Mercosul-Jurispr-brasileira

 

Mercosul na jurisprudência brasileira

O Mercosul faz dez anos. Presente no dia-a-dia dos países-membros, de seus cidadãos e empresas, o Mercado Comum do Sul ainda não atingiu seu destino, mas é uma realidade palpável em muitas áreas, em especial na jurídica. Neste artigo, analisamos uma parte dessa realidade: a aplicação, pelos tribunais brasileiros, das normas de integração. Talvez o pronunciamento mais importante do Judiciário brasileiro sobre o Mercosul tenha sido a decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a incorporação ao direito brasileiro das normas oriundas do Mercosul.

O STF se manifestou recentemente sobre a questão em uma carta rogatória, cujo cumprimento dependia do Protocolo de Medidas Cautelares do Mercosul. No Agravo Regimental da decisão de denegação do exequatur à rogatória, o ministro Celso de Mello referiu-se à recepção dos acordos celebrados pelo Brasil com o Mercosul, equiparando-os aos demais tratados ou convenções internacionais em geral (AGRCR 8279). Embora reconheça ser desejável uma incorporação diferenciada para os atos provenientes do Mercosul, entendeu o ministro que o tema dependeria de reforma do texto da Constituição, acreditando que o sistema constitucional brasileiro atual não consagra o princípio do efeito direto nem o postulado da aplicabilidade imediata dos tratados ou convenções internacionais, razão pela qual não podem essas normas ser invocadas pelos particulares ou aplicadas no âmbito doméstico do Estado brasileiro enquanto não forem completadas as etapas necessárias à sua entrada em vigor.

A maior parte dos demais casos concentra-se no Tribunal Regional Federal da 4ªRegião, cuja competência territorial abrange a fronteira mais relevante dos países-membros. Em seguida, vem o Tribunal Federal da 5ªRegião, sendo a maioria deles a respeito da aplicação da Tarifa Externa Comum. No Tribunal Regional Federal da 1ªRegião ressaltamos dois casos, ambos em questão especificamente relacionada à aplicação de normas do Mercosul. Na primeira delas, o Tribunal analisou a hierarquia das normas e decidiu que uma norma geral estabelecida pela Decisão Mercosul nº 18 não tinha o condão de revogar normas especiais previstas no direito brasileiro (MS nº 1997.01.020621, 3ªTurma). Na segunda, cuidava-se também de hipótese de conflito entre lei interna e regra do Mercosul, decidindo-se que a brasileira não apresentava incompatibilidade com aquela (APMS. 61803/97. 2ªTurma). Por sua vez, o Tribunal Federal da 4ªRegião analisou a aplicação das normas do Mercosul também em dois casos. No primeiro deles, pela via negativa, pois a parte invocava o Tratado do Mercosul para isentar de imposto um bem oriundo dos Estados Unidos, que não é parte do acordo. Dessa forma, entendeu o TRF que a aplicação do mesmo era inviável (AC 150036 2ªTurma). No outro caso, versava-se sobre direito intertemporal. Uma medida provisória alterara o Imposto de Exportação e, como isso se deu em 1994, o benefício da regra do Mercosul somente seria vigente a partir de 1995, razão pela qual não se aplicava à hipótese.

Merece comentário outra decisão do TRF da 4ªRegião, em que se discutia liberação de produto apreendido por força de determinação do Ministério da Agricultura, cujo limite de mercadoria por saca fora ultrapassado, contrariando norma do Mercosul que não fazia tal restrição. Considerou o Tribunal serem infundados os óbices impostos pela autoridade em face da regra mercosulina (APMS 95.04.32680-3. 2ªTurma).

Uma das características do Mercosul é a livre circulação de mercadorias provenientes dos países-membros, sem o pagamento de Imposto de Importação no espaço integrado, pois a partir do Protocolo de Ouro Preto, e finda a fase transitória, em 1º de janeiro de 1995, a alíquota passou a ser zero, na esteira do programa de desgravação tarifária empreendido. De sorte que, para a concretização dessa liberdade, mister promover um meio de comprovar a origem das mercadorias. Para isso, o Tratado de Assunção regulamentou a matéria pelo seu Anexo II. Portanto, não é surpresa que o tema tenha aflorado nos tribunais. O 4º TRF estabeleceu as regras a serem seguidas para determinar a validade do certificado de origem (APMS 1988.04.01.02451-6). Ainda o mesmo tribunal, em outra decisão, entendeu carecer de validade o certificado de origem que não estivesse devidamente preenchido em todos os seus campos (Ap. Civ. 1999.04.01.132097-3. 2a. Turma. Dec. 30.3.2000. DJU 17.5.2000).

O Tratado de Assunção regulamentou detalhadamente a livre circulação de mercadorias, prevendo em seu artigo 1º a eliminação dos direitos alfandegários, restrições não tarifárias e de qualquer outra medida de efeito equivalente. Posteriormente, o Mercosul disciplinou o livre trânsito de pessoas e veículos. A regulamentação acerca do que seja veículo comunitário envolve a comprovação do domicílio do proprietário. Em um caso emblemático, entendeu-se contrário aos princípios do Tratado de Assunção apreender o veículo paraguaio, de propriedade de brasileiro com duplo domicílio. A ementa refere expressamente ao princípio da livre circulação de pessoas entre os países como um dos cânones do Mercosul, não podendo, portanto, essa atividade ser obstaculizada pela autoridade brasileira, sob pena de ir-se contra a própria essência do Mercosul (Processo Nº 97.04.04855-6 2a Turma). Outra decisão do TRF da 4ªRegião explicita melhor o conceito de veículo comunitário, exposto na Portaria 16/95 do Ministério da Fazenda, ao aplicá-lo somente para veículos estrangeiros para fins de turismo, excluindo aqueles de fins comerciais (MAS - 62205).

Em vários casos, o TRF da 5ªRegião presidiu, à luz do Tratado do Mercosul e da estipulação de uma Tarifa Externa Comum, a discussão sobre as alíquotas do Imposto de Importação do açúcar, quando esta foi majorada repentinamente, concluindo que só as exportações posteriores a janeiro de 1995 se beneficiam do Tratado do Mercosul. E ainda houve vários outros casos em que o TRF determinou a aplicação da Tarifa Externa Comum para terceiros países e não para integrantes do Mercosul, quando se procurou invocá-la para evitar a majoração do Imposto de Importação do álcool. O argumento utilizado era o de que somente com lei complementar poder-se-ia proceder à majoração e que esta contrariaria a TEC, tendo o Tribunal decidido negativamente.

O Mercosul, ao contrário da Comunidade Européia, não tem um sistema que garanta a interpretação judicial uniforme do seu conteúdo normativo, nada impedindo que cada país desenvolva sua jurisprudência, sem levar em conta aquela desenvolvida nos demais membros. À falta de um sistema coordenado de solução de controvérsias, deveria ser incentivada uma maior comunicação entre os tribunais nacionais dos estados-membros. Com isso, aprimoraríamos a jurisprudência e atingiríamos maior uniformidade na aplicação das regras do Mercosul, contribuindo-se, afinal, para a criação de um verdadeiro Mercado Comum.

NADIA DE ARAÚJO
Doutora em Direito Internacional, mestre em Direito Comparado, professora de Direito Internacional Privado na
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e procuradora de Justiça (RJ)

ANTENOR MADRUGA FILHO
Doutorando em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo (USP),
professor de Direito Internacional Privado no Instituto Rio Branco (Ministério das Relações Exteriores)
e na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Advogado da União

fonte: Correio Brasiliense - DF, segunda-feira, 26/03/2001
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