4-Período de transição

 

Trabalho elaborado por José Everaldo Ramalho - CNE lotado na Comissão do Mercosul

Em três anos e nove meses de existência, ou seja, de 26 de março de 1991 a 31 de dezembro de 1994, o Mercosul saiu da projeção em papel - o Tratado de Assunção, para se transformar, na prática do cotidiano das relações entre os Estados Partes, em um complexo e dinâmico processo de integração regional.
Assim, do final do governo José Sarney (1985-1989), passando pelo Governo Fernando Collor de Mello (1990-1992), atravessando os dois períodos do Governo Fernando Henrique Cardoso (1994-2002) e vivenciando o Governo Luis Inácio Lula da Silva (2003-), o Mercosul pode ser visualizado em seis fases distintas, cujas principais características detalham-se a seguir.

1. Primeira fase: do Tratado de Assunção ao Cronograma de Las Leñas (março de 1991 a julho de 1992);
Na sua primeira fase de vigência, o Tratado de Assunção expôs uma demanda histórica das sociedades que compõem o conjunto dos Estados Partes do Mercosul: a imperiosa necessidade de integração regional dos países sul-americanos, idéia lançada pelos pais fundadores das Repúblicas no continente sul-americano, como Simón Bolívar (Venezuela), José Francisco de San Martin (Argentina), José Martí (Cuba), José Gervasio Artigas (Uruguai), Francisco Miranda (Venezuela), Bernardo O'Higgins (Chile), José Inácio de Abreu e Lima (Brasil) e Hipólito da Costa (Brasil).
Assim a partir de julho de 1992, o programa automático de liberalização comercial ou desgravação tarifária progressiva, isto é, as reduções de tarifas sobre produtos negociados entre as economias dos países do bloco, ocorriam inapelavelmente sem que fosse necessário qualquer tipo de renegociação entre os Estados Partes, respeitando-se apenas as exceções listadas de produtos/mercadorias inscritos pelos países. Vale ressaltar que, mesmo com a vigência desse Programa de Liberalização Comercial, Anexo I do Tratado de Assunção (março de 1991), pelo Acordo de Complementação Econômica numero 18, de 29 de novembro de 1991, os países fundadores do Mercosul obedeceriam a um programa de desgravação progressivo, linear e automático, que se estenderia de 30 de junho de 1991 a 31 de dezembro de 1994, que seria iniciado com uma redução mínima de 47%, sobre as tarifas já existentes, por mercadoria, até alcançar o limite máximo de 100%, ou seja, tarifa zero.
Foram excluídos do cronograma de desgravação os produtos compreendidos nas chamadas Listas de Exceções apresentadas por cada um dos países signatários, segundo suas apreciações nacionais de bens ou produtos que necessitam um tratamento diferenciado. De acordo com a NALADI (Nomenclatura ALADI, lista de produtos que cobre todo o universo de bens que podem ser comercializados e torna possível a cobrança de direitos de importação), os países apresentaram os seguintes quantitativos em suas Listas de Exceção:
 República Argentina, 394 itens
 República Federativa do Brasil, 324 itens
 República do Paraguai, 439 itens e
 República Oriental do Uruguai, 960 itens.
Os produtos que forem sendo retirados das Listas de Exceções se beneficiam automaticamente das preferências que resultam do Programa de Desgravação com, pelo menos, o percentual de desgravação mínimo previsto para a data em que se operar sua retirada das mencionadas listas.

A partir da adoção da Tarifa Externa Comum (TEC) a lista de exceções à área de livre comércio passou a chamar-se "lista de adequação".
Segunda fase: do Cronograma de Las Leñas à Reunião de Colônia (julho de 1992 a janeiro de 1994);
Na segunda fase do processo de construção do Mercosul, começaram a surgir as primeiras dificuldades para o avanço da integração econômica, pois os setores produtivos que se sentiam ameaçados no curto prazo puseram-se a pressionar seus governos por uma desaceleração das negociações e do programa de desgravação tarifária ou liberalização comercial, meta fundamental do projeto de integração regional.
Assim, tanto o setor industrial brasileiro quanto o argentino ofereceram resistências ao processo de integração; os argentinos por se sentirem ameaçados pela concorrência da indústria brasileira porque vinham sofrendo um processo de desindustrialização desde a gestão de Martínez de Hoz durante o período militar; os brasileiros, não por se sentirem ameaçados pela concorrência dos outros três parceiros, mas porque lhes preocupava o limite que seria negociado como nível máximo para a Tarifa Externa Comum, a TEC, que viria a substituir as tarifas nacionais cobradas sobre as importações provenientes de países não-membros.
Ressalte-se que o setor agrícola brasileiro apresentou resistência ao ver-se exposto à concorrência de produtos agropecuários mais competitivos, sobretudo de produtos argentinos, porém o Mercosul foi um estímulo para a reconversão desse setor.
A tendência de cada país membro do Mercosul nas negociações para a fixação do nível máximo da Tarifa Externa Comum era, naturalmente, a de defender uma TEC o mais próxima possível de sua tarifa nacional, pois quanto menores as diferenças entre ambas, menores seriam os custos do ajuste quando da entrada em vigor dessa tarifa comum.
As negociações para a fixação de uma Tarifa Externa Comum levaram à compreensão de que a TEC deveria ser pensada para atender a uma nova estrutura tarifária, ou seja, uma estrutura de proteção dotada de coerência interna e adaptada às condições da economia dos quatro países considerados como um todo.
Desse modo, substitui-se a lógica individual, defensora dos interesses tarifários de cada parceiro, em favor de uma lógica coletiva da construção fundada no princípio da racionalidade econômica.
Enfim, quando os países membros fundadores do Mercosul entenderam ser possível criar uma TEC com racionalidade econômica, em fins de 1993, tornou-se possível defini-la para a maioria dos produtos que conformavam as matrizes econômicas de cada parceiro, ainda que os estudos para fixá-la só se completassem no final de 1994.
Nas negociações para criar uma TEC, o Governo brasileiro sempre sustentou que a adoção desse tipo de tarifa era imprescindível e necessária à continuidade do projeto do Mercosul, pois seus representantes técnicos argumentavam que:
 Somente uma TEC garantiria a eqüidade de condições de concorrência no espaço geográfico do Mercosul;
 Somente uma TEC garantiria a existência de uma margem de preferência regional;
 Somente uma TEC garantiria o impulso político necessário para a preservação das conquistas alcançadas e para a continuação do processo de integração; e
 Somente uma TEC conferiria unidade aos países membros em suas relações comerciais com outros países e grupos de países.
Assim, apesar da grande complexidade do processo de criação da Tarifa Externa Comum, as negociações nessa segunda fase do período de transição para a construção do Mercosul permitiram, entre julho de 1992 e janeiro de 1994, que se mantivesse o programa de liberalização comercial, que se superasse o problema de desequilíbrios da balança comercial e o das discrepâncias macroeconômicas, e que se lançasse, por fim, as bases de uma TEC, obedecendo a uma lógica de integração e superando-se a lógica de confrontação, preservando-se, desta forma, os objetivos centrais do Tratado de Assunção.
Terceira fase: da Reunião de Colônia à entrada em vigor da União Aduaneira (janeiro de 1994 a janeiro de 1995);
Na terceira fase, os negociadores buscaram detalhar os temas centrais que deveriam ser solucionados até dezembro de 2004, o que permitiria fazer funcionar o Mercosul já como União Aduaneira e dentro dos prazos previstos.
Assim, resolvidas as questões de base pertinentes à eliminação de barreiras tarifárias e não-tarifárias e à adoção de uma Tarifa Externa Comum, passou-se, nessa nova etapa, à concentração das discussões específicas sobre o nível tarifário dos bens de capital, sobre o número de exceções permitido na Tarifa Externa Comum, sobre a questão das Zonas Francas e seus impactos sobre o mercado ampliado, e, finalmente, sobre quais critérios balizariam o Regime de Origem, além de se definir e aprovar a nova estrutura institucional do Mercosul, que passaria a vigorar a partir de 1º de janeiro de 1995, conforme estabelecido pelo Protocolo de Ouro Preto, de 17 dezembro de 1994.
Em respeito ao consenso internacional sobre comércio, o Regime de Origem do Mercosul obedece à seguinte regra básica: é considerado originário da região, portanto com direito à tarifa zero, qualquer produto que tenha pelo menos 60% de valor agregado regional.
Por último, mas não menos importante, deve-se ressaltar que o Regime de Origem só é necessário quando o produto em questão está contido em alguma das listas de exceções à Tarifa Externa Comum.
Na Reunião de Colônia não se discutiram os demais temas que constituem o elenco de objetivos que consolidarão o projeto do Mercosul, quais sejam, a coordenação das políticas macroeconômicas, o livre comércio de serviços, a livre circulação de pessoas e de capitais.
Quarta fase: do Protocolo de Ushuaia sobre Compromisso Democrático no Mercosul até a Reunião de Olivos (julho de 1998 a fevereiro de 2002);
Os governantes dos países membros do Mercosul assinaram a Declaração Presidencial de Las Leñas, em julho de 1992, que declara o imperativo da plena vigência das instituições democráticas como condição indispensável para a existência e o desenvolvimento do Mercosul, tendo a Bolívia e o Chile, países associados ao bloco, aderido a esse fundamental compromisso democrático.
O compromisso democrático, assumido pelos integrantes do projeto Mercosul, contraria a secular tradição de ruptura da ordem democrática nos países do Cone Sul, como revela a história política das sociedades brasileira, argentina, paraguaia e uruguaia e dos demais países no Continente Sul-americano.
Assim, o Protocolo de Ushuaia, de julho de 1998, exige que as sociedades mercosulinas respeitem a vigência das instituições democráticas como condição imprescindível ao pleno desenvolvimento dos processos de integração regional, ao mesmo tempo em que sinaliza, para os parceiros associados e para aqueles em potencial, que o bloco dispõe-se a suspender os direitos e obrigações de todo aquele sócio que venha a desrespeitar o princípio democrático, fundamento para o reconhecimento pela sociedade mercosulina de um verdadeiro Estado de Direito.
Portanto, qualquer ruptura da ordem democrática em um dos Estados Partes do Mercosul implicará na aplicação de procedimentos, sob a tutela dos demais parceiros, que levem à imediata recomposição e retomada do modelo democrático de governo, como já aconteceu, por exemplo, quando da crise política paraguaia, no ano de 1999, em decorrência do assassinato do vice-presidente eleito daquele Estado membro do Mercosul. Caso o país não proceda à retomada da democracia, sofrerá sanções diversas no âmbito regional podendo, inclusive, chegar a perder sua condição de membro do bloco.
É importante destacar que o presidente paraguaio, julgado politicamente pelas instituições de seu país, obteve imediato asilo político no Brasil, o que demonstra que o compromisso democrático, firmado pelo Protocolo de Ushuaia, respeita a democrática instituição do asilo político, consagrada pelo direito internacional, para qualquer cidadão envolvido com questões de divergência ideológica ou de natureza política decorrente de conflitos em seu país de origem.
Do mesmo modo, a Cláusula do Compromisso Democrático ajudou no desfecho da crise argentina decorrente da renúncia do Presidente eleito em 1999, Fernando De La Rúa, cuja sucessão teve mais três Presidentes, sendo o último Eduardo Duhalde, até a posse do Presidente Néstor Kirchner.
Quinta fase: do Protocolo de Olivos, sobre o sistema de solução de controvérsias e segurança jurídica no Mercosul, até as propostas de refundação do Mercosul (de fevereiro de 2002 a 2003)
A evolução do processo de integração no cenário do Mercosul exige, para sua consolidação legal, como ponto de partida inicial, a criação de um direito comunitário capaz de ser automaticamente recepcionado pelos respectivos ordenamentos jurídicos dos seus Estados Partes.
O Protocolo de Olivos, de 18 de fevereiro de 2002, sucessor do Protocolo de Brasília para a Solução de Controvérsias, criou uma estrutura jurídica para decidir sobre controvérsias entre Estados Partes, empresas ou indivíduos, no ambiente do Mercosul, composta por Tribunais Arbitrais Ad Hoc e um Tribunal Arbitral Permanente de Revisão, cuja sede definitiva foi inaugurada em 13 de agosto de 2004 em Assunção, no Paraguai.
Assim, o Grupo Mercado Comum, agente integrante da estrutura institucional do Mercosul, conforme o Protocolo de Ouro Preto, que coordena grupos de trabalho encarregados de formular políticas econômicas e setoriais, gera linhas de ação para que os segmentos econômicos interessados ponham em movimento as relações comerciais e de negócios entre os Estados Partes.
De outro lado, em paralelo ao trabalho do Grupo Mercado Comum, que emite Resoluções, existem as Decisões do Conselho do Mercado Comum e as Diretrizes da Comissão de Comércio do Mercosul, fontes jurídicas derivadas do Mercosul, que podem gerar controvérsias sobre sua interpretação, aplicação ou o não cumprimento do que estabelecem o Tratado de Assunção, o Protocolo de Ouro Preto ou outras normas celebradas no marco do Tratado de Assunção, fontes jurídicas básicas do bloco.
Ao longo dos primeiros doze anos de existência do Mercosul, acumularam-se resoluções, decisões e diretrizes com potencial de controvérsias, criando-se, então, para além dos foros como a Organização Mundial do Comércio e outros, um foro específico para a solução de controvérsias entre os Estados Partes, empresas e cidadãos no âmbito do Mercosul.
Quando surgem controvérsias, num primeiro momento, o Protocolo de Olivos estabelece que os Estados envolvidos procurem resolvê-las mediante negociações diretas entre as Partes em conflito, negociações que devem ser informadas ao Grupo Mercado Comum através dos canais estabelecidos pela Secretaria do Mercosul.
No caso de não se alcançar uma solução para a controvérsia, qualquer dos Estados Partes envolvidos poderá iniciar, diretamente, procedimento arbitral que tramitará perante um Tribunal Ad Hoc, formado por árbitros indicados pelas partes interessadas, a partir de uma lista registrada na Secretaria Administrativa do Mercosul, composta por doze integrantes.
Existe a possibilidade, conforme o Protocolo de Olivos, de interpor-se recurso das decisões dos Tribunais Arbitrais Ad Hoc junto ao Tribunal Permanente de Revisão.
Sexta fase: O Programa de Trabalho do Mercosul 2004 &mdash 2006 é uma agenda que retoma e aprofunda o processo de integração regional (de janeiro de 2004 a dezembro de 2006).
Em dezembro de 2003, o Conselho do Mercado Comum, órgão decisório máximo do Mercosul, formado pelos Ministros das Relações Exteriores e da Economia ou Fazenda, responsável pela condução política do processo de integração no espaço geográfico do Mercosul, aprovou um Programa de Trabalho do Mercosul para o triênio 2004 - 2006.
O programa em referência destina-se a instruir as várias instâncias operacionais do Mercosul a inserir em seus respectivos programas de trabalho as linhas de ação destacadas como prioritárias pela agenda de trabalho do Mercosul para o triênio 2004 - 2006. Esta Decisão do Conselho do Mercado Comum não necessita ser incorporada ao ordenamento jurídico dos Estados Partes, por regulamentar aspectos de implementação organizacional ou de funcionamento do Mercosul.
A estrutura da nova Agenda do Mercosul para 2004 - 2006, que se fundamenta em um diagnóstico geral do processo, aponta a necessidade de resgatar o debate de inúmeras questões para as quais ainda não se encontrou uma solução e que impedem a evolução do processo de integração. Nessa estrutura, tem-se três grandes capítulos: a agenda do Mercosul Econômico e Comercial, a do Mercosul Social e a do Mercosul Institucional, cujos conteúdos detalham-se a seguir.