Merco-Direito-Integração

 

O Mercosul e o direito de integração

CARLOS FERNANDO MATHIAS DE SOUZA
Juiz do Tribunal Regional Federal da 1ªRegião
e professor titular da Universidade de Brasília

Uma das realidades mais expressivas do nosso tempo é a das comunidades de nações que, criadas pelo direito, se querem comunidades de direito, na expressão de Walter Hallsfein, primeiro presidente da Comissão Comunidade Econômica Européia. Exemplos significativos são a União Européia e o Mercosul. Dessa realidade nova adveio, naturalmente, um novo direito, a que se denomina (geralmente) de direito comunitário ou, por vezes, direito transacional (Philip C. Jessup) e (em um certo sentido), direito de integração.

Esse direito comunitário ou transacional (e, destaque-se aqui, o direito de integração) não se confunde com o direito internacional clássico (tanto público, quanto privado) e, naturalmente, com o direito nacional dos estados-membros ou participantes das comunidades em destaque. O direito comunitário é, por natureza, supranacional e coexiste com os direitos nacionais dos estados-membros da comunidade de nações (melhor se diria de estados) a que pertence. Todavia, nas questões efetivamente comunitárias há o seu primado.

Com efeito, há um direito comunitário civil, penal, comercial, tributário, por exemplo, tutelando relações jurídicas de ordem comunitária, de par com os respectivos ramos de direito de cada sistema jurídico nacional, para as relações que, naturalmente, não dizem respeito à comunidade. Daí resulta que, se a relação é direito comunitário, a composição pacífica de conflitos, pela via judicial, faz-se pela corte comunitária, enquanto que,se o for de direito nacional, o será pelos respectivos tribunais nacionais. De outra parte, tem-se, quanto às fontes do direito comunitário, a preeminência dos tratados constitutivos sobre as demais, a exigir precisão quanto à natureza de cada uma delas e suas eventuais conseqüências.

A propósito, Joël Rideau, em obra dada a lume em junho de 1995, ‘‘Le Droit des Communautés Européennes’’, observa: ‘‘A preeminência dos tratados constitutivos sobre as outras fontes de direito é um dado fundamental da ordem jurídica comunitária, mas sua natureza e suas conseqüências devem ser precisadas (bem definidas). A análise da hierarquia interna sobre os atos de direito comunitário derivado impõe-se para completar a apresentação da hierarquia das fontes.’’

Quanto ao Direito Transnacional (Transnational Law), expressão cunhada por Philip C. Jessup, veja-se que se enquadra no que se conhece como direito comunitário. ‘‘Usarei em vez de direito internacional a expressão direito transnacional para incluir todas as leis (ou normas) que regulam ações ou fatos que transcendem fronteiras nacionais. Ambos, o direito internacional público e o direito internacional privado, estão incluídos (compreendidos), como estão outras normas (ou regras), que não se enquadram totalmente (inteiramente) nessas categorias clássicas.’’

Já, no que se refere ao direito de integração, contudo, correspondente ele a uma fase que ainda se enquadra no direito internacional clássico. E, é o que ocorre com o direito do Mercosul. O Mercado Comum do Sul — Mercosul, como se sabe, surgiu efetivamente com o Tratado de Assunção, de 26 de março de 1991. Em muito apertada síntese, dir-se-ia que o Mercosul implica, essencialmente, na livre circulação de bens, serviços e fatores produtivos entre os países que o integram, por intermédio da eliminação de direitos aduaneiros e restrições tributárias à circulação de mercadorias e de qualquer outra medida equivalente.

O Tratado de Assunção é, naturalmente, a fonte jurídica primeira ou básica do Mercosul. Todavia, passos muito importantes têm sido dados a partir dele (constituindo também fontes), como o Protocolo de Brasília, para solução de controvérsias, prevendo, por exemplo, negociações diretas (capítulo II), intervenção do Grupo Mercado Comum (Capítulo III) e procedimento arbitral (Capítulo IV). As controvérsias em destaque são as ‘‘que surgirem entre os estados-partes sobre a interpretação, a aplicação ou o não-cumprimento das disposições contidas no Tratado de Assunção, dos acordos celebrados no âmbito do mesmo, bem como das decisões do Conselho do Mercado Comum e das Resoluções do Grupo Mercado Comum’’.

Tem-se, ainda, outros protocolos, como de Las Leñas, sobre a cooperação e assistência jurisdicional, em matéria civil, comercial, trabalhista e administrativa (e seu acordo complementar); o Protocolo de Assistência Mútua em Assuntos Penais, o Protocolo de Medidas Cautelares, o Protocolo de Buenos Aires sobre jurisdição internacional em matéria contratual, e o Protocolo de São Luiz em matéria de responsabilidade civil emergente de acidente de trânsito entre os estados-partes do Mercosul.

A merecer de destaque especial o Protocolo de Ouro Preto (adicional ao Tratado de Assunção sobre a estrutura institucional do Mercosul), firmado em 16 de dezembro de 1994. Em verdade, não se pode falar, ainda, em termos de Mercosul, em Comunidade, como é o caso da União Européia.

O Mercosul, repita-se, ainda é uma união aduaneira, que se encontra, presentemente, em fase mais de aprofundamento do que de alargamento (ou alongamento?). O direito que dele resulta ainda é de integração e não (evidentemente) comunitário. Daí resultam conseqüências práticas e precisas. Como se sabe, o Judiciário brasileiro vem sendo chamado a decidir, nos seus diferentes graus de jurisdição, controvérsias que passam pela realidade do Mercosul. Fossem as normas do Mercosul de direito comunitário (e não ainda de integração, o que passa, inclusive, por limites expressos na Constituição brasileira), as soluções seriam naturalmente outras, das que vêm sendo adotadas.

As relações jurídicas tratadas pelo direito de integração, resultante do Mercosul, repita-se, ainda se resolvem pelo direito internacional clássico. Por ilustrativo (e em apoio à assertiva) recorde-se o que ocorreu com relação ao cumprimento de uma carta rogatória, à qual foi negado o exequatur (pelo STF), por não estar, ao tempo em que foi apresentada, concluído o ciclo de incorporação ao direito interno (nos termos da Constituição de 1988), do Protocolo de Medidas Cautelares (Ouro Preto).

O Presidente do Supremo Tribunal Federal (àquela altura, ministro Celso de Mello) denegou o exequatur e sua decisão foi confirmada pelo Pleno da Suprema Corte, ao julgar Agravo Regimental interposto contra a aludida decisão. Fundou-se o decisum, entre outros apoios, em que ‘‘a recepção de acordos celebrados pelo Brasil no âmbito do Mercosul está sujeita à mesma disciplina constitucional que rege o processo de incorporação, à ordem positiva interna brasileira, dos tratados ou convenções internacionais em geral. É, pois, na Constituição da República, e não em instrumentos normativos de caráter internacional, que reside a definição do iter procedimental pertinente à transposição, para o plano do direito positivo interno do Brasil, dos tratados, convenções ou acordos — inclusive daqueles celebrados no contexto regional do Mercosul — concluídos pelo Estado brasileiro.’’

E, ademais: ‘‘Embora desejável a adoção de mecanismos constitucionais diferenciados, cuja instituição privilegie o processo de recepção dos atos, acordos, protocolos ou tratados celebrados pelo Brasil no âmbito do Mercosul, esse é um tema que depende, essencialmente, quanto à sua solução, de forma do texto da Constituição brasileira, reclamando, em conseqüência, modificações de jure constituendo. Enquanto não sobrevier essa necessária reforma constitucional, a questão da vigência doméstica dos acordos celebrados sob a égide do Mercosul continuará sujeita ao mesmo tratamento normativo que a Constituição brasileira dispensa aos tratados internacionais em geral.’’

O que de melhor na doutrina existe, nessa área específica do direito, veio em abono da tese esposada pelo Supremo Tribunal Federal: ‘‘O mecanismo adotado, a observação é do professor titular da Universidade de São Paulo, Luiz Olavo Baptista, para a incorporação dos acordos internacionais é o da aprovação pelo Legislativo, (art. 49, I) e depois sua promulgação pelo Executivo, que os negociou, celebrou e é, também, quem os ratifica.

O tratado segue um iter, que tem início pelas negociações, passa pela sua assinatura, e pela remassa ao Poder Legislativo com o pedido de aprovação (atos esses da competência exclusiva do Poder Executivo, a quem incumbe a condução da política externa do país). Prossegue com o imprescindível exame pelo Poder Legislativo, a quem cabe constitucionalmente examinar e, querendo, aprovar o tratado, terminando com sua promulgação, também ato de competência do Executivo.

Trata-se de antiga tradição no direito brasileiro.

A razão desse procedimento é explicada pelo prof. Vicente Marotta Rangel: ‘‘Com a audição dos poderes Executivo e Legislativo, atende-se à consideração de que o tratado possui a natureza de lei e se respeita, por outro lado, o princípio da distinção dos poderes governamentais’’ (...).

Cabem só ao presidente (os) dois últimos atos do procedimento de inserção do tratado na legislação brasileira, porque — como bem explica Cachapuz de Medeiros na sua obra definitiva sobre a matéria — ‘‘pertence ao Executivo a competência para declarar internacionalmente a vontade do Estado’’.

A importância da ratificação é destacada por Celso de A. Mello e classificada pelo autor como ‘‘a fase mais importante do processo de conclusão dos tratados’’, e a necessidade da promulgação ressaltada por autoridades como J.F. Rezek e o prof. João Grandino Rodas, para quem ‘‘a promulgação atesta a adoção da lei pelo Legislativo, certifica a sua existência e o seu texto, e afirma, finalmente o seu valor imperativo e executório’’.

Por isso, é com a promulgação pelo presidente da República que culmina a inserção dos tratados no direito brasileiro’’.

Acrescente-se, por bastante oportuno, que tudo isso bem se harmoniza com o Protocolo de Ouro Preto que, em seu art. 42, contém expressamente: ‘‘As normas emanadas dos órgãos do Mercosul previstos no artigo 2º deste Protocolo terão caráter obrigatório e deverão, quando necessário, ser incorporadas aos ordenamentos jurídicos nacionais mediante os procedimentos previstos pela legislação de cada país’’.

O Superior Tribunal de Justiça também tem dirimido muitos conflitos jurídicos na área do Mercosul. Em junho do ano passado, o presidente da Corte, ministro Costa Leite, suspendeu, por via de procedimento cautelar, decisão do colendo TRF da 4ªRegião, louvando-se, fundamentalmente, no processo de consolidação do Mercosul.

Dos fundamentos da decisão em destaque, extrai-se o seguinte: ‘‘Com efeito, a suspensão das importações interfere na própria credibilidade da política externa brasileira , colocando-a em risco, na medida em que frustra a observância pelo país de compromisso assumido em avenças públicas internacionais, qual o livre comércio de bens, além de comprometer o processo da consolidação do Mercosul, o que se revela gravemente danoso para a economia nacional. Não é preciso avançar mais, até porque implicaria incomportável exame de questões de mérito, inajustável aos limites do juízo excepcional da suspensão do provimento cautelar.

Concorrendo, em suma, os pressupostos autorizadores, defiro a suspensão requerida pela União.’’ (q.v. Petição 1273/RS — Reg. 2000/0040618-0).

A Corte Federal (TRF-4ªRegião), ao prosseguir no julgamento do recurso (agravo de instrumento), deu-lhe provimento, o que, também em termos práticos, poderia frustrar a decisão suspensiva do presidente do STJ. O vice-presidente da Corte superior, ministro Nilson Naves, no exercício da presidência, contudo, deferiu, motivado por requerimento da União, a suspensão da eficácia do acórdão da corte regional no referido agravo.

Assinalou, (entre outras considerações), em síntese, o magistrado, em seu decisum, o entendimento já manifestado pelo presidente da corte superior e, por persistirem os pressupostos que autorizavam o requerido, deferiu a suspensão da eficácia do acórdão prolatado pelo Tribunal Regional ‘‘até que o Superior Tribunal se pronuncie sobre o mérito da ação cautelar inominada, proposta pela Associação dos Arrozeiros de Itaqui e outros.’’ (q.v. decisum no processo anteriormente referido— Petição 1273/RS).

Na realidade (e sem embargo do expressivo número de feitos que já tramitam no Judiciário brasileiro), as questões judiciais referentes aos Mercosul, mal começaram. O que, por ora, pode-se dizer (e o conselheiro Acácio, por certo, não o faria melhor) é que há muito que se fazer no particular, tanto no aperfeiçoamento das normas, quanto no dos mecanismos institucionais do Mercosul. Eis um grande desafio, em particular para a República Federativa do Brasil, que está obrigada, pelo comando do parágrafo único do art. 4º de sua Constituição, a buscar ‘‘a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações’’.

fonte: Correio Brasiliense - DF, segunda-feira, 26/03/2001
Suplemento de Direito & Justiça