Desafios-jur-Mercosul

 

Desafios jurídicos do Mercosul

Ao completar dez anos da assinatura do Tratado de Assunção, que constituiu o Mercado Comum do Sul (Mercosul), remanescem sem solução permanente algumas preocupações de ordem jurídica. Tais preocupações propiciam, vez por outra, dúvidas no que concerne à implantação definitiva da integração almejada. Do ponto de vista econômico, há razões de sobra para se afirmar, com convicção, que o Mercosul é um sucesso. No que tange ao quadro político, é de se reconhecer, também, que o Mercosul segue em vôo tranqüilo, não obstante turbulências episódicas motivadas, de regra, por questões de política interna de cada país. Aliás, no particular, só a instituição da chamada cláusula democrática por si só justificaria todo o processo e todo o esforço até aqui empreendidos.

A questão jurídica, por sua vez, continua sendo o grande desafio dos atores da integração. É fato digno de registro que o processo integracionista tem recebido dinâmico e acurado impulso do lado brasileiro, sendo certo que nossa Chancelaria não tem medido esforços de bem coordenar o objetivo pretendido.

Todavia, sabemos que o processo de integração, seja qual for o modelo adotado ou eleito, é uma sucessão de providências jurídicas, na medida que a vontade política há de estar conformada às limitações das ordens normativas nacional e internacional.

Com efeito, a geração de regras sob a forma de protocolos e acordo e a produção de normas dos órgãos já estabelecidos no plano da integração causam, por vezes, um manancial de questões que criam conseqüências na validade, eficácia e obrigatoriedade do complexo normativo do Mercosul no âmbito do ordenamento jurídico de cada estado-parte.

Na consideração de que ainda estamos vivendo em um ambiente de intergovernabilidade, vale dizer, sem alcançar o estágio do mercado comum propriamente dito e, por isso, sem ser necessária a adoção de medidas que culminem a experiência e a prática de órgãos supranacionais, pode-se afirmar que o sistema de solução de controvérsias mediante arbitragem ad hoc é o mais consentâneo com a realidade atual.

Apesar de o Tratado de Assunção e o Protocolo de Ouro Preto preconizarem a adoção de um sistema permanente, não há, até mesmo em razão da originalidade do nosso modelo de integração, motivos de ordem doutrinária para afastar a opção pela arbitragem como forma adequada de solução de controvérsias.

A indicação de um tribunal arbitral permanente poderá amenizar, ao menos, a sempre presente crítica de inexistência de uma corte com característica judicante ou judiciária, muito embora o modelo europeu, no particular, seja um robusto exemplo a ser considerado pela magnitude de sua fundamental contribuição para o propósito integracionista.

No que se refere à consensualidade na tomada de decisões, é certo que o Tratado de Assunção estabeleceu o marco necessário ao início do processo, sem prejuízo, por evidente, dos ajustes que se fizerem necessários a partir da configuração definitiva do mercado comum.

Em se o alcançando, os estados-partes terão de conformar a necessária ponderação de pesos na tomada de decisões, em que, certamente, os componentes relativos ao perfil econômico, territorial e populacional poderão ser o caminho a trilhar. A criação de outros órgãos na estrutura institucional é assunto a ser examinado com cautela, até mesmo para não se incorrer no risco de se deparar com estruturas burocráticas pesadas e sem a dinâmica e a flexibilidade que o processo demanda na sua consecução.

De outra banda, os estados-partes poderão, ainda, refletir sobre a conveniência, ou não, de se implementar órgãos supranacionais e intergovernamentais, sem, necessariamente, a opção importar exclusividade numa ou noutra hipótese. O grande desafio jurídico do processo de integração, a nosso ver, continua sendo, ainda, o regime de incorporação do acervo normativo, quer no que diz respeito à produção dos órgãos do Mercosul, quer no que tange à elaboração de documentos jurídicos entre os estados-partes.

Conforme temos asseverado, o regime dualista de incorporação de normas previsto nas constituições nacionais dos estados-partes revela, no atual estágio, uma grande apreensão, porquanto cria flagrante descompasso entre a elaboração da norma Mercosul e a sua validade e eficácia no plano interno de cada país.

Nesse sentido, a questão contempla a seguinte ordem de preocupação: a primeira, no plano da reciprocidade de direitos e obrigações, quando a norma não esteja em vigor concomitantemente em todos os estados-partes; e a segunda, a obrigatoriedade de sua observância no plano interno e internacional.

A perplexidade está a indicar, com urgência, que os partícipes do processo estejam conscientes da necessidade de se encontrar solução para o problema antes que se alcance a convergência da tarifa externa comum. É imperioso, no particular, que cada estado-parte cumpra seu dever, ressaltando que o Paraguai e a Argentina já deram grande passo nesse sentido com as reformas constitucionais de 1992 e 1994, sem, contudo, resolver o problema em caráter definitivo.

No ponto, é hora de vencer preconceitos e predisposições soberanófilas e extemporâneas que não mais se compatibilizam com o atual cenário do concerto internacional. Não se trata de aderir ou questionar ideologicamente a chamada mundialização da economia; apenas, encarar o fato e, nele, buscar os efeitos positivos para os interesses nacionais.

É verdade que os estados-partes dão sinais positivos de preocupação com o tema, especialmente quanto à incorporação da normativa Mercosul. A decisão CMC 23/00 contempla o grau de inquietação com a matéria e a inquestionável necessidade de organização do ordenamento jurídico do Mercosul.

Não obstante, cumpre observar que a iniciativa há de ser estimulada no plano interno de cada país, posto que o eixo de sua discussão não reside apenas no plano das relações internacionais, mas, especial e ,principalmente, no terreno constitucional. Em outras palavras, o regime de incorporação de normas não é questão a ser resolvida à luz da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados e, sim, do Direito Constitucional de cada estado-parte.

fonte: Correio Brasiliense - DF, segunda-feira, 26/03/2001
Suplemento de Direito & Justiça