Notas Taquigráficas Tarde
DEPARTAMENTO DE TAQUIGRAFIA, REVISÃO E REDAÇÃO
NÚCLEO DE REDAÇÃO FINAL EM COMISSÕES
TEXTO COM REDAÇÃO FINAL
COMISSÃO PARLAMENTAR CONJUNTA DO MERCOSUL
EVENTO: Seminário N°: 1093/04 DATA: 2/9/2004 | INÍCIO: 14h47min TÉRMINO: 17h36min DURAÇÃO: 02h49min | TEMPO DE GRAVAÇÃO: 02h36min PÁGINAS: 49 QUARTOS: 31 |
DEPOENTE/CONVIDADO - QUALIFICAÇÃO
VALDIR VICENTE DE BARROS - Coordenador da Seção Brasileira do Fórum Consultivo Econômico e Social do MERCOSUL.ANTÕNIO PAULO CACHAPUZ DE MEDEIROS - Consultor Jurídico do Ministério das Relações Exteriores.
MÁRCIO GARCIA - Diretor-Adjunto do Departamento de Cooperação Jurídica Internacional do Ministério da Justiça.
JOÃO RICARDO CARVALHO DE SOUZA - Consultor Legislativo da Câmara dos Deputados.
SUMÁRIO: Seminário Internalização de Normas do MERCOSUL. Segundo painel: Internalização das normas que não demandam aprovação legislativa.
O SR. PRESIDENTE (Deputado Dr. Rosinha)- Retomamos os trabalhos do seminário. Nesta tarde, o painel tem por título Internacionalização das normas que não demandam aprovação legislativa.
Convido para coordenar os trabalhos deste 2º Painel o Ministro Bruno de Risios Bath, Chefe da Divisão do MERCOSUL do Itamaraty.
Convido ainda para fazer parte da Mesa o Sr. Valdir Vicente de Barros, Coordenador da Seção Brasileira do Fórum Consultivo Econômico e Social; o Sr. Antônio Paulo Cachapuz de Medeiros, Consultor Jurídico do Itamaraty; o Sr. João Ricardo Carvalho de Souza, Consultor Legislativo da Câmara dos Deputados, e o Dr. Márcio Garcia, Diretor-Adjunto do Departamento de Cooperação Jurídica Internacional do Ministério da Justiça. (Pausa.)
O SR. COORDENADOR (Bruno de Risios Bath) - Boa-tarde. Para mim, é uma grande honra aceitar o convite para ser o moderador deste painel.
Como Chefe da Divisão do MERCOSUL do Itamaraty, tenho a incumbência de tratar do dia-a-dia das questões ligadas ao MERCOSUL. Todavia, por falta de tempo, tenho tido poucas oportunidades de participar de discussões mais aprofundadas sobre temas que têm implicações de mais longo prazo e, de certa forma, de natureza mais estratégica. Para mim, esta é uma excelente oportunidade. Estou certo de que aprenderei muito aqui.
Sem mais delongas, passo a palavra ao Dr. Valdir Vicente de Barros, Coordenador do Fórum Consultivo Econômico e Social.
O SR. VALDIR VICENTE DE BARROS
- Prezadas autoridades da Mesa, senhoras e senhores, primeiramente, gostaria de me apresentar: sou o Coordenador do Fórum Consultivo, representante dos trabalhadores. O Fórum Consultivo Econômico e Social — Seção Brasileira é composto por 2 coordenadores: o representante dos empresários, Dr. Edmundo Pacheco, Presidente da Federação do Comércio de Santa Catarina, e eu, que represento a Confederação Geral dos Trabalhadores, por indicação das centrais sindicais brasileiras.
Esse Fórum, na estrutura do MERCOSUL, representa a sociedade civil, discute e apresenta sugestões. A Comissão Parlamentar Conjunta representa o Parlamento no âmbito regional.
A atuação da sociedade civil, especialmente das centrais sindicais e da representação dos empresários, teve papel muito importante quando da criação do MERCOSUL e da assinatura do Tratado de Assunção. Quando foi assinado esse Tratado, os temas dele constantes eram meramente comerciais. Não havia absolutamente nada que se referisse ao social. Não havia sequer um subgrupo que cuidasse dos problemas das relação de trabalho. Houve uma mobilização das centrais sindicais dos países envolvidos, cada uma pressionando os respectivos governos, para que fosse criado um grupo de trabalho que discutisse os problemas sociais e os de relação de trabalho, já que se tratava de um mercado comum.
Essa mobilização provocou a criação do Grupo 11. Naquela ocasião, só havia 10 grupos. O Grupo 11 passou, então, a discutir os problemas de relação de trabalho e social. No Grupo havia 11 Comissões, uma das quais, a Comissão 8, cuidava da harmonização das convenções internacionais da OIT, de forma que os países integrantes do MERCOSUL ratificassem as convenções mais importantes. Entretanto, não havia um assento para que a sociedade civil se pronunciasse nas discussões do MERCOSUL, o que foi criado.
Quando houve a mudança do perfil do MERCOSUL, com a assinatura do Protocolo de Ouro Preto, foi criado o Fórum Consultivo Econômico e Social. Esse Fórum tem o papel de se fazer ouvir nos debates do MERCOSUL, visando à transformação num verdadeiro mercado comum e não somente num órgão para discussão de problemas comerciais. Essa integração nada mais é do que a perseguição de um dispositivo da nossa Constituição — art. 4º, parágrafo único — que diz:
"A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações".
A criação do Fórum Consultivo Econômico e Social foi estabelecida no Protocolo de Ouro Preto, como havia dito, e assinada pelos Presidentes dos países integrantes do MERCOSUL em dezembro de 1994, tendo sido definido como órgão de representação dos setores econômicos e sociais e integrado por igual número de representantes de cada Estado-parte — art. 28 do Protocolo de Ouro Preto. O Fórum tem função consultiva e se manifestará mediante recomendação ao Grupo Mercado Comum.
O processo de construção do Fórum partiu da criação de seções nacionais. O Fórum, na verdade, é regional e não discute os problemas isolados de cada país. Ele discute os problemas da sociedade civil do MERCOSUL. Não havia como se formar esse Fórum sem a iniciativa da sociedade civil de cada país. Então, foram criadas as seções nacionais, que, em conjunto, formaram o Fórum Regional.
A primeira reunião desse Fórum deu-se no dia 30 de maio de 1966, quando foram aprovados o Regimento Interno e outros aspectos de seu funcionamento. Por ser parte integrante do MERCOSUL, o Regimento foi homologado pelo Grupo Mercado Comum no mês de junho.
Em outubro desse mesmo ano, o Fórum realizou sua primeira plenária, que aprovou o Plano de Trabalho Anual. As seções nacionais se organizaram, formaram o Fórum, que elaborou um Regimento Interno, que foi submetido ao Grupo Mercado Comum e aprovado. Então, existe um Regimento que norteia os debates e decisões do Fórum.
O fórum é integrado por representantes de entidades empresariais, de trabalhadores e do Terceiro Setor — no nosso caso, os consumidores e representantes de cooperativas — e por sociedades acadêmicas, científicas, organizações não-governamentais e outras, com igual número de representantes por país.
De acordo com as definições do Protocolo de Ouro Preto, o Fórum manifesta-se por meio de recomendações, quando consultado, e por iniciativa própria, conforme prevê o Regimento. Quando o fórum é consultado, há posições de bancadas que podem ser apresentadas ao GMC. Quando é de iniciativa do fórum, as decisões são por consenso; ou seja, o fórum faz uma recomendação de iniciativa própria por consenso e a envia ao GMC.
Dentre as principais atribuições do fórum, destacam-se as de acompanhar, analisar e avaliar o impacto econômico e social derivado das políticas de integração nas diversas fases de sua implementação nos âmbitos setorial, nacional ou regional. Cabe também ao fórum propor normas e políticas econômicas e sociais em matéria de integração, bem como contribuir para maior participação da sociedade no processo, promovendo a integração do MERCOSUL e difundindo sua dimensão econômica e social.
Tem havido muitas reuniões ordinárias e seminários em diversos países, a fim de que a sociedade participe dos debates do fórum e do MERCOSUL. Os grandes encontros que o fórum proporcionou são fronteiriços. Fizemos um encontro na Tríplice Fronteira e outro entre Rivera e Santana do Livramento, onde as entidades de fronteira dele participaram, apresentaram sugestões e expuseram as dificuldades que passaram a enfrentar depois do MERCOSUL.
Havia problemas na fronteira seca entre Rivera e Santana do Livramento. A divisão é uma praça. De um lado, fala-se espanhol; de outro, português. Lá houve problemas de integração devido a regras novas. Isso tudo foi apresentado na ocasião. Há problemas também de transportes; ou seja, uma aduana funciona em determinado horário, enquanto outra, em outro horário. Em determinadas fronteiras, um caminhão com grãos chegava às 17h, quando uma fronteira já havia fechado, enquanto a outra fechava às 16h. Então, ele teria de esperar o dia seguinte para chegar até a outra fronteira. Esses debates foram travados. O pessoal das fronteiras abordavam esses problemas.
Havia também problemas com relação a roubo de automóveis. Roubava-se um carro num lado e se dirigia para o outro. O dono via seu carro roubado, mas não podia fazer nada, pois ele já estava em outro país. Isso foi levado ao fórum pela sociedade civil.
O plenário do fórum é seu principal órgão de decisão e está integrado por 36 delegados, sendo 9 de cada país: 4 de trabalhadores, 4 de empregadores e um do terceiro setor. As decisões do fórum terão de ser equilibradas. Não há voto majoritário. Os votos são iguais por bancada. A coordenação administrativa do plenário é exercida pela seção nacional de um país por 6 meses.
A Presidência do MERCOSUL é rotativa. Cada país a assume durante 6 meses. Então, o fórum também exerce a coordenação regional naquele país onde se estiver exercendo a Presidência do MERCOSUL. O fórum só dispõe do financiamento das organizações que a integram. Cada vez que um membro do fórum consultivo desloca-se para determinado lugar, sua organização paga todas as despesas. As despesas de secretaria, material e publicações são da responsabilidade das entidades que integram o fórum. Não há um orçamento para o fórum consultivo.
O fórum, durante seus 7 anos, realizou 23 reuniões plenárias ordinárias nas sedes dos países ocupantes da coordenação pro tempore. Também foram realizadas outras reuniões. Haverá agora uma reunião, que não é ordinária, com a Comissão Parlamentar Conjunta no Uruguai, nos dias 8 e 9.
Destacamos algumas recomendações que consideramos importantes.
O fórum fez uma recomendação para que o MERCOSUL tivesse posição homogênea nas discussões sobre a ALCA — a Recomendação GMC nº 1. Também fez recomendação sobre barreiras não-tarifárias e entraves burocráticos no comércio intramercosul; sobre negociações do MERCOSUL com os demais países que integram a ALADI — um número muito grande de países; e sobre medidas unilaterais de governos que possam afetar o mercado intrazonas.
O fórum manifestou-se quanto a políticas de promoção de emprego. Com relação à harmonização do consumidor, o MERCOSUL criou normas para a defesa do consumidor regional, e o fórum se pronunciou usando como base o Código de Defesa do Consumidor brasileiro.
Também se posicionou o fórum sobre as relações da União Européia com o MERCOSUL e sobre a abertura, a participação e a transparência nas negociações do MERCOSUL. No ano de 1999, manifestou-se acerca da crise que atingia o MERCOSUL.
O fórum pronunciou-se também com relação à ratificação das Convenções 138 e 192 da OIT, que se referem a proibição de trabalho infantil.
Recomendou a criação de uma Reunião Especializada de Cooperativas, porque considera que as cooperativas na região estão muito desenvolvidas e bem organizadas. O Brasil tem organizações poderosas de cooperativas; por isso, propusemos a criação da Reunião Especializada de Cooperativas, aceita pelo GMC. As cooperativas discutem seus assuntos no âmbito do MERCOSUL.
Apresentou também, no âmbito do MERCOSUL/Chile, a integração fronteiriça, depois das reuniões que apresentei aos senhores. E fez outra recomendação sobre a ALCA: a ALCA II. Houve pressão dos Estados Unidos para que a ALCA fosse implantada em 2005. A situação atual e futura do MERCOSUL também foi abordada.
Também nos manifestamos sobre as negociações entre MERCOSUL e União Européia, propondo que a posição do MERCOSUL nos debates seja mais ou menos homogênea, o que tem gerado um efeito importante, por exemplo, sobre o protecionismo europeu na agricultura. Já há posição fechada do MERCOSUL quanto a esse problema e também quanto à criação do Grupo Ad Hoc de Integração Fronteiriça. O fórum fez uma recomendação e logo deve estar saindo o Estatuto de Fronteira, que vai garantir o livre trânsito de pessoas nas fronteiras.
Uma novidade é o programa de consolidação da União Aduaneira para o lançamento do MERCOSUL — Objetivos 2006. O fórum já se manifestou sobre o programa e também, mais recentemente, sobre as negociações entre União Européia e MERCOSUL.
O fórum reúne-se regularmente com o Grupo Mercado Comum para trocar informações sobre negociações intramercosul e extramercosul. Atendendo a uma demanda do GMC feita em 1999, realizamos encontros com entidades econômicas e sociais das fronteiras, conforme dissemos, e apresentamos um documento contendo todos os problemas apresentados pelos povos das fronteiras, com as respectivas sugestões de solução.
No que diz respeito às relações externas, ao MERCOSUL e à União Européia no âmbito internacional, o Fórum desenvolve um programa de cooperação com o Comitê Econômico e Social Europeu — CES há mais de 5 anos. O Fórum tem convênio com o Comitê Econômico e Social Europeu para trocar idéias e discutir a forma de adaptar o funcionamento desses organismos a este lado de cá do mundo.
Com a Comunidade Andina de Nações — CAN o fórum também tem mantido contatos. No MERCOSUL temos um fórum onde trabalhador e empregador discutem problemas e apresentam sugestões que possam vir a beneficiar os dois lados: o lado comercial e o lado social. Porém, na Comunidade Andina de Nações os Conselhos são separados. Há o Conselho Consultivo Laboral Andino e o Conselho Consultivo Empresarial Andino. E o Fórum conseguiu fazer com que esses dois conselhos se reunissem. E, hoje, já se discute a criação na Comunidade Andina de Nações com base no modelo do MERCOSUL. Isso se deu por iniciativa do Fórum Consultivo Econômico e Social.
No que se refere à internalização de normas, é importante que a sociedade tome conhecimento de quais foram as normas internalizadas. É importante saber também quais as que não foram internalizadas e por que não o foram. Isso é que interessa. Há muita decisão do MERCOSUL que hoje não tem mais sentido. Como exemplo, podemos citar Protocolo Multilateral de Seguridade Social. Hoje, está havendo uma grande mudança na área previdenciária dos 4 países. Esse protocolo não foi internalizado porque o Paraguai não o ratificou. E, se foi internalizado, não vai ser cumprido porque ele não tem mais condição de ser aplicado em virtude das reformas feitas nos sistemas de previdência social dos 4 países.
O que achamos é que o debate sobre a internalização ou não das Normas MERCOSUL deve ser acompanhado pela sociedade. Se a sociedade não acompanhar essa internalização, as normas podem não ser aplicadas, ou, se forem, podem não satisfazer a população dos países que compõem o MERCOSUL.
Isso é mais ou menos o que tínhamos para dizer com relação ao Fórum. Quanto ao MERCOSUL, almejamos que haja uma integração não somente de comércio, mas que haja livre trânsito de pessoas, de mercadorias e que possamos, em confronto com os outros grandes blocos do mundo, ser um bloco importante e com condições de competir com os demais.
Muito obrigado. (Palmas.)
O SR. COORDENADOR (Bruno de Risios Bath)
- Agradeço a exposição ao Sr. Valdir Vicente de Barros, Coordenador Titular da Seção Brasileira do FCES.
Passo a palavra ao Dr. Antônio Paulo Cachapuz de Medeiros, Consultor Jurídico do Itamaraty, que apresentará o tema "Incorporação Direta das Normas MERCOSUL pelos Ordenamentos Jurídicos dos Estados Partes".
O SR. ANTÔNIO PAULO CACHAPUZ DE MEDEIROS
— Sr. Presidente, Ministro Bruno Bath, Chefe da Divisão do Mercado Comum, do Itamaraty; demais dignos integrantes da Mesa; prezados colegas que compõem este painel; senhoras e senhores.
A vigência nos direitos internos dos Estados Membros das normas emanadas dos órgãos do MERCOSUL com capacidade decisória — o Conselho Mercado Comum, o Grupo Mercado Comum e a Comissão de Comércio do MERCOSUL — tem sido motivo de preocupação que decorre principalmente da dificuldade das autoridades nacionais de exercer controle sobre um processo decisório doméstico, disperso, entre vários Ministérios, departamentos e agências do Poder Público, o que gera uma insegurança jurídica que acaba por afetar o próprio avanço da integração econômica.
Muito recentemente, o Conselho Mercado Comum adotou a Decisão nº 2.204, datada do dia 7 de julho, sobre vigência e aplicação das normas emanadas dos órgãos com capacidade decisória do MERCOSUL. O Conselho lembra que os Estados Partes comprometeram-se, pelo Protocolo de Ouro Preto, a adotar todas as medidas necessárias para assegurar, em seus respectivos territórios, o cumprimento das normas emanadas dos órgãos do MERCOSUL. Mas é imprescindível assegurar a vigência e a aplicação dessas normas aprovadas pelos órgãos com capacidade decisória para contribuir para o afiançamento da segurança jurídica no âmbito do MERCOSUL. E, em virtude dos arts. 40 e 42 do Protocolo de Outro Preto, resulta também necessário agilizar os procedimentos para vigência e aplicação das Normas MERCOSUL que não requeiram tratamento legislativo nos Estados Partes.
Esses procedimentos, segundo a Decisão nº 2.204, deverão prever a realização de consultas internas e das análises de consistência jurídica das Normas MERCOSUL, procurando especificar as normas nacionais que possam resultar revogadas. Uma vez aprovadas pelos órgãos do MERCOSUL e recebida pelo Ministério das Relações Exteriores a cópia certificada pela Secretaria do MERCOSUL, as Normas deverão ser publicadas nos respectivos Diários Oficiais, de acordo com os procedimentos internos de cada Estado Parte, 40 dias antes da data nela prevista para sua entrada em vigor.
A publicação das Normas MERCOSUL nos Diários Oficiais implicará a sua incorporação à ordem jurídica nacional. Para efeitos da publicidade das Normas MERCOSUL, cada Estado Parte tomará as medidas necessárias para criar uma seção ou título especial em seu respectivo Diário Oficial. As Normas MERCOSUL compreendidas nesse procedimento tornarão sem efeito, a partir da sua entrada em vigor, as normas nacionais em contrário, de igual ou menor hierarquia, de acordo com os procedimentos internos de cada Estado Parte.
Aqui no Brasil, as providência para fazer esses ajustes já foram tomadas por meio de um decreto do Presidente da República, que criou um grupo de trabalho interministerial com o objetivo de estudar a possibilidade, bem como elaborar os procedimentos jurídicos necessários para integrar e incorporar ao ordenamento jurídico interno as normas emanadas dos órgãos decisórios do MERCOSUL que não requeiram aprovação do Congresso Nacional.
Como todos sabem, este é um tema muito polêmico, muito controvertido. A comunidade acadêmica brasileira vem observando atentamente a evolução desse tema desde o início do processo de integração econômica. Muitos juristas e estudiosos já se pronunciaram, cada um expondo sua forma de ver a questão, mas procurando dar sua contribuição para o equacionamento desse problema.
Parece-me que é muito importante que seja estabelecida, para efeitos de conclusão a esse respeito, uma classificação das Normas MERCOSUL. Nós falamos muito dessas normas. Muito se fala a respeito da necessidade da sua incorporação, mas nem sempre temos claro quais são essas normas, que tipologia elas adquirem e como elas podem ser classificadas.
As normas emanadas dos órgãos do MERCOSUL compreendem o chamado Direito Derivado do MERCOSUL, isto é, um conjunto de normas jurídicas que surgem através da ação das instituições criadas pelos tratados que mantêm vivo o MERCOSUL. E constituem fontes do Direito do MERCOSUL, ao lado do chamado Direito Originário, formado pelos instrumentos jurídicos internacionais que criaram e continuam aperfeiçoando o MERCOSUL: o Tratado de Assunção, o Protocolo de Outro Preto, o Protocolo de Olivos, entre tantos outros.
Para fins de vigência, as normas emanadas dos órgãos do MERCOSUL podem ser classificadas da seguinte maneira. Temos duas grandes categorias: as Normas MERCOSUL que não precisam ser incorporadas ao ordenamentos jurídicos internos dos Estados Partes; e as normas que precisam ser incorporadas aos ordenamentos jurídicos internos. Entre as normas que precisam ser incorporadas aos ordenamentos jurídicos internos, temos as que requerem aprovação legislativa, que precisam passar por esta Casa, e aquelas que não requerem aprovação legislativa.
Primeiro, veremos as normas que não precisam ser incorporadas aos ordenamentos jurídicos nacionais.
A possibilidade da existência de normas que não requeiram incorporação tem fundamento no art. 42 do Protocolo de Ouro Preto, que dispõe:
"Art. 42. As normas emanadas dos órgãos do MERCOSUL previstos no Artigo 2º deste Protocolo terão caráter obrigatório e deverão, quando necessário, ser incorporadas aos ordenamentos jurídicos nacionais mediante os procedimentos previstos pela legislação de cada país."
O emprego da expressão "quando necessário" deixa claro que pode haver casos em que a incorporação não se aplica. Ocorre que o Protocolo de Ouro Preto não enumerou esses casos. Essa enumeração foi efetuada pela Decisão nº 23, de 2000, do Conselho do Mercado Comum, que dispôs o seguinte:
"As normas emanadas dos órgãos do MERCOSUL não necessitarão de medidas internas para a sua incorporação, nos termos do Artigo 42 do Protocolo de Ouro Preto, quando:
a) os Estados Partes entendam, conjuntamente, que o conteúdo da norma trata de assuntos relacionados ao funcionamento interno do MERCOSUL;
b) o conteúdo da norma estiver contemplado na legislação nacional do Estado Parte."
Essa decisão do Conselho do Mercado Comum não foi incorporada ao ordenamento jurídico interno dos Estados Membros, sob o argumento de regulamentar aspectos da organização e do funcionamento do MERCOSUL — art. 10. Entretanto, como se vê, a Decisão foi muito além da simples regulamentação interna do organismo regional. Na verdade, ela acrescentou ao art. 42 do Protocolo de Ouro Preto uma lista das hipóteses em que não há necessidade da incorporação das Normas MERCOSUL aos ordenamentos jurídicos nacionais. Deveria, portanto — quero ressalvar que falo na qualidade de professor universitário; e peço que entendam que meu ponto de vista não reflete necessariamente o ponto de vista do Ministério das Relações Exteriores —, ter sido incorporado; e, no caso do Brasil, na minha opinião, certamente isso requer aprovação pelo Congresso Nacional.
Não obstante a irregularidade formal da entrada em vigor da Decisão nº 23, de 2000, parece-me que, no mérito, a mesma elege corretamente os casos de desnecessidade de incorporação das Norma MERCOSUL aos ordenamentos nacionais, a saber: se o conteúdo da norma trata de assuntos relacionados ao funcionamento interno do MERCOSUL; e, se o conteúdo da norma já estiver contemplado na legislação nacional do Estado Membro.
O problema está na circunstância de que são os Estados Partes, por intermédio de representantes dos respectivos Executivos, que deliberam conjuntamente sobre isto, se o conteúdo da norma trata de assuntos relacionados ao funcionamento interno do MERCOSUL. A ação dos Governos deverá, então, ser muito criteriosa no tocante a esse ponto, pois existe o risco de serem dispensadas de incorporação normas que deveriam passar por esse processo, desde que elas não se atenham exclusivamente aos aspectos internos do funcionamento do MERCOSUL. Isso quanto às normas que não precisam ser incorporadas ao ordenamento jurídico nacional.
Vejamos agora as que precisam ser incorporadas. Primeiro, temos aquelas que requerem aprovação do Poder Legislativo. No caso do Brasil, requerem aprovação pelo Congresso Nacional:
1º) que revisem qualquer dispositivo contido nos instrumentos internacionais constitutivos do MERCOSUL, isto é, o chamado Direito Originário;
2º) que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional;
3º) que criem novos direitos e obrigações para os Estados Partes, não previstos em tratado preexistentes aprovados pelo Legislativo;
4º) que versem sobre matéria normativa com natureza e hierarquia de lei federal ou de tratado internacional, exigindo atos do Legislativo e do Executivo para sua inserção no ordenamento jurídico pátrio.
Freqüentemente, o próprio órgão do MERCOSUL, com capacidade decisória, atribui à norma natureza de tratado internacional, incluindo cláusula de vigência, segundo as disposições do Direito Interno — por exemplo, a Decisão nº 1, de 1991, do Conselho do Mercado Comum, que contém o antigo Protocolo de Brasília para solução de controvérsias, agora já revogado; a Decisão nº 5, de 1992, que contém o Protocolo de Cooperação e Assistência Jurisdicional em Matéria Civil, Comercial, Trabalhista e Administrativa, o chamado Protocolo de Las Leñas — e assim por diante.
Essas seriam as normas que requerem aprovação pelo Poder Legislativo.
Entramos então no tema núcleo desta discussão: as normas que precisam ser incorporadas ao ordenamento jurídico nacional, mas que não requerem aprovação por parte do Poder Legislativo.
O Protocolo de Ouro Preto, ao dispor, no Capítulo IV, sobre a aplicação interna das normas emanadas dos órgãos do MERCOSUL, dispõe que essas deverão ser incorporadas, quando necessário, aos ordenamentos jurídicos nacionais, mediante os procedimentos de cada país. Logo, o Protocolo de Ouro Preto deixa para o Direito interno a decisão sobre a forma de incorporação das Normas MERCOSUL.
Um instrumento jurídico internacional não pode, com efeito, impor aos Estados determinado processo de incorporação de normas. Esse processo, que cada Estado adota livremente, inclui ou não o assentimento do Poder Legislativo. Desde a Resolução nº 23, de 1998, do Grupo Mercado Comum, e principalmente mediante a Decisão nº 20, de 2002, os órgãos do bloco regional passaram a reconhecer a existência de normas MERCOSUL que possam ser incorporadas por via administrativa, ao lado das normas MERCOSUL que requeiram incorporação aos ordenamentos jurídicos internos via aprovação legislativa.
A Decisão nº 7, de 2003, do Conselho do Mercado Comum, finalmente instruiu o Grupo Mercado Comum para elaborar, por intermédio do Subgrupo de Trabalho nº 2, que trata de aspectos institucionais, uma análise sobre a aplicação direta nos ordenamentos jurídicos nacionais das Normas MERCOSUL que não requeiram tratamento legislativo nos Estados Partes.
Após várias reuniões dedicadas ao tema, o Subgrupo logrou a aprovação da Decisão que mencionamos desde o início, de julho passado, a Decisão nº 22.
Pertencendo ao Direito interno a faculdade de fixar quais as normas do MERCOSUL que não requerem aprovação legislativa para sua incorporação, impõe-se responder sobre se essas normas podem ou não existir no sistema jurídico brasileiro. Em caso afirmativo, quais seriam elas? O Direito brasileiro admite a existência dessas normas. São aquelas de natureza meramente regulamentar, incluídas na esfera de atribuições e competência do Poder Executivo. Sua introdução na ordem jurídica brasileira se dá por meio de decretos e de portarias. Contudo, deverão preexistir os instrumentos legislativos que assim permitam, além de o Executivo agir na órbita de suas atribuições constitucionais. Decretos, portarias do Executivo e normas emanam também do acervo legal do Congresso. Se o Executivo, por meio de decreto, atribui a alguém uma concessão, encontra-se, na verdade, executando aquilo que o Legislativo já tem disciplinado em lei. Os órgãos do Executivo brasileiro, competentes para proceder à incorporação, e os instrumentos utilizados é que variam, e muitíssimo. Há normas do MERCOSUL incorporadas por intermédio de resoluções, circulares e comunicados do Banco Central do Brasil. Há normas do MERCOSUL incorporadas por meio de resoluções da ANVISA — Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Por exemplo: o regulamento técnico do MERCOSUL para identidade e qualidade de leites fermentados; resoluções da Agência Nacional de Telecomunicações — ANATEL, tais como procedimentos de coordenação de freqüências, bandas de freqüências de transmissão, coordenação de freqüências do serviço de telefonia móvel celular — só a ANATEL pode fazer isso; portarias do INMETRO — o regulamento técnico do MERCOSUL para determinação do peso de peixes, crustáceos e moluscos; instruções normativas do Ministério da Agricultura — o regulamento técnico do MERCOSUL para métodos de análise de álcool potável de origem agrícola; portarias do Departamento Nacional de Trânsito — DENATRAN — por exemplo, uma resolução sobre inspeção técnica de veículos; instruções normativas da Secretaria da Fazenda Nacional — por exemplo, uma resolução sobre uma classificação tarifária de mercadorias. E assim por diante, entre muitos outros casos.
Todos esses órgãos do Executivo incorporam as Normas MERCOSUL no exercício de faculdades que lhes foram conferidas por leis. Há, por outro lado, Normas MERCOSUL promulgadas — e, portanto, incorporadas ao Direito brasileiro com status de tratado internacional — na forma de decreto presidencial, sem necessidade de aprovação específica do Congresso Nacional. Essa hipótese pode ocorrer nos chamados ACEs — Acordos de Complementação Econômica e todos os seus protocolos adicionais.
O Tratado de Montevidéu, de 1980, que instituiu a Associação Latino-Americana de Integração — ALADI, estabeleceu a possibilidade da celebração pelos Estados Membros de acordos de alcance regional e parcial, com vistas a criar uma área de preferências econômicas.
Os acordos regionais são aqueles de que participam todos os membros da ALADI. Os parciais são aqueles de cuja celebração não participa a totalidade dos membros. Tais acordos podem ser de várias índoles: comerciais; de complementação econômica; de promoção do comércio. Esses acordos, feitos em grande número — e muitos dos protocolos do MERCOSUL se traduzem em acordos de alcance parcial — registrados na secretaria da ALADI não precisam ser trazidos à aprovação do Congresso Nacional, porque se entende que eles são mera execução do Tratado de Montevidéu, de 1980, que criou a ALADI e que, portanto, é prevista a celebração desses acordos. Então, por meio de decretos, o Presidente da República introduz no ordenamento jurídico nacional esses acordos.
Então, senhoras e senhores, como vamos implementar a decisão do Conselho do Mercado Comum nº 22, de 2004, no Direito brasileiro?
Essa decisão implica, para o Brasil, primordialmente, o dever de criar no Diário Oficial da União uma seção, ou um título especial, para a publicação das Normas MERCOSUL. Essa providência, evidentemente, pode ser adotada através de decreto e possui notório valor: resultará no fim da dispersão da publicação das normas emanadas dos órgãos do MERCOSUL que não requeiram aprovação legislativa em títulos diferentes do espaço reservado aos atos do Poder Executivo no Diário Oficial da União, o que facilita muito a divulgação, o conhecimento e a aplicação dessas normas.
A decisão do Conselho do Mercado Comum não estabelece a forma de que se revestirão as referidas Normas MERCOSUL no Direito nacional. Assevera, expressamente, que estas serão publicadas de acordo com os procedimentos internos de cada Estado Membro. Logo, no Brasil, as Normas MERCOSUL que não requeiram aprovação legislativa deverão continuar a ser publicadas sob a forma de decretos, portarias, resoluções, circulares, comunicados, instruções normativas etc., segundo a competência constitucional ou legal dos órgãos incumbidos de editá-las. Esses atos podem tornar sem efeito, a partir da sua entrada em vigor, outras normas nacionais anteriores em contrário, de igual ou menor hierarquia, desde que a revogação seja expressamente mencionada.
Nós não podemos fazer mais uma revogação genérica. Desde que entrou em vigor a Lei Complementar nº 95, de 1998, regulamentada pelo Decreto-Lei nº 4.176, de 26 de março de 2002, nós precisamos mencionar as normas que estão sendo revogadas expressamente. Acabou aquela fórmula tão conhecida: "revogam-se as disposições em contrário". Então, é preciso mencionar expressamente as normas que estão sendo revogadas.
A aplicação direta no ordenamento jurídico brasileiro pela simples publicação no Diário Oficial da União das decisões, das resoluções, das diretrizes do MERCOSUL que não requeiram aprovação legislativa não me parece possível no regime brasileiro atual de vigência de normas jurídicas. Aceitar que as normas emanadas dos órgãos do MERCOSUL com capacidade decisória ingressem diretamente no sistema jurídico brasileiro, sem qualquer medida nacional de recepção ou incorporação, como ocorre na União Européia, não é possível sem que antes façamos uma reforma constitucional.
Os aspectos meramente de procedimento estabelecidos pela Decisão nº 2.204 podem ser adotados por decreto. É lícito, na configuração adotada presentemente pela ordem jurídica nacional, agilizar o processo de incorporação mediante um trâmite mais expedito e mais centralizado. Então, é perfeitamente possível, porque nós sabemos que, a partir da Emenda Constitucional nº 32, de 11 de setembro de 2001, o Presidente da República pode dispor, mediante decreto, sobre a organização e o funcionamento da Administração Federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de cargos públicos, conforme disposto no art.84, inciso VI, da Constituição Federal. Como se sabe, pela redação original da Constituição, o Presidente podia dispor sobre a organização e o funcionamento da Administração Federal apenas na forma da lei. Agora, nesses casos pontuais, ele pode dispor sobre isso por meio de decreto. Então, o Presidente pode, efetivamente, por decreto, estabelecer um regime mais célere, mais expedito para incorporação das normas. Pode, por exemplo, centralizar, digamos, na Casa Civil da Presidência da República, com a participação do Ministério das Relações Exteriores. Mas não vejo como, efetivamente, as normas possam entrar diretamente no ordenamento jurídico brasileiro, considerando a forma como atualmente está o nosso sistema jurídico, a não ser que seja por emenda constitucional. Elas teriam de passar por um trâmite mais célere. É muito oportuna a criação de uma seção própria no Diário Oficial da União. Mas, por enquanto, elas terão de continuar adotando a forma, como citei, de decretos, portarias, instruções normativas, e assim por diante.
Estou às ordens dos senhores para qualquer esclarecimento. Agradeço muito pela oportunidade que me foi dada de participar deste painel. Muito obrigado! (Palmas.)
O SR. COORDENADOR (Bruno de Risios Bath)
— Agradecemos ao Dr. Antônio Paulo Cachapuz de Medeiros a sua exposição.
Passo a palavra ao Dr. Márcio Garcia, Diretor-Adjunto do Departamento de Cooperação Jurídica Internacional, do Ministério da Justiça, que apresentará o tema "A Constituição Federal e Aprovação de Tratados".
O SR. MÁRCIO GARCIA
— Sr. Ministro, colegas de Mesa, Prof. Cachapuz, Dr. João Ricardo, Dr. Valdir, senhoras e senhores, quero de início agradecer de modo especial o convite a mim formulado pelo Deputado Dr. Rosinha e pelo seu status na Comissão Parlamentar Conjunta, da Seção Brasileira. É motivo, para mim, de muita alegria, e é uma grande responsabilidade estar aqui compartilhando esta Mesa e as palestras proferidas.
O tema que ora apresento tem atrás de si alguma história: "A Constituição Federal e Aprovação de Tratados". Não me animei a produzir material escrito, como meus antecessores, por inúmeras razões; quem sabe, a mais importante delas seja o fato de sobre este tema nós termos uma obra — e a estou vendo aqui ao vivo —, que é a tese do Prof. Cachapuz, na USP, sobre o poder de celebrar tratados. Então, ali vamos encontrar uma notícia muito boa da história da participação das Casas Legislativas nas relações internacionais na vertente que toca a aprovação dos tratados, desde sua origem, passando pelo histórico das Constituições brasileiras, desaguando na Constituinte de 1988, no texto que, por fim, foi produzido.
De todo modo, eu não poderia deixar de falar, ainda que rapidamente, da origem histórica da participação do Parlamento na aprovação dos tratados, tema este que me foi ofertado.
Poderíamos citar a Paz de Westfalia, em que se tem a idéia do soberano indivíduo, como sendo ele o único senhor. E na linha do constitucionalismo de matriz anglo-saxã, em que o rei não erra, "the king can do no wrong", se o rei não erra, ele não precisa de ninguém para lhe dizer o que fazer ou não fazer. Essa inspiração ainda hoje tem reflexos; parece ser algo distante, mas na imunidade e jurisdição dos Estados estrangeiros há essa idéia de que o rei não erra.
Essa leitura começa a mudar com o desdobramento e o surgimento do Estado-Nação, com uma nova leitura que provavelmente se apresenta de modo mais enfático em 1776, nos Estados Unidos e posteriormente na França, quando o Parlamento passa a ter maior dimensão e importância. E no campo internacional essa dimensão e importância se colocam quando da apreciação daquilo que o Executivo produziu e negociou na cena internacional. A competência das negociações continua a ser do Executivo, é competência privativa, que pode até ser delegada, mas é do Poder Executivo. E o Parlamento, representante do povo, tem a prerrogativa de abonar, de chancelar, de aprovar o que foi produzido pelo Executivo. É o momento de controle das relações internacionais, do que foi produzido pelo representante do Executivo na cena internacional.
Essa participação é extremamente importante. Às vezes temos uma leitura de que se trata de certa ditadura do Executivo, ou seja, ele é o grande negociador e negocia como melhor lhe apraz. Posteriormente, passa pelo Congresso. Historicamente isso se passava sem maiores desdobramentos. Se fizermos uma leitura histórica no Parlamento brasileiro do número de tratados aprovados desde a independência até o romper dos anos 90, nos daremos conta de que nos últimos 8 anos o Congresso aprovou muito mais tratados do que em todo o período citado. Isso é um reflexo dos tempos e da cena internacional nos dias de hoje; é um reflexo de algo que passou a dar voto.
É uma coisa interessante. Vim de São Paulo hoje pela manhã, razão pela qual não cheguei aqui mais cedo. Vim conversando com o motorista de táxi, o grande interlocutor, a pessoa que exprime sua opinião e tem sempre alguém ali com pontos de vista distintos. Geralmente dou uma palavra chave e aperto a tecla Enter. E sempre vem algo. MERCOSUL, o que o senhor acha? Enter. ALCA? Enter. E ele já tem uma opinião. Hoje, pela manhã, foi a OMC. Apertei o botão Enter e ele conseguiu falar do centro de São Paulo até o aeroporto de Congonhas, quase 45 minutos, de OMC.
É uma coisa assombrosa. Essas palavras já estão no vocabulário e no imaginário popular. Isso, obviamente, convida a atenção desta caixa de ressonância que é o Parlamento. Isso chama a atenção, e ainda que não nos demos conta disso, nossa vida está sempre muito permeada pelos fatos que acontecem no cenário internacional. Se fizermos uma leitura não muito distante no tempo, quando Abraham Lincoln foi assassinado, a Europa só teve a notícia 15 dias depois. Quando a Bolsa caiu em Singapura, em 1994, 15 segundos depois Nova Iorque sabia. Pode-se perguntar o que temos a ver com isso, mas 24 horas depois o valor do cheque especial aumentou. Hoje, 15 segundos já é muito tempo. Quando o avião entrou no prédio em Nova Iorque, nós assistimos imediatamente.
Recordo-me do grande José Saramago, quando diz: que mundo é este em que quando alguns poucos ganham muito eu não ganho nada, mas quando eles perdem eu também estou perdendo. Enfim, é esse o mundo que convida a atenção dos representantes do povo no Parlamento. É o momento em que o Congresso Nacional é chamado a fazer a aferição daquilo que foi negociado no plano internacional pelo Poder Executivo.
De sua parte, o Executivo começa a ficar consciente de que o ônus e o bônus dessa negociação, se outrora era algo que não chamava muita atenção, hoje tem inúmeros desdobramentos. E ele também vê com bons olhos aqui e ali essa perspectiva de ainda na fase de negociação já ter a seu lado a sociedade civil, o que é algo absolutamente importante. Quer dizer, a última palavra caberá a ele, mas é importante ter um termômetro do lado. Por exemplo, no campo empresarial, a participação da CNI. No caso do MERCOSUL, o foro que representa estratos da sociedade civil que vão dar ao Executivo algum norte para que ele possa melhor se posicionar em relação às hipóteses em que o Congresso tem de aprovar o que foi negociado no plano internacional.
Então, temos alguma história, que passa pela democratização da condução da relações internacionais, democratização essa instrumentalizada pelo controle parlamentar do que foi negociado na cena internacional. Esse arcabouço jurídico, que dá o tom de quem negocia, que dá o tom da exata participação do Congresso, tem assento na Constituição. São normas constitucionais que dão os exatos marcos, os exatos contornos do modo de proceder não só do Presidente, como também do Parlamento.
Eu não sou crítico da Constituição, pois acho que ela teve o seu momento histórico. Temos de fazer a sua leitura de acordo com a época em que foi produzida, no final dos anos 80. Voltar aqui ao Congresso Nacional para mim é sempre motivo de redobrada alegria. Eu era aluno da UNB e vi a Constituição nascer; vinha a esta Casa assistir aos debates. Aquele foi um momento ímpar.
Mas com relação ao Direito Internacional, sobretudo no que tange à questão dos tratados internacionais, tivemos avanços um pouco tímidos em relação a temas que, sabedor da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal em relação a um desses temas, penso que o legislador constituinte poderia ter avançado um pouco mais. E esse avanço, fruto de um momento histórico, teria um desenho distinto se a Assembléia Constituinte tivesse elaborado a Constituição em 1989, 1990 ou 1991.
Fundamentalmente, temos dois dispositivos: um que diz da competência exclusiva do Congresso Nacional — art. 49, inciso I:
"Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional:
I - resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional;"
Nesse ponto já nos defrontamos com uma mentira, que é o "resolver definitivamente". O Congresso resolve definitivamente somente se ele não aprova, mas se ele aprova, a palavra final ainda será do Executivo, que pode, diante do decreto legislativo de aprovação, tomar a providência de ratificar, no plano internacional, e de promulgar, no plano interno. Se ele fosse resolver definitivamente, em todos os sentidos, num espectro mais amplo, o decreto legislativo de aprovação já incorporaria num ordenamento interno aquele tratado.
Depois nós temos aqui a expressão "encargos ou compromissos gravosos". Estamos aqui na sala dedicada ao nobre Deputado Franco Montoro, que nas suas aulas na USP dizia que a coisa mais difícil é a interpretação da lei.
Por exemplo, um cidadão chega na estação do metrô e vê escrito: "Proibida a entrada de cão". Logo chega um cego com um cachorro guia. O intérprete da lei, a autoridade policial — e se estiver armado sente-se mais imbuído, com aquele escudo no peito — diz: "O senhor não pode entrar". "Por que não posso entrar?" "Porque ali está escrito que é proibida a entrada de cão". Em seqüência, vem um cidadão do Circo Garcia, que infelizmente não mais existe, com um urso, mal cheiroso etc. O guarda lhe diz que não pode entrar porque é proibida a entrada de cão. E ele diz que não está levando cão, mas um urso. Vejam os senhores: ele teria de deixar entrar o urso e não deixar entrar o cão. Se fizermos uma interpretação nessa linha, entraríamos em algo surrealista.
Mas era o exemplo que dava o saudoso Franco Montoro nas suas aulas ao tratar do trabalho do intérprete.
Como interpretar a expressão "encargos e compromissos gravosos ao patrimônio nacional"? Uma obrigação de não fazer pode ser um encargo. E aí ficamos numa situação absolutamente dramática porque, ao fim do dia, eu poderia chegar, com uma leitura um pouco exagerada, e dizer que tudo que cria encargo ou compromisso gravoso tem de passar pelo Congresso Nacional. Nesse caso, o Congresso Nacional não iria fazer mais nada porque, só no âmbito do MERCOSUL — o Prof. Cachapuz deu alguns exemplos —, se toda a normativa que passou por portarias e por decretos tivesse de passar pelo Parlamento, a Casa, que já tem muito trabalho, teria de se desdobrar em trabalhos sem fim.
Depois, nessa linha, a competência do Presidente de negociar o tratado, que também diz do tema da aprovação.
"Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:
..................................................................................
VII- manter relações com Estados estrangeiros e acreditar seus representantes diplomáticos.
VIII - celebrar tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional;"
Vemos que sempre que se cuidar de tratado, em princípio, o Congresso deve manifestar-se. E o legislador constituinte cometeu, em relação a esse tema, alguns equívocos ou algumas superabundâncias nessa nomenclatura. Por exemplo, ele fala aqui em "tratados, convenções e atos". No art. 49 diz que compete ao Congresso Nacional resolver sobre "tratados, acordos ou atos". Então, se for uma convenção não é preciso ouvir o Congresso. Pode-se fazer uma interpretação ainda mais canhestra. Se for protocolo, não há previsão constitucional. E a superabundância terminológica vai levar o leitor desavisado a erro.
Na verdade, se há acordo formal, escrito, concluído entre sujeitos do Direito internacional, que podem ser Estados, organizações internacionais, a Santa Sé e, em algumas situações, os indivíduos — mas estes jamais para celebrar um tratado, pelo menos até hoje —, e que produza efeito jurídico, é um tratado e deveria passar pelo Congresso Nacional. Ocorre que essa é uma realidade do final dos anos 80. Temos algo novo diante dos olhos, algo que surgiu em 1991, com o Tratado de Assunção sobre o Mercado Comum do Sul — MERCOSUL, que vai ganhar sua institucionalização com o Protocolo de Ouro Preto, que cria uma nova organização internacional baseada no Direito Internacional clássico.
Essa é uma observação importante, porque se não entendermos assim, poderemos criar outros problemas. Isso é extremamente importante. Cuida-se de uma organização internacional que não é supra-estatal, por exemplo, conforme mencionado pelo Prof. Cachapuz, em relação à União Européia e às comunidades econômicas européias, em que se tem o primado da supremacia desse ordenamento jurídico e a aplicabilidade direta dessas decisões emanadas no âmbito da União Européia. Isso não se reproduz do mesmo modo no MERCOSUL.
Avançamos muito, temos ainda muito a avançar. No caso do MERCOSUL, o Prof. Cachapuz já fez menção ao protocolo de Ouro Preto em algumas passagens que remetem ao ordenamento jurídico interno. Por exemplo, fazendo uma recapitulação e insistindo um pouco na linha de raciocínio do Prof. Cachapuz, diz o art. 32, referente à competência da Secretaria Administrativa do MERCOSUL, inciso IV:
"IV - Informar regularmente os Estados-Partes sobre as medidas implementadas por cada país para incorporar em seu ordenamento jurídico as normas emanadas dos órgãos do MERCOSUL;"
Quer dizer, a idéia da incorporação.
Mais adiante, temos o famoso art. 40:
"Uma vez aprovada a norma, os Estados-Partes adotarão as medidas necessárias para a sua incorporação ao ordenamento jurídico nacional"(...)
Depois, art. 42:
"As normas emanadas dos órgãos do MERCOSUL previstos no Artigo 2 deste Protocolo terão caráter obrigatório e deverão, quando necessário, ser incorporadas aos ordenamentos jurídicos nacionais mediante os procedimentos previstos pela legislação de cada país".
Esses procedimentos previstos, no nosso caso, remeterão ao texto constitucional. Essa é uma leitura, talvez na linha de Bobbio, mais pessimista. Bobbio dizia que o pessimismo é um dever civil, pois quem teme o pior deseja o melhor. É preferível entender assim, para ver o que precisamos fazer para avançar em relação à normativa do MERCOSUL.
Mais uma vez, cito Saramago: não tenha pressa, mas não perca tempo. Se tivermos pressa e passarmos por cima do que está na Constituição, poderão surgir problemas. Quais os caminhos, as saídas? Qual a luz no fim do túnel? Essa é a linha do discurso com o qual o Prof. João Ricardo nos brindará daqui a instantes.
Tratados e aprovação desses tratados. O marco jurídico muito presente é o texto constitucional. Interpretar o texto para qualquer saída que abstraia a apreciação do poder parlamentar pode ser um problema mais adiante. Poderá alguém dizer que essa norma foi incorporada, não passou pelo beneplácito, não teve a chancela congressional e por isso há uma inconstitucionalidade formal, o que põe por terra toda uma construção jurídica importante.
Por outro lado, imaginar que ficaremos amarrados a esse modelo também pode inviabilizar o adensamento desse mercado comum, do MERCOSUL, dessa união aduaneira, o que também engessaria o avanço da maior institucionalização do bloco. Então, ficamos em uma situação em que, confesso, estou um pouco perplexo: como sairmos dela?
Fazendo uma leitura da Constituição, verificamos que ela não dá maiores pistas. Talvez pudéssemos atribuir à Comissão Parlamentar Conjunta poderes não só opinativos, mas terminativos. Esta Comissão exprime, de algum modo, o que diz a Carta, ou seja, compete ao Congresso Nacional. Na composição da Comissão, há representantes das duas Casas do Parlamento. Quem sabem poderíamos dar poderes terminativos ao trabalho da Comissão. Imagino que isso não precisaria, havendo boa vontade, de uma alteração no texto constitucional, o que demandaria tempo.
Há poucos dias, conversei com um Ministro do Supremo Tribunal Federal da nova safra. Tenho especial apreço por aquela Casa, onde tive a oportunidade de trabalhar durante um período, mas em relação ao Direito Internacional, até recentemente, ela parecia o inferno de Dante Alighieri naquele portal do inferno: deixai de lado toda a esperança aquele que entra. O Direito Internacional era como uma madrasta.
A culpa não é necessariamente do Supremo Tribunal Federal, mas da formação das pessoas, que não estudaram necessariamente Direito Internacional, que era considerado uma perfumaria jurídica. Mas novos ventos sopram no Tribunal. Não se trata de criticar o passado, pois devemos entender isso com os olhos das pessoas que julgavam naquele momento, mas também com os ventos dos dias de hoje.
Então, o Ministro me disse que ficava perplexo porque, com muito menos do que temos na Constituição, inúmeros tribunais constitucionais da Europa conseguiram salvar a União Européia. Isso me animou, deu-me novo oxigênio. Se, algum dia, cair numa mesa judiciária alguma indagação nessa área, provavelmente o Tribunal dará nova interpretação.
Mas ficaríamos, ainda assim, a depender de um caso concreto e de um quorum mínimo para levar avante uma nova leitura ou interpretação pelo menos no que diz respeito às normativas do MERCOSUL.
O melhor exercício seria alguma alteração legislativa, se fôssemos originais o suficiente, para não ferir a Constituição. Fazer isso com o ordenamento infraconstitucional seria muito apropriado, porque demanda menor dispêndio de energia. Não sendo assim, teríamos de alterar a Constituição, como fizeram os argentinos, de modo apropriado, em 1994, deixando as coisas bem claras.
Por exemplo, a Constituição é silente quanto à estatura do tratado internacional incorporado. No Brasil, o Supremo atribui a mesma estatura de lei ordinária. Isso é um problema. Hoje, no mundo, fazendo uma análise de Direito comparado, verificamos que na maioria dos países os tratados internacionais são supralegais e infraconstitucionais, ou seja, a estatura é acima das leis, mas abaixo da Constituição. E nós, por interpretação jurisprudencial mantida após 1988, temos a leitura de que tem a mesma estatura da lei. Na Argentina, em 1994, foi feita essa modificação; com base na reciprocidade, emprestaram uma estatura. Diz o texto da Constituição argentina, inciso XXIV, art. 75: aprovar tratados de integração que deleguem competências e jurisdição a organizações supra-estatais, em condições de reciprocidade e igualdade e que respeitem o ordenamento democrático e os direitos humanos.
Provavelmente, há aqui uma pista para uma eventual alteração no texto constitucional.
Em relação ao tema Constituição Federal e Aprovação dos Tratados, minha leitura, acompanhando provavelmente parcela muito significativa, é essa. Uma pergunta que se fez, sobretudo com o advento da Constituição de 1946, relativamente àquelas hipóteses dos acordos executivos, foi como isso é possível no Brasil. Quer dizer, um tratado internacional carente, que não necessita da aprovação do Congresso. Essa pergunta foi objeto de polêmica interessante, descrita muito bem pelo Prof. Cachapuz, no Poder de Celebrar Tratados, e pelo Prof. Rezek, no Direito dos Tratados. Houve uma polêmica entre os Profs. Hildebrando Acioli e Valadão sobre a hipótese de um tratado internacional não precisar passar pelo Congresso. Acioli, por sua formação de jurista, diplomata, homem com os pés no chão, com boa dimensão da cena internacional, vendo o reflexo e a importância disso no plano interno, rapidamente percebeu que em algumas áreas específicas poderia haver esse tipo de tratado, como mencionou o Prof. Cachapuz, no caso de matérias de exclusiva competência do Executivo, subprodutos de tratados já em vigor, desde que não produzissem ônus para o Tesouro, enfim, algumas hipóteses. O Prof. Valadão, também um grande internacionalista e Consultor do Ministério das Relações Exteriores, disse que não, que, à luz do texto constitucional, tudo tem de passar pelo Congresso Nacional. Essa interpretação é datada.
Fiz Relações Internacionais e, depois, Direito, na UnB. Havia uma matéria chamada Estatística Aplicada. Não entendia por quê, mas era uma matéria dificílima. Hoje me dou conta da importância dessa matéria. Contra fatos, não há argumentos; contra números, também. Se fizermos esse exercício — e essa coleta atribuímos aos alunos —, ou seja, o que o Congresso fez na última Legislatura, vamo-nos dar conta de que quase um quarto de sua produção foi de aprovação de decretos legislativos de tratados internacionais. Desse um quarto, não me surpreenderia se a grande maioria fosse de normativas do MERCOSUL da maior importância para o nosso relacionamento dentro do bloco.
Estamos em dívida com relação aos demais países. Infelizmente, não estamos sozinhos. Nossos vizinhos também têm lá seus problemas em relação à incorporação, mas estou seguro, com a minha leitura da vida como ela é, de que o João Ricardo poderá dar um tom de como as coisas possam vir a se dar num tempo não muito distante do qual nos encontramos.
Agradeço a todos a atenção e coloco-me à disposição para eventual debate. (Palmas.)
O SR. COORDENADOR (Bruno de Risios Bath)
- Agradeço ao Dr. Márcio Garcia a exposição.
Antes de passar a palavra ao próximo expositor, lembro que a inscrição para o debate está aberta, para quem quiser, ao final das exposições, fazer alguma pergunta ou tecer algum comentário.
O Dr. Valdir Vicente de Barros terá de se ausentar. Despeço-me de S.Sa. e agradeço sua participação. (Palmas.)
Com a palavra o Sr. João Ricardo Carvalho de Souza, Consultor Legislativo da Câmara dos Deputados, que apresentará o tema O Avanço Constitucional para Recepção Imediata das Normas do MERCOSUL. Tenho certeza de que S.Sa. jogará uma luz sobre as questões levantadas pelo orador anterior.
O SR. JOÃO RICARDO CARVALHO DE SOUZA - Exmo. Sr. Ministro Bruno de Risios Bath, Chefe da Divisão do Mercado Comum do Sul do Ministério das Relações Exteriores, mediador deste painel, por intermédio de quem cumprimento todos os ilustres colegas de Mesa, distinta platéia, minhas primeiras palavras são de agradecimento ao Deputado Dr. Rosinha pelo honroso convite que me foi formulado para participar deste painel.
Hoje, pela manhã, tivemos a oportunidade de ouvir, ao início da exposição do meu dileto amigo Prof. Jorge Fontoura, com quem já tive a oportunidade de dividir outras mesas de debate, uma observação sobre o MERCOSUL real e o dos sonhos. O tema que abordarei, O Avanço Constitucional para Recepção Imediata das Normas do MERCOSUL, situa-se dentro do campo do MERCOSUL dos sonhos. Por isso, toda vez que o Prof. Jorge Fontoura tece esse comentário, fico procurando uma frase que possa exprimir como me sinto. Finalmente, encontrei: sinto-me o próprio nefelibata falando sobre tema onírico, ou seja, estou nas nuvens, falando de algo que não existe.
Na verdade, não é bem assim. Por que há essa preocupação com a recepção imediata das normas do MERCOSUL? Por uma questão de segurança das relações que devem ocorrer dentro do MERCOSUL. Realmente, a idéia de uma recepção imediata das normas do MERCOSUL está muito associada a uma comparação que se faz entre MERCOSUL e União Européia.
Por isso, minha exposição será dividida em duas partes. Na primeira, tratarei dos elementos que distinguem a União Européia do MERCOSUL e que nos induzem, muitas vezes, a pensar nessa recepção imediata. Na segunda parte tratarei dos avanços constitucionais — e aí me permitiria fugir um pouco do tema e modificá-lo — para aperfeiçoamento da recepção das normas do MERCOSUL.
O que caracteriza a União Européia como um processo de integração completamente distinto dos demais processos de integração desenvolvidos tanto no continente americano, como em diversas outras tentativas do continente europeu? O surgimento de um novo conceito em termos de Direito, chamado Direito Comunitário, que muitos entendem ter sido mera construção jurisprudencial do Tribunal de Justiça do MERCOSUL, posição da qual discordo, com a devida vênia de todos os autores que a defendem, porque entendo que o surgimento do Direito Comunitário deveu-se a uma conjugação de 3 fatores específicos.
O primeiro fator é a previsão específica, nos textos constitucionais dos países que integram a União Européia, de dispositivos que possibilitavam a transferência do exercício de poderes soberanos por organismos supranacionais.
O segundo elemento essencial foi a existência, a previsão, no Tratado da Comunidade Econômica Européia, da obrigatoriedade de cumprimento das normas emanadas da Comunidade Econômica Européia pelos países dela integrantes.
Por fim, o terceiro elemento — aí, sim, entra a participação do Tribunal de Justiça das Comunidades Européias —, quando ele nada mais fez do que, interpretando o conteúdo do tratado, a adesão política, a vontade política dos que integravam a União Européia, a vontade política de efetivamente atribuir a um órgão supranacional o exercício desses poderes soberanos.
No Direito Comunitário poderíamos destacar 4 características básicas, que determinam a singularidade desse ramo específico do Direito, que não se confunde com o Direito Internacional clássico e com o Direito de Integração, que é o que temos no âmbito do MERCOSUL.
A primeira característica é a chamada primazia das normas de Direito Comunitário. O que isso quer dizer? Peço desculpas àqueles que já têm maior intimidade com o tema, mas como observo que há muitos estudantes presentes, estou apenas procurando inicialmente fazer um nivelamento para podermos avançar na segunda etapa. Essa primazia das normas de Direito Comunitário significa que as normas emanadas da comunidade, no caso da União Européia, em matéria comunitária tem primazia sobre a norma infraconstitucional dos países e até sobre a própria norma constitucional dos países.
Essa característica está ou poderia estar presente no MERCOSUL? Não, de forma alguma. Por quê?
Vamos começar pelo caso brasileiro. A questão da primazia dos tratados sobre a norma infraconstitucional. O Brasil tem uma evolução da metade do século XX até o início da década de 70 do século passado em que, inicialmente, entende que o tratado tem primazia sobre a norma interna e, portanto, ele não poderia ser revogado por uma lei brasileira. Esse entendimento foi firmado no julgamento das Apelações Cíveis nºs 7.872/43 e 9.587/51. Depois tivemos uma representação sobre a Convenção 110, da Organização Internacional do Trabalho, quando também foi entendido que ingressando essa norma ela não poderia ser modificada posteriormente por lei.
No entanto, em 1969, houve o julgamento chamado leading case, da mudança de entendimento sobre a primazia do tratado sobre a norma interna, o Recurso Especial nº 80.004, que tratava da lei do cheque, ou seja, da convenção que versava sobre o cheque que tinha dispositivos que entraram em contradição com uma lei feita pelo Estado brasileiro. No julgamento desse recurso extraordinário, firmou-se o entendimento, que persiste até hoje, de que uma norma interna pode revogar um tratado. E ao revogá-lo, vem a sanção internacional peculiar ao descumprimento do tratado. Mas sob o ponto de vista do ordenamento jurídico interno, prevalece a norma pelo princípio temporal, ou seja, a norma mais nova revoga a mais antiga.
Esse entendimento avança mais um pouco num julgamento recente, na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.480, em que se tratava da Convenção 158 da OIT, que disciplinava o tratamento do despedimento arbitrário dos trabalhadores &mdashmat;éria reservada pela Constituição, nos termos do art. 7, inciso I, à lei complementar. Entendeu o Supremo Tribunal Federal que um tratado, por ingressar no ordenamento jurídico em nível de lei ordinária, não poderia disciplinar matéria reservada pela Constituição à lei complementar; ou seja, reforçou-se a idéia de que os tratados, dentro do ordenamento jurídico brasileiro, têm nível de lei ordinária, portanto, podem ser revogados por outra lei ordinária e não podem tratar de matérias reservadas para a lei complementar.
No que diz respeito à Constituição, nenhuma dúvida. Não podem, de forma alguma, ofender o texto constitucional. Essa é a situação no caso brasileiro.
Como ocorre no Uruguai? Pior ainda. Lá, reconhece-se a soberania nacional e não a popular, como no caso brasileiro, e reserva-se à nação uruguaia o direito exclusivo de estabelecer lei, portanto, não há qualquer hipótese de ingresso direto no ordenamento jurídico uruguaio de qualquer norma do MERCOSUL.
A Constituição do Paraguai dá aos tratados posição hierarquicamente superior à das leis e admite a ordem jurídica supranacional.
A mais avançada, como disse o Prof. Márcio, é a da Argentina, que não é uma Constituição rígida, pode ser alterada pelo mesmo processo de elaboração de lei. A Constituição argentina define a própria Constituição, as leis e os tratados como leis supremas da nação. Portanto, um tratado que seja incorporado ao ordenamento jurídico argentino pode modificar a própria Constituição do país.
A segunda característica é a aplicabilidade direta. O que é isso? As normas da União Européia não precisam, de forma alguma, ser inseridas no ordenamento jurídico nacional por qualquer espécie.
Não sei se os senhores sabem que aqui temos duas correntes, a monista e a dualista. A monista diz que, uma vez em vigor, a norma internacional automaticamente submete o país. Já a dualista estabelece que é preciso repetir sob a forma de lei o que está disposto em tratado internacional para que ele possa vigorar internamente no país.
O caso brasileiro é, como sempre, um tertium genius: o Supremo chama de monista moderado; eu chamo de dualista preguiçoso. Monista moderado porque um decreto insere no ordenamento jurídico todo o texto do tratado sem necessidade de fazer uma lei. Eu chamo de dualista preguiçoso porque não teve o trabalho de fazer a lei e por decreto simplesmente insere o texto do tratado no ordenamento jurídico, em nível de lei nacional.
A aplicabilidade direta é o seguinte: no momento em que a norma é baixada, é automaticamente aplicável aos países que integram a União Européia. Não é o caso brasileiro, porque, como já foi dito aqui, o Protocolo de Ouro Preto, em seu art. 38, diz que é necessário adotar medidas para o cumprimento das normas do MERCOSUL pelos países que o integram.
Então, não há aplicabilidade direta, muito menos efeito direto, que significaria poder em juízo citar uma norma da União Européia para dar fundamento a direito que se esteja pleiteando no Judiciário do país. Não é o caso, porque o art. 42 do Protocolo de Ouro Preto diz que essa norma tem de ser incorporada, nos termos previstos na legislação de cada país, para poder ter eficácia.
Por fim, a última característica do Direito Comunitário é a possibilidade de alegação ou aplicabilidade pelos juízes nacionais. Ainda que a parte não questione, não fundamente o seu pedido numa norma de Direito Comunitário, o juiz, porque tem a obrigação de conhecer todas as normas — e o juiz que integra a Comunidade Européia é juiz nacional e juiz da comunidade, portanto, tem a obrigação de conhecer as normas nacionais e as normas das comunidades européias —, pode aplicar a lei para decidir um caso.
No Brasil temos o exemplo de um caso ocorrido no Rio Grande do Sul, conhecido como caso Leben. O Rio Grande do Sul isentou de ICM o produtor de leite nacional e não estendeu o benefício para o produtor de leite uruguaio. Com base no tratado do MERCOSUL, o produtor uruguaio pleiteou fosse afastada a restrição que lhe havia sido imposta. A juíza que julgou o caso deu uma decisão favorável ao pleito, fundamentada no Tratado de Assunção. Na verdade, ela usou essa fundamentação porque quis; poderia ter verificado nas normas nacionais que não se pode fazer distinção de ICMS pela origem do produto. Resolveria o problema sem precisar se valer das normas para o MERCOSUL. Mas como o MERCOSUL estava em grande crescimento naquela época, ela mostrou seu conhecimento e aplicou corretamente a norma. Esse é o único caso em que se aplicou norma do MERCOSUL para resolver um problema jurídico nacional. E não sei, porque ainda não havia sido julgado pelo Tribunal, se a decisão da juíza foi mantida.
São essas as características que distinguem o Direito Comunitário do Direito de Integração, que é o direito do MERCOSUL. Com base nelas, tenho o que se chama de recepção imediata — na verdade, não é recepção, é aplicação imediata dessas normas. Como já vimos, isso não se repete no MERCOSUL.
Quais são as fontes de direito do MERCOSUL? Como já ensinou o Prof. Cachapuz, o direito no MERCOSUL se divide em duas categorias: o chamado Direito Originário ou Primário, que são os tratados, protocolos, acordos ou convenções; e o Direito Derivado ou Secundário, que são as decisões, as resoluções, as diretrizes, as propostas e as recomendações. São 2 categorias distintas. O Direito Primário constituiria o que poderíamos chamar de uma constituição não-codificada do MERCOSUL, ao passo que o Direito Derivado ou Secundário seriam as "normas infraconstitucionais" — entre aspas — do MERCOSUL.
Outras fontes previstas pelos tratados: princípios de Direito Internacional, de eqüidade e de justiça.
Isso é o que existe em termos de estrutura do ordenamento jurídico do MERCOSUL. E aqui começam os nossos problemas, exatamente porque, para um processo de integração ser levado a efeito sem solavancos, é necessário que as normas desse processo tenham validade, no menor tempo possível, para os países que dele fazem parte. E como essas normas dependem de incorporação ao ordenamento jurídico interno dos países, há um atraso que se reflete no próprio processo de integração, haja vista que não chegamos sequer a completar a união aduaneira. O MERCOSUL parou numa união aduaneira imperfeita, muito embora o próprio Prof. Jorge já tenha dito que o nome "Mercado Comum do Sul" é meramente marketing, porque nunca se teve a intenção de fazer um mercado comum, uma vez que isso implica direito comunitário e compartilhamento de soberania.
Estamos, então, diante desses 2 problemas.
Passo especificamente ao tema que me foi dado para comentar: os avanços constitucionais para melhorar o processo de recepção das normas do MERCOSUL no ordenamento jurídico brasileiro.
Pela descrição do ordenamento e das características do Direito de Integração, que são distintas das do Direito Comunitário, vemos que há necessidade de 2 procedimentos distintos — e aqui vou falar como o Prof. Cachapuz e o Márcio, não como Consultor Legislativo da Câmara, mas como professor de Direito Constitucional. Aliás, somos uma ilha de Direito Constitucional cercada por um mar de internacionalistas e, o que é pior, um mar de vital importância na rota do Direito Internacional e uma ilha rochosa e destituída de vegetação. Vou apresentar sugestões que possam ser adotadas para se aperfeiçoar o processo.
Retornando um pouco ao que disse o Prof. Cachapuz sobre a última decisão do Conselho do Mercado Comum, que trata da recepção imediata, diz a decisão que aquilo que for interno ao MERCOSUL não é preciso incorporar — perfeito; é interno, não vai produzir efeitos externos, não tem problema nenhum. E mais, aquilo que já estiver previsto na lei não é preciso incorporar.
Vamos pensar um pouco. Isso me lembra muito o inciso I do art. 20 da Constituição, que trata dos bens da União. Diz o seguinte:
"Art. 20. São bens da União:
I — os que atualmente lhe pertencem e os que lhe vierem a ser atribuídos;"
Irrefutável: são normas que não precisam incorporar as que não serão aplicadas no próprio país, porque são aplicadas no MERCOSUL, e as que já se têm no país. Mas aqui surge um problema: e se mudarmos a norma do país e ela entrar em conflito com essa que não é preciso incorporar?
No Brasil discutem-se emendas constitucionais. Imaginem o quanto se vão discutir normas que não precisamos incorporar e que, em tese, são aplicadas como se fossem leis.
É preciso dar segurança, porque, quando raciocinamos, não como nefelibatas, mas no campo do ideal, esquecemos que efetivamente existe um mundo real que depende de regras claras. Tanto o trabalhador do Fórum Econômico e Social quanto o empresário precisam de regras claras. Quem vai investir dinheiro numa norma que amanhã poderá ser mudada por um procedimento simples? Um decreto modifica norma da ANVISA, e simplesmente todo o investimento feito naquele produto vai desaparecer. É preciso dar maior segurança, e ela não vai decorrer dessa decisão. Não há como isso acontecer.
Pensei sobre o tema, e a sugestão que tenho a apresentar, para que se possa fazer uma melhor recepção, obrigatoriamente passa por mudanças no texto constitucional. Poderíamos falar em 2 tipos de mudanças: uma ideal e impossível; e outra possível, embora difícil.
A ideal, porém praticamente impossível, seria realizar um plebiscito para perguntar se é autorizada a inserção no texto constitucional brasileiro de uma previsão de transferência de exercícios soberanos para um organismo intergovernamental. Estaríamos basicamente copiando o modelo europeu e criando a possibilidade de que as normas do MERCOSUL pudessem vir a constituir um direito comunitário. Isso seria o ideal jurídico — não estou falando do ideal fático, mas jurídico. Seria perfeito, porque ter-se-ia toda a segurança e toda a possibilidade de normas claras.
Por que um plebiscito? Porque o art. 60, § 4º, da Constituição proíbe a deliberação sobre emenda tendente a abolir as 4 categorias enumeradas, entre elas o princípio federativo. E no momento em que se permite que uma norma do MERCOSUL possa superar a própria Constituição, ofende-se o princípio federativo. Imaginem o que aconteceria se fosse feita uma norma que atropelasse o ICMS. Evidentemente, o Presidente Lula passaria uns 3 meses recebendo Governadores para explicar por que aprovou aquela norma, que tirou dinheiro dos Estados. Esse é o problema de se trabalhar com uma norma que possibilite a transferência do exercício de poderes soberanos.
E outra: o Supremo Tribunal Federal daria pulos enormes, porque, havendo o direito comunitário, poder-se-ia criar o Tribunal de Justiça do MERCOSUL, que passaria por cima do Supremo Tribunal Federal nas decisões relativas a matéria comunitária. Sairia da mão do Supremo o poder de decidir matéria comunitária, porque a Constituição brasileira estaria subordinada às normas do MERCOSUL.
Embora o Dr. Márcio diga que o Executivo não tem função proeminente na celebração de tratados, data maxima venia, acho que tem, e sou do Legislativo.
Então, daríamos ao Executivo muito mais poderes para alterar a Constituição por meio de tratado. Isso seria o ideal, porém, é improvável.
Vamos, então, passar para as soluções possíveis.
A primeira solução que vejo como possível vai atingir as chamadas normas de Direito Primário, que são os tratados. Observem que o já citado art. 59, que trata do processo legislativo, não tem sequer uma linha sobre tratados. Nesse ponto, poder-se-ia alterar a Constituição e inserir o processo legislativo de tratados. De todos? Não, dos tratados dos organismos regionais de integração econômica dos quais o País faz parte. Em suma, do MERCOSUL. Inseriríamos na Constituição, digamos, um art. 60, "a", em que se criariam regras próprias para esses tratados. Isto é possível e tem base constitucional: o art. 4º, parágrafo único, estabelece que o Brasil deve buscar a integração econômica, política, social e cultural dos povos. Uma leitura sistêmica da Constituição nos diria que se pode prever tratamento diferenciado para os tratados do MERCOSUL, no capítulo do processo legislativo, que seria o art. 60, "a".
Como se aprova hoje um tratado? Por decreto legislativo ratifica-se, aprova-se, e depois faz-se o depósito do instrumento de ratificação junto ao órgão que funciona como secretaria do tratado e que, portanto, passará a vigorar no plano internacional.
O que é possível fazer? Prever um processo legislativo semelhante ao da Lei Orçamentária para os tratados do MERCOSUL.
O Congresso Nacional tem entre as Comissões Permanentes a chamada Comissão Mista de Orçamento e a Comissão Parlamentar do MERCOSUL. Por que não passarmos os tratados do MERCOSUL pela Comissão Parlamentar do MERCOSUL — e seria uma comissão mista da Câmara e do Senado —, em que haveria um Relator, e também pelas Comissões de Relações Exteriores e Defesa Nacional das 2 Casas? Participariam, também, as Comissões Permanentes cuja natureza temática envolvesse tratados, para que estas indicassem Sub-Relatores.
Portanto, teríamos Sub-Relatores e um Relator da Comissão Parlamentar do MERCOSUL encarregados de elaborar parecer a esses tratados, com vista a dar celeridade ao processo legislativo. Por fim, esse parecer iria à votação.
O que se espera dessa votação, se pretendo que o tratado não possa ser modificado de forma irresponsável por uma lei? Sabemos que se aprovam modificações com apenas um voto a favor e 256 abstenções, quando a exigência é maioria simples. Na Câmara, é preciso obter o quorum de 257 Parlamentares em plenário; se houver 256 abstenções e 1 voto a favor, a matéria está aprovada, porque só se computam os votos válidos para a maioria simples. Assim, exigir-se-ia para os tratados do MERCOSUL um quorum qualificado.
A prosperar essa tese, poderíamos discutir qual seria esse quorum. Poderia ser o mesmo exigido para emenda constitucional, de maneira que se pudesse prever que o tratado entrasse no ordenamento jurídico brasileiro como norma constitucional, ou poderia ser quorum qualificado de lei complementar, que exige maioria absoluta, para que o tratado fosse alçado à condição de lei complementar. Não que a lei complementar seja superior à ordinária, mas estaria o tratado submetido ao quorum qualificado da lei complementar, e poder-se-ia dizer que os tratados aprovados nos termos do art. 60, "a", da Constituição são hierarquicamente superiores às leis complementares e ordinárias.
Dessa forma, começamos a dar segurança jurídica ao processo de integração do MERCOSUL.
Para imprimirmos maior celeridade às votações, elas poderiam ser acompanhadas do instrumento de sobrestamento de pauta. Ou seja, daríamos um prazo para que esses tratados fossem apreciados e, uma vez transcorrido, sobrestar-se-iam as pautas das demais votações, com exceção das medidas provisórias, que hoje não são sobrestadas nem em razão de projetos em regime de urgência constitucional. Esse seria o processo.
Estamos afetando algum princípio fundamental da Constituição? Não. Estamos cumprindo o disposto no parágrafo único do art. 4º.
Toda vez que falo sobre isso, acho engraçada a reação dos internacionalistas, que me olham assustados, porque não é normal ouvir um constitucionalista defender alterações constitucionais para prestigiar o Direito Internacional.
Recordo a todos que, quando eu estava me formando, o Direito Constitucional não tinha valor. Todos queriam fazer Direito Processual, que era a grande matéria do momento. Mas o Direito Constitucional é a grande matéria deste momento, porque, se vislumbrarmos o futuro com olhar prospectivo, o Direito Internacional haverá de ser seguramente o Direito do futuro. Basta ver que o processo de globalização hoje é desastroso porque não há regras internacionais que possam balizá-lo, a fim de transformá-lo em um processo justo.
Essa é a primeira etapa para o Direito Primário. Faríamos essas modificações no texto da Constituição aproveitando a estrutura já existente da Comissão Parlamentar do MERCOSUL e dando primazia para os tratados sobre as normas internas, leis complementares ou ordinárias, exigindo o quorum qualificado para aprovação. Também como partícipes do processo estariam as Comissões Permanentes, temáticas, participando dos debates e acelerando o processo, que se concentraria na Comissão Parlamentar do MERCOSUL.
E quanto às normas de Direito Secundário? Não poderiam ser tratadas de igual maneira, porque não cabe ao Congresso Nacional deliberar sobre tais normas. Mas também não poderíamos deixá-las ao acaso. Teríamos que achar uma solução, que poderia se dar de 2 maneiras. Uma já foi sugerida aqui: a possibilidade de diversas inserções de normas do MERCOSUL por decreto, mas não acho ser a mais adequada. Inclino-me pela opção da lei delegada. Ou seja, também no âmbito da Comissão Parlamentar do MERCOSUL haveria a tramitação de projetos de resolução para delegar ao Poder Executivo poderes para elaborar a lei que tratasse de matéria referente ao Direito Derivado ou Secundário do MERCOSUL, de maneira que a norma ingressasse no ordenamento jurídico em nível de lei. Assim, não estaríamos tão suscetíveis às modificações por portarias ou outros atos infralegais.
Estas são as idéias constantes do estudo que fiz sobre a matéria quando estudava a criação do Tribunal de Justiça do MERCOSUL. Entendo serem idéias pertinentes para que se possa não fazer a recepção imediata dessa legislação, mas aperfeiçoar o processo.
Relembro outra vez o meu querido Prof. Jorge Fontoura, que, se aqui presente, certamente estaria me olhando como quem olha um duende, imaginando-me um sonhador, alguém pensando em algo que jamais acontecerá.
Apenas gostaria de lembrar que, se fôssemos enveredar por esse raciocínio, os jusfilósofos, que lançaram o fundamento teórico do Estado Democrático liberal, jamais o teriam feito. Também os socialistas, que deram ensejo ao Estado de Direito social, jamais teriam pensado algo parecido. Jean Monnet, com seu plano Schumann-Monnet, que deu início à Comunidade Européia do Carvão e do Aço, unindo 2 nações que já haviam guerreado por 2 vezes, também nada teria realizado.
Portanto, ou temos coragem de pensar e mudar ou viveremos eternamente de um passado ou de uma ilusão que não voltará, porque o Estado Nacional já cumpriu o seu papel. A partir de agora temos de aceitar que ou nos integramos de forma segura, a blocos econômicos, para fazermos frente a outros blocos ou a uma Nação sozinha que vale por 10 deles, ou acabaremos sempre na condição de participantes do pós-festa, atrasados na revolução industrial, tecnológica, jurídica e econômica.
Muito obrigado. (Palmas.)
O SR. COORDENADOR (Bruno de Risios Bath)
- Agradeço ao Dr. João Ricardo a intervenção.
Há 3 inscritos para o debate. A lista de inscrição ainda está aberta.
Gostaria apenas de aproveitar as últimas palavras do Dr. João Ricardo para dar um testemunho pessoal a respeito do aspecto por ele mencionado, qual seja o de que qualquer projeto de integração é fundamentalmente político e exige certo grau de ousadia. Sem ousadia não se vai longe, pois se trata de um processo que envolve profundas transformações em diversos aspectos da vida nacional. Talvez a mais difícil, até mais do que as de ordem jurídica, seja a de mentalidade.
Lembro-me sempre das palavras do Bardo: "Isso pode ser loucura, mas tem algum método". O MERCOSUL é um pouco isto: tem que ter método, mas deve possuir certo grau de loucura, de ousadia. Se ficarmos apenas no que o bom senso indica, no que a prudência recomenda ou no que as conveniências impõem, dificilmente avançaremos, e permaneceremos nessa situação indefinida em que nos encontramos hoje, com uma lei imperfeita.
Talvez o mais grave — e é algo que certamente não devemos permitir — seja uma certa dificuldade de perceber os rumos desse projeto da união aduaneira.
Concedo a palavra ao primeiro inscrito, Pastor Bentílio, da Igreja Batista.
O SR. BENTÍLIO JORGE DA SILVA FILHO
- Sou Pastor da Igreja Batista em Brasília e atuo também no Rio Grande do Sul. Gostaria de perguntar aos integrantes da Mesa que dirige os trabalhos deste grande debate sobre a integração do MERCOSUL como se dará o ordenamento das normas jurídicas pertinentes ao juízo arbitral, mais especificamente as de natureza trabalhista, salarial, já que em cada país há um salário mínimo diferente.
Há possibilidade de esse debate se ampliar para o âmbito nacional, para capitais de Estados como São Paulo e Rio Grande Sul, enfim, pelas 5 regiões brasileiras?
Tenho contato com trabalhadores da Itália e sei que na Europa há um conflito seriíssimo nos países que integram a União Européia, em razão inclusive de questões de natureza salarial. Como se dará essa integração nacional em relação aos trabalhadores dos 4 países que compõem o MERCOSUL?
É importante também a questão cultural e religiosa. Este 2 de setembro está sendo um marco para o MERCOSUL, mas acho que deveriam estar conosco não só os Deputados — a exemplo do Deputado Rosinha, a quem parabenizo pelo trabalho —, mas toda a sociedade, as igrejas, os juízes etc., para uma discussão mais ampla.
Gostaria, portanto, de saber como se dará o ordenamento das normas jurídicas trabalhistas do MERCOSUL, haja vista o conflito na União Européia, notadamente entre os países mais ricos — Alemanha, Itália e outros —, cujos trabalhadores estão até fazendo greve por salários iguais.
O SR. COORDENADOR (Bruno de Risios Bath)
- É uma pena que o Dr. Valdir não esteja presente. Por ser ele representante dos trabalhadores, talvez pudesse nos dar testemunho mais imediato sobre a questão.
Pergunto se algum painelista gostaria de comentar a questão levantada pelo participante. Se bem entendi, a indagação é sobre a assimetria dos níveis de proteção trabalhista no MERCOSUL. Esse é um tema que vem sendo tratado? O que se pode fazer nesse sentido?
Com a palavra o Sr. Márcio Garcia.
O SR. MÁRCIO GARCIA
- Pastor, a pergunta é extremamente ampla. Não sei se posso ajudar, talvez possa apenas dar início à resposta. Eventualmente, alguém da platéia pode estar mais bem informado.
Porém, queria aproveitar para fazer um rápido comentário sobre o que disse o Ministro Bruno a respeito do tom de poesia no projeto. Claro que se ficarmos com muita poesia, daqui a pouco perguntarão qual será a hora do suicídio.
Com meus alunos sempre falo, em tom de brincadeira, que estas notas de euro também são poesia. Ando com estas notas no bolso porque é um cacoete dos juristas, sobretudo daqueles que militam no Tribunal do Júri, apresentar o corpo de delito, fazer teatro, mostrar fotografias etc., para todos ficarem impressionados. Pois bem, o euro também era poesia. Nos anos 80, se alguém dissesse aos alemães que haveria na Europa uma moeda única, que o marco alemão desapareceria, com certeza seria preso em camisa-de-força. Portanto, o euro também é fruto da poesia, quer dizer, esta nota é o nosso "corpo de delito".
O Tribunal Permanente do MERCOSUL também era poesia. Quando conversávamos lá, minha sensação era a mesma de quando Juscelino disse que a capital do País seria mudada para Brasília — também poesia. Nem sempre as poesias se realizam, mas algumas, sim. É como dizer que teremos um Parlamento do MERCOSUL: já estamos nos dando conta de que hoje não é pretensão tão poética assim. Esses avanços são importantes.
Em relação ao que disse o João Ricardo, quando fez digressões sobre o Direito Constitucional e Internacional, às vezes me pergunto se não temos mais inconstitucionalistas do que constitucionalistas, porque tudo é inconstitucional. Mas essas disciplinas hoje se entrecruzam. Em Lisboa e Coimbra, por exemplo, a disciplina é Direito Constitucional e Internacional. No romper do século, o Caderno de Direito Constitucional e Ciência Política mudou de nome e passou a ser chamado Caderno de Direito Constitucional e Internacional. São pequenas mudanças, na linha do que diz Guimarães Rosa sobre o analfabeto das entrelinhas. Essas coisas estão nas entrelinhas, só não lê quem não quer.
Não estou fazendo essa volta, Pastor, para não responder ao senhor. (Risos.) A pergunta foi muito ampla. Quem sabe não encontraremos algum rudimento para o primeiro ponto levantado por V.Exa. na Declaração Sociolaboral do MERCOSUL, que trata de direitos individuais, que dá notícia da liberdade sindical, da questão do trabalho infantil, do direito de greve, da negociação coletiva, da importância do diálogo social, enfim, dá um norte. É um norte ainda, diria, não muito tangível. Ainda estamos num ponto mais retórico do que concreto, mas sem dúvida ele nos sinaliza de modo bastante fecundo. Hoje não é possível fechar os olhos e ignorar essa realidade.
É claro que estamos em um marco de integração que ainda não pressupõe de modo amplo, geral e irrestrito, a liberdade, a circulação de pessoas, enfim. Mas aqui e ali já ouvimos falar disso. Por exemplo, no domínio do Direito, um dos melhores livros de Direito Penal, intitulado Direito Penal Brasileiro, é de um autor argentino, o Zaffaroni. O Prof. Zaffaroni, hoje juiz da Suprema Corte Argentina, está aqui. "Ah, bom, então ele mora no Brasil". Não, não mora no Brasil. É juiz da Suprema Corte argentina.
Então, vemos que esses pontos começam a ter maior dimensão. Não temos ainda um código do trabalho, vamos dizer assim, internamente, e não o temos também pela ótica do Direito no MERCOSUL.
Em relação à União Européia, confesso que desconheço o que se passa hoje nesse exato domínio, sobretudo no caso concreto que V.Exa. mencionou. Culturalmente, há inúmeras iniciativas. Quem sabe, esse foi um contorno mais ou menos do que aconteceu na Europa: enquanto o discurso era fazer integração pela via cultural, que seria uma leitura mais elevada, ela não foi adiante. Foi preciso fortalecer o viés econômico, o interesse que toca o bolso — é uma forma mais simples e direta de compreender a importância da integração —, para que hoje houvesse integração cultural de diferentes povos. Isso é extremamente importante. Nesse sentido, há programas da União Européia, tais como o Erasmus. Recentemente, o filme Albergue Espanhol — não sei se vocês tiveram a oportunidade de assistir — trata exatamente disto: um estudante alemão convive com um estudante espanhol, um português e um britânico. Essa miscigenação muda e dá nova interpretação às realidades daqueles países. Quem conhece minimamente a história daquela região sabe que era banhada por sangue.
Não há dúvida da importância dessa integração cultural. Consta que, quando os Estados Unidos deliberaram jogar a primeira bomba atômica no Japão, o alvo preferencial era a cidade de Kyoto, o que seria uma lástima, como de fato é a utilização de arma atômica de qualquer modo. Um dos generais que estavam decidindo a questão disse: "Em Kyoto, não, porque eu tenho um amigo lá". Olhem que coisa interessante. É verdade, é fato. Então, decidiram por Hiroshima.
Há uma universidade no Japão cujo proprietário criou uma bolsa de estudo e tem vínculos com universidades no Brasil, inclusive no Estado do Paraná. Pessoas passam um mês conhecendo o Japão, e vice-versa. Há intercâmbio, porque ele imagina que a proximidade dos povos — desde o romper dos anos da vida universitária e até mesmo com pessoas com mais experiência — fará com que, no futuro, as pessoas pensem 2 vezes antes de tomar determinadas decisões. A integração cultural é de grande importância.
Há muita coisa nessa linha produzida pelo MERCOSUL.
Mais alguém gostaria de fazer perguntas?
O SR. COORDENADOR (Bruno de Risios Bath)
- A questão do trabalho e do emprego está bastante viva no MERCOSUL. A Comissão Sociolaboral trabalha esse tema. Em abril passado, em Buenos Aires, teve lugar a Conferência do Trabalho e Emprego. Participaram os Ministros do Trabalho do MERCOSUL e Estados associados. O Ministro Berzoini manifestou interesse em fazer do trabalho e emprego uma das tônicas da Presidência Pro Tempore Brasileira do MERCOSUL. Para isso, há um grupo de trabalho em ação. Existe a idéia de implementar uma estratégia regional de trabalho e emprego com metas em diversas áreas de informalidade etc. É um assunto que está vivo, que está sendo analisado. Pode-se esperar que, em dezembro, haja algum resultado interessante nessa área.
Passo a palavra ao próximo inscrito, Wilfrido Fernández, do Tribunal Arbitral do MERCOSUL.
O SR. WILFRIDO FERNÁNDEZ DE BRIX
- Vou fazer 2 comentários muito breves.
O primeiro é que, na minha modesta opinião, mesmo que a Resolução n° 22, de 2004, tenha sido feita com boa intenção, na prática é letra morta, porque a incompatibilidade normativa atualmente existente no Brasil, e a que o Prof. Cachapuz brilhantemente se referiu, é uma doença comum nos países do MERCOSUL. Hoje vim a Brasília só para aprender que o Brasil não tem a possibilidade normativa de fazer essa implementação na prática.
O meu ponto chave é este: o processo de internalização das normas só pode ser resolvido no dia em que o MERCOSUL tiver estrutura supranacional. Sei que essa não é uma meta muito fácil de alcançar, mas, por mais utópica que seja, deve ser comum aos países.
O segundo comentário é que, hoje em dia, dentro ou fora do processo de integração no século XXI, já não é possível conviver no mundo moderno com uma estrutura normativa que não tenha 2 princípios fundamentais: a prevalência dos tratados sobre as leis e a faculdade constitucional de delegar aos organismos supranacionais a soberania, pelo menos, no processo de integração. Acho que esse segundo ponto tampouco é meta utópica no MERCOSUL, porque um país muito grande, a Argentina — como salientaram o Dr. João Ricardo e o Dr. Fontoura nessa manhã —, já fez essa reforma constitucional em 1994. É um país pequeno, o Paraguai, muito antes da Argentina, já tinha feito o mesmo. É muito raro para um país como o Paraguai ter mérito internacional, a não ser na área de futebol ou de pirataria. No entanto, foi o primeiro do MERCOSUL a estabelecer 2 preceitos constitucionais: a prevalência dos tratados sobre as leis e a faculdade constitucional bem clara de delegar competência a organismos supranacionais no processo de integração.
O Brasil é maior País do MERCOSUL. Para o Uruguai e o Paraguai, países pequenos, deve ser feita uma assinatura pendente, mas possível no menor prazo. Só assim o MERCOSUL terá a perspectiva de não perder competitividade no contexto mundial. A Comunidade Andina, bloco muito menos importante no contexto mundial, já tem Direito Comunitário e organismos supranacionais. O MERCOSUL não pode ficar atrás.
Muito obrigado.
O SR. COORDENADOR (Bruno de Risios Bath)
- O Sr. Cachapuz gostaria de fazer algum comentário?
O SR. ANTÔNIO PAULO CACHAPUZ DE MEDEIROS
- Apenas gostaria de me associar a V.Sa., cujos comentários são muito pertinentes.
Não iria tão longe, dizendo que a Resolução nº 22 é letra morta. Considero que ela tem avanços possíveis. Sublinhei um ponto que me parece muito positivo: a criação, por parte de cada Estado-membro, de uma seção própria, no seu boletim oficial, no seu Diário Oficial, que passe a conter as normas do MERCOSUL, para que não fiquem dispersas em diferentes seções do Poder Executivo. Isso já é muito bom.
No Brasil, vamos promover, dentro do espírito dessa resolução, alguma forma de celeridade do processo de incorporação das normas. É possível que se promova maior aceleração. Nesse sentido, acho que há alguns aspectos positivos, que poderão ser implementados. Eu disse que me parece imprópria a expressão "aplicação direta" ou "aplicação imediata", utilizada antes em outra resolução do MERCOSUL. Quanto recebi o honroso convite para participar deste seminário, sugeri que se substituísse a expressão por "vigência" ou "aplicação" das normas do MERCOSUL.
Como disse o querido professor de Direito Constitucional, essa expressão é própria de um sistema comunitário, e não de um sistema de integração, como é o caso do MERCOSUL.
O SR. COORDENADOR (Bruno de Risios Bath)
- Tenho uma pergunta a respeito desse ponto, fazendo uso dos meus poderes de moderador. (Risos.)
O Prof. Cachapuz mencionou que uma norma do MERCOSUL, para ser recebida no ordenamento jurídico brasileiro, precisa de um ato normativo. Minha pergunta é: isso significa que cada norma precisa de um ato individual, ou é possível pensar em uma espécie de decreto-mãe, digamos, que habilite o Poder Executivo a publicar as normas do MERCOSUL no Diário Oficial, sem que cada uma seja necessariamente objeto de instrução normativa, de portaria da ANVISA etc? Qual seria a viabilidade dessa idéia?
O SR. ANTÔNIO PAULO CACHAPUZ DE MEDEIROS
- Com certeza, é possível. Concluí minha apresentação mencionando a Emenda Constitucional nº 32 , de 2001, muito recente, que dá ao Presidente da República o poder de dispor, mediante decreto, sobre a organização e o funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de cargos públicos. Então, é uma alteração substantiva na competência do Presidente da República. Ele pode editar um decreto sobre esse ponto.
É um pouco controvertido se esse decreto do Presidente, com base na emenda constitucional, na feição que a Constituição adotou, poderia alterar uma lei, por exemplo, que confere competência a uma agência, a determinado órgão do Poder Executivo. Esse é um ponto que os constitucionalistas estão discutindo no momento, ou seja, se isso seria possível ou não, já que o Presidente recebeu competência pela Constituição de, através de decreto, dispor sobre a administração federal. Então, ele poderia, eventualmente, alterar as competências dos órgãos do próprio Poder Executivo, mas é controvertido. Repito que é controvertido.
Achei muito interessante a sugestão de que haja uma lei delegada. Esse é um campo que precisa ser aprofundado.
O SR. COORDENADOR (Bruno de Risios Bath)
- Muito obrigado.
Com a palavra o Sr. Ireneo Andrés Barboza. Peço desculpas por não compreender a sigla do órgão a que pertence.
O SR. IRENEO ANDRÉS BARBOZA
- Organização Social e Ambiental de Fauna e Flora do Brasil — OSAFF.
Não vemos na legislação e nas normas uma qualificação única. Temos disparidades. Devemos avançar um pouco mais. Se não avançarmos nessas normas jurídicas e comunitárias, vamos atrapalhar o andamento por mais 10 ou 15 anos. De imediato teremos normas novas.
Imaginemos um membro do MERCOSUL que produzisse 20 mil canetas e vendesse ao país vizinho. Passou por dificuldades, as máquinas quebraram e só foram consertadas depois de 5 anos. Agora, o vizinho só vai comprar 10 mil, porque já produz o restante. O que aconteceu? Um país se modernizou, e o outro, não. Não existe qualidade de norma específica sobre isso. Impõe-se uma legislação por cima, mas não com qualidades comunitárias de imposição. Será que a biossegurança vai entrar na normativa? Será que a informática vai entrar na normativa? Quais as adequações? Além disso, célula-tronco. No âmbito do MERCOSUL tem de haver normas sobre esse tema. Será que já está disposto no acordo do MERCOSUL ou há normativa e decreto a serem feitos ainda? São coisas importantes para organizações ambientais que pleiteiam isso, assim como sua participação no contexto. Acho que tem que haver uma resposta.
O SR. COORDENADOR (Bruno de Risios Bath)
- Obrigado pela contribuição.
Algum painelista gostaria de comentar o assunto? (Pausa).
Passo a palavra ao Ministro Clemente Mourão.
O SR. CLEMENTE MOURÃO
- Obrigado. Vou fazer uma observação e, em seguida, uma pergunta. Quem aproveitou sempre que pôde o texto dos tratados a serem celebrados agradecia, mesmo o fazendo solitariamente, a clareza de quem os escreveu. Então, agora, ao vivo, faço-o de forma mais direta. Agradeço para corrigir um anacronismo: muito obrigado.
Feita a observação, dirijo minha pergunta ao Dr. João Ricardo, cuja exposição me causou certa perplexidade.
É fascinante: alguns pensam que no poder de legislar de Bruxelas já havia uma pré-autorização, uma pré-competência dos ordenamentos jurídicos internacionais; outros dizem que foi algo que foi evoluindo pelos pareceres, pelo julgamento, pelo exercício da função. Sem conhecer a matéria, sempre tive um viés a favor desta segunda corrente. O senhor me deixou perplexo porque estruturou muito bem seus argumentos e expôs claramente sua opção, seu julgamento.
Semana passada, 3 casos interessantíssimos da União Européia foram notícias. O primeiro, que se divide em 2, é relativo a preço de transferência: 1) matriz no Reino Unido, subsidiária no Reino Unido. O Fisco inglês, nada. 2) Matriz fora do Reino Unido, subsidiária no Reino Unido. O Fisco inglês fez o que o nosso faz o tempo todo: glosou. Opinião da Corte: Ou vocês fazem para todas as firmas ou não fazem para nenhuma. Não interessa onde esteja a matriz, se na Holanda, na França, na Alemanha ou no norte da Inglaterra com subsidiária no sul do país.
O segundo caso, se me lembro bem, é de um cidadão francês que se mudou para a Bélgica. O Fisco francês entendeu que determinado ativo dele tinha se valorizado — não por venda, mas pela saída do país —, e taxou o imposto de saída. O cidadão apelou. O que teria dito a Corte? Ela aceitou os argumentos do cidadão francês de que o ônus tributário que lhe foi imposto admitidamente, por ele se mudar para o outro lado da fronteira, limitava sua prerrogativa de livre trânsito. O Fisco francês perdeu.
O terceiro diz respeito a empresas que saem de unidades nacionais da União Européia que têm nível — digamos — alto de tributação de renda, e vão para outra unidade nacional com nível baixo de tributação — falta-me uma palavra melhor. Nesses casos há também um imposto de saída. Segundo as notícias, Alemanha, França e outros países têm esse imposto. Elas perderam na Corte. Se estou me recordando bem, essas empresas fizeram valer uma analogia com o caso do francês. Ou seja, se eu tenho que pagar um imposto de saída, ao sair de um país e ir para outro, e certos impostos são mais altos em algum país, isso limita o meu arbítrio.
Na realidade, citei esses casos como uma maneira de iniciar minha pergunta, pois todos eles são sobre renda. A tributação da renda não está harmonizada ainda, mas o consumo está. Nesse caso, o senhor me diria que é mais uma manifestação de que os ordenamentos jurídicos nacionais já habilitavam a Corte de Bruxelas a legislar — e esta é a minha impressão —, ou foi a Corte que progressivamente começou a legislar, considerando que, não estando harmonizada a tributação sobre a renda, de certa forma não existia limite de tributação sobre a renda. Agora existe, porque a Corte legislou.
Quero repetir que o senhor me deixou fascinado. E é mais cômodo para mim fazer perguntas a continuar quebrando a cabeça.
O SR. JOÃO RICARDO CARVALHO DE SOUZA
- Agradeço ao senhor a pergunta, que é bastante interessante. Deixe-me posicionar no tempo. Por que o Tribunal de Justiça pôde dar hoje essas decisões contrárias às normas nacionais, aplicando os princípios que regem a livre circulação de capitais ou livre circulação de bens? Porque já está consolidado no âmbito da União Européia que sobre essas matérias quem tem a última palavra é o Tribunal de Justiça da Comunidade Européia. Portanto as legislações nacionais não podem ferir os princípios gerais que estão marcados, materializados nos tratados. Como chegou o Tribunal a esse ponto é a questão principal que se discute.
Há basicamente duas linhas de raciocínio que falam sobre isso. Uma delas diz que foi mera construção jurisprudencial — não há isso nos tratados, nem em nenhuma legislação. Nos famosos casos Costa contra ENEL, Van Gend en Loos, da Holanda, e daquele trabalhador italiano — sou péssimo para nome —, o Francovich, criaram-se as 3 características básicas, que eram a primazia, a aplicabilidade direta e o efeito direto. Normalmente, os livros dizem que o Tribunal, por construção jurisprudencial, criou isso. Mas se fomos analisar as decisões dos tribunais, vamos ver no caso do Francovich ou do Costa/ENEL, que a Justiça italiana se curvou ante o tribunal. O art. 11 da Constituição italiana previa expressamente que a Itália participaria de organismos internacionais buscando a paz e deixava subentendido a transferência de exercícios de poderes soberanos para esse órgão supranacional. A Alemanha resistiu. A Itália, em matéria internacional, é muito parecida com o Brasil, briga pela soberania nacional. Mas eles se curvaram por causa de seu art. 11. Então, não foi porque o Tribunal de Justiça, por construção jurisprudencial, gerou aquela situação, os tribunais italianos se curvaram quando analisaram o art. 11 de sua Constituição, e se renderam à decisão do Tribunal. Na Alemanha, aconteceu coisa semelhante. Ela acabou tendo de alterar, se não me engano, o art. 23 de sua Constituição por adesão ao Tratado de Maastricht. Qual era a preocupação alemã? Era com os direitos e garantias fundamentais.
Quando reconheceram que a União Européia assegurava um nível de proteção aos direitos e garantias fundamentais tão alto quanto o da Lei Fundamental de Bonn, renderam-se à jurisdição do Tribunal de Justiça das Comunidades Européias e acrescentaram o art. 23, que estabelece: "reconhecendo-se que o organismo internacional assegura proteção igual ou superior aos direitos fundamentais do cidadão alemão, a decisão vale em território nacional".
Vejam que não é a simples decisão do tribunal que acabou consolidando as características que distinguem o Direito Comunitário do Direito Internacional clássico ou mesmo do Direito de Integração. O que consolidou essas características foi o reconhecimento pelo próprio Estado nacional de duas situações — primeira, que a sua Constituição dava margem à transferência de exercício de poderes soberanos; segunda, que ao aderir ao tratado se reconheceu a possibilidade de transferência. Essa situação só vale para a matéria comunitária, até porque o tribunal não tem jurisdição sobre nenhuma outra matéria. Em matéria comunitária, curva-se à legislação nacional.
Lembro-me de que na minha dissertação de mestrado, o professor que me argüía disse: "Você sustenta soberania compartilhada, mas quero ver o Tribunal de Justiça cumprir a sua decisão na Alemanha." Respondi, então, que era muito simples: pelo juiz alemão, que, por acaso, também é o juiz comunitário que vai executar a decisão do juiz de primeiro grau alemão.
Reconheceu-se a integração entre os sistemas judiciais dos países que integram o MERCOSUL. E esse reconhecimento faz com que em matéria comunitária se consolide a posição jurisprudencial depois de os Estados fazerem o reconhecimento. Quem mais resiste até hoje ainda é a França, até porque é complicado o sistema de controle de constitucionalidade daquele país, que tem um conselho constitucional, que não é um órgão judicial, mas administrativo.
Todos os países que ingressaram na União Européia na segunda leva — Espanha e Portugal — previamente alteraram sua Constituição. A Constituição espanhola prevê a transferência de poderes soberanos. Isso reforça o entendimento que tenho, pelo menos na minha modesta maneira de ver, do reconhecimento de que a jurisprudência criada pelo tribunal só se consolida em cada um dos países que compõem a União Européia porque eles reconhecem essa delegação em sua Constituição. Tanto é assim que todos os outros países que ingressaram previamente mudaram seu texto constitucional.
Não sei se respondi a pergunta.
O SR. MÁRCIO GARCIA
- Obviamente, sem querer polemizar na vigésima quinta hora, quando todo mundo já está saindo — e claro que jamais faria isso com o Prof. João Ricardo —, penso que, em tempos de Olimpíada, a virtude está no meio, seguindo o ideal aristotélico.
Quanto ao assunto em debate, parece-me que em medidas idênticas houve uma leitura em Luxemburgo que favoreceu muito a idéia. Foram mencionados casos da maior importância. Quem tiver interesse pode acessar a Internet, que é uma maravilha, todas as informações estão lá, só é preciso de um bom estagiário, essa figura maravilhosa. Nada melhor do que um estagiário para ser culpado do erro.
O SR. JOÃO RICARDO CARVALHO DE SOUZA
- Sugiro também ser orientador de monografia de aluno de graduação. A melhor coisa é ser orientador de monografia e sugerir o tema para o aluno.
O SR. MÁRCIO GARCIA
- Mas o estagiário é um figura importante. Porque, se você não pode errar, então, quem errou? O estagiário. É sempre ele quem erra, coitado.
O SR. JOÃO RICARDO CARVALHO DE SOUZA
- E o orientando também. Quando ele erra, a obra é dele, não do orientador, que não escreve.
O SR. MÁRCIO GARCIA
- Exatamente. E esse pessoal novo adora Internet. Acessando geralmente o Google, procurando "ABC do Direito Comunitário", tem-se acesso a um livro produzido pela União Européia, acredito que pela Comissão. O texto é integral e de muito fácil leitura. Esse livro tem um capítulo específico com a síntese dos importantes casos aqui citados e muitos outros.
O contraponto a isso foi também uma interpretação das cortes constitucionais e a sensibilidade do legislador, ou uma alteração, como bem mencionou o João Ricardo, antes da inserção, do ingresso na Comunidade, ou, posteriormente, uma interpretação mais pró-Direito Comunitário, dentro de leitura muito interessante.
Nessa história de monismo e dualismo, quem sabe não haja também uma terceira via? Imaginamos que, tertius non datur, não seja uma terceira via, mas um trialismo, que é o Direito da Integração, o Direito Comunitário, o Direito Internacional clássico e o ordenamento jurídico interno. Claro que isso é trabalho de doutorando, que fica monotemático, não tem mais o que fazer e começa a inventar coisas. Obviamente, sobrevive a isso o nosso Prof. Cachapuz, consultor do Itamaraty. Quem sabe não haveria outro caminho? A convergência de leituras positivas tanto do juiz comunitário quanto do juiz doméstico é muito importante.
O SR. JOÃO RICARDO CARVALHO DE SOUZA
- A minha posição é exatamente essa. Entendo ser resultado de uma associação e convergência de fatores, não de um fator isolado, como defende a maioria dos autores. Acredito na convergência desses fatores, do reconhecimento no ordenamento jurídico interno da previsão constitucional, da construção dos tratados, do reconhecimento da previsão constitucional e da construção jurisprudencial. Só o concurso desses 3 fatores consolidam o Direito Comunitário.
Se falarmos de consolidação de fato, o sonho de Jean Monet funcionou: criou uma comunidade de fato, a CECA, com autoridade supranacional. A partir de então, houve um crescimento das demais comunidades.
O SR. MÁRCIO GARCIA
- João Ricardo, seguindo a linha do Ministro Clemente Mourão — quem sabe? —, podemos convidá-lo para compartilhar um pouco suas idéias na Comissão Interministerial criada para discutir a incorporação. Pelo que pude ver, e a mim isso não surpreende, conhecer bem o Regimento Interno e os escaninhos desta Casa não é privilégio do Deputado José Genoíno. Seria uma participação importante. Assim como mencionou o Prof. Cachapuz, achei muito interessante a posse de lei delegada, no sentido de tentar criar alguma coisa com pé no chão, possível. Acredito que será um exercício muito interessante. A sua experiência será muito enriquecedora para nós, na Comissão.
O SR. COORDENADOR (Bruno de Risios Bath)
- Alguém mais da platéia deseja fazer algum comentário, intervenção ou pergunta?
A SRA. VITÓRIA
- Antes de mais nada, agradeço a oportunidade de estar presente. Sem dúvida, a visão jurídica é um contraponto fundamental para nós, do IPEA, que temos sempre uma visão tão econômica. A oportunidade de estar aqui, de poder replicar junto aos nossos colegas será bastante valiosa.
Acredito que o IPEA poderá contribuir mais para uma visão de futuro, talvez na montagem de uma agenda futura sobre temas. Sem dúvida, há questões econômicas de integração, e são muitos os gargalos, todos os nós conhecemos.
Destaco 2 pontos sobre os quais o IPEA tem-se debruçado em suas pesquisas. O primeiro é como se dará a inovação tecnológica no contexto do processo de integração. Vis-à-vis a inovação tecnológica, a sua normatização em cada país e no processo de integração. O segundo é a normatização da regulamentação da internacionalização de firmas brasileiras que atuam no exterior. Esses pontos compõem nossa agenda de preocupações.
Coloco o IPEA à disposição no sentido de contribuir para a reflexão.
Obrigada.
O SR. COORDENADOR (Bruno de Risios Bath)
- Agradeço a contribuição. Se não há mais nenhuma intervenção por parte da platéia, devolvo a palavra ao Deputado Dr. Rosinha, com meu agradecimento pessoal pela oportunidade de participar dos debates.
O SR. PRESIDENTE (Deputado Dr. Rosinha)
- Aqui na Câmara dos Deputados vigora o presidencialismo. Nem a palavra os outros têm, se quem estiver coordenando os trabalhos não lhes conceder. O microfone fica mudo.
Neste final de seminário só me resta agradecer a todos a presença. Vocês aceitaram o convite para este dia de debate — do qual particularmente gostei muito —, e isso nos dá vontade de promover outros. Estamos organizando um próximo, para o dia 21, na Organização Pan-Americana da Saúde, sobre patentes. Estaremos lá o dia todo. Nossa Comissão vai divulgar o encontro, juntamente com o Ministério da Saúde e a Comissão do MERCOSUL. Quem desejar participar do debate, fica desde já convidado, porque, para nós, é extremamente importante a questão das patentes.
Agradeço também aos funcionários da Comissão Parlamentar conjunta o empenho na organização, assim como aos funcionários da Casa e ao pessoal da TV Câmara.
Meus agradecimentos ao Jorge Fontoura, à Maria Cláudia Drummond, ao Francisco Eugênio Arcanjo, ao Valdir Vicente de Barros, ao Dr. Antonio Paulo Cachapuz de Medeiros, ao Dr. João Ricardo Carvalho de Souza, ao Dr. Márcio Garcia e ao Ministro Bruno de Risios Bath, sem os quais nosso seminário não teria todo esse brilhantismo.
Como gosto de um bom debate, quero convidá-los para em breve continuarmos a discussão. Devo permanecer à frente da Presidência desta Comissão até fevereiro, mas espero nela continuar e, dessa forma, poder contribuir para a integração.
Encerramos meio rápido, mas tudo, no fundo, não deixa de ser cultura. Vai da cultura jurídica à econômica, passando pelo geral, quando falamos a respeito das artes, do folclore, e tudo o mais.
Acho que quando conseguirmos olhar o outro e não enxergar um adversário, um inimigo, mas alguém diferente — e digo isso a todos, ao País como um todo e aos demais países —, a integração vai ser muito mais fácil e possível.
Mais uma vez, agradeço a todos os senhores e senhoras, principalmente aos que se dedicaram a preparar o tema desse debate.
Estão encerrados os nossos trabalhos. (Palmas.)