de elaboração de lei complementar.
A Constituição argentina define, em seu texto constitucional, as leis e os tratados como leis supremas da nação. Portanto, um tratado que seja incorporado ao ordenamento jurídico argentino pode modificar a própria Constituição do país.
Com relação à característica da primazia, esta é a situação jurídico-constitucional existente nos quatro países que integram o Mercosul.
A segunda característica das normas de Direito Comunitário é a aplicabilidade direta. O que é isso? As normas da União Européia não precisam, de forma alguma, ser inseridas no ordenamento jurídico nacional por qualquer espécie de norma nacional.
Não sei se os senhores sabem que, com relação à aplicabilidade das normas internacionais no plano interno dos países, temos duas correntes: a monista e a dualista. A monista diz que, uma vez em vigor no plano internacional, a norma internacional automaticamente submete o país que a ratificou. Já a dualista estabelece que é preciso repetir, sob a forma de lei, o que está disposto na norma internacional para que ela possa vigorar internamente no país.
O Brasil adota uma das espécies do monismo, denominada de "monismo moderado". Monismo moderado porque um decreto insere, no ordenamento jurídico brasileiro, em nível de lei ordinária, ipsis litteris, todo o texto do ato internacional, dispensando a elaboração de uma lei com conteúdo idêntico ao do ato e adotando-se como critério para a solução do conflito entre o tratado e a lei nacional o princípio da lei posterior.
A característica de aplicabilidade direta tem o seguinte conteúdo: no momento em que a norma entra em vigor no plano internacional, é automaticamente aplicável aos países que integram a União Européia. Não é o caso do Mercosul, porque, como, já foi dito, o Protocolo de Ouro Preto, em seu art. 38, diz que é necessário adotar medidas para o cumprimento das normas do Mercosul pelos países que o integram.
Então, não há aplicabilidade direta, muito menos efeito direto, que significaria poder, em juízo, ser citada uma norma da União Européia para dar fundamento a direito que se esteja pleiteando no Judiciário do país. Não é o caso do Mercosul, porque o art. 42 do Protocolo de Ouro Preto diz que essa norma tem de ser incorporada, nos termos previstos na legislação de cada país, para poder ter eficácia.
Por fim, a última característica do Direito Comunitário é a possibilidade de alegação ou aplicabilidade pelos juízes nacionais. Ainda que a parte não questione, não fundamente o seu pedido numa norma de Direito Comunitário, o juiz, porque tem a obrigação de conhecer todas as normas — e o juiz que integra as Comunidades Européias é juiz nacional e juiz das Comunidades, portanto, tem a obrigação de conhecer as normas nacionais e as normas das comunidades européias —, pode aplicar a lei comunitária para decidir um caso.
No Brasil, temos o exemplo de um caso ocorrido no Rio Grande do Sul, conhecido como caso Leben. O Rio Grande do Sul isentou de ICM o produtor de leite nacional e não estendeu o benefício para o produtor de leite uruguaio. Com base no tratado do Mercosul, o produtor uruguaio pleiteou fosse afastada a restrição que lhe havia sido imposta. A juíza que julgou o caso deu uma decisão favorável ao pleito, fundamentada no Tratado de Assunção. Na verdade, ela usou essa fundamentação porque quis; poderia ter verificado nas normas nacionais que não se pode fazer distinção de ICMS pela origem do produto. Resolveria o problema sem precisar se valer das normas para o Mercosul. Mas como o Mercosul estava em franco crescimento naquela época, ela mostrou seu conhecimento e aplicou corretamente a norma. Esse é o único caso em que se aplicou norma do Mercosul para resolver um problema jurídico nacional. E não sei, porque ainda não havia sido julgado pelo Tribunal, se a decisão da juíza foi mantida.
Em suma, são essas as características que distinguem o Direito Comunitário do Direito de Integração, que é o Direito do Mercosul.
Caso tivéssemos Direito Comunitário no âmbito do Mercosul teríamos o que se chama de aplicação imediata das normas editadas pelos órgãos que integram a estrutura do Mercosul. Porém, como já vimos, isso não se repete no Mercosul.
Caberia agora abordarmos uma outra questão: quais são as fontes de direito do Mercosul?
Como já ensinou o Prof. Cachapuz, o direito no Mercosul se divide em duas categorias: o chamado Direito Originário ou Primário, que são os tratados, protocolos, acordos ou convenções; e o Direito Derivado ou Secundário, que são as decisões, as resoluções, as diretrizes, as propostas e as recomendações. São duas categorias distintas. O Direito Primário constituiria o que poderíamos chamar de uma "constituição não codificada" do Mercosul, ao passo que o Direito Derivado ou Secundário seria composto pelas "normas infraconstitucionais" do Mercosul.
Outras fontes de direito no Mercosul, previstas pelos tratados, são os princípios de Direito Internacional, de eqüidade e de justiça.
Isso é o que existe em termos de estrutura do ordenamento jurídico do Mercosul. E é aqui que começam os nossos problemas, exatamente porque, para um processo de integração ser levado a efeito sem solavancos, é necessário que as normas desse processo tenham validade, no menor tempo possível, para os países que dele fazem parte. E como as normas do Mercosul dependem de incorporação ao ordenamento jurídico interno dos países, obedecidos os processos próprios de cada Estado Parte, há um atraso na internalização dessas normas, o que se reflete no próprio processo de integração. Não por outro motivo, o Mercosul não chegou, sequer, a completar a etapa da união aduaneira. O processo de integração econômica no âmbito do Mercosul  estancou na etapa de união aduaneira imperfeita. Após completar-se a união aduaneira é que poder-se-ia iniciar a etapa seguinte que é a de criação de um mercado comum. Nesse ponto, ressalte-se que o próprio Prof. Jorge Fontoura, em outras oportunidades já destacou que dificilmente o Mercosul implementará um mercado comum, sendo o nome "Mercado Comum do Sul" meramente marketing. Sustenta o ilustre professor que em momento algum houve verdadeira vontade política de se criar um mercado comum, uma vez que isso implica a adoção do Direito Comunitário e compartilhamento de soberania.
Estamos, então, diante de um dos principias problemas do Mercosul, atualmente: como criar condições para uma rápida internalização das suas normas, se esse processo depende das regras e da boa vontade dos Estados Partes?
Para tentar propor uma solução, passo especificamente ao tema que me foi dado para comentar: os avanços constitucionais para melhorar o processo de recepção das normas do Mercosul no ordenamento jurídico brasileiro.
Pela descrição do ordenamento e das características do Direito de Integração, que são distintas das do Direito Comunitário, vemos que para a internalização de normas do Mercosul há necessidade de dois procedimentos distintos — e aqui vou falar — a exemplo do que já fizeram os palestrantes que me antecederam, os Professores Cachapuz e Márcio Garcia— não como Consultor Legislativo da Câmara, mas como professor de Direito Constitucional. Portanto, na condição de professor, vou apresentar sugestões que possam ser adotadas para se aperfeiçoar o processo.
Retornando um pouco ao que disse o Prof. Cachapuz, analisando a Decisão nº 22/04, datada do dia 7 de julho de 2004, sobre vigência e aplicação das normas emanadas dos órgãos com capacidade decisória do MERCOSUL, em conjunto com o art. 5º, da Decisão nº 23/00, com a redação que lhe foi dada pelo art. 10, da Decisão nº 20/02, também do Conselho do Mercado Comum, em síntese, temos que: a) as normas que versarem sobre matéria de aplicação interna à estrutura do Mercosul não precisam ser incorporadas — perfeito, é assunto interna corporis, não vai produzir efeitos no âmbito interno de cada País, portanto é despicienda sua incorporação;  b) as normas que versarem sobre matéria que já estiverem disciplinada de forma idêntica em lei de cada país também não precisam ser incorporadas. No segundo caso, a norma Mercosul é incorporada pela sua simples publicação no Diário Oficial da União.
Ora, vamos pensar um pouco. Essa situação me lembra muito o inciso I do art. 20 da Constituição, que trata dos bens da União. Diz o seguinte: "Art. 20. São bens da União: I — os que atualmente lhe pertencem e os que lhe vierem a ser atribuídos". Ou seja, uma definição de procedimento que não auxilia na solução dos problemas envolvidos na incorporação das normas do Mercosul.
Por exemplo, no caso de norma Mercosul que não foi incorporada porque já existia norma interna compatível com ela. Nessa hipótese, temos um problema: e se mudarmos a norma interna preexistente e a nova lei entrar em conflito com a norma Mercosul, inserida no ordenamento jurídico por sua publicação no Diário Oficial, sem um processo próprio de internalização?
No Brasil, discute-se, até mesmo, a constitucionalidade de emendas constitucionais. Imaginem a quantidade de processos judiciais contestando a legalidade dessas normas Mercosul, que não foram submetidas a um processo próprio de incorporação e que, em tese, são aplicadas como se fossem leis.
A implementação dessa Decisão nº 22, de 7 de julho de 2004, sem uma maior reflexão, pode produzir querelas jurídicas de vulto que irão, mais uma vez, comprometer o processo de integração.
É preciso dar segurança jurídica para os atores envolvidos em todas as atividades do Mercosul, em especial para os atores econômicos, porque, quando raciocinamos, não como nefelibatas, mas no campo do ideal, esquecemos que, efetivamente, existe um mundo real que depende de regras claras. Tanto o trabalhador do Fórum Econômico e Social quanto o empresário precisam de regras claras. Quem vai investir dinheiro em um projeto fundado em uma norma Mercosul que amanhã poderá ser mudada, por um procedimento simples de aprovação de uma lei ordinária ou, mais grave, por uma medida provisória? Ou ainda, se não houver mudança de lei, mas um decreto modificar, por exemplo, uma norma da ANVISA dentro da discricionariedade permitida pelo diploma legal? Quem correrá o risco econômico de um empreendimento se, de um dia para o outro, mudam-se as regras e compromete-se, simplesmente, todo o investimento feito naquele produto?
Volto a insistir. É preciso dar maior segurança jurídica, e a Decisão 22/04 não concorre de forma efetiva para isso.
Pensei sobre o tema, e a sugestão que tenho a apresentar, para que se possa fazer uma melhor recepção das normas do Mercosul, implica mudanças no texto constitucional. Poderíamos falar em dois tipos de mudanças: uma ideal e impossível; e outra possível, embora difícil.
A ideal, porém praticamente impossível, seria realizar um plebiscito para perguntar se é autorizada a inserção no texto constitucional brasileiro de uma previsão de transferência de exercícios soberanos para um organismo intergovernamental. Estaríamos, basicamente, copiando o modelo europeu e criando a possibilidade de que as normas do Mercosul pudessem vir a constituir um ordenamento jurídico de Direito Comunitário. Isso seria o ideal jurídico — não estou falando do ideal fático, mas jurídico. Seria perfeito, porque ter-se-ia toda a segurança e toda a possibilidade de normas claras e auto-aplicáveis.
Por que um plebiscito? Porque o art. 60, § 4º, da Constituição proíbe a deliberação sobre emenda tendente a abolir as quatro categorias de matérias enumeradas, entre elas o princípio federativo. E, no momento em que se permite que uma norma do Mercosul possa superar a própria Constituição, ofende-se ao princípio federativo, porque haverá normas do Mercosul, fundadas em tratados  celebrados pelo Executivo, em relação aos quais o ente federado tem uma participação limitada, restrita à manifestação do Senado Federal no processo do projeto de Decreto Legislativo necessário à ratificação desse tratado, que podem ter reflexos em questões inseridas na autonomia legislativa e financeira do Estado federado. Para deixar claro a que situação estou me referindo: imaginem o que aconteceria se fosse feita uma norma do Mercosul que tivesse reflexos sobre o ICMS. Evidentemente, o Presidente Lula passaria uns três meses recebendo Governadores para explicar por que aprovou aquela norma, que tirou dinheiro dos Estados. Esse é o problema de se trabalhar com a hipótese que possibilite a transferência do exercício de poderes soberanos.
E outra: o Supremo Tribunal Federal certamente discutiria a questão da redução de suas competências, porque, havendo Direito Comunitário, poder-se-ia criar o Tribunal de Justiça do Mercosul, nos moldes do Tribunal de Justiça das Comunidades Européias, que passaria por cima do Supremo Tribunal Federal nas decisões relativas à matéria comunitária. Sairia da mão do Supremo o poder de decidir, em última instância, sobre matéria comunitária, porque a Constituição brasileira estaria subordinada às normas do Mercosul.
Embora o Dr. Márcio Garcia diga que o Executivo não tem função proeminente na celebração de tratados, data maxima venia, acho que tem, e eu digo isso com tranqüilidade porque integro o quadro de funcionários do Poder Legislativo.
Aprovando-se a possibilidade de transferência do exercício de poderes soberanos para o Mercosul, daríamos ao Executivo muito mais poderes para alterar a Constituição por meio de tratado. Por todos os óbices apontados, embora a adoção do conceito de soberania compartilhada fosse o ideal, sob o ponto de vista acadêmico, na prática, isso seria improvável.
Vamos, então, passar para as soluções possíveis.
A primeira solução que vejo como possível vai atingir as chamadas normas de Direito Primário, que são os tratados. Observem que o já citado art. 59, da Constituição Federal de 1988, que trata do processo legislativo, não tem sequer uma linha sobre tratados. Nesse ponto, poder-se-ia alterar a Constituição e inserir normas específicas para o processo legislativo de tratados. De todos? Não, dos tratados dos organismos regionais de integração econômica dos quais o País fizesse parte. Em suma, os tratados do Mercosul. Inseriríamos na Constituição, digamos, um art. 60-A, em que se criariam regras próprias para esses tratados. Isto é possível e tem base constitucional: o art. 4º, parágrafo único, estabelece que o Brasil deve buscar a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina. Uma leitura sistêmica da Constituição nos diria que se pode prever tratamento diferenciado para os tratados do Mercosul, no capítulo do processo legislativo, o que seria o conteúdo desse art. 60-A a que nos referimos.
Como se aprova hoje um tratado? Por decreto legislativo aprova-se. Resolvido definitivamente pelo Congresso Nacional, é feito o depósito do instrumento de ratificação junto ao órgão que funciona como secretaria do tratado. Obedecidas as normas próprias, definidas no texto do tratado, o tratado passa a vigorar no plano internacional. No plano interno, como já comentamos, ele passa a vigorar, em nível de lei ordinária, no momento em que é inserido, por Decreto do Poder Executivo, no ordenamento jurídico brasileiro.
O que é possível fazer? Prever um processo legislativo semelhante ao da Lei Orçamentária para os tratados do Mercosul.
O Congresso Nacional tem entre as suas Comissões Permanentes a chamada Comissão Mista de Orçamento e a Comissão Parlamentar do Mercosul. Por que não passarmos os tratados do Mercosul pela Comissão Parlamentar do Mercosul — e seria uma comissão mista da Câmara e do Senado —, em que haveria um relator, e sub-relatores designados pelas Comissões de Relações Exteriores e Defesa Nacional das duas Casas? Participariam, também, do processo as Comissões Permanentes cuja competência temática estivesse contemplada nos tratados. Esses representantes das Comissões também seriam sub-relatores da matéria.
Portanto, teríamos sub-relatores e um relator da Comissão Parlamentar do Mercosul, encarregados de elaborar parecer a esses tratados, com vista a dar celeridade ao processo legislativo.
Concluído o processo no âmbito da Comissão Parlamentar do Mercosul, o parecer aprovado iria à votação, no Congresso Nacional.
O que se espera dessa votação, se pretendo que o tratado não possa ser modificado de forma irresponsável por uma lei? Sabemos que se aprovam modificações com apenas um voto a favor e 256 abstenções, quando o quorum exigido para a matéria for o da regra geral para aprovação de matérias, ou seja, maioria simples. Na Câmara, é preciso obter o quorum de 257 Parlamentares em Plenário; se houver 256 abstenções e 1 voto a favor, a matéria está aprovada, porque só se computam os votos válidos para a maioria simples. Para evitar-se essa situação, exigir-se-ia para os tratados do Mercosul um quorum qualificado.
A prosperar essa tese, poderíamos discutir qual seria esse quorum. Poderia ser o mesmo exigido para emenda constitucional, de maneira que se pudesse prever que o tratado entrasse no ordenamento jurídico brasileiro como norma constitucional, ou poderia ser quorum qualificado de lei complementar, que exige maioria absoluta, para que o tratado fosse alçado à condição de lei complementar. Não que a lei complementar seja hierarquicamente superior à ordinária, mas estaria o tratado submetido ao quorum qualificado da lei complementar, e poder-se-ia dizer que os tratados aprovados nos termos do art. 60-A, da Constituição, são hierarquicamente superiores às leis complementares e ordinárias.
Dessa forma, começamos a dar segurança jurídica ao processo de integração do Mercosul.
Para imprimirmos maior celeridade às votações, elas poderiam ser acompanhadas do instrumento de sobrestamento de pauta. Ou seja, daríamos um prazo para que esses tratados fossem apreciados e, uma vez transcorrido, sobrestar-se-iam as pautas das demais votações, com exceção das medidas provisórias, que hoje não são sobrestadas nem em razão de projetos em regime de urgência constitucional. Esse seria o processo.
Estamos afetando algum princípio fundamental da Constituição? Não. Estamos cumprindo o disposto no parágrafo único do art. 4º.
Toda vez que falo sobre isso, acho engraçada a reação dos internacionalistas, que me olham assustados, porque não é normal ouvir um constitucionalista defender alterações constitucionais para prestigiar o Direito Internacional. No entanto, não há o que se estranhar. Recordo que, quando eu estava me formando, o Direito Constitucional não era prestigiado. Todos queriam ser especialistas em Direito Processual, que era a grande matéria do momento. Hoje, o Direito Constitucional é a grande matéria do momento, porém, se vislumbrarmos o futuro com olhar prospectivo, o Direito Internacional haverá de ser seguramente o Direito do futuro. Basta ver que o processo de globalização hoje é desastroso porque não há regras internacionais que possam balizá-lo, a fim de transformá-lo em um processo justo.
Essa é a sugestão de mudanças em relação à internalização das normas de Direito Primário do Mercosul. Faríamos essas modificações no texto da Constituição, aproveitando a estrutura já existente da Comissão Parlamentar do Mercosul e dando primazia para os tratados sobre as normas internas, leis complementares ou ordinárias, exigindo-se, para isso, quorum qualificado para aprovação. Também como partícipes do processo estariam as Comissões Permanentes, temáticas, contribuindo para os debates por meio dos sub-relatores e acelerando o processo, que se concentraria na Comissão Parlamentar do Mercosul.
E quanto às normas de Direito Secundário? Não poderiam ser tratadas de igual maneira, porque não cabe ao Congresso Nacional deliberar sobre tais normas. Mas também não poderíamos deixá-las ao acaso. É necessário achar uma solução para elas. Vislumbro que a questão poderia ser enfrentada de duas maneiras. Uma já foi sugerida aqui: a possibilidade de diversas inserções de normas do Mercosul por decreto, mas não acho ser a mais adequada. Inclino-me pela opção da lei delegada. Ou seja, também no âmbito da Comissão Parlamentar do Mercosul haveria a tramitação de projetos de resolução para delegar ao Poder Executivo poderes para elaborar a lei que tratasse de matéria referente ao Direito Derivado ou Secundário do Mercosul, de maneira que a norma ingressasse no ordenamento jurídico em nível de lei. Assim, não deixaríamos as normas de Direito Secundário do Mercosul suscetíveis às modificações por portarias ou outros atos infralegais.
 Estas são as idéias constantes de estudo que fiz sobre a matéria quando da elaboração de dissertação de mestrado sobre a criação do Tribunal de Justiça do Mercosul. Entendo serem idéias pertinentes para que se possa aperfeiçoar o processo de internalização das normas do Mercosul, sem dependermos da criação de um ordenamento jurídico comunitário que assegurasse a recepção imediata dessas normas .
 Relembro, outra vez, o ilustre Prof. Jorge Fontoura, que, se aqui presente, certamente estaria me olhando como quem olha um duende, imaginando-me um sonhador, alguém pensando em algo que jamais acontecerá.
 Apenas gostaria de lembrar que, se fôssemos enveredar por esse raciocínio, os jusfilósofos, que lançaram o fundamento teórico do Estado Democrático Liberal, jamais o teriam feito. Também os socialistas, que deram ensejo ao Estado de Direito Social, jamais teriam pensado algo parecido. Jean Monnet, com seu plano Schumann-Monnet, que deu início à Comunidade Européia do Carvão e do Aço, unindo duas nações que já haviam guerreado por duas vezes, também nada teria realizado.
 Portanto, ou temos coragem de pensar e mudar ou viveremos eternamente  de um passado ou de uma ilusão que não voltará, porque o Estado Nacional já cumpriu o seu papel. A partir de agora, temos de aceitar que, ou nos integramos de forma segura, a blocos econômicos, para fazermos frente a outros blocos ou a uma Nação que, sozinha, vale por 10 deles, ou acabaremos sempre na condição de participantes do pós-festa, atrasados na revolução industrial, tecnológica, jurídica e econômica. Muito obrigado.