Discurso de abertura da Comissão Geral da Seca no Nordeste
Senhoras e Senhores Deputados, é com grande espírito de respeito e preocupação com o povo nordestino que organizamos esta Comissão Geral sobre a Temática da Seca, para discutir os problemas vividos pelo Nordeste em decorrência da forte estiagem que afeta a região. Mais que isso, queremos debater as causas desses problemas e as possíveis soluções.
A seca atual começou em 2011 e, afirma-se, é a pior dos últimos cinquenta anos. Mais de 1.400 municípios estão em situação de emergência. A seca atinge 90% da região semiárida e vem afetando não somente a população difusa da zona rural, mas também os centros urbanos, provocando colapso no abastecimento de água em muitos deles. Nossos climatologistas apontam que a seca decorre do aquecimento das águas e de mudanças no padrão de movimento das nuvens no Oceano Atlântico.
Recursos emergenciais estão sendo destinados para renegociação da dívida de agricultores afetados e para ações como o Bolsa Estiagem, a distribuição de água com carros-pipa e a abertura de poços. O Programa Água para Todos está promovendo a implantação de 150 mil cisternas, 3.000 pequenas barragens e 6.000 sistemas coletivos.
Nos últimos dez anos, a renda média na Região Nordeste apresentou crescimento acima da média nacional. Em grande medida, esse crescimento está relacionado aos programas de transferência de renda, às aposentadorias rurais e aos reajustes no salário mínimo.
As ações emergenciais, associadas à melhoria da renda das famílias, possibilitaram maior resistência da população aos efeitos da seca, evitando-se saques e grandes êxodos, como os ocorridos em eventos anteriores. Ainda assim, a seca atual tem trazido de volta tristes cenários, como animais mortos e lavouras perdidas. O rebanho bovino já perdeu mais de um milhão de cabeças, nos últimos meses.
As secas nordestinas são fenômenos naturais cíclicos. De acordo com o CEPED – Centro de Estudos e Pesquisas sobre Desastres da Universidade Federal de Santa Catarina –, entre 1991 e 2010 foram feitos registros de 31.909 eventos adversos no Brasil, dos quais 16.944 no Nordeste, em virtude da estiagem e da seca. Tais eventos decorrem de diversos fenômenos globais, especialmente aqueles relacionados ao movimento atmosférico e às correntes marinhas dos Oceanos Atlântico e Pacífico.
O Semiárido nordestino ocupa em torno de 13% do nosso território e caracteriza-se por condições de solo e clima semelhantes às de outros semiáridos do mundo. A pluviosidade, que varia entre 300 e 800 mm/ano, é muito irregular e os solos são arenosos, rasos, salinos e pobres.
No Império, buscavam-se os meios para “acabar com a seca”, mas hoje sabemos que ela é um fenômeno com o qual precisamos aprender a conviver. A ocorrência da seca não pode resultar em desastre para a população.
Precisamos ultrapassar a visão determinista, segundo a qual a seca gera atraso na região, para uma perspectiva preventiva, apresentando e implantando ações de preparação e adaptação, capazes de eliminar o sofrimento e, ao mesmo tempo, promover o desenvolvimento sustentável. A população do Semiárido deve ser preparada para se manter em condições de bem-estar, ainda que a estiagem prolongada sobrevenha.
O Brasil possui um robusto arcabouço legal no que se refere ao planejamento do uso do solo e à prevenção de desastres. Em 2012, aprovamos a Lei nº 12.608, que instituiu a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil e incorporou grandes avanços no ordenamento jurídico nacional sobre gestão de desastres. A legislação anterior estava muito focada nas ações de resposta e reconstrução, disciplinando de forma muito tênue a prevenção.
A Política Nacional de Proteção e Defesa Civil abrange as ações de prevenção, mitigação, preparação, resposta e recuperação e tem, entre seus objetivos, promover o monitoramento dos eventos meteorológicos e hidrológicos causadores de desastres. Visa, ainda, à incorporação do risco de desastre e das ações de proteção e defesa civil entre os elementos da gestão territorial e do planejamento das políticas setoriais.
A Lei nº 12.608, de 2012, autoriza a criação do sistema de informações e monitoramento de desastres, cuja base de dados deve ser compartilhada pelas três esferas da Federação, visando ao oferecimento de informações atualizadas para prevenção de desastres em todo o território nacional.
Ressaltamos que o Centro de Previsão e Estudos Climáticos, o Instituto Nacional de Meteorologia e a Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos realizam o monitoramento e a previsão climática para a região, cujos resultados são divulgados regularmente por meio de boletim eletrônico. Nossa expertise nesse campo temático tem avançado muito, o que coloca o Brasil como um dos centros de monitoramento do clima global, no âmbito da Organização Meteorológica Mundial, a OMM.
Contudo, precisamos avançar no que diz respeito ao uso da informação produzida por nossos técnicos e cientistas, especialmente nos Estados e Municípios. É fundamental que as previsões climáticas alcancem os gestores locais, para que eles possam preparar a população para o enfrentamento dos eventos adversos, com o apoio dos governos estaduais e da União. Essa preparação evitará que tais eventos causem mortes e assolem a vida das famílias e a economia local.
Além da Lei 12.608, de 2012, outra importante norma é a Lei nº 9.433, de 1997, que prevê diversos instrumentos de gerenciamento das águas, entre os quais os Planos de Recursos Hídricos, elaborados por bacia hidrográfica e nas escalas nacional e estaduais. Tais planos devem orientar os gestores em relação à evolução de atividades produtivas e de modificações dos padrões de ocupação do solo das respectivas bacias, além de apresentar o balanço entre disponibilidades e demandas futuras de água e metas de racionalização de seu uso. Trata-se, portanto, de instrumento essencial de planejamento da gestão das águas, especialmente nas áreas críticas em relação à sua disponibilidade, como é o caso da Região Nordeste. Devemos, assim, fomentar a elaboração e implantação de tais planos, integrando-se a gestão desses recursos à prevenção de desastres na região.
O Brasil é signatário da Convenção das Nações Unidas de Combate à Desertificação e Mitigação dos Efeitos da Seca, aprovada após a Eco-92. Essa Convenção define, entre as obrigações dos países afetados, a implantação de uma política de combate à desertificação e de mitigação de seus efeitos. Cumprindo as determinações da Convenção, o Brasil elaborou o Programa de Ação Nacional de Combate à Desertificação e Mitigação dos Efeitos da Seca – o PAN-Brasil.
A desertificação é um dos mais graves problemas decorrentes do uso inadequado do solo nas regiões semiáridas. Diferentemente da seca, que é um fenômeno natural, a desertificação tem causas humanas, relacionadas ao mau uso do solo. No Nordeste, foram já identificados núcleos de desertificação em Seridó, entre o Rio Grande do Norte e a Paraíba; em Irauçuba, no noroeste do Estado do Ceará; em Gilbués, no sul do Piauí; e em Cabrobó, Pernambuco.
Entretanto, apesar da severidade climática a que está sujeita, a Região Nordeste apresenta imensa riqueza biológica. A Caatinga, palavra de origem tupi que significa “mata branca”, possui alta diversidade de espécies e ecossistemas adaptados às características hidrológicas adversas. Os especialistas consideram-na a região semiárida mais rica em biodiversidade do mundo. Ainda assim, o bioma é desvalorizado e o menos estudado do País.
Com 25 milhões de habitantes, a Caatinga também é uma das regiões semiáridas mais densas do Planeta, com cerca de 30 hab/km2. Grande parte dessa população depende muito da biodiversidade regional para sobreviver. A biomassa atende a um terço da demanda de energia da região, especialmente com o uso da lenha.
Como, então, conciliar a economia dos sertões com suas características naturais? Como garantir qualidade de vida para a população nordestina em condições tão adversas?
A economia do interior do Nordeste foi marcada desde cedo pela produção pecuária, que abastecia inicialmente as regiões produtoras de cana-de-açúcar e, posteriormente, as zonas minerárias do Sudeste. Desenvolveu-se também a caprinocultura, nas áreas menos propícias ao gado.
Para mitigar os efeitos da seca, para que esta deixe de ser uma aflição e um calvário para o povo nordestino, temos que debater soluções duradouras. Para tanto, devemos aproveitar as potencialidades que a própria região oferece.
Em relação ao aproveitamento energético, por exemplo, há um enorme potencial de energia solar e eólica, o que representa uma janela para o seu desenvolvimento econômico. Destacamos especialmente o aproveitamento da energia solar, de alto potencial no Semiárido. No Brasil, o valor máximo de irradiação global ocorre na Bahia, próximo à fronteira com o Estado do Piauí, devido à baixa precipitação ao longo do ano e à baixa cobertura de nuvens.
Em relação à produção de alimentos, devemos lembrar que terras áridas e semiáridas de outras partes do Planeta contribuem de forma significativa, às vezes com menores índices pluviométricos. As terras secas abrigam 50% do rebanho mundial de gado. Temos exemplos de áreas semelhantes à Caatinga que sustentam uma produção agrícola pujante, seja pelo uso de culturas adaptadas, como os plantios de oliveiras e uvas na região mediterrânea, seja pelo desenvolvimento da agricultura irrigada, como as plantações no Estado da Califórnia, Estados Unidos. A agricultura é praticada há milhares de anos também em regiões desérticas, como em Israel e no Egito.
Na Caatinga mesmo, há exemplos que merecem ser ressaltados, como a apicultura pujante dos Estados do Piauí e do Ceará e o polo de fruticultura irrigada em Juazeiro e Petrolina.
Recentemente, pesquisadores da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, em parceria com a UFRJ -Universidade Federal do Rio de Janeiro -, descobriram um gene altamente tolerante à seca no café. Testes de transgenia realizados em Arabidopsis thaliana, espécie herbácea usada em estudos de genética da qual se tem o sequenciamento completo do genoma, conferiu resistência às plantas testadas a um regime de quarenta dias sem água. Espera-se, agora, aplicar esse mesmo gene em culturas como soja, cana-de-açúcar, algodão e trigo, para seu cultivo seguro no Semiárido. Essa tecnologia poderá ser colocada à disposição de produtores nordestinos nos próximos anos, a baixos custos. Sem dúvida, trata-se de uma grande descoberta, que poderá fomentar em muito a agricultura no Nordeste.
E temos tecnologias de extrativismo sustentável da Caatinga em desenvolvimento. Estudos realizados pela Embrapa, em conjunto com universidades nordestinas, mostraram, por exemplo, que é possível a produção sustentável de lenha no bioma. A exploração dentro da capacidade de suporte dessa vegetação poderá manter o uso da lenha como fonte de energia para as famílias, sem comprometer a conservação da biodiversidade. Além disso, o pousio e a rotação de culturas permitem conciliar a produção econômica com a conservação da vegetação nativa.
Não podemos deixar de mencionar também a exploração sustentável do umbuzeiro, planta nativa da Caatinga, pelas mulheres de Uauá, no sertão da Bahia. Desde 2004, elas produzem e vendem geleias, doces e compotas de umbu para vários países.
Senhoras e senhores, o Nordeste não tem que ser marcado pela pobreza, pelas desigualdades sociais, pela degradação ambiental e pela desesperança. Temos a missão de elaborar e implantar um modelo de desenvolvimento para o Semiárido, para que esses exemplos deixem de ser ilhas de sucesso e ganhem escala.
Um dos pilares desse modelo é a capacitação tecnológica, a ampliação de nossa base de conhecimentos sobre os potenciais da região, principalmente em relação à produção de energia e alimentos. Devemos fortalecer os centros de pesquisa regionais, aproveitando e expandindo a expertise local.
Destacamos o papel da bioprospecção, tendo em vista a riqueza da Caatinga e o nosso nível de desconhecimento em relação a esse bioma. A pesquisa poderá fomentar o aproveitamento das espécies nativas em aplicações industriais e agrícolas.
Simultaneamente, é preciso promover os mecanismos para a transferência de recursos e de tecnologias para o desenvolvimento sustentável da região. A assistência técnica precisa ser urgentemente fortalecida, para subsidiar em especial os pequenos produtores agrícolas e as populações extrativistas. Assistência técnica e recursos estão entre as principais ferramentas para que pequenos produtores ganhem aumento da produtividade em condições sustentáveis. Ressaltamos que o sucesso da transferência de recursos e tecnologias depende da garantia de educação de qualidade para as comunidades locais.
Quanto aos recursos hídricos, além das obras em andamento, como a transposição do rio São Francisco e a abertura de poços, a infraestrutura de convivência com a seca requer o aumento da capilaridade dos sistemas de distribuição de água para as populações difusas dos sertões, a partir dos reservatórios já existentes. É preciso fazer a distribuição horizontal.
O Nordeste apresenta também grandes reservas de água subterrânea na fronteira da Bahia com Pernambuco, na Chapada do Araripe, na Chapada do Urucuia e na região de Irecê. A perfuração de poços é cada vez mais frequente, mas é preciso controlar o seu aproveitamento, para garantir a perenidade dessa importante fonte hídrica.
Reiteramos a necessidade de combater a degradação ambiental, que causa o empobrecimento do solo, o surgimento dos núcleos de desertificação e o comprometimento dos valiosos recursos hídricos. Precisam ser definidas metas e ações específicas para frear essa degradação, incluindo-se o controle do desmatamento e a revitalização de bacias, em especial a do rio São Francisco.
Os princípios que apresentamos aqui têm por fim apontar caminhos ao longo dos quais o sertanejo poderá trilhar sem ficar à mercê das condições do tempo. Esses princípios têm em vista o desenvolvimento de uma economia baseada nos recursos locais, que valorize a diversidade cultural da região e promova a sustentabilidade ecológica. Uma economia pautada na convivência com a estiagem e a seca, capaz de promover o bem-estar e o engrandecimento do povo nordestino.
Muito obrigado!