Dez Anos - Celso Lafer
Dez anos de Mercosul
CELSO LAFER
Ministro das Relações Exteriores
Correio Braziliense - DF, segunda-feira, 26/03/2001
Suplemento de Direito & Justiça
Celebramos hoje o décimo aniversário de criação do Mercosul. A assinatura do Tratado de Assunção (1991), instrumento jurídico que fundou as bases do processo de integração, constitui marco de importante significado para os governos e as sociedades das partes contratantes, por representar relevante mudança no paradigma de funcionamento do sistema sub-regional e de inserção de nossos países no espectro mais amplo do cenário comercial internacional.
O lançamento do projeto integracionista por Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai consubstancia o imperativo de superação da lógica então prevalecente nos campos econômico e político, a saber, respectivamente, a pretensão autárquica marcada pelo modelo de substituição de importações e a rationale geopolítica de conformação de ‘‘áreas de influência’’ numa perspectiva de balança de poder nas relações entre Estados. Da interseção entre esses dois campos já nos falava, para recorrer à ‘‘lição dos clássicos’’, Montesquieu — sobre a importância do doux commerce que arrefece o ímpeto dos preconceitos e promove a interdependência positiva entre as nações
Os processos de integração econômica surgem como decorrência natural no marco das grandes transformações experimentadas no âmbito do Direito Internacional Público, conforme assinaladas por Wolfgang Friedmann. Do modelo derivado da lógica da paz de Westphalia (1648), assentado na coexistência de Estados independentes e na plenitude das múltiplas soberanias, evolui-se para um quadro caracterizado por conjuntos de normas de mútua colaboração, assentados na aceitação de realidades de interdependência. As fronteiras, que antes separavam com clareza o ‘‘interno’’ e o ‘‘externo’’, mostram-se em franco processo de transformação. Aproximam e não distanciam, tornando-se, cada vez mais, fronteiras de cooperação.
No caso do Mercosul, esse movimento vem associar-se à dinâmica peculiar de um novo sistema internacional inaugurado pela queda do Muro de Berlim e o término do conflito leste/oeste. A superveniência desse novo paradigma traduz-se na diluição de conflitos de concepção, entendidos pela heterogeneidade axiológica de distintas visões acerca da promoção do desenvolvimento e do bem-estar, para conflitos de interesse, consubstanciados na análise do potencial aproveitamento pelas forças produtivas de um país de uma determinada situação de mercado.
O projeto integracionista do Mercosul surge e se desenvolve a partir da tensão entre a noção da pertinência de estabelecimento de normas de mútua colaboração e da existência presente ou potencial de conflitos de interesse. É sintomático que o Tratado de Assunção, dessa forma, com o objetivo de constituição de um Mercado Comum em 31 de dezembro de 1994, estabelecesse mecanismos tanto de criação de confiança (confidence building) — o consenso, a transparência — como de resolução de diferenças. Percebe-se, assim, na atuação das partes contratantes, o exercício combinado de uma função regulatória e, ao mesmo tempo, de uma intermediação de conflitos de interesses existentes ou passíveis de existir.
A intensa produção normativa que se segue (Protocolos Adicionais ao Tratado de Assunção, Decisões do Conselho do Mercado Comum, Resoluções do Grupo Mercado Comum e Diretrizes da Comissão de Comércio) nos anos subseqüentes sinaliza a consolidação e o aprofundamento desses vetores regulatório e mediador. No campo da elaboração de normas de mútua colaboração, pudemos presenciar a evolução de um período transitório de liberalização comercial, mediante progressiva desgravação tarifária no intercâmbio entre os Estados- partes, para o presente estágio de União Aduaneira, calcado no livre comércio intrazona e na existência de uma Tarifa Externa Comum, e já com elementos de um Mercado Comum, como exemplifica a regulamentação incidente sobre o setor de serviços. Procedeu-se, ademais, tendo em vista não ser o Mercosul somente um processo econômico-comercial, a uma intensa elaboração de normas nas áreas de Justiça, Educação, Saúde, Transportes, Comunicações, entre outras, no sentido de harmonizar ou unificar as legislações nacionais vigentes.
No campo da intermediação de conflitos de interesse, por sua vez, verificou-se a pertinência da manutenção dos instrumentos inicialmente adotados para esse fim, como o consenso intergovernamental — que fomenta a criação de um ordenamento jurídico coeso, em oposição às fórmulas à la carte, o que confere lastro e segurança às expectativas dos operadores econômicos — e a transparência, traduzível nas notificações de incorporação de normas à Secretaria Administrativa do Mercosul e na disposição de oferecer consultas aos demais sócios em caso de necessidade de esclarecimento quanto à aplicação de leis em nível interno, o que garante a permanência de um exercício diplomático e negociador aberto, pouco propenso a escudar atitudes unilaterais que possam ser objeto de constrangimento. São, enfim, medidas de confidence building que mantêm a confiança mútua na interdependência.
Da mesma forma, os mecanismos de solução de controvérsias introduzidos pelo Protocolo de Brasília de 1991 e pelo Anexo ao Protocolo de Ouro Preto de 1994 vêm se somar à capacidade de os Estados-partes administrarem os conflitos inerentes à vida econômica. Uma vez que a existência de normas comuns não necessariamente garante uma compreensão compartilhada dessas pelos Estados, com base em discrepâncias na avaliação do alcance e da aplicação das normas, os instrumentos formais de resolução de diferenças apresentam-se como desestímulo à interpretação unilateral e à eventual imposição, não criteriosa, de represálias e retaliações comerciais.
É certo, no entanto, que o aprofundamento das normas de mútua colaboração, que se traduzem no objetivo último do Tratado de Assunção — a constituição de um Mercado Comum na região —, suscitará de maneira crescente a necessidade de mecanismos de intermediação mais acurados e efetivos. Discussões um dia prematuras, como a aplicabilidade direta das normas aprovadas pelo Mercosul, a criação de um sistema permanente e institucionalizado para a solução de controvérsias, com órgãos sistêmicos encarregados da elaboração de normas e de sua aplicação pelos países-membros, tenderão a ganhar gradativamente maior projeção nos debates entre aqueles que pensam o processo de integração. São discussões que não dispensarão a análise pormenorizada e cuidadosa das implicações para os respectivos ordenamentos jurídicos nacionais e para a hoje autônoma capacidade decisória de nossos governantes.
Também no campo político, constitui o Mercosul fator importante de respaldo e de consolidação da vocação democrática de seus integrantes, conforme consagrado pela vigência e aplicação da cláusula democrática estabelecida pelo Protocolo de Ushuaia, de 1998.
Por essas razões, tenho dito que o Mercosul constitui destino para o Brasil e não uma opção. Parafraseando Ortega y Gasset, trata-se da circunstância do nosso eu diplomático. Aprofundá-lo é não apenas fazer da geografia nossa economia, buscando crescentes formas de integração física e comercial, mas, também, reafirmar as afinidades derivadas das culturas e das formas compartilhadas de conceber a vida democrática na sociedade.
Nesta data em que completa dez anos, o Mercosul se oferece como case de inestimável interesse, face às suas realizações passadas e aos seus futuros desafios, sobretudo como espaço para a construção consensual e a aplicação de normas jurídicas disciplinadoras de conflitos e promotoras de cooperação. Em nosso mundo pós-guerra fria, marcado pela predominância de uma leitura hobbesiana/maquiavélica da realidade internacional, o Mercosul constitui, assim, notável contraponto de expressão grociana de progresso, paz e sociabilidade entre as nações.
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Defesa da concorrência e defesa comercial no Mercosul
O Mercosul, ao completar dez anos de existência, conclui sua fase ‘‘fundacional’’. Defronta-se, agora, com os desafios concretos de uma etapa de consolidação da União Aduaneira e de pavimentação do caminho em direção ao Mercado Comum. Entre os chamados core subjects para o aprofundamento do processo de integração encontram-se aqueles da defesa da concorrência e da defesa comercial (salvaguardas, subsídios e antidumping). Esses temas afetam diretamente tanto o comércio intrazona como o extrazona, além de estarem de certo modo relacionados entre si.
Na doutrina do direito do comércio internacional consideram-se as medidas compensatórias — no que se refere a subsídios — e as medidas antidumping como recursos aplicáveis a um comportamento de comércio desleal (unfair trade), enquanto as salvaguardas permitem proteger um setor da produção nacional gravemente afetado por importações, mesmo que estas configurem expressão de fair trade.
No Mercosul, as salvaguardas estão proibidas desde janeiro de 1995, conforme estipulado nos artigos 1º e 5º do Anexo IV do Tratado de Assunção e reiterado pelo laudo arbitral (de 10/3/2000) emitido na controvérsia sobre salvaguardas têxteis entre Brasil e Argentina. O Acordo Geral de Tarifas e Comércio (Gatt, 1947), em seu artigo XXIV.8 (a) (i) estabelece que uma união aduaneira pressupõe que ‘‘tarifas e outras regulamentações restritivas ao comércio (exceto, quando necessário, aquelas permitidas pelos artigos XI, XII, XIII, XIV, XV e XX) sejam eliminadas com respeito a substancialmente todo o comércio entre os territórios que constituem a união ou pelo menos com respeito a substancialmente todo o comércio de produtos originários de tais territórios’’.
As medidas antidumping (art. VI do Gatt) constituem, por um lado, evidente regulamentação restritiva ao comércio e, por outro, não são mencionadas entre as exceções do artigo XXIV que, como norma excepcional, não poderiam ser interpretadas extensivamente. À luz do sistema multilateral de comércio, portanto, tais medidas estão entre as restrições que devem ser eliminadas em uniões aduaneiras (como ocorre, de modo efetivo, na União Européia).
Em relação às medidas antidumping, o Mercosul — como união aduaneira em consolidação — já tomou a decisão política de sua eliminação gradual. Tal objetivo já estava expresso no artigo 1º do Tratado de Assunção de 1991, que prevê a eliminação de todas as restrições tarifárias e não tarifárias. O artigo 4º do mesmo tratado estabelece o dever dos estados-partes em coordenar suas políticas nacionais com vistas a elaborar normas comuns sobre concorrência comercial.
Desde então, realizam-se esforços paralelos no Mercosul para avançar na eliminação do antidumping intrazona e para harmonizar as regras de defesa da concorrência na região. Tal paralelismo explica-se, pois a garantia de instrumentos eficazes para a manutenção de condições adequadas de concorrência na região, com a necessária prevenção de condutas e práticas restritivas (abuso de posição dominante, preços predatórios), é circunstância relevante para a definitiva eliminação do ] dentro do mercado ampliado.
Na reunião do Conselho do Mercado Comum (CMC) em Fortaleza, em dezembro de 1996, aprovou-se o Protocolo de Defesa da Concorrência do Mercosul (Decisão CMC 18/96), até o momento incorporado apenas por Brasil e Paraguai e em trâmite legislativo na Argentina e no Uruguai. As regras desse Protocolo aplicam-se aos atos praticados por pessoas físicas e jurídicas que tenham por objeto produzir ou que produzam efeitos sobre a concorrência no Mercosul e que afetem o comércio entre os estados-partes (critério da afetação do comércio regional). Quando em vigor, a aplicação do Protocolo estará a cargo da Comissão de Comércio do Mercosul (CCM) e do Comitê de Defesa da Concorrência, a ser integrado pelos órgãos nacionais de aplicação de cada estado-parte.
O Protocolo prevê duas tarefas no prazo de dois anos da sua vigência: (a) elaboração de normas comuns para o controle de atos de concentração econômica (art. 7º), e (b) disciplinamento comum das ajudas de Estado que possam distorcer a concorrência e afetar o comércio regional (art. 32).
A correlação entre os temas citados explicitou-se nas Decisões CMC 28/00 e 31/00, aprovadas no âmbito do ‘‘Relançamento do Mercosul’’, agenda de trabalho do Mercosul no ano 2000, que procurou concentrar esforços nos principais desafios do processo de integração. A Decisão 28/00, ‘‘Defesa Comercial e da Concorrência’’, instruiu o Grupo Mercado Comum (GMC), por um lado, a elaborar proposta de disciplinamento do processo de investigação e aplicação de medidas antidumping e direitos compensatórios no comércio intrazona e, por outro, a incentivar o Comitê de Defesa Comercial e Salvaguardas e o Comitê Técnico nº 5 (Defesa da Concorrência) a trabalhar de forma conjunta na definição dos instrumentos aplicáveis com vistas à eliminação gradual das medidas antidumping no comércio intrazona. A mesma Decisão levou ainda a CCM a analisar o aperfeiçoamento das disciplinas e mecanismos de defesa da concorrência no Mercosul. A Decisão 31/00, por sua vez, antecipou a tarefa prevista no artigo 32 do Protocolo de Defesa da Concorrência, instruindo o GMC a elaborar proposta de disciplinas para a limitação do uso dos incentivos à produção e ao investimento que criam distorções na alocação de recursos na região e disciplinas para eliminar o uso dos incentivos às exportações intrazonas.
Como resultado desses esforços simultâneos, o Mercosul efetuou, no último semestre, levantamento amplo dos incentivos concedidos em todos os estados-partes, o que permitirá o início dos trabalhos de elaboração de disciplinas comuns. Por outra parte, aprovou-se, na Reunião de Cúpula de Florianópolis (14.12.2001), a Decisão CMC 64/00, ‘‘Defesa Comercial e da Concorrência’’, que estabelece procedimentos e regras para investigações antidumping e sobre subsídios relativos a importações originárias de um estado-parte do Mercosul. Tal decisão soma-se, assim, à Decisão 11/97, que já estabelecera, em 1997, um Marco Normativo para o dumping extrazona, aplicável também, por força de seu artigo 9º, ao dumping intrazona.
Em um ambiente regional onde todas as tarifas foram eliminadas, os governos podem ser tentados a ceder às pressões protecionistas, lançando mão, como última válvula de escape, da aplicação de medidas antidumping ou concessão de subsídios, mesmo que destinados a manter setores marcadamente ineficientes e a um alto preço, pago por toda a sociedade. Daí a importância da criação de um arcabouço legal que garanta as adequadas condições de concorrência para uma economia ampliada e impeça a destruição do patrimônio integracionista duramente conquistado.
O acervo normativo já existente demonstra que, mesmo em temas considerados sensíveis pelos governos, o Mercosul tem dado passos concretos em direção a um ‘‘adensamento de legalidade’’, de modo a dotar-se dos instrumentos de políticas comerciais comuns próprios de uma verdadeira união aduaneira. Ao completar 10 anos de idade, o Mercosul parece estar demonstrando, com fatos, maturidade suficiente para os desafios que estão por vir.
As normas citadas podem ser encontradas em www.mre.gov.br/sitemercosul ou www.mercosur-mercosul.org.
Fonte: Correio Brasiliense - DF, segunda-feira, 26/03/2001
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O Mercosul e o direito de integração
CARLOS FERNANDO MATHIAS DE SOUZA
Juiz do Tribunal Regional Federal da 1ªRegião
e professor titular da Universidade de Brasília
Uma das realidades mais expressivas do nosso tempo é a das comunidades de nações que, criadas pelo direito, se querem comunidades de direito, na expressão de Walter Hallsfein, primeiro presidente da Comissão Comunidade Econômica Européia. Exemplos significativos são a União Européia e o Mercosul. Dessa realidade nova adveio, naturalmente, um novo direito, a que se denomina (geralmente) de direito comunitário ou, por vezes, direito transacional (Philip C. Jessup) e (em um certo sentido), direito de integração.
Esse direito comunitário ou transacional (e, destaque-se aqui, o direito de integração) não se confunde com o direito internacional clássico (tanto público, quanto privado) e, naturalmente, com o direito nacional dos estados-membros ou participantes das comunidades em destaque. O direito comunitário é, por natureza, supranacional e coexiste com os direitos nacionais dos estados-membros da comunidade de nações (melhor se diria de estados) a que pertence. Todavia, nas questões efetivamente comunitárias há o seu primado.
Com efeito, há um direito comunitário civil, penal, comercial, tributário, por exemplo, tutelando relações jurídicas de ordem comunitária, de par com os respectivos ramos de direito de cada sistema jurídico nacional, para as relações que, naturalmente, não dizem respeito à comunidade. Daí resulta que, se a relação é direito comunitário, a composição pacífica de conflitos, pela via judicial, faz-se pela corte comunitária, enquanto que,se o for de direito nacional, o será pelos respectivos tribunais nacionais. De outra parte, tem-se, quanto às fontes do direito comunitário, a preeminência dos tratados constitutivos sobre as demais, a exigir precisão quanto à natureza de cada uma delas e suas eventuais conseqüências.
A propósito, Joël Rideau, em obra dada a lume em junho de 1995, ‘‘Le Droit des Communautés Européennes’’, observa: ‘‘A preeminência dos tratados constitutivos sobre as outras fontes de direito é um dado fundamental da ordem jurídica comunitária, mas sua natureza e suas conseqüências devem ser precisadas (bem definidas). A análise da hierarquia interna sobre os atos de direito comunitário derivado impõe-se para completar a apresentação da hierarquia das fontes.’’
Quanto ao Direito Transnacional (Transnational Law), expressão cunhada por Philip C. Jessup, veja-se que se enquadra no que se conhece como direito comunitário. ‘‘Usarei em vez de direito internacional a expressão direito transnacional para incluir todas as leis (ou normas) que regulam ações ou fatos que transcendem fronteiras nacionais. Ambos, o direito internacional público e o direito internacional privado, estão incluídos (compreendidos), como estão outras normas (ou regras), que não se enquadram totalmente (inteiramente) nessas categorias clássicas.’’
Já, no que se refere ao direito de integração, contudo, correspondente ele a uma fase que ainda se enquadra no direito internacional clássico. E, é o que ocorre com o direito do Mercosul. O Mercado Comum do Sul — Mercosul, como se sabe, surgiu efetivamente com o Tratado de Assunção, de 26 de março de 1991. Em muito apertada síntese, dir-se-ia que o Mercosul implica, essencialmente, na livre circulação de bens, serviços e fatores produtivos entre os países que o integram, por intermédio da eliminação de direitos aduaneiros e restrições tributárias à circulação de mercadorias e de qualquer outra medida equivalente.
O Tratado de Assunção é, naturalmente, a fonte jurídica primeira ou básica do Mercosul. Todavia, passos muito importantes têm sido dados a partir dele (constituindo também fontes), como o Protocolo de Brasília, para solução de controvérsias, prevendo, por exemplo, negociações diretas (capítulo II), intervenção do Grupo Mercado Comum (Capítulo III) e procedimento arbitral (Capítulo IV). As controvérsias em destaque são as ‘‘que surgirem entre os estados-partes sobre a interpretação, a aplicação ou o não-cumprimento das disposições contidas no Tratado de Assunção, dos acordos celebrados no âmbito do mesmo, bem como das decisões do Conselho do Mercado Comum e das Resoluções do Grupo Mercado Comum’’.
Tem-se, ainda, outros protocolos, como de Las Leñas, sobre a cooperação e assistência jurisdicional, em matéria civil, comercial, trabalhista e administrativa (e seu acordo complementar); o Protocolo de Assistência Mútua em Assuntos Penais, o Protocolo de Medidas Cautelares, o Protocolo de Buenos Aires sobre jurisdição internacional em matéria contratual, e o Protocolo de São Luiz em matéria de responsabilidade civil emergente de acidente de trânsito entre os estados-partes do Mercosul.
A merecer de destaque especial o Protocolo de Ouro Preto (adicional ao Tratado de Assunção sobre a estrutura institucional do Mercosul), firmado em 16 de dezembro de 1994. Em verdade, não se pode falar, ainda, em termos de Mercosul, em Comunidade, como é o caso da União Européia.
O Mercosul, repita-se, ainda é uma união aduaneira, que se encontra, presentemente, em fase mais de aprofundamento do que de alargamento (ou alongamento?). O direito que dele resulta ainda é de integração e não (evidentemente) comunitário. Daí resultam conseqüências práticas e precisas. Como se sabe, o Judiciário brasileiro vem sendo chamado a decidir, nos seus diferentes graus de jurisdição, controvérsias que passam pela realidade do Mercosul. Fossem as normas do Mercosul de direito comunitário (e não ainda de integração, o que passa, inclusive, por limites expressos na Constituição brasileira), as soluções seriam naturalmente outras, das que vêm sendo adotadas.
As relações jurídicas tratadas pelo direito de integração, resultante do Mercosul, repita-se, ainda se resolvem pelo direito internacional clássico. Por ilustrativo (e em apoio à assertiva) recorde-se o que ocorreu com relação ao cumprimento de uma carta rogatória, à qual foi negado o exequatur (pelo STF), por não estar, ao tempo em que foi apresentada, concluído o ciclo de incorporação ao direito interno (nos termos da Constituição de 1988), do Protocolo de Medidas Cautelares (Ouro Preto).
O Presidente do Supremo Tribunal Federal (àquela altura, ministro Celso de Mello) denegou o exequatur e sua decisão foi confirmada pelo Pleno da Suprema Corte, ao julgar Agravo Regimental interposto contra a aludida decisão. Fundou-se o decisum, entre outros apoios, em que ‘‘a recepção de acordos celebrados pelo Brasil no âmbito do Mercosul está sujeita à mesma disciplina constitucional que rege o processo de incorporação, à ordem positiva interna brasileira, dos tratados ou convenções internacionais em geral. É, pois, na Constituição da República, e não em instrumentos normativos de caráter internacional, que reside a definição do iter procedimental pertinente à transposição, para o plano do direito positivo interno do Brasil, dos tratados, convenções ou acordos — inclusive daqueles celebrados no contexto regional do Mercosul — concluídos pelo Estado brasileiro.’’
E, ademais: ‘‘Embora desejável a adoção de mecanismos constitucionais diferenciados, cuja instituição privilegie o processo de recepção dos atos, acordos, protocolos ou tratados celebrados pelo Brasil no âmbito do Mercosul, esse é um tema que depende, essencialmente, quanto à sua solução, de forma do texto da Constituição brasileira, reclamando, em conseqüência, modificações de jure constituendo. Enquanto não sobrevier essa necessária reforma constitucional, a questão da vigência doméstica dos acordos celebrados sob a égide do Mercosul continuará sujeita ao mesmo tratamento normativo que a Constituição brasileira dispensa aos tratados internacionais em geral.’’
O que de melhor na doutrina existe, nessa área específica do direito, veio em abono da tese esposada pelo Supremo Tribunal Federal: ‘‘O mecanismo adotado, a observação é do professor titular da Universidade de São Paulo, Luiz Olavo Baptista, para a incorporação dos acordos internacionais é o da aprovação pelo Legislativo, (art. 49, I) e depois sua promulgação pelo Executivo, que os negociou, celebrou e é, também, quem os ratifica.
O tratado segue um iter, que tem início pelas negociações, passa pela sua assinatura, e pela remassa ao Poder Legislativo com o pedido de aprovação (atos esses da competência exclusiva do Poder Executivo, a quem incumbe a condução da política externa do país). Prossegue com o imprescindível exame pelo Poder Legislativo, a quem cabe constitucionalmente examinar e, querendo, aprovar o tratado, terminando com sua promulgação, também ato de competência do Executivo.
Trata-se de antiga tradição no direito brasileiro.
A razão desse procedimento é explicada pelo prof. Vicente Marotta Rangel: ‘‘Com a audição dos poderes Executivo e Legislativo, atende-se à consideração de que o tratado possui a natureza de lei e se respeita, por outro lado, o princípio da distinção dos poderes governamentais’’ (...).
Cabem só ao presidente (os) dois últimos atos do procedimento de inserção do tratado na legislação brasileira, porque — como bem explica Cachapuz de Medeiros na sua obra definitiva sobre a matéria — ‘‘pertence ao Executivo a competência para declarar internacionalmente a vontade do Estado’’.
A importância da ratificação é destacada por Celso de A. Mello e classificada pelo autor como ‘‘a fase mais importante do processo de conclusão dos tratados’’, e a necessidade da promulgação ressaltada por autoridades como J.F. Rezek e o prof. João Grandino Rodas, para quem ‘‘a promulgação atesta a adoção da lei pelo Legislativo, certifica a sua existência e o seu texto, e afirma, finalmente o seu valor imperativo e executório’’.
Por isso, é com a promulgação pelo presidente da República que culmina a inserção dos tratados no direito brasileiro’’.
Acrescente-se, por bastante oportuno, que tudo isso bem se harmoniza com o Protocolo de Ouro Preto que, em seu art. 42, contém expressamente: ‘‘As normas emanadas dos órgãos do Mercosul previstos no artigo 2º deste Protocolo terão caráter obrigatório e deverão, quando necessário, ser incorporadas aos ordenamentos jurídicos nacionais mediante os procedimentos previstos pela legislação de cada país’’.
O Superior Tribunal de Justiça também tem dirimido muitos conflitos jurídicos na área do Mercosul. Em junho do ano passado, o presidente da Corte, ministro Costa Leite, suspendeu, por via de procedimento cautelar, decisão do colendo TRF da 4ªRegião, louvando-se, fundamentalmente, no processo de consolidação do Mercosul.
Dos fundamentos da decisão em destaque, extrai-se o seguinte: ‘‘Com efeito, a suspensão das importações interfere na própria credibilidade da política externa brasileira , colocando-a em risco, na medida em que frustra a observância pelo país de compromisso assumido em avenças públicas internacionais, qual o livre comércio de bens, além de comprometer o processo da consolidação do Mercosul, o que se revela gravemente danoso para a economia nacional. Não é preciso avançar mais, até porque implicaria incomportável exame de questões de mérito, inajustável aos limites do juízo excepcional da suspensão do provimento cautelar.
Concorrendo, em suma, os pressupostos autorizadores, defiro a suspensão requerida pela União.’’ (q.v. Petição 1273/RS — Reg. 2000/0040618-0).
A Corte Federal (TRF-4ªRegião), ao prosseguir no julgamento do recurso (agravo de instrumento), deu-lhe provimento, o que, também em termos práticos, poderia frustrar a decisão suspensiva do presidente do STJ. O vice-presidente da Corte superior, ministro Nilson Naves, no exercício da presidência, contudo, deferiu, motivado por requerimento da União, a suspensão da eficácia do acórdão da corte regional no referido agravo.
Assinalou, (entre outras considerações), em síntese, o magistrado, em seu decisum, o entendimento já manifestado pelo presidente da corte superior e, por persistirem os pressupostos que autorizavam o requerido, deferiu a suspensão da eficácia do acórdão prolatado pelo Tribunal Regional ‘‘até que o Superior Tribunal se pronuncie sobre o mérito da ação cautelar inominada, proposta pela Associação dos Arrozeiros de Itaqui e outros.’’ (q.v. decisum no processo anteriormente referido— Petição 1273/RS).
Na realidade (e sem embargo do expressivo número de feitos que já tramitam no Judiciário brasileiro), as questões judiciais referentes aos Mercosul, mal começaram. O que, por ora, pode-se dizer (e o conselheiro Acácio, por certo, não o faria melhor) é que há muito que se fazer no particular, tanto no aperfeiçoamento das normas, quanto no dos mecanismos institucionais do Mercosul. Eis um grande desafio, em particular para a República Federativa do Brasil, que está obrigada, pelo comando do parágrafo único do art. 4º de sua Constituição, a buscar ‘‘a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações’’.
fonte: Correio Brasiliense - DF, segunda-feira, 26/03/2001
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Mercosul na jurisprudência brasileira
O Mercosul faz dez anos. Presente no dia-a-dia dos países-membros, de seus cidadãos e empresas, o Mercado Comum do Sul ainda não atingiu seu destino, mas é uma realidade palpável em muitas áreas, em especial na jurídica. Neste artigo, analisamos uma parte dessa realidade: a aplicação, pelos tribunais brasileiros, das normas de integração. Talvez o pronunciamento mais importante do Judiciário brasileiro sobre o Mercosul tenha sido a decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a incorporação ao direito brasileiro das normas oriundas do Mercosul.
O STF se manifestou recentemente sobre a questão em uma carta rogatória, cujo cumprimento dependia do Protocolo de Medidas Cautelares do Mercosul. No Agravo Regimental da decisão de denegação do exequatur à rogatória, o ministro Celso de Mello referiu-se à recepção dos acordos celebrados pelo Brasil com o Mercosul, equiparando-os aos demais tratados ou convenções internacionais em geral (AGRCR 8279). Embora reconheça ser desejável uma incorporação diferenciada para os atos provenientes do Mercosul, entendeu o ministro que o tema dependeria de reforma do texto da Constituição, acreditando que o sistema constitucional brasileiro atual não consagra o princípio do efeito direto nem o postulado da aplicabilidade imediata dos tratados ou convenções internacionais, razão pela qual não podem essas normas ser invocadas pelos particulares ou aplicadas no âmbito doméstico do Estado brasileiro enquanto não forem completadas as etapas necessárias à sua entrada em vigor.
A maior parte dos demais casos concentra-se no Tribunal Regional Federal da 4ªRegião, cuja competência territorial abrange a fronteira mais relevante dos países-membros. Em seguida, vem o Tribunal Federal da 5ªRegião, sendo a maioria deles a respeito da aplicação da Tarifa Externa Comum. No Tribunal Regional Federal da 1ªRegião ressaltamos dois casos, ambos em questão especificamente relacionada à aplicação de normas do Mercosul. Na primeira delas, o Tribunal analisou a hierarquia das normas e decidiu que uma norma geral estabelecida pela Decisão Mercosul nº 18 não tinha o condão de revogar normas especiais previstas no direito brasileiro (MS nº 1997.01.020621, 3ªTurma). Na segunda, cuidava-se também de hipótese de conflito entre lei interna e regra do Mercosul, decidindo-se que a brasileira não apresentava incompatibilidade com aquela (APMS. 61803/97. 2ªTurma). Por sua vez, o Tribunal Federal da 4ªRegião analisou a aplicação das normas do Mercosul também em dois casos. No primeiro deles, pela via negativa, pois a parte invocava o Tratado do Mercosul para isentar de imposto um bem oriundo dos Estados Unidos, que não é parte do acordo. Dessa forma, entendeu o TRF que a aplicação do mesmo era inviável (AC 150036 2ªTurma). No outro caso, versava-se sobre direito intertemporal. Uma medida provisória alterara o Imposto de Exportação e, como isso se deu em 1994, o benefício da regra do Mercosul somente seria vigente a partir de 1995, razão pela qual não se aplicava à hipótese.
Merece comentário outra decisão do TRF da 4ªRegião, em que se discutia liberação de produto apreendido por força de determinação do Ministério da Agricultura, cujo limite de mercadoria por saca fora ultrapassado, contrariando norma do Mercosul que não fazia tal restrição. Considerou o Tribunal serem infundados os óbices impostos pela autoridade em face da regra mercosulina (APMS 95.04.32680-3. 2ªTurma).
Uma das características do Mercosul é a livre circulação de mercadorias provenientes dos países-membros, sem o pagamento de Imposto de Importação no espaço integrado, pois a partir do Protocolo de Ouro Preto, e finda a fase transitória, em 1º de janeiro de 1995, a alíquota passou a ser zero, na esteira do programa de desgravação tarifária empreendido. De sorte que, para a concretização dessa liberdade, mister promover um meio de comprovar a origem das mercadorias. Para isso, o Tratado de Assunção regulamentou a matéria pelo seu Anexo II. Portanto, não é surpresa que o tema tenha aflorado nos tribunais. O 4º TRF estabeleceu as regras a serem seguidas para determinar a validade do certificado de origem (APMS 1988.04.01.02451-6). Ainda o mesmo tribunal, em outra decisão, entendeu carecer de validade o certificado de origem que não estivesse devidamente preenchido em todos os seus campos (Ap. Civ. 1999.04.01.132097-3. 2a. Turma. Dec. 30.3.2000. DJU 17.5.2000).
O Tratado de Assunção regulamentou detalhadamente a livre circulação de mercadorias, prevendo em seu artigo 1º a eliminação dos direitos alfandegários, restrições não tarifárias e de qualquer outra medida de efeito equivalente. Posteriormente, o Mercosul disciplinou o livre trânsito de pessoas e veículos. A regulamentação acerca do que seja veículo comunitário envolve a comprovação do domicílio do proprietário. Em um caso emblemático, entendeu-se contrário aos princípios do Tratado de Assunção apreender o veículo paraguaio, de propriedade de brasileiro com duplo domicílio. A ementa refere expressamente ao princípio da livre circulação de pessoas entre os países como um dos cânones do Mercosul, não podendo, portanto, essa atividade ser obstaculizada pela autoridade brasileira, sob pena de ir-se contra a própria essência do Mercosul (Processo Nº 97.04.04855-6 2a Turma). Outra decisão do TRF da 4ªRegião explicita melhor o conceito de veículo comunitário, exposto na Portaria 16/95 do Ministério da Fazenda, ao aplicá-lo somente para veículos estrangeiros para fins de turismo, excluindo aqueles de fins comerciais (MAS - 62205).
Em vários casos, o TRF da 5ªRegião presidiu, à luz do Tratado do Mercosul e da estipulação de uma Tarifa Externa Comum, a discussão sobre as alíquotas do Imposto de Importação do açúcar, quando esta foi majorada repentinamente, concluindo que só as exportações posteriores a janeiro de 1995 se beneficiam do Tratado do Mercosul. E ainda houve vários outros casos em que o TRF determinou a aplicação da Tarifa Externa Comum para terceiros países e não para integrantes do Mercosul, quando se procurou invocá-la para evitar a majoração do Imposto de Importação do álcool. O argumento utilizado era o de que somente com lei complementar poder-se-ia proceder à majoração e que esta contrariaria a TEC, tendo o Tribunal decidido negativamente.
O Mercosul, ao contrário da Comunidade Européia, não tem um sistema que garanta a interpretação judicial uniforme do seu conteúdo normativo, nada impedindo que cada país desenvolva sua jurisprudência, sem levar em conta aquela desenvolvida nos demais membros. À falta de um sistema coordenado de solução de controvérsias, deveria ser incentivada uma maior comunicação entre os tribunais nacionais dos estados-membros. Com isso, aprimoraríamos a jurisprudência e atingiríamos maior uniformidade na aplicação das regras do Mercosul, contribuindo-se, afinal, para a criação de um verdadeiro Mercado Comum.
NADIA DE ARAÚJO
Doutora em Direito Internacional, mestre em Direito Comparado, professora de Direito Internacional Privado na
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e procuradora de Justiça (RJ)
ANTENOR MADRUGA FILHO
Doutorando em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo (USP),
professor de Direito Internacional Privado no Instituto Rio Branco (Ministério das Relações Exteriores)
e na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Advogado da União
fonte: Correio Brasiliense - DF, segunda-feira, 26/03/2001
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Desafios jurídicos do Mercosul
Ao completar dez anos da assinatura do Tratado de Assunção, que constituiu o Mercado Comum do Sul (Mercosul), remanescem sem solução permanente algumas preocupações de ordem jurídica. Tais preocupações propiciam, vez por outra, dúvidas no que concerne à implantação definitiva da integração almejada. Do ponto de vista econômico, há razões de sobra para se afirmar, com convicção, que o Mercosul é um sucesso. No que tange ao quadro político, é de se reconhecer, também, que o Mercosul segue em vôo tranqüilo, não obstante turbulências episódicas motivadas, de regra, por questões de política interna de cada país. Aliás, no particular, só a instituição da chamada cláusula democrática por si só justificaria todo o processo e todo o esforço até aqui empreendidos.
A questão jurídica, por sua vez, continua sendo o grande desafio dos atores da integração. É fato digno de registro que o processo integracionista tem recebido dinâmico e acurado impulso do lado brasileiro, sendo certo que nossa Chancelaria não tem medido esforços de bem coordenar o objetivo pretendido.
Todavia, sabemos que o processo de integração, seja qual for o modelo adotado ou eleito, é uma sucessão de providências jurídicas, na medida que a vontade política há de estar conformada às limitações das ordens normativas nacional e internacional.
Com efeito, a geração de regras sob a forma de protocolos e acordo e a produção de normas dos órgãos já estabelecidos no plano da integração causam, por vezes, um manancial de questões que criam conseqüências na validade, eficácia e obrigatoriedade do complexo normativo do Mercosul no âmbito do ordenamento jurídico de cada estado-parte.
Na consideração de que ainda estamos vivendo em um ambiente de intergovernabilidade, vale dizer, sem alcançar o estágio do mercado comum propriamente dito e, por isso, sem ser necessária a adoção de medidas que culminem a experiência e a prática de órgãos supranacionais, pode-se afirmar que o sistema de solução de controvérsias mediante arbitragem ad hoc é o mais consentâneo com a realidade atual.
Apesar de o Tratado de Assunção e o Protocolo de Ouro Preto preconizarem a adoção de um sistema permanente, não há, até mesmo em razão da originalidade do nosso modelo de integração, motivos de ordem doutrinária para afastar a opção pela arbitragem como forma adequada de solução de controvérsias.
A indicação de um tribunal arbitral permanente poderá amenizar, ao menos, a sempre presente crítica de inexistência de uma corte com característica judicante ou judiciária, muito embora o modelo europeu, no particular, seja um robusto exemplo a ser considerado pela magnitude de sua fundamental contribuição para o propósito integracionista.
No que se refere à consensualidade na tomada de decisões, é certo que o Tratado de Assunção estabeleceu o marco necessário ao início do processo, sem prejuízo, por evidente, dos ajustes que se fizerem necessários a partir da configuração definitiva do mercado comum.
Em se o alcançando, os estados-partes terão de conformar a necessária ponderação de pesos na tomada de decisões, em que, certamente, os componentes relativos ao perfil econômico, territorial e populacional poderão ser o caminho a trilhar. A criação de outros órgãos na estrutura institucional é assunto a ser examinado com cautela, até mesmo para não se incorrer no risco de se deparar com estruturas burocráticas pesadas e sem a dinâmica e a flexibilidade que o processo demanda na sua consecução.
De outra banda, os estados-partes poderão, ainda, refletir sobre a conveniência, ou não, de se implementar órgãos supranacionais e intergovernamentais, sem, necessariamente, a opção importar exclusividade numa ou noutra hipótese. O grande desafio jurídico do processo de integração, a nosso ver, continua sendo, ainda, o regime de incorporação do acervo normativo, quer no que diz respeito à produção dos órgãos do Mercosul, quer no que tange à elaboração de documentos jurídicos entre os estados-partes.
Conforme temos asseverado, o regime dualista de incorporação de normas previsto nas constituições nacionais dos estados-partes revela, no atual estágio, uma grande apreensão, porquanto cria flagrante descompasso entre a elaboração da norma Mercosul e a sua validade e eficácia no plano interno de cada país.
Nesse sentido, a questão contempla a seguinte ordem de preocupação: a primeira, no plano da reciprocidade de direitos e obrigações, quando a norma não esteja em vigor concomitantemente em todos os estados-partes; e a segunda, a obrigatoriedade de sua observância no plano interno e internacional.
A perplexidade está a indicar, com urgência, que os partícipes do processo estejam conscientes da necessidade de se encontrar solução para o problema antes que se alcance a convergência da tarifa externa comum. É imperioso, no particular, que cada estado-parte cumpra seu dever, ressaltando que o Paraguai e a Argentina já deram grande passo nesse sentido com as reformas constitucionais de 1992 e 1994, sem, contudo, resolver o problema em caráter definitivo.
No ponto, é hora de vencer preconceitos e predisposições soberanófilas e extemporâneas que não mais se compatibilizam com o atual cenário do concerto internacional. Não se trata de aderir ou questionar ideologicamente a chamada mundialização da economia; apenas, encarar o fato e, nele, buscar os efeitos positivos para os interesses nacionais.
É verdade que os estados-partes dão sinais positivos de preocupação com o tema, especialmente quanto à incorporação da normativa Mercosul. A decisão CMC 23/00 contempla o grau de inquietação com a matéria e a inquestionável necessidade de organização do ordenamento jurídico do Mercosul.
Não obstante, cumpre observar que a iniciativa há de ser estimulada no plano interno de cada país, posto que o eixo de sua discussão não reside apenas no plano das relações internacionais, mas, especial e ,principalmente, no terreno constitucional. Em outras palavras, o regime de incorporação de normas não é questão a ser resolvida à luz da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados e, sim, do Direito Constitucional de cada estado-parte.
fonte: Correio Brasiliense - DF, segunda-feira, 26/03/2001
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O décimo aniversário do Mercosul
Josemar Dantas
Editor
Esta edição do suplemento Direito & Justiça é dedicada à passagem do décimo aniversário do Mercado Comum do Cone Sul (Mercosul). Cinco ensaios subscritos por juristas que acompanham desde o início a formação do pacto, à frente o ministro das Relações Exteriores, Celso Lafer, abrem espaço para colocá-lo sob foco mais amplo de interesse. Há aí, também, esforço para universalizar o debate em torno de iniciativa que, abraçada de forma decidida pelo Brasil, contempla a integração de um mercado estimado em torno de US$ 800 bilhões.
O Mercosul chega aos dez anos de existência sob o alvoroço de algumas perplexidades. A assimetria em relação ao potencial de cada parceiro e vicissitudes econômicas locais ainda não puderam ser superadas para alcançar uniformidade no regime tarifário. O caso mais notório é o da Argentina.
A paridade cambial fixa entre o peso e o dólar provoca encarecimento do produto exportável. A perda de competitividade é, sobretudo, grave em relação ao mercado brasileiro, onde os argentinos, de regra, colocam 32% de sua pauta exportadora. A desvalorização do real em janeiro de 1999 colocou os preços das mercadorias procedentes da economia platina em altura incompatível com a dinamização do comércio.
As pressões norte-americanas para antecipar para 2004 a formação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca) projetam algumas nuvens carregadas sobre os parceiros do Mercosul. Desde logo convém esclarecer que Washington não pretende senão um acordo multilateral de comércio favorecido por determinado regime de tarifas. Não deseja um pacto aduaneiro com todas as implicações sociais, econômicas, jurídicas e políticas, tal como a União Européia.
Seria pura utopia imaginar que os EUA admitiriam a existência de um parlamento sobranceiro ao Capitólio com poderes para dirimir os conflitos políticos entre os integrantes da Alca. Por acaso concordariam com a existência de um tribunal comum acima da Corte Suprema para julgar as divergências legais no âmbito do pacto? Submeter-se-iam a um banco central com poderes superiores aos do Federal Reserve? Permitiriam o livre trânsito dos súditos mexicanos, caribenhos e sul-americanos em seu território?
fonte: Correio Brasiliense - DF, segunda-feira, 26/03/2001
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