Debates - Tarde

5. Debates

O SR. COORDENADOR (Bruno de Risios Bath) - Agradeço ao Dr. João Ricardo a intervenção.
 Há três inscritos para o debate. A lista de inscrições ainda está aberta.
Gostaria apenas de aproveitar as últimas palavras do Dr. João Ricardo para dar um testemunho pessoal a respeito do aspecto por ele mencionado, qual seja o de que qualquer projeto de integração é fundamentalmente político e exige certo grau de ousadia. Sem ousadia não se vai longe, pois se trata de um processo que envolve profundas transformações em diversos aspectos da vida nacional. Talvez a mais difícil, até mais do que as de ordem jurídica, seja a de mentalidade.
 Lembro-me sempre das palavras do Bardo: "Isso pode ser loucura, mas tem algum método". O MERCOSUL é um pouco isto: tem que ter método, mas deve possuir certo grau de loucura, de ousadia. Se ficarmos apenas no que o bom senso indica, no que a prudência recomenda ou no que as conveniências impõem, dificilmente avançaremos e permaneceremos nessa situação indefinida em que nos encontramos hoje, com uma lei imperfeita.
 Talvez o mais grave — e é algo que certamente não devemos permitir — seja uma certa dificuldade de perceber os rumos desse projeto da união aduaneira.
 Concedo a palavra ao primeiro inscrito, Pastor Bentílio, da Igreja Batista.

O SR. BENTÍLIO JORGE DA SILVA FILHO - Sou Pastor da Igreja Batista em Brasília e atuo também no Rio Grande do Sul. Gostaria de perguntar aos integrantes da Mesa que dirige os trabalhos deste grande debate sobre a integração do MERCOSUL como se dará o ordenamento das normas jurídicas pertinentes ao juízo arbitral, mais especificamente as de natureza trabalhista, salarial, já que em cada país há um salário mínimo diferente.
 Há possibilidade de esse debate se ampliar para o âmbito nacional, para capitais de estados como São Paulo e Rio Grande Sul, enfim, pelas cinco regiões brasileiras?
 Tenho contato com trabalhadores da Itália e sei que na Europa há um conflito seríssimo nos países que integram a União Européia, em razão inclusive de questões de natureza salarial. Como se dará essa integração nacional em relação aos trabalhadores dos quatro países que compõem o MERCOSUL?
 É importante também a questão cultural e religiosa. Este dois de setembro está sendo um marco para o MERCOSUL, mas acho que deveriam estar conosco não só os Deputados — a exemplo do Deputado Rosinha, a quem parabenizo pelo trabalho —, mas toda a sociedade, as igrejas, os juízes etc., para uma discussão mais ampla.
 Gostaria, portanto, de saber como se dará o ordenamento das normas jurídicas trabalhistas do MERCOSUL, haja vista o conflito na União Européia, notadamente entre os países mais ricos — Alemanha, Itália e outros —, cujos trabalhadores estão até fazendo greve por salários iguais.
 
O SR. COORDENADOR  (Bruno de Risios Bath) - É uma pena que o Dr. Valdir não esteja presente. Por ser ele representante dos trabalhadores, talvez pudesse nos dar testemunho mais imediato sobre a questão.
 Pergunto se algum painelista gostaria de comentar a questão levantada pelo participante. Se bem entendi, a indagação é sobre a assimetria dos níveis de proteção trabalhista no MERCOSUL. Esse é um tema que vem sendo tratado? O que se pode fazer nesse sentido?
 Com a palavra o Sr. Márcio Garcia.
 
O SR. MÁRCIO GARCIA - Pastor, a pergunta é extremamente ampla. Não sei se posso ajudar, talvez possa apenas dar início à resposta. Eventualmente, alguém da platéia pode estar mais bem informado.
 Porém, queria aproveitar para fazer um rápido comentário sobre o que disse o Ministro Bruno a respeito do tom de poesia no projeto. Claro que se ficarmos com muita poesia, daqui a pouco perguntarão qual será a hora do suicídio.
 Com meus alunos sempre falo, em tom de brincadeira, que estas notas de euro também são poesia. Ando com estas notas no bolso porque é um cacoete dos juristas, sobretudo daqueles que militam no Tribunal do Júri, apresentar o corpo de delito, fazer teatro, mostrar fotografias etc., para todos ficarem impressionados. Pois bem, o euro também era poesia. Nos anos 80, se alguém dissesse aos alemães que haveria na  Europa uma moeda única, que o marco alemão desapareceria, com certeza seria preso em camisa-de-força. Portanto, o euro também é fruto da poesia, quer dizer, esta nota é o nosso "corpo de delito". 
 O Tribunal Permanente do MERCOSUL também era poesia. Quando conversávamos lá,  minha sensação era a mesma de quando o ex-presidente Juscelino Kubitschek disse que a capital do País seria mudada para Brasília — também poesia. Nem sempre as poesias se realizam, mas algumas, sim. É como dizer que teremos um Parlamento do MERCOSUL: já estamos nos dando conta de que hoje não é pretensão tão poética assim. Esses avanços são importantes.
Em relação ao que disse o João Ricardo, quando fez digressões sobre o Direito Constitucional e Internacional, às vezes me pergunto se não temos mais inconstitucionalistas do que constitucionalistas, porque tudo é inconstitucional. Mas essas disciplinas hoje se entrecruzam. Em Lisboa e Coimbra, por exemplo, a disciplina é Direito Constitucional e Internacional. No romper do século, o Caderno de Direito Constitucional e Ciência Política mudou de nome e passou a ser chamado Caderno de Direito Constitucional e Internacional. São pequenas mudanças, na linha do que diz Guimarães Rosa sobre o analfabeto das entrelinhas. Essas coisas estão nas entrelinhas, só não lê quem não quer.
Não estou fazendo essa volta, Pastor, para não responder ao senhor. A pergunta foi muito ampla. Quem sabe não encontraremos algum rudimento para o primeiro ponto levantado por V.Exa. na Declaração Sociolaboral do MERCOSUL, que trata de Direitos individuais, que dá notícia da liberdade sindical, da questão do trabalho infantil, do Direito de greve, da negociação coletiva, da importância do diálogo social, enfim, dá um norte. É um norte ainda, diria, não muito tangível. Ainda estamos num ponto mais retórico do que concreto, mas sem dúvida ele nos sinaliza de modo bastante fecundo. Hoje, não é possível fechar os olhos e ignorar essa realidade.
É claro que estamos em um marco de integração que ainda não pressupõe de modo amplo, geral e irrestrito, a liberdade, a circulação de pessoas etc. Mas aqui e ali já ouvimos falar disso. Por exemplo, no domínio do Direito, um dos melhores livros de Direito Penal, intitulado Direito Penal Brasileiro, é de um autor argentino, o Zaffaroni. O Prof. Zaffaroni, hoje juiz da Suprema Corte Argentina, está aqui. "Ah, bom, então ele mora no Brasil". Não, não mora no Brasil. É juiz da Suprema Corte argentina.
Então, vemos que esses pontos começam a ter maior dimensão. Não temos ainda um código do trabalho, vamos dizer assim, internamente, e não o temos também pela ótica do Direito no MERCOSUL.
Em relação à União Européia, confesso que desconheço o que se passa hoje nesse exato domínio, sobretudo no caso concreto que V.Exa. mencionou. Culturalmente, há inúmeras iniciativas. Quem sabe, esse foi um contorno mais ou menos do que aconteceu na Europa: enquanto o discurso era fazer integração pela via cultural, que seria uma leitura mais elevada, ela não foi adiante. Foi preciso fortalecer o viés econômico, o interesse que toca o bolso — é uma forma mais simples e direta de compreender a importância da integração —, para que hoje houvesse integração cultural de diferentes povos. Isso é extremamente importante. Nesse sentido, há programas da União Européia, tais como o Erasmus. Recentemente, o filme Albergue Espanhol — não sei se vocês tiveram a oportunidade de assistir — trata exatamente disto: um estudante alemão convive com um estudante espanhol, um português e um britânico. Essa miscigenação muda e dá nova interpretação às realidades daqueles países. Quem conhece minimamente a história daquela região sabe que era banhada por sangue.
Não há dúvida da importância dessa integração cultural. Consta que, quando os Estados Unidos deliberaram jogar a primeira bomba atômica no Japão, o alvo preferencial era a cidade de Kyoto, o que seria uma lástima, como de fato é a utilização de arma atômica de qualquer modo. Um dos generais que decidiriam a questão disse: "Em Kyoto, não, porque eu tenho um amigo lá". Olhem que coisa interessante. É verdade, é fato. Então, decidiram por Hiroshima.
Há uma universidade no Japão cujo proprietário criou uma bolsa de estudos e tem vínculos com universidades no Brasil, inclusive no Estado do Paraná. Pessoas passam um mês conhecendo o Japão, e vice-versa. Há intercâmbio, porque ele imagina que a proximidade dos povos — desde o romper dos anos da vida universitária e até mesmo entre pessoas com mais experiência — fará com que, no futuro, as pessoas pensem duas vezes antes de tomar determinadas decisões. A integração cultural é de grande importância.
Há muita coisa nessa linha produzida pelo MERCOSUL.
Mais alguém gostaria de fazer perguntas?

O SR. COORDENADOR (Bruno de Risios Bath)  - A questão do trabalho e do emprego está bastante viva no MERCOSUL. A Comissão Sociolaboral trabalha esse tema. Em abril passado, em Buenos Aires, teve lugar a Conferência do Trabalho e Emprego. Participaram os Ministros do Trabalho do MERCOSUL e Estados associados. O Ministro Ricardo Berzoini manifestou interesse em fazer do trabalho e emprego uma das tônicas da Presidência Pro Tempore Brasileira do MERCOSUL. Para isso, há um grupo de trabalho em ação. Existe a idéia de implementar uma estratégia regional de trabalho e emprego com metas em diversas áreas de informalidade etc. É um assunto que está vivo, que está sendo analisado. Pode-se esperar que, em dezembro, haja algum resultado interessante nessa área.
 Passo a palavra ao próximo inscrito, Wilfrido Fernández, do Tribunal Arbitral do MERCOSUL.

O SR. WILFRIDO FERNÁNDEZ DE BRIX - Vou fazer dois comentários muito breves.
O primeiro é que, na minha modesta opinião, mesmo que a Resolução n° 22, de 2004, tenha sido feita com boa intenção, na prática é letra morta, porque a incompatibilidade normativa atualmente existente no Brasil, e a que o Prof. Cachapuz brilhantemente se referiu, é uma doença comum nos países do MERCOSUL. Hoje vim a Brasília só para aprender que o Brasil não tem a possibilidade normativa de fazer essa implementação na prática.
O meu ponto chave é este: o processo de internalização das normas só pode ser resolvido no dia em que o MERCOSUL tiver estrutura supranacional. Sei que essa não é uma meta muito fácil de Alcançar, mas, por mais utópica que seja, deve ser comum aos países.
O segundo comentário é que, hoje em dia, dentro ou fora do processo de integração no século XXI, já não é possível conviver no mundo moderno com uma estrutura normativa que não tenha dois princípios fundamentais: a prevalência dos tratados sobre as leis e a faculdade constitucional de delegar aos organismos supranacionais a soberania, pelo menos, no processo de integração. Acho que esse segundo ponto tampouco é meta utópica no MERCOSUL, porque um país muito grande, a Argentina — como salientaram o Dr. João Ricardo e o Dr. Fontoura nessa manhã —, já fez essa reforma constitucional em 1994. E um país pequeno, o Paraguai, muito antes da Argentina, já tinha feito o mesmo. É muito raro para um país como o Paraguai ter mérito internacional, a não ser na área de futebol ou de pirataria. No entanto, foi o primeiro do MERCOSUL a estabelecer dois preceitos constitucionais: a prevalência dos tratados sobre as leis e a faculdade constitucional bem clara de delegar competência a organismos supranacionais no processo de integração.
O Brasil é o maior País do MERCOSUL. Para o Uruguai e o Paraguai, países pequenos, deve ser feita uma assinatura pendente, mas possível no menor prazo. Só assim o MERCOSUL terá a perspectiva de não perder competitividade no contexto mundial. A Comunidade Andina, bloco muito menos importante no contexto mundial, já tem Direito Comunitário e organismos supranacionais. O MERCOSUL não pode ficar atrás.
Muito obrigado.

O SR. COORDENADOR (Bruno de Risios Bath) - O Sr. Cachapuz gostaria de fazer algum comentário?

O SR. ANTÔNIO PAULO CACHAPUZ DE MEDEIROS - Apenas gostaria de me associar a V.Sa., cujos comentários são muito pertinentes.
Não iria tão longe, dizendo que a Resolução nº 22 é letra morta. Considero que ela tem avanços possíveis. Sublinhei um ponto que me parece muito positivo: a criação, por parte de cada Estado Membro, de uma seção própria, no seu boletim oficial, no seu Diário Oficial, que passe a conter as normas do MERCOSUL, para que não fiquem dispersas em diferentes seções do Poder Executivo. Isso já é muito bom.
 No Brasil, vamos promover, dentro do espírito dessa resolução, alguma forma de celeridade do processo de incorporação das normas. É possível que se promova maior aceleração. Nesse sentido, acho que há alguns aspectos positivos, que poderão ser implementados. Eu disse que me parece imprópria a expressão "aplicação direta" ou "aplicação imediata", utilizada antes em outra resolução do MERCOSUL. Quanto recebi o honroso convite para participar deste seminário, sugeri que se substituísse a expressão por "vigência" ou "aplicação" das normas do MERCOSUL.
Como disse o querido professor de Direito Constitucional, essa expressão é própria de um sistema comunitário, e não de um sistema de integração, como é o caso do MERCOSUL.

O SR. COORDENADOR (Bruno de Risios Bath) - Tenho uma pergunta a respeito desse ponto, fazendo uso dos meus poderes de moderador. 
 O Prof. Cachapuz mencionou que uma norma do MERCOSUL, para ser recebida no ordenamento jurídico brasileiro, precisa de um ato normativo. Minha pergunta é: isso significa que cada norma precisa de um ato individual, ou é possível pensar em uma espécie de "decreto-mãe", digamos, que habilite o Poder Executivo a publicar as normas do MERCOSUL no Diário Oficial, sem que cada uma seja necessariamente objeto de instrução normativa, de portaria da ANVISA etc? Qual seria a viabilidade dessa idéia?

O SR. ANTÔNIO PAULO CACHAPUZ DE MEDEIROS - Com certeza, é possível. Concluí minha apresentação mencionando a Emenda Constitucional nº 32 , de 2001, muito recente, que dá ao Presidente da República o poder de dispor, mediante decreto, sobre a organização e o funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de cargos públicos. Então, é uma alteração substantiva na competência do Presidente da República. Ele pode editar um decreto sobre esse ponto.
É um pouco controvertido se esse decreto do Presidente, com base na emenda constitucional, na feição que a Constituição adotou, poderia alterar uma lei, por exemplo, que confere competência a uma agência, a determinado órgão do Poder Executivo. Esse é um ponto que os constitucionalistas estão discutindo no momento, ou seja, se isso seria possível ou não, já que o Presidente recebeu competência pela Constituição de, através de decreto, dispor sobre a administração federal. Então, ele poderia, eventualmente, alterar as competências dos órgãos do próprio Poder Executivo, mas é controvertido. Repito que é controvertido.
Achei muito interessante a sugestão de que haja uma lei delegada. Esse é um campo que precisa ser aprofundado.

O SR. COORDENADOR (Bruno de Risios Bath) - Muito obrigado.
 Com a palavra o Sr. Ireneo Andrés Barboza. Peço desculpas por não compreender a sigla do órgão a que pertence.

O SR. IRENEO ANDRÉS BARBOZA - Organização Social e Ambiental de Fauna e Flora do Brasil — OSAFF.
 Não vemos na legislação e nas normas uma qualificação única. Temos disparidades. Devemos avançar um pouco mais. Se não avançarmos nessas normas jurídicas e comunitárias, vamos atrapalhar o andamento por mais 10 ou 15 anos. De imediato teremos normas novas.
Imaginemos um membro do MERCOSUL que produzisse 20 mil canetas e vendesse ao país vizinho. Passou por dificuldades, as máquinas quebraram e só foram consertadas depois de cinco anos. Agora, o vizinho só vai comprar 10 mil, porque já produz o restante. O que aconteceu? Um país se modernizou, e o outro, não. Não existe norma específica sobre isso. Impõe-se uma legislação por cima, mas não com qualidades comunitárias de imposição. Será que a biossegurança vai entrar na normativa? Será que a informática vai entrar na normativa? Quais as adequações? E quanto à célula-tronco? No âmbito do MERCOSUL, tem de haver normas sobre esse tema. Será que isso já está disposto no acordo do MERCOSUL ou há normativa e decreto a serem feitos ainda? São coisas importantes para organizações ambientais que pleiteiam isso, assim como sua participação no contexto. Acho que tem que haver uma resposta.

O SR. COORDENADOR (Bruno de Risios Bath) - Obrigado pela contribuição.
Algum painelista gostaria de comentar o assunto?
Passo a palavra ao Ministro Clemente Mourão.

O SR. CLEMENTE MOURÃO - Obrigado. Vou fazer uma observação e, em seguida, uma pergunta. Quem aproveitou sempre que pôde o texto dos tratados a serem celebrados agradecia, mesmo o fazendo solitariamente, a clareza de quem os escreveu. Então, agora, ao vivo, faço-o de forma mais direta. Agradeço para corrigir um anacronismo: muito obrigado.
Feita a observação, dirijo minha pergunta ao Dr. João Ricardo, cuja exposição me causou certa perplexidade.
É fascinante: alguns pensam que no poder de legislar de Bruxelas já havia uma pré-autorização, uma pré-competência dos ordenamentos jurídicos internacionais; outros dizem que foi algo que foi evoluindo pelos pareceres, pelo julgamento, pelo exercício da função. Sem conhecer a matéria, sempre tive um viés a favor desta segunda corrente. O senhor me deixou perplexo porque estruturou muito bem seus argumentos e expôs claramente sua opção, seu julgamento.
Semana passada, três casos interessantíssimos da União Européia foram notícias. O primeiro, que se divide em dois, é relativo a preço de transferência: 1) matriz no Reino Unido, subsidiária no Reino Unido. O Fisco inglês, nada. 2) Matriz fora do Reino Unido, subsidiária no Reino Unido. O Fisco inglês fez o que o nosso faz o tempo todo: glosou. Opinião da Corte: Ou vocês fazem para todas as firmas ou não fazem para nenhuma. Não interessa onde esteja a matriz, se na Holanda, na França, na Alemanha ou no norte da Inglaterra com subsidiária no sul do país.
O segundo caso, se me lembro bem, é de um cidadão francês que se mudou para a Bélgica. O Fisco francês entendeu que determinado ativo dele tinha se valorizado — não por venda,  mas pela saída do país —, e taxou o imposto de saída. O cidadão apelou. O que teria dito a Corte? Ela aceitou os argumentos do cidadão francês de que o ônus tributário que lhe foi imposto, por ter se mudado para o outro lado da fronteira, limitava sua prerrogativa de livre trânsito. O Fisco francês perdeu.
O terceiro diz respeito a empresas que saem de unidades nacionais da União Européia que têm nível — digamos — alto de tributação de renda, e vão para outra unidade nacional com nível baixo de tributação — falta-me uma palavra melhor. Nesses casos, há também um imposto de saída. Segundo as notícias,  Alemanha,  França e outros países têm esse imposto. Elas perderam na Corte. Se estou me recordando bem, essas empresas fizeram valer uma analogia com o caso do francês. Ou seja, se eu tenho que pagar um imposto de saída, ao sair de um país e ir para outro, e certos impostos são mais altos em algum país, isso limita o meu arbítrio.
Na realidade, citei esses casos como uma maneira de iniciar minha pergunta, pois todos eles são sobre renda. A tributação da renda não está harmonizada ainda, mas o consumo está. Nesse caso, o senhor me diria que é mais uma manifestação de que os ordenamentos jurídicos nacionais já habilitavam a Corte de Bruxelas a legislar  — e esta é a minha impressão —, ou foi a Corte que progressivamente começou a legislar, considerando que, não estando harmonizada a tributação sobre a renda, de certa forma não existia limite de tributação sobre a renda? Agora existe, porque a Corte legislou.
Quero repetir que o senhor me deixou fascinado. E é mais cômodo para mim fazer perguntas a continuar quebrando a cabeça.

O SR. JOÃO RICARDO CARVALHO DE SOUZA - Agradeço ao senhor  a pergunta, que é bastante interessante. Deixe-me posicionar o assunto no tempo. Por que o Tribunal de Justiça pode dar, hoje, essas decisões contrárias às normas nacionais, aplicando os princípios que regem a livre circulação de capitais ou livre circulação de bens? Porque já está consolidado no âmbito da União Européia que sobre essas matérias quem tem a última palavra é o Tribunal de Justiça da Comunidade Européia. Portanto, as legislações nacionais não podem ferir os princípios gerais que estão marcados, materializados nos tratados. Como chegou o Tribunal a esse ponto é a questão principal que se discute.
Há basicamente duas linhas de raciocínio que falam sobre isso. Uma delas diz que foi mera construção jurisprudencial — não há isso nos tratados, nem em nenhuma legislação. Nos famosos casos Costa contra ENEL, Van Gend en Loos, da Holanda, e daquele trabalhador italiano — sou péssimo para nome —, o Francovich, criaram-se as três características básicas, que eram a primazia, a aplicabilidade direta e o efeito direto. Normalmente, os livros dizem que o Tribunal, por construção jurisprudencial, criou isso. Mas se formos analisar as decisões dos tribunais, vamos ver, no caso do Francovich ou do Costa/ENEL, que a Justiça italiana se curvou ante o tribunal. O art. 11 da Constituição italiana previa expressamente que a Itália participaria de organismos internacionais buscando a paz e deixava subentendido a transferência de exercícios de poderes soberanos para esse órgão supranacional. A Alemanha resistiu. A Itália, em matéria internacional, é muito parecida com o Brasil, briga pela soberania nacional. Mas eles se curvaram por causa de seu art. 11. Então, não foi porque o Tribunal de Justiça, por construção jurisprudencial, gerou aquela situação. Os tribunais italianos é que analisaram o art. 11 de sua Constituição e, então, se renderam à decisão do Tribunal. Na Alemanha, aconteceu coisa semelhante. Ela acabou tendo de alterar, se não me engano, o art. 23 de sua Constituição por adesão ao Tratado de Maastricht. Qual era a preocupação alemã? Era com os direitos e garantias fundamentais.
Quando reconheceram que a União Européia assegurava um nível de proteção aos direitos e garantias fundamentais tão alto quanto o da Lei Fundamental de Bonn, renderam-se à jurisdição do Tribunal de Justiça das Comunidades Européias e acrescentaram o art. 23, que estabelece: "reconhecendo-se que o organismo internacional assegura proteção igual ou superior aos Direitos fundamentais do cidadão alemão, a decisão vale em território nacional".
Vejam que não é a simples decisão do tribunal que acabou consolidando as características que distinguem o Direito Comunitário do Direito Internacional clássico ou mesmo do Direito de Integração. O que consolidou essas características foi o reconhecimento pelo próprio Estado Nacional de duas situações — primeiro, que a sua Constituição dava margem à transferência de exercício de poderes soberanos; segundo, que ao aderir ao tratado se reconheceu a possibilidade de transferência. Essa situação só vale para a matéria comunitária, até porque o tribunal não tem jurisdição sobre nenhuma outra matéria. Em matéria comunitária, curva-se a legislação nacional.
 Lembro-me de que na minha dissertação de mestrado, o professor que me argüía disse: "Você sustenta soberania compartilhada, mas quero ver o Tribunal de Justiça cumprir a sua decisão na Alemanha." Respondi, então, que era muito simples: pelo juiz alemão, que, por acaso, também é o juiz comunitário que vai executar a decisão do juiz de primeiro grau alemão.
Reconheceu-se a integração entre os sistemas judiciais dos países que integram a União Européia e esse reconhecimento faz com que, em matéria comunitária, se consolidasse a posição jurisprudencial depois de os Estados fazerem o reconhecimento. Quem mais resiste, até hoje, ainda é a França, até porque é complicado o sistema de controle de constitucionalidade daquele país, que tem um conselho constitucional, que não é um órgão judicial, mas administrativo.
 Todos os países que ingressaram na União Européia na segunda leva — Espanha e Portugal — previamente alteraram sua Constituição. A Constituição espanhola prevê a transferência de poderes soberanos. Isso reforça o entendimento que tenho, pelo menos na minha modesta maneira de ver, do reconhecimento de que a jurisprudência criada pelo tribunal só se consolida em cada um dos países que compõem a União Européia porque eles reconhecem essa delegação em sua Constituição. Tanto é assim que todos os outros países que ingressaram no bloco, previamente mudaram seu texto constitucional.
 Não sei se respondi à pergunta.

O SR. MÁRCIO GARCIA - Obviamente, sem querer polemizar na vigésima quinta hora, quando todo mundo já está saindo — e claro que jamais faria isso com o Prof. João Ricardo —, penso que, em tempos de Olimpíada, a virtude está no meio, seguindo o ideal aristotélico.
Quanto ao assunto em debate, parece-me que em medidas idênticas houve uma leitura em Luxemburgo que favoreceu muito a idéia. Foram mencionados casos da maior importância. Quem tiver interesse, pode acessar a Internet, que é uma maravilha, todas as informações estão lá, só é preciso ter um bom estagiário, essa figura maravilhosa. Nada melhor do que um estagiário para ser culpado do erro.

O SR. JOÃO RICARDO CARVALHO DE SOUZA - Sugiro também ser orientador de monografia de aluno de graduação. A melhor coisa é ser orientador de monografia e sugerir o tema para o aluno.

O SR. MÁRCIO GARCIA - Mas o estagiário é um figura importante. Porque, se você não pode errar, então, quem errou? O estagiário. É sempre ele quem erra, coitado.

O SR. JOÃO RICARDO CARVALHO DE SOUZA - E o orientando também. Quando ele erra, a obra é dele, não do orientador, que não escreve.

O SR. MÁRCIO GARCIA - Exatamente. E esse pessoal novo adora Internet. Acessando geralmente o Google, procurando o "ABC do Direito Comunitário", tem-se acesso a um livro produzido pela União Européia, acredito que pela Comissão. O texto é integral e de muito fácil leitura. Esse livro tem um capítulo específico, contendo a síntese dos importantes casos aqui citados e muitos outros. O contraponto a isso foi também uma interpretação das cortes constitucionais e a sensibilidade do legislador, ou uma alteração, como bem mencionou João Ricardo, antes da inserção, do ingresso na Comunidade, ou, posteriormente, uma interpretação mais pró-Direito Comunitário, dentro de leitura muito interessante.
Nessa história de monismo e dualismo, quem sabe não haja também uma terceira via? Imaginamos que, tertius non datur, não seja uma terceira via, mas um trialismo, que é o Direito da Integração, o Direito Comunitário, o Direito Internacional clássico e o ordenamento jurídico interno. Claro que isso é trabalho de doutorando, que fica monotemático, não tem mais o que fazer e começa a inventar coisas. Obviamente, sobrevive a isso o nosso Prof. Cachapuz, consultor do Itamaraty. Quem sabe não haveria outro caminho? A convergência de leituras positivas tanto do juiz comunitário quanto do juiz doméstico é muito importante.

O SR. JOÃO RICARDO CARVALHO DE SOUZA - A minha posição é exatamente essa. Entendo ser resultado de uma associação e convergência de fatores, não de um fator isolado, como defende a maioria dos autores. Acredito na convergência desses fatores, no reconhecimento no ordenamento jurídico interno da previsão constitucional, da construção dos tratados, no reconhecimento da previsão constitucional e da construção jurisprudencial. Só o concurso desses três fatores consolidam o Direito Comunitário.
Se falarmos de consolidação de fato, o sonho de Jean Monet funcionou: criou uma comunidade de fato, a CECA, com autoridade supranacional. A partir de então, houve um crescimento das demais comunidades.

O SR. MÁRCIO GARCIA - João Ricardo, seguindo a linha do Ministro Clemente Mourão — quem sabe? —, podemos convidá-lo para compartilhar um pouco suas idéias na Comissão Interministerial criada para discutir a incorporação. Pelo que pude ver, e a mim isso não surpreende, conhecer bem o Regimento Interno e os escaninhos desta Casa não é privilégio do Deputado José Genoíno. Seria uma participação importante. Assim como mencionou o Prof. Cachapuz, achei muito interessante a posse de lei delegada, no sentido de tentar criar alguma coisa com pé no chão, possível. Acredito que será um exercício muito interessante. A sua experiência será muito enriquecedora para nós, na Comissão.

O SR. COORDENADOR (Bruno de Risios Bath) - Alguém mais da platéia deseja fazer algum comentário, intervenção ou pergunta?

A SRA. VITÓRIA - Antes de mais nada, agradeço a oportunidade de estar presente. Sem dúvida, a visão jurídica é um contraponto fundamental para nós, do IPEA, que temos sempre uma visão tão econômica. A oportunidade de estar aqui, de poder replicar junto aos nossos colegas será bastante valiosa.
 Acredito que o IPEA poderá contribuir mais para uma visão de futuro, talvez na montagem de uma agenda futura sobre temas. Sem dúvida, há questões econômicas de integração, e são muitos os gargalos, todos nós os conhecemos.
Destaco dois pontos sobre os quais o IPEA tem-se debruçado em suas pesquisas. O primeiro é como se dará a inovação tecnológica no contexto do processo de integração. Vis-à-vis a inovação tecnológica, a sua normatização em cada país e no processo de integração. O segundo é a normatização da regulamentação da internacionalização de firmas brasileiras que atuam no exterior. Esses pontos compõem nossa agenda de preocupações.
Coloco o IPEA à disposição no sentido de contribuir para a reflexão.
Obrigada.

O SR. COORDENADOR (Bruno de Risios Bath) - Agradeço a contribuição. Se não há mais nenhuma intervenção por parte da platéia, devolvo a palavra ao Deputado Dr. Rosinha, com meu agradecimento pessoal pela oportunidade de participar dos debates.

O SR. PRESIDENTE (Deputado Dr. Rosinha) - Aqui na Câmara dos Deputados vigora o presidencialismo. Nem a palavra os outros têm, se quem estiver coordenando os trabalhos não lhes conceder. O microfone fica mudo.
Neste final de seminário, só me resta agradecer a todos a presença. Vocês aceitaram o convite para este dia de debate — do qual particularmente gostei muito —, e isso nos dá vontade de promover outros. Estamos organizando um próximo, para o dia 21, na Organização Pan-Americana da Saúde, sobre patentes. Estaremos lá o dia todo. Nossa Comissão vai divulgar o encontro, juntamente com o Ministério da Saúde e a Comissão do MERCOSUL. Quem desejar participar do debate, fica desde já convidado, porque, para nós, é extremamente importante a questão das patentes.
Agradeço também aos funcionários da Comissão Parlamentar conjunta pelo empenho na organização deste evento, assim como aos funcionários da Casa e ao pessoal da TV Câmara.
Meus agradecimentos ao Jorge Fontoura, à Maria Cláudia Drummond, ao Francisco Eugênio Arcanjo, ao Valdir Vicente de Barros, ao Dr. Antonio Paulo Cachapuz de Medeiros, ao Dr. João Ricardo Carvalho de Souza, ao Dr. Márcio Garcia e ao Ministro Bruno de Risios Bath, sem os quais nosso seminário não teria todo esse brilhantismo.
Como gosto de um bom debate, quero convidá-los para em breve continuarmos a discussão. Devo permanecer à frente da Presidência desta Comissão até fevereiro, mas espero nela continuar e, dessa forma, poder contribuir para a integração.
Encerramos meio rápido, mas tudo, no fundo, não deixa de ser cultura. Vai da cultura jurídica à econômica, passando pelo geral, quando falamos a respeito das artes, do folclore, e tudo o mais.
Acho que quando conseguirmos olhar o outro e não enxergar um adversário, um inimigo, mas alguém diferente — e digo isso a todos, ao País como um todo e aos demais países —, a integração vai ser muito mais fácil e possível.
Mais uma vez, agradeço a todos os participantes, principalmente aos que se dedicaram a preparar os temas desse debate.
Estão encerrados os nossos trabalhos.