Um Aniversário Esquecido

 

 

A eficiente rapidez com que o ministro Domingo Cavallo adotou medidas para debelar a crise argentina, aceitas sem maiores resistências pelo Congresso e pela opinião pública - em contraste com o imobilismo que dominou os últimos dias de José Luis Machinea à frente do Ministério da Economia e da tumultuada reação ao pacote de López Murphy -, atropelou dois aspectos importantes para o relacionamento entre Brasil e Argentina. O primeiro, e mais imediato, foi a falta de prazo para a duração do regime de exceção que o ministro Cavallo pediu para a Tarifa Externa Comum (TEC) incidente sobre bens de capital. O governo brasileiro concordou prontamente com a solicitação, mesmo sabendo que será inevitável alguma perda para a indústria brasileira de base. Esse é o preço que o Brasil pagará para que a Argentina volte à estabilidade - e pagará de bom grado, porque corresponde aos interesses nacionais de não apenas ter um vizinho em condições de crescer, mas também porque da estabilidade argentina depende a viabilidade do Mercosul, um projeto que é tanto comercial como estratégico. O preço, no entanto, não pode ir além do razoável, e essa medida será dada pelo prazo que os países membros do Mercosul concederem para o regime de exceção dos bens de capital. A oportunidade para esclarecer essa questão fundamental - que, ao que se sabe, não foi discutida durante a visita que Cavallo fez a Brasília, a não ser em termos muito gerais - é a reunião de amanhã do Grupo Mercado Comum. Os chanceleres dos quatro países poderão, então, fixar um prazo que atenda às necessidades de recuperação da economia argentina, sem comprometer a saúde da indústria de base brasileira. Independentemente da fixação do prazo, o governo brasileiro já começou a tomar providências para que o impacto negativo da TEC zero seja o menor possível para a indústria nacional, sem que isso, por sua vez, comprometa o esforço argentino. Para manter a competitividade dos bens de capital brasileiros, será criado um seguro que proteja os créditos concedidos às vendas externas das variações cambiais. Além disso, o BNDES abrirá uma linha de financiamento com prazos longos e juros reduzidos, para que os produtos brasileiros enfrentem em igualdade de condições os produtores europeus e norte-americanos. Espera-se que, com isso, sejam neutralizados os efeitos da alíquota zero. O segundo ponto que ficou obscurecido pela ofensiva de Cavallo foi o transcurso do 10º aniversário do Mercosul. A ocasião, que deveria servir para uma profunda reflexão sobre a experiência comunitária e seu futuro, passou praticamente despercebida. Especulou-se sobre uma antiga idéia do ministro da Economia, de retorno da atual fase de união aduaneira para uma simples área de livre comércio, mas não se levou em consideração que o Mercosul, apesar de suas imperfeições, não apenas dinamizou o comércio intra-regional, como criou estruturas que estão resistindo às crises cíclicas, tanto do Brasil como da Argentina. As deficiências do Mercosul, de fato, são mais notadas que suas vantagens, talvez porque predomine a percepção de que o bloco seja uma mera associação comercial. Mas a verdade é que esse estágio ficou para trás. A união aduaneira, mesmo imperfeita, pressupõe uma trama convergente de outros interesses - a harmonização macroeconômica que se está iniciando; a compatibilização das legislações internas sobre matéria tributária, meio ambiente e proteção ao consumidor; normas comuns para serviços, investimentos e compras governamentais; o reconhecimento recíproco de diplomas e a livre circulação de trabalhadores - que só pode se concretizar quando existe uma unidade de propósitos no campo político. E tal unidade existe, como ficou comprovado pela imediata anuência do Brasil aos pleitos do ministro Domingo Cavallo e, antes disso, pela posição comum do bloco nas negociações da Alca e com a União Européia.
A crise argentina, portanto, em vez de dar relevo às vulnerabilidades do Mercosul, demonstra a capacidade que o bloco tem de cooperar na solução das turbulências que afetam seus membros. A solução para o Mercosul, portanto, não é o recuo para uma área de livre comércio, mas o avanço rumo a uma união aduaneira perfeita e, depois, ao mercado comum.
Fonte: Jornal "O Estado de S.Paulo" — Notas e Informações — Quarta-feira, 28/03/2001 — pág. A3