Texto

DEPARTAMENTO DE TAQUIGRAFIA, REVISÃO E REDAÇÃO

 

NÚCLEO DE REDAÇÃO FINAL EM COMISSÕES

 

TEXTO COM REDAÇÃO FINAL

 

PROGRAMA MEMÓRIA POLÍTICA

EVENTO: Entrevista                   

N°: ESP008/03

DATA: 15/05/2003

INÍCIO: 15h00min

TÉRMINO: 17h27min

DURAÇÃO: 02h28min

TEMPO DE GRAVAÇÃO: 02h28min

PÁGINAS: 64

QUARTOS: 30

 

 

DEPOENTE/CONVIDADO - QUALIFICAÇÃO

 

HÉRCULES CORRÊA DOS REIS – Ex-dirigente do Partido Comunista Brasileiro – PCB.

 

 

SUMÁRIO: Entrevista com o Sr. Hércules Corrêa dos Reis.

 

 

OBSERVAÇÕES

 

Há palavras e expressões ininteligíveis.

Há falha na gravação.

Houve intervenção fora do microfone. Inaudível.

Houve exibição de imagens.

Conferência da fidelidade de conteúdo – NHIST 23/12/2010

             O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Conte aí os seus primeiros tempos, a sua formação escolar, sua família, lá em Cachoeiro de Itapemirim. Você é conterrâneo de Rubem Braga...

            O SR. HÉRCULES CORRÊA  DOS REIS - Roberto Carlos, Nara Leão...

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Do Roberto Carlos.

O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Nara Leão.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Hein?

O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - De Nara Leão.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Nara Leão.

O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Primeiro, hoje eu dou importância a isso, eu nasci em 1929.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Nasceu...

 O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Nasci em 1929, ano da grande crise. Então, eu sou filho da crise.(Risos) Eu nasci em Cachoeiro de Itapemirim, em 16 de dezembro de 1929 — dizem que foi às 7h10min da manhã —, em pleno verão. Nasci no Distrito de Amarelo, da cidade de Cachoeiro de Itapemirim, num asilo de loucos. Então, coincidem: 1929, crise econômica com asilo de loucos. (Risos.) E por aí vocês estão vendo que eu não era flor que se cheirasse, não é?

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Por que num asilo de loucos?

O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Porque meu pai trabalhava em construção civil e tinha sido contratado para reformar o asilo. Como era uma reforma muito longa, prevista para durar 2 anos, eles montaram uma casa lá, porque era muito longe do centro da cidade. E passamos a morar lá. Minha mãe ficou grávida e me colocou no mundo lá, naquela situação. Então, eu sou dessa época.

 Depois, de acordo com as coisas que aconteceram no asilo, nós saímos de lá. Meu pai ainda ficou lá, entendeu? Saímos de lá porque havia um louco que queria matar minha irmã para comê-la cozida.

O SR. ENTREVISTADOR (Ana Maria Lopes de Almeida) – Ai, meu Deus!

O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Loucura total! Meu pai ficou apavorado e nos tirou de lá! Então, nós fomos morar no Corte Grande, em Cachoeiro de Itapemirim. Meu pai ficou lá, e, nos fins de semana, ele ia em casa.

Então, eu me criei nesse ambiente já desde pequenininho. Nasci com 6 quilos e 200 gramas. Pequenininho, não é? Guardei, na trajetória da minha vida, a fama de comer muito (risos), de gostar de comer, entendeu? Ontem eu levei uma repreensão da Ednalva porque comi uma torta de queijo inteirinha, sozinho. (Risos.)

 Então, comecei num ambiente familiar, entendeu? Família bem interiorana, Meu avô por parte de mãe era colono de café; meu pai trabalhava em construção civil; eu tinha um tio alfaiate. Minha avó era descendente de índia, mistura de índio com português, não é? Então, a mistura é esta: índio e português.

E fui crescendo. Aos 3 anos tive paralisia infantil. Aí já estávamos morando no Município de Castelo, distante 16 quilômetros de Cachoeiro. Minha mãe se mudou para lá porque havia uma estação ferroviária; ela montou uma barraquinha para vender café com leite, bolinho, sonho. Minha mãe fazia essas coisas com muita habilidade; eram coisas muito gostosas. E nós nos mudamos para lá. Aí eu tive paralisia infantil. Fiquei mais ou menos... Fiquei bom porque uma curandeira disse à minha mãe que eu tinha que ficar 60 dias trancado no quarto; mandou vedar tudo. E ela me dava, dia sim, dia não, uma massagem nas pernas com sebo de carneiro. Foi como eu entendi, que era sebo de carneiro. Não sei o que mais ela colocava mais naquilo. E acabou que, antes dos 60 dias, eu comecei a andar. Um vizinho nosso, cujo pai trabalhava na ferrovia, o garoto teve a mesma coisa que eu. Só que ele não obedeceu e ficou com as pernas secas; andava se arrastando pelo chão. Entendeu? Então, isto foi um fato que me marcou muito, porque aconteceu comigo: eu fiquei preso, trancado, e tal. Na infância isso...

Depois, marcou-me um pouco, na infância, o problema de... Isso já foi em 1935. Meu pai estava desempregado, então, em 1935, minha mãe participou...Ela era uma mistura de aliancista e impulsos pessoais dela. Minha mãe era magrinha, baixinha, atirava muito bem e era conhecida no interior pela capacidade de pontaria. Então, ela participou, em 1935. Ela tinha uma rixa com um dono de fazenda, em Castelo, não sei com quem. Eu sei dizer que, no interior, chegou a haver uma refrega. O Rubem Braga me contestou, dizendo que não houve. Só que o Rubem Braga estava em Recife, nessa época, ele não podia falar de uma coisa em que ele não estava presente. Eu assisti, e foi nessa refrega que minha mãe matou esse dono de fazenda em Castelo. Ela ficou fugindo 1 ano e meio de casa. Nós ficamos sem mãe, então, aquele vazio. Depois de um ano e meio ela voltou. Um juiz de paz, como se chamava na época, não é, julgou-a e absolveu-a, essas coisas do Brasil, no interior. No Brasil há muita coisa que se resolve assim ainda hoje. Então, isso me marcou.

Depois, eu fui trabalhar na fazenda. Com 6 anos, eu estava... Outra experiência da minha vida: minha primeira profissão foi, na realidade, boiadeiro. Eu, criança, vivia na fazenda. Levantava de madrugada, ia juntar as vacas; à tarde, eu colocava as vacas no pasto e prendia os bezerros. De madrugada, eu ia pegar as vacas e as trazia para tirar o leite. Foi o primeiro exercício meu de trabalho. Eu ganhava 500 réis, aquela prata amarela, por semana, e 2 litros de leite. E ganhava, por mês, 20 litros de fubá, que a fazenda dava. E eu fazia esse trabalho. Cedo, às 5 horas da manhã, voltava. O rapaz ficava tirando leite das vacas; eu atravessava a nado, para uma ilha fora da fazenda, a uns 50, 60 metros. Eu atravessava aquilo a nado, ia botar comida para porcos, galinhas, depois voltava a nado outra vez. Então, eu fazia esse exercício.

Aí, o que acontecia? Em geral eu partia um ovo de galinha, comia-o cru, e voltava nadando. Ao chegar em casa, tomava 1 litro de leite cru, tirado do peito da vaca. Então, eu fiz isso durante um período de 2 anos. Eu comia muito queijo. Nessa época — hoje, dizem que tem importância, mas eu nunca pensei nisso —, eu gostava muito de comer carne de capivara. Então, isso me deu uma situação no sangue que, mesmo diabético, eu sou um cara que, se operado, cicatriza tudo em 3 dias. Entendeu? Os médicos ficam impressionados! Um rapaz que trabalha com sangue me disse que deve ser proveniente disso. Deve ser, eu não sei se é, não tenho a menor ideia! Então, trabalhei 2 anos na fazenda. Nesses 2 anos, meu pai ficou desempregado. Então, nós tivemos que viver de horta, pescar para vender na ferrovia. Era uma vida complicada.

 Aí, depois, além de exercer esse trabalho, eu fazia o trabalho de transportar milho, café, madeira. Então, eu virei uma espécie de carreteiro, carreiro de boi. Depois de tomar o café da manhã na fazenda, eu andava, para mim e para os outros, com 6 juntas de bois, 3 em cada carro. Aquilo é um exercício de você dar nó, apertar, amarrar, ajustar, então, eu fiz muito isso, né! Andei muito a cavalo. Isso foi me dando um vínculo mais efetivo. Trabalhei na colheita de café, com meu avô, trabalho muito duro. Colher café, naquela época, era um trabalho muito duro. Dizem que hoje melhorou um pouco, eu não sei. Mas, naquela época, era duríssimo. Então, eu tive uma vida no campo mais ou menos intensa.

Aos 8 anos, eu tive que ir para Cachoeiro de Itapemirim, para a casa de uma tia minha, para poder estudar, porque em Castelo não havia escola. Lá só havia uma estação ferroviária, que era entroncamento. E aí também aconteceu uma coisa que naquela época eu não percebi, mas agora, depois de velho, depois de passar por tudo isso, eu passei a entender a experiência. Eu aprendi a trabalhar com o telégrafo morse, da ferrovia, sem saber ler. Sem saber ler! Então, eu tive contato com a tecnologia moderna da época sem saber coisa alguma!

 O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Código morse.

             O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - É, o telegrafista me ensinou! Então, ele ia para as gandaias dele, passear — ele era jovem, tinha uns 23 anos, sei lá —, e eu ficava na estação! Chegavam os comunicados, eu os respondia. Eu sabia tudo aquilo ali, ele me ensinou tudo. Então, é um outro traço interessante da minha vida, que valorizo hoje. Eu aprendi a fazer uma coisa que não era possível, era um negócio complicado, muito complicado! Isso às vezes me dá a ideia de que peguei gosto pela formulação. Nunca fui... Sempre fui um razoável formulador e articulador de política. Nunca fui um grande agitador de política. Fui articulador e formulador, entendeu? Outros companheiros, por exemplo, o Luiz Tenório de Lima, em São Paulo, sempre foi um grande agitador. Nunca formulou nada. Mas você botava uma ideia formulada na cabeça dele, na boca do Luiz, ele fazia uma festa em São Paulo, entendeu? Ele tinha uma capacidade de agitar impressionante! Eu nunca tive essa capacidade. Eu me esforçava, mas eu gostava muito de articular, preparar. Depois, agir, mas já no plano da política geral.

Aprendi essa coisa no telégrafo sem fio. Fui para a escola, fui trabalhar na casa da minha tia em Cachoeiro do Itapemirim. Ela também era muito pobre e tinha uma horta. Ela vivia daquela horta. Plantava horta e vendia verduras. Então, encaixei-me aí. Naquela época, para cada mil  réis vendidos ela me dava 100 réis. Eu guardava. E fui para escola, Grupo Escolar Graça Guarda, em Cachoeiro de Itapemirim, dirigido pela tia do Paulo Rattes, dirigido pela Maria Rattes. Lá estudei, fiz o primário em 3 anos. No segundo ano, passei para o terceiro e passei para o quarto. Havia prova de meio de ano, e consegui passar. Então, fiz o primário em 3 anos.

Eu vendia verdura, e foi com isso que comprei o terno para receber o diploma, calçado. Meu tio era alfaiate e fez o terno para mim. Meus pais não puderam ir à formatura, porque estavam em Coutinho. Não tinham como, não tinham recurso. Fui acompanhado na formatura por uma tia chamada Luísa, que era libanesa. Ela era casada com um irmão do meu pai, e tinha simplesmente 18 filhos, todos vivos. A casa deles era um pandemônio.

Essas coisas foram acontecendo na minha vida. Nesse período aconteceram coisas dessas. Eu plantava, estudava e de noite pegava bicos, como carregar lata de areia. Os caras que estavam construindo casa me pagavam. E fui levando a minha vida. Eu vendia verdura. Fui um razoável moleque de rua. Eu gostava de jogar bola de gude, pião, entendeu? era chegado a uma brigazinha, né?

Então, por causa de uma dessas brigas — naquela época o cano do guarda‑chuva era de metal —, aprendi a fazer espingarda daquilo. Eu jogava muita bola de gude. Então, na rua nova havia um lugar, na frente do armazém, onde se jogava. E havia um garoto da minha idade que era muito valentão, ele andava sempre com um canivete. Então, jogando bola de gude, eu ganhei. Ele foi lá e disse: “Essas bolas você não vai levar”. Tomou tudo e botou no saco. Eu fui em cima dele, ele puxou o canivete. Aí eu vi que não dava. Fui para casa. Preparei uma espingarda de cano de guarda-chuva, botei sal grosso, toda ela com sal grosso e pólvora. No dia seguinte, cheguei ao barranco, olhei e o rapaz estava lá embaixo. Aí, gritei para ele: “E as minhas bolas?” Ele disse assim: “Vem buscar”. Ele estava sem camisa, jogando. Peguei a espingarda, tum, dei um tiro no peito dele. Ele ficou 4 dias no hospital, queimando de febre. Feriu tudo, empolou tudo. Então, fui aprendendo certas maluquices assim, na prática da vida, né!

Porque minha mãe tinha uma característica. Ela atirava bem. E se você apanhasse na rua, você apanhava mais em casa. Não tinha disso. Chegou em casa apanhado, apanhava dobrado. Nós, filhos, nunca apanhamos do meu pai. Mas com minha mãe não havia conversa. Ela não dava sossego. Minha mãe tinha esse tipo de disciplina, ela atirava bem. Então, ela não perdoava: apanhou na rua, apanhava em casa. Na escola, ela começou a ensinar a cartilha, do á-bê-cê para a gente. Ela cortava um papel de pão e botava a letra. Ensinava a gente. Quando você errava, ela castigava. Ela dizia: “Filho meu tem que saber ler e escrever. Não vai ser assim”. Ela nunca deu colher de chá! Todos nós tivemos que ir para a escola e aprender. Depois, ela ensinou para a gente... Todo mundo tinha que saber lavar, cozinhar, passar roupa. Tudo direitinho. Todos nós sabemos. Claro, para nós, né! Tinha que arrumar casa. Ela escalava todo mundo: hoje você limpa a casa, hoje você faz isso, faz aquilo, você passa roupa! Era assim.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Isso viria ser útil ao longo da sua vida, não é?

O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - De todos nós! Ela ensinou para todo mundo! não foi só para mim, não. Outra coisa que depois entrou no livro que fiz foi que minha mãe, numa época da nossa vida, no mês de junho ou julho, ela preparava um purgante de óleo de rícino para combater verme, com erva-de-santa-maria, e dava para a gente de madrugada. Naquela época, éramos 6. Minha irmã mais velha tomava no dia seguinte. A gente tomava antes, porque o efeito daquilo exigia que alguém tomasse conta, limpasse a casa, botasse em ordem. No segundo ano, nós combinamos, nos reunimos e dissemos que não podíamos tomar aquele remédio, ele era muito ruim! Açúcar cristal, óleo e erva-de-santa-maria é um negócio intragável às 4h da manhã. Aí nós resolvemos fazer uma rebelião para não tomar. Aí, tudo bem, aí veio a história. Minha mãe disse: “Amanhã vai ter purgante. A Hilda vai ficar para depois”. A Hilda é minha irmã mais velha, que mora hoje em Jacarepaguá, está com 78 anos. A Hilda ficou para o outro dia. De madrugada ela chegou com a lamparina acesa, a Hilda junto com ela. Ela começou por mim, não é : “Toma o remédio”. Eu disse: “Não, não tomo”. A rebelião estava combinada, não é? Ela disse: “Como não toma?” “Não vou tomar”. “Ah, não vai tomar, não? Segura esse copo aqui”. Foi lá dentro, voltou com a garrucha de 2 caninhos, meteu na minha boca e disse assim: “Ou toma ou morre”. Você já imagina, não é? Tomei. (Risos.) Perdi a minha primeira batalha subversiva. Perdi para minha mãe, que era uma mulher muito destemida.

Depois, ao fim da vida, ficou acovardada. Acovardada não, ficou com medo. Ela tinha um pavor. Quando ela me viu aqui no Rio de Janeiro, mais tarde, sair na página do Diário da Noite queimando a Casa Lohner, na Avenida Rio Branco, na época da guerra, na primeira página, ela teve um piriri. Ficou apavorada! Sentou comigo, tentou me dar conselho, mas eu já estava mordido pelo veneno. Não teve jeito!

Minha mãe era um pouco isso. Ela influenciou muito a mim e a todos nós. Ela tinha um pulso de ferro nas coisas. Ela não tinha muita noção, mas era um pulso de ferro. Ela enfrentava as coisas. Meu pai, não. Ele trabalhava com construção civil. Depois da reconstrução do asilo, ele foi reconstruir o convento dos padres em Cachoeiro de Itapemirim. E construiu o cemitério. O cemitério de Cachoeiro que existe hoje, toda a parte arquitetônica foi feita por ele, entendeu? Ele era um cara que tinha ferramenta, fazia santos na pedra, imagem. Enfim, mudava aquilo. Ele tinha um monte de ferrinhos. Então, ele era um artesão qualificado pela vida, não é!

A única vez que levei... Para não dizer que nunca levei uma coisa do meu pai, levei uma reguada! Ele tinha uma régua de aço. Então, ele fez abrir uma pedra para um... Um mármore, marretas, tudo direitinho. E teve que sair para comprar qualquer coisa que estava faltando para completar aquele trabalho. Era mais ou menos no mês de outubro, a gente estava caminhando para 2 de novembro, quando o cemitério do interior ficava assim, não é! E eu, brincando debaixo de onde ele estava trabalhando, não prestei atenção. Tinha um vidro de ácido muriático. Eu bati, o espeto bateu em cima da pedra, quebrou e arrebentou a pedra toda! Quando ele chegou, me deu uma reguada de aço. Doeu para burro! Ele teve que refazer aquilo tudo, trabalhar noite afora para dar pronto para o cemitério. Foi a única vez que aconteceu isso. Meu pai participou de 32 contra os paulistas. Ele era getulista e, do ponto de vista militar, prestista. Minha mãe era aliancista. O problema dela era de outra natureza. Ela tinha a compreensão dela do processo. Meu pai, não. Meu pai participou de 32 em São Paulo. Também foi outra época em que nós ficamos um período sem pai, não é! Depois ficamos sem mãe: 1932, 1935 e 1936.

Então, são esses os dados da minha vida. Vim para o Rio. Minha irmã mais velha veio na frente, porque não tinha o que fazer lá. A miséria era muito grande, não havia emprego, papai desempregado, vivendo de uma plantação, de pescar peixe e horta, trabalho muito raro, e o meu avô, com negócio de colônia de café, estava numa situação difícil. Aí minha irmã veio, no final de 1940, para o Rio, e eu vim mais ou menos no final de 1941, porque não havia outra solução. Meu pai disse: “Olha, não tem jeito, sua irmã está lá e você vai!”. Peguei um trem em Cachoeiro de Itapemirim e vim para o Rio. Cheguei aqui na Barão de Mauá, olhei para o Rio de Janeiro — só tinha ouvido falar do Rio de Janeiro pelo meu avô, que tinha estado aqui em 1906, ainda jovenzinho, veio fazer as aventuras dele. Ele dizia: “O Rio é assim....” Saltei na Leopoldina com 1.700 réis no bolso. Minha irmã morava num lugar que eu não sabia onde era. Eu perguntei. Ela morava no Meier. Aí acabou que eu peguei uma condução, um taioba, e fui para o Meier. Quando a minha irmã me viu, ficou apavorada: “Você veio aqui e não tem o que comer”. Eu disse: “Ah! Estou aí”.

E comecei a minha vida assim no Rio. Comecei a minha vida porque na casa onde ela estava não tinha lugar, aí ela teve que alugar um quarto no Morro do Pinto, de frente para a antiga Barão de Mauá, entendeu? Fomos para lá. Então, ela ficou apavorada. Ela chorava dia e noite. Ela trabalhava numa fábrica, esse negócio de bordado...

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Fiação.

O SR. HERCULES CORRÊA DOS REIS - Não era não, produzia renda, fábrica de renda na Rua Capitão Félix, em São Cristóvão. Aí não tinha o que fazer. Eu não podia trabalhar porque eu era menor de idade. Aí eu fiquei andando pela rua vendo o que tinha. Aí vi que tinha uma porção de garotos engraxando sapato. Não tive dúvida, fui lá catei uma caixa de sapato e fui engraxar sapato. Minha irmã descobriu que eu, engraxando sapato, ganhava mais do que ela, porque eu passei a dar dinheiro para ela para o bonde e todo domingo a gente ia para o cinema! tinha dinheiro para ir ao cinema. Então, foi uma coisa gozada. Ela ficou entusiasmada. Ela, no choro diário dela, ficou entusiasmada. E aí foi. Junto à caixa de sapato... Tinha um mercado ali em São Cristóvão, perto da Leopoldina, na estação Barão de Mauá, e eu comprava laranja, descascava e colocava ao lado da caixa de sapato. Ficava o dia inteiro ali debaixo da Ponte dos Marinheiros, porque aquilo ali era um caminho de povos. Hoje não vale nada! Naquela época era um caminho de povos. Era igual à Estação de Triagem aqui, era um caminho de povos. Na Estação de Triagem passavam, de manhã, de 6, 7, 8 mil pessoas. Ali, naquela época, era um negócio fenomenal!

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Perto da Lagoa.

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Não, aqui perto da Praça da Bandeira, onde era a Barão de Mauá, estrada de ferro.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Você morava na praia do Pinto.

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Não, senhor, Morro do Pinto, ficava aqui ao lado do Morro da Providência, a primeira favela do Rio de Janeiro. Eu morava no Morro do Pinto, que dá de frente para São Cristóvão, entendeu?

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Vou só fazer uma paradinha para consertar um negócio aqui atrás.

             (Pausa.)

            O SR. HERCULES CORRÊA DOS REIS - Então, de engraxate e tal, trabalhando, um dia apareceu um senhor que também vendia laranja, seu João, um negro alto, andava sempre de chapéu, e disse: “Eh! Garoto, isso aí está dando certo? Pois é, eu tenho um troço aqui que pode te interessar”. Eu disse: “O que é?” Ele disse: “O pessoal da carvoaria — grande carvoaria que tinha ali na Senador Eusébio, hoje Avenida Presidente Vargas, logo ali na curva —, os carvoeiros estão dizendo que tem uma pensão na Rua André Cavalcanti e a portuguesa lá está procurando uma pessoa como você para entregar as marmitas e ajudar na cozinha, e ele acha que você deve ir para lá, porque você é muito esperto”. Aí me indicou. Fui lá falar com o carvoeiro e o carvoeiro me levou para falar com a portuguesa, D. Maria. Eu disse: “Como é que é?” Ela disse: “Você vai ter que trabalhar aqui; o trabalho começa às 6 horas da manhã e vai até 9 da noite, 10 horas. Eu te pago 50 mil réis por mês — naquela época eram réis —, e você tem, pela entrega da marmita, todo sábado e domingo, pinta uma gorjeta do pessoal que dá a gorjeta”, porque servia a mesa também, não é!

Então foi isso! Eu fui para a pensão. Comecei a trabalhar. Trabalhava de... Às 6 horas da manhã tinha que acender um fogão grande de lenha, de ferro, era um trabalho infernal, mas 50 mil réis firme... A minha folga era domingo das 3 da tarde às 6 da manhã de segunda-feira.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Era um bom dinheiro?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Naquela época, para mim, era dinheiro, era dinheiro! Aí eu ia para casa. Minha folga era essa. Eu ia para casa, chegava em casa às 4 horas, minha irmã... A gente se aprontava, ia ao Cinema Centenário, na antiga Senador Eusébio, via filme, vi O Caveira, A Máscara de Ferro, a gente adorava aqueles seriados. Fui trabalhando aí, né!

Tinha o dono de um bar, no mangue, na zona de prostituição, mangue da prostituição, era outro português. Um dia ele chegou lá e começou a conversar comigo e tal e disse: “Vai sair o rapaz do bar restaurante; se você quiser ir lá, eu te pago, faço um acordo contigo”. As pessoas, não sei por que, gostavam do que eu fazia. Eu era desembaraçado, e em princípio eu firmei com ele.

Mas nessa pensão aconteceu a primeira coisa interessante na minha vida. Tinha um barbeiro, seu Machado, português, deportado, ele era barbeiro, trabalhava aqui na Praça Tiradentes, numa rua onde tinha uma barbearia, ele trabalhava ali. Um dia o seu Machado, conversando comigo — ele chegava sempre às 9h30, 9 horas da noite, era o último a quem eu servia a janta —, um dia, conversando comigo, ele disse: “Menino, você gosta de ler?” Eu disse: “Gosto e tal”. Também eu queria ser agradável a todo mundo. Aí ele me deu um livro. Eu dormia no fundo da pensão, num barraco. Eu levei o livro para lá e deixei lá, coloquei debaixo do travesseiro e fui dormir, porque eu estava morto. Passados 2 dias eu peguei o livro, e o livro era A Mãe, de Maximo Gorki. Rapaz, eu li esse livro, fiquei tão impressionado, tão impressionado com aquilo! Achei um negócio aquele livro! Aquele livro me marcou muito, demasiado, marcou muito. Aí eu fiquei com aquele estado de espírito na cabeça, aquelas coisas que o Gorki diz, mas mudei, continuei a minha vida.

Aí fui trabalhar nesse bar restaurante para servir café. Eu trabalhava das 6 da manhã às 6 da tarde e ia para casa, não ficava lá. Voltava no outro dia. De 6 às 6. A minha função principal, além de trabalhar no balcão de café do restaurante, era servir café para as prostitutas entre 7 e 9 da manhã. Eu ia de casa em casa servir café para elas. Em geral estavam todas peladas...

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - No mangue?

O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - No mangue, no mangue! Todas elas nuas! Então, eu passei a conhecer o drama de cada uma delas, os problemas que viviam, as brigas, as navalhadas, entendeu? Eu fazia aquilo. Durante um tempão, eu fiz aquele trabalho.

            Até que um dia a minha irmã foi alugar um barraco lá perto do Morro da Caixa d’Água, lá em São Cristóvão. Chegamos lá e falamos com a dona e tal, e a filha da dona trabalhava na fábrica de tecidos Vitória Régia. Eu comecei a falar e tal... Minha irmã não gostava muito que eu trabalhasse no tal restaurante, mas aquilo me dava 70 mil réis por mês, mais 20, que é a pensão. Aí, começamos a conversar, e a moça disse assim para mim: “Você não quer trabalhar como faxineiro na fábrica onde eu trabalho?” Eu disse: “Depende”. Ela disse: “Vá lá falar com o gerente. Eu vou falar com ele. Ele mora aqui embaixo, na Rua Major Ávila”. Antigamente, era São Cristóvão. Agora é na Tijuca, não é? Eu passei lá, fui lá, bati na porta do cara. E ele disse: “Passa lá na fábrica amanhã”. Eu disse: “Mas passar na fábrica amanhã? Mas eu estou trabalhando. Não dá para eu ir à fábrica durante o dia”. Ele disse: “Então, no domingo que vem, você volta aqui”. Voltei no domingo seguinte, e ele disse: “Tem um problema, você não tem idade para trabalhar na fábrica. Você não tem 14 anos, você vai fazer 14 anos. Mas, de qualquer forma — faltavam 3 meses para eu fazer 14 anos —, a gente acerta com o fiscal, você trabalha lá os 3 meses e depois tira a carteira, faz 14 anos em dezembro e em janeiro você tira a carteira. Na segunda quinzena de dezembro, você requer a carteira e já fica com o protocolo na mão”.

            Eu fui trabalhar nessa fábrica, para ganhar 105 mil réis por mês. Passei de 70 para 105 mil. Foi subindo. Comecei a trabalhar, para fazer limpeza, eu varria a fábrica toda. E esse trabalho implicava que eu limpasse... A fábrica trabalhava, naquela fase, de 6 às 6, entendeu, inclusive sábado, de forma que eu fazia a limpeza de toda parte, e o escritório era a última parte, eu só podia limpar depois de 6 horas. Então, na realidade, eu trabalhava até as 7, sete e pouco, para fazer a limpeza. Então, comecei a trabalhar.

            Aí, o que aconteceu? Isso foi em 1943, 1944. Aí, um ano e pouco depois, começou o negócio da guerra, do ponto de vista prático, foi até o momento em que mandou a força expedicionária. Mas houve um período aí, mais ou menos, sei lá, 8 meses, 1 ano, naquela lengalenga, o Getúlio foi falar com o Roosevelt, enfim.

            Um dia, começou um movimento de greve, entre os tecelões, na fábrica. Eu era varredor, não entendia nada daquilo. Mas eu estava vendo a movimentação! De vez em quando, chegava um monte de polícia na porta da fábrica, uma confusão danada, paravam! O pessoal parou de fazer serão, passou a largar às 4 horas, porque era a luta, já naquela época do Governo Getúlio, por aumento de salário. Então, eles paravam no horário de serão, e, aí, polícia... porque serão era obrigatório quase, você não podia deixar de fazer.

            Aí a greve ferveu um dia lá, veio polícia, uma confusão muito grande. O pessoal saiu às 4 horas, e eu fiquei esperando. Tinha uma reunião no escritório, o dono da fábrica era um alemão, o Guilherme Brechel, e ele ficaram lá discutindo. O gerente era um oficial do Exército, Valter Palmeira. Eles estavam discutindo lá, e eu fiquei sentado, na sala central do escritório, esperando que eles esvaziassem a sala do Presidente, do dono da empresa, do Guilherme Brechel. E era uma confusão, eles falavam, entravam, saiam. Eu fiquei na minha. Quando eles foram embora, eu entrei para limpar o escritório do cara, do Presidente, do dona da empresa, o Guilherme Brechel.

            Eu comecei a limpar e tal e vi um monte de papel rasgado, papel escrito. Eu peguei o papel, juntei, e tinha uma lista de nome de tecelões, que eu conhecia todos, lista de nomes, cálculos e, ao lado daquela página, estava escrito: “Brivaldo Alves de Souza, mandar prender”. Eu não sabia quem era Brivaldo Alves, não tinha a noção exata.

            No dia seguinte, cheguei cedo e fiquei na porta da fábrica, esperando abrir, tinha um português, um português muito sisudo. Perguntei para ele: “Quem é seu Brivaldo?” Ele disse: “Ele só vai chegar dez para as sete, quinze para as sete”. Aí, fiquei ali e tal. De repente, ele olhou, na Rua (ininteligível) Monteiro, lá de baixo, vinha o cara. E ele disse: “Aquele é o seu Brivaldo”. Era um negro, com chapéu, aquele chapéu, com a marmitinha dele. Chegou, passou por mim, e eu saí atrás dele. Ele entrou na fila para marcar o cartão, e eu entrei atrás dele. O pessoal estava pegando às 7, por causa da greve, de 7 às 4. Aí, eu disse: “O senhor é o seu Brivaldo?” Ele disse assim: “Sou”. “Eu preciso falar com o senhor”. Ele disse: “Pode falar”. Eu disse: “Aqui não”. Ele disse: “Onde, então?” Eu disse: “Lá no banheiro”. Ele disse: “Eu vou trocar de roupa e depois eu passo lá no banheiro”. Eu fui lá. Ele chegou, trocou de roupa no quarto, tinha um quarto em que se trocavam para trabalhar. Ele chegou e disse: “O que houve?” Eu peguei e dei o papel para ele e disse: “Esse papel estava lá no escritório do Dr. Guilherme”. Ele olhou o papel. Ele já sabia. Ele disse para mim: “Não fale mais comigo. Não se dirija a mim!”. Aí, foi embora. Eu sei dizer que deu confusão, veio polícia, quiseram prender ele, a fábrica parou. Pegaram aqueles braceletes de tear para dar porrada em polícia. Foi uma confusão desesperada, isso já bem no final do ano, que envolvia aumento de salário, negócio de abono de Natal.

            Quando chegou no meio de janeiro, um dia chegou esse Brivaldo para mim, depois que passou a confusão toda, e disse assim: “Menino, vem cá! Você quer almoçar domingo, participar de um almoço?” Eu disse: “Participo, mas eu jogo futebol”. Ele disse: “Você joga a sua partida de futebol e depois você vai para o almoço, o almoço é por volta de meio-dia, meio-dia e meia”. Aí eu disse: “Está bem”. Eu joguei. Era lá em Bom Sucesso o tal do almoço. Eu cheguei lá para o almoço. Estavam o Brivaldo e mais 7 tecelões. Começamos a conversar, eu conhecia eles e tal. Eu não sabia o que era aquilo. Começamos a almoçar, a conversar, eles começaram a falar do papel, disso, daquilo. De repente, virou um que se chamava Gustavo e disse assim para mim: “Oh, menino, você quer entrar para o partido?” Eu disse: “Que história é essa? Partido?” Ele disse: “É”. Eu disse: “Eu não sei o que é. Que partido é esse?” Ele disse: “É o partido do Prestes”. Eu me lembrei do meu pai, que era fã do Prestes, e disse: “Tudo bem. O que eu vou fazer?” Eles disseram: “Você vai entrar para o sindicato e vai ser cobrador da fábrica no sindicato”. Eles me explicaram que eles eram todos conhecidos como comunistas e que não podiam ir ao sindicato.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Em que ano era isso?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Em 1944, por aí. Essas coisas estão naquele registro que entreguei, essas coisas estão ali, pontuais, expostas de forma mais precisa.

            Eles disseram que eu tinha que ir para o sindicato: “Você não é conhecido. Você vai para lá e, além de cobrar...” Naquela época o sindicato dava um percentual para quem cobrava a mensalidade do sindicato na fábrica. “Nós vamos dizer nomes de pessoas, e você vai procurar e entrar em contato no sindicato. Nós não podemos ir lá. Primeiro, porque seremos presos e, segundo, porque aquele com quem a gente falar está ferrado”.

            Eles constituíam uma base do PCB na fábrica. Eram 8 caras. Por isso, a fábrica, naquela época, estava sempre no noticiário. Mas eles não tinham ligação com ninguém. Só depois da Conferência da Mantiqueira que eles pegaram ligação. Eles eram uma base que funcionava separado do partido, entendeu? Esse Brivaldo tinha pegado em arma em 1935, em Pernambuco, e ele organizou o partido lá na fábrica. E era gozado, porque depois eu descobri que eles tinham um reco-reco, para imprimir folha de papel. Parecia uma folha de papel impressa. Eu disse: “Que diabo é isso?” Eles imprimiam num reco-reco, num troço de madeira. Eles passavam para lá, para cá, para lá, para cá. Como é que chama esse...

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Mimeógrafo.

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS – Não, não era mimeógrafo! Era uma folha. Era um treco que tinha o estêncil, e eles passavam assim, como quem faz cartão de crédito, para cá, para lá, e saía tudo direitinho, manuscrito ou datilografado. E era com aquilo que eles faziam a agitação, e foi com aquilo que eles me botaram um monte de papel na mão, para mandar para as outras fábricas, para convocar uma assembleia por aumento de salário, entendeu? E eu fui fazendo aquilo, e eu gostava daquilo! Informava para eles.

            Aí conseguiu-se, um ano e tanto depois, convocar a assembleia por aumento de salário. Isso tudo antes da guerra. Eu disse: “E agora?” Eles convocaram a assembleia. Havia uns anarquistas no sindicato, terríveis. Então, o que aconteceu? Eles disseram: “Agora, você vai ter que falar na assembleia”. Eu disse: “Falar o quê? Eu não sei falar”. “Mas vai falar.” Sentaram comigo, em uma reunião, duas, três, e me explicaram, fizeram um esquema de discurso. Aí eu treinei aquela porcaria, passei uma manhã de domingo inteira treinando aquilo. Aí, fui para a assembleia, fiquei lá. Os anarquistas não falavam, eles não usavam microfone. Eles diziam: “Não quero microfone. Microfone é instrumento da burguesia”. (Risos.) Eu achava aquilo gozadíssimo. Aí, o cara que era da DOPS, que presidia o sindicato, me deu a palavra. Aí, eu fiz o discurso, que eles tinham me...

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - DOPS?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - É, o Presidente do Sindicato era do DOPS.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Participando?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Era o Presidente do Sindicato! era tecelão e era funcionário do DOPS. Está pensando o quê? O negócio era para valer! Aí, eu fiz o discurso. Quando eu fiz o discurso, em cima da carestia, do negócio do salário, rapaz, a assembleia ficou de pé. Eu fui aplaudido, delirante... Aí, continuei, e novamente fui aplaudido. Eu não tinha noção do que eu estava dizendo. Aí, toquei fogo, aquilo me entusiasmou. O que aconteceu comigo? Eu não sabia falar em público. Aprendi naquele momento e nunca mais parei de falar até hoje. Por isso estou aqui, atropelando vocês. Foi um aprendizado interessante na minha vida esse. Aí, os anarquistas começaram a me chamar de menino. A primeira coisa que eles fizeram foi me propor para a comissão de salário. E eu fui para a comissão de salário com 14, 15 anos, sei lá.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Da fábrica?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Não, não. Do sindicato! Do sindicato, porque, na fábrica, eu já era conhecido, entendeu?

            Nesse período, aconteceu outra coisa. Eu era moleque, não é? Eu pulava muito o muro da fábrica, depois do almoço, para fazer jogo do bicho para os tecelões. Eu pulava, ia lá, fazia o jogo e tal, e eles me davam uma gorjeta.

            Um dia, esse Manoel Garcia, um tecelão grande, com tendência anarquista, disse: “Menino, por que você não faz um jogo?” Eu disse: “Não”. Eu pegava aquele dinheirinho, comprava pão para comer na hora do almoço e tal. Um dia, ele me entusiasmou com aquela história. Eu fui lá e fiz um jogo. Perguntei ao Maneco, o bicheiro: “O que você me aconselha?” Ele me deu lá uns números: “Faz esse jogo aí”. Aí, eu fiz o jogo. Quando chegou a tarde, eu fui lá pegar o resultado, e o Maneco disse assim: “Você ganhou 11 mil e não sei quantos réis no bicho”.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Você que ganhou?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Eu ganhei. Eu ganhei!

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Onze mil?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Rapaz, era dinheiro... Imagine o que eu fiz. Peguei os tecelões todos, botei em um bar que havia na frente, na calçada, servi cerveja e sanduíche para todo o mundo. (Risos.) Aí, fui para casa, não é? Gastei uns dois mil e pouco naquela brincadeira. Aí, fui para casa com aquele dinheiro. Cheguei em casa, inocentemente, peguei e dei o dinheiro à mamãe. Mamãe pegou, olhou, contou, pegou um porrete e disse: “De onde você roubou isso?” Ah, rapaz, passei um apertado. Tive que levar a minha mãe no Maneco, no bicheiro, ele contou a história para ela, e ela voltou para casa. Ela não falou comigo, e eu não falei com ela. Eu fiquei pensando: “O que vai haver?” Ela disse: “Eu não sei o que faço”. Eu disse: “Você pega esse dinheiro e vai comprar...” Nós não tínhamos móveis em casa, não tínhamos coisa nenhuma. O fogão era de pó de serra. Eu disse: “Compra fogão, compra tudo, móvel”. Aí, fomos para um prestamista e compramos móvel para o barraco.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Eram 11 mil?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Era dinheiro que não acabava mais!

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Onze mil?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Onze mil réis!

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Você levou para casa?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Eu gastei 2 mil e 800 réis na farra e levei o resto para casa, dei a minha mãe. Aí, como eu dava o dinheiro todo... Lá em casa era assim, você recebia o dinheiro da fábrica e tinha que entregar na mão dela. Ela dava o dinheiro que achava que tinha que dar para você. Aí, ela quis me dar dinheiro. Eu disse: “Não, não quero, não! Fica com você. Você faz o que você quiser disso!”. Então, essa foi outra coisa muito gozada. Mas, rapaz, quase que eu levei uma tunda da minha mãe. A reação dela era que eu tinha roubado. Você já pensou que tragédia? Ela ficou assustada com aquele dinheiro todo.

            Então, assim, eu entrei no partido comunista. Não entrei por causa de estatuto, não entrei por causa de marxismo-leninismo, não entrei por causa de disciplina. Entrei por causa da questão social. Irritava-me muito ter as coisas, estar produzindo e você não poder consumir. Eu às vezes brinco agora e digo que entrei pelo estômago. (Risos.)

             O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - E como é que foi depois?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Aí, eu fui. A minha trajetória, daí para frente, começou a ficar pública, não é! O meu primeiro embate complicado foi uma greve que dirigi no sindicato em 50.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Você acompanhou a Conferência da Mantiqueira?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Não. A Conferência da Mantiqueira aconteceu... Eu soube dos seus detalhes por Armênio Guedes, que esteve lá. Teve uma turma que esteve na Conferência da Mantiqueira. Eu conheci...

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Foi em 46?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Não. Foi antes. Final de 44 para 45. Tanto é que, quando o Prestes foi solto, abriu uma sede do partido aqui na Glória. Aí, que eu vim de lá para cá. O pessoal da Vitória Régia, que tinha uma base, se apresentou. A direção do partido também não sabia deles. O partido, naquela época, conhecidos, tinha oitocentos e poucos militantes só no País. Aí, começou a crescer. Aí, foi embora! Aí, parecia pipoca. Cresceu de uma forma brutal. Era uma loucura. Aí, comecei a conhecer as histórias aqui, numa sede que abriram do partido aqui na Glória. Era conhecido como a sede da Glória, naquela época. Então, eu entrei por aí e participei ativamente da atividade sindical e do problema de formar Força Expedicionária para ir para Itália. Aí, foram duas coisas que eu fiz: movimento sindical e luta contra o nazifascismo. Aí, eu me meti de corpo e alma no negócio para formar Força Expedicionária. Participei de todos aqueles atos da ida, da chegada, entendeu? Então, foram as duas coisas que marcaram o meu início de ação política: o sindicato e a luta contra o eixo nazifascista. Essas duas coisas me marcaram. Eram divisores de água.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Depois dessa fase, assim, romântica, qual foram os...

O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Não sei se foi romântica. (Riso do orador.) Foi um pouco de jogo bruto.                                                                                

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Você nessa fase não foi preso? Não houve nada contigo?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Não. Levei muita carreira da Polícia. A rigor, eu fui muitas vezes preso em 1949.

           O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Em 1949, foi com qual...

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Era o Governo Dutra!

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Você já era o quê?

O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Eu era líder, membro de comissão de fábrica. Durante a guerra, participei da comissão que dirigiu a fábrica. O dono da fábrica teve que sair fora. Foi exilado em Petrópolis. Aí, se formou uma comissão de trabalhadores com o gerente da fábrica, que era oficial do Exército, para dirigir uma fábrica, em todo o ano de 1945 e um pouco em 1946. Tudo que se fazia na fábrica era sob... Eu era o cara que respondia pelo negócio da comunicação dentro da fábrica. Mandei instalar um rádio, daqueles Telefunken, do dono da fábrica, que eu botei lá. Todo dia, na hora do noticiário da Itália, feito pelo Joel Silveira, eu ligava aquele negócio, botava alto, todo o mundo concentrava, ouvia o noticiário da guerra, voltava para o trabalho. Eu me lembro bem, era 1 hora da tarde, por aí.                        

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) – Me diga uma coisa, durante o tempo de legalidade do partido, durante a Assembleia Constituinte, como é que você atuou?

O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Ah, eu atuei na Constituinte... A primeira é o seguinte: depois da guerra, a primeira coisa que eu fiz, que eu considerei importante foi fazer a campanha eleitoral. E a melhor campanha eleitoral que eu fiz naquela época foi a campanha eleitoral do Jararaca, que tinha o Ratinho, que era fascista. E ele era comunista. Então, foi uma campanha mole, porque os dois iam tocar violão em todo o lugar, com aquela coisa, um abraçava o outro. O Ratinho pedia voto: “Ele é comunista, mas eu peço para ele, porque não é ladrão!” Aí, o Jararaca foi eleito tranquilamente. Foi a melhor campanha eleitoral que eu fiz. Não rolava dinheiro, não rolava intriga. (Riso do orador.) Não rolava nada! Era só discurso, era só discurso!                                                                                                  

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Eram conhecidíssimos!

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - É. E o povo adorava ele. Então, foi a coisa tranquila que eu fiz na minha vida. Nunca mais eu vi uma campanha eleitoral igual àquela, nunca mais! Depois, fui participando de todas elas. Eu também sempre gostei muito de eleição. Onde há eleição, para mim, há a efervescência da formação do poder, a organização para o poder e exercer um tipo determinado de poder. Sempre que você se organiza é para exercer um poder. Sem se organizar, você não exerce o poder.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Agora, a sua primeira descoberta da prisão foi em 1948?

O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Em 48, porque eu comecei a entrar naquela do partido de pedir a renúncia do Dutra. Eu ia para a assembleia do sindicato na sexta-feira à noite e fazia o meu discurso. Em geral, a assembleia do sindicato passou a ocorrer com mais frequência, e era sexta-feira ou sábado à noite. Em geral, eu entrava na assembleia, fazia o meu discurso. Quando eu saía na porta, que era na Maria de Barro, o carro da Polícia já estava lá. Era só entrar e ir preso. Passava duas noites na cadeia. Segunda-feira de madrugada, eles me soltavam para eu ir trabalhar.                                                                                                                   

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Aí você já estava fichado como comunista?           

O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Devia de estar, não é? Porque, primeiro, nesse documento adquirido pelo direito ao habeas data, dado pelo SNI, que hoje funciona na ABIN agora, eles me mandaram um papel da República, assinado por um oficial do Exército — papel da Presidência da República — me mandaram 32 laudas datilografadas. E a primeira coisa que eles registram foi uma greve que houve em 44, uma paralisação — porque eu já era agitador da fábrica —, e que eu peguei o dono da fábrica para jogar do segundo andar lá embaixo. Arranquei os telefones da fábrica todos, porque ele disse que ia chamar a Polícia. Arranquei tudo do escritório! Então, a primeira coisa que eles registraram lá foi isso. Então, eles tinham informação de mim de 44; o resto, eles vão botando. São mais ou menos as coisas que eu fiz e não as renego.

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - E quando o senhor se tornou do quadro profissional do partido?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Ih, rapaz, isso é meio complicado. (Risos.) É meio complicado. Profissional. Primeiro, é o seguinte: a primeira encrenca minha com o partido se deu nesse terreno. Sempre aprendi nas conferências, nas aulas, era que o exército, para fazer a revolução, estava na fábrica. Aí, vieram um dia com essa história, em 1949. Depois de passar um 1 ano... Eu devo ter pegado umas 18 prisões em 48, no Governo Dutra. É algo por aí. Aí, veio um dirigente do partido para discutir comigo, porque eles queriam que eu saísse da fábrica e fosse ser Secretário Sindical, profissionalmente falando, do partido em São Cristóvão. São Cristóvão era um “Moscouzinho” na época, entendeu? Era o bairro mais vermelho que tinha aqui. Era são Cristóvão. Hoje, é uma bairro, uma mistura, mas antigamente era fábrica que não acabava mais. Aí, discutiram comigo. Foi no consultório do Milton Lobato, lá em Triagem. Milton Lobato aquele que foi Vereador do partido. Começaram a discutir comigo. Aí, eu ouvi, ouvi, ouvi... Aí, eu disse: “Olha aqui, eu não vou, não. Não vou, não. Eu posso ser Secretário, mas sem sair da fábrica”. Aí, começaram a discutir comigo, eu disse: “Não. Está aqui. No livro, aqui, foi dito, foi discutido que o exército nosso revolucionário está lá. Como é que vocês querem me tirar de lá! Que revolução é essa que vocês querem fazer em que vocês tiram os capitães da frente do exército. Isso é uma contradição, isso não tem nada a ver com o que é ensinado”. Aí, deu um pau violento, e eu não saí. Fui ser mais tarde. Eu fui ser profissional por outras circunstâncias.                                                      

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - A essa altura, você já sabia o que era ser um ativista comunista?                                                                                              

O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Ah, sim! Já tinha o mínimo de clareza.

(Pausa.)

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - A essa altura você já tinha clareza?              

O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Já tinha o mínimo de clareza, tanto é que fui exercer a Secretaria Sindical de São Cristóvão. Quando fecharam o partido... (Pausa.) Bom, eu tinha já nessa época uma noção, porque logo eu fui  mobilizado no final de 43 pelo pessoal da fábrica, pelo pessoal que trabalhava no partido, para ter uma tarefa enquanto comunista. Eu tinha noção do que estava fazendo, o que era exatamente. Aquilo era outra coisa! Mas eu tinha noção de que eu estava fazendo aquilo! Entendeu? Isso eu tinha. Eu não estava enganado! Eu nunca fui enganado nessas coisas. Eu fiz porque queria fazer, porque estava de acordo. Não discuto nem o que estava certo ou estava errado, mas eu estava convencido de que tinha que fazer aquilo.                                                                                                                       

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Mas eu queria saber se você já tinha formação ideológica?

O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Não, não. Isso você vai aprendendo.

(Pausa.)

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Quando você adquiriu formação ideológica?

O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Olha aqui: formação ideológica não tem dia para você se formar nela. Isso é uma coisa que acontece e desacontece. Perfeito? Porque a formação ideológica é um processo de você viver e interpretar, se vincular ou não a uma realidade.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Também ler e estudar.

O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Não, isso é informação. O que é experiência? O que é experiência? Experiência é aquilo que acontece com você, para você. O que acontece comigo não é uma experiência para você, é uma informação. Você recebe a informação num livro. Uma coisa é você ler, entender, raciocinar; outra coisa é quando lhe enfiam uma faca. Você diz: esse troço dói. Aconteceu comigo. Ah, o fulano deu um tiro no outro. Você está entendendo? É uma informação trágica, mas não é uma experiência. É uma informação. E o que vai dando convicção ideológica para você é o que acontece com você. Você lê, lê, isso ajuda, o curso, você vai compreender a teoria. A teoria não é a mesma coisa que ideologia. Você está entendendo? Não é! Hoje, na qualidade que eu estou, eu considero que o maior problema da esquerda não só aqui, no mundo todo é querer fazer política pela ideologia. A ideologia é necessária fundamentalmente para você formular, entender, fazer a proposta, mas essas propostas não se realizam por posições e atitudes ideológicas. Elas se realizam por articulações, composições, alianças, que é do campo da política.

 O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O senhor foi mandado pelo partido para a União Soviética.

O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS – Sim!

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) – Em 51, para fazer a educação.

O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - De 52 para 53 fui fazer um curso em Moscou.

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Antes de chegar aí, eu queria que você falasse... Você disse que matou uma pessoa em 47.

O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Não... Em 47 é o seguinte: em 47 é o Governo Dutra. Então, o que aconteceu? Tinha a base do partido de Bonsucesso, partido de bairro, que tinha o partido de fábrica e o partido de bairro, organização de base de bairro e de fábrica. Essa de bairro era o pessoal que fazia propaganda, agitação, pendurava bandeirinha em poste, fazia aquelas coisas todas que a gente fazia. Não vou agora descrever porque está devidamente registrado. Então, o secretário dessa base trabalhava na fábrica de sapato. Acho que já era DNB, ali perto do 17º Distrito de São Cristóvão. Eles estavam fazendo uma pichação, uma propaganda de política do aniversário, que era hábito. Você fazia propaganda do aniversário do Prestes. Você soltava girândolas de foguete, aquelas coisas todas. Só nós entendíamos as razões, porque satisfaziam o nosso ego e o do Prestes. Entendeu? E aí houve um conflito entre eles. E um cara da Polícia atirou nesse rapaz e mataram. O rapaz tinha 6 filhos, era sapateiro, e mataram ele. Aquilo me indignou muito. Aí eu tomei conhecimento quem era a equipe, porque eu também me informava. Aí o tempo foi passando, eu descobri que a equipe parava sempre num bar na Praça das Nações. Aí, eu me preparei, eu e mais dois, e nós fomos para lá.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Os policiais...

O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - É, a Polícia. Aí um cara chegou e disse: “É aquele cara ali que matou”. Não tive dúvida. Eu cheguei dentro de um carro e disse: “Vocês ficam aqui dando cobertura”. Eu fiquei em pé na calçada, chamei o cara pelo nome. Quando ele virou, eu plá, apaguei ele. Entrei no carro e fui embora.

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Ninguém nunca soube, ninguém nunca te...

O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Não, eu também não disse mais nada, só chamei o nome dele. Nem ele nem a equipe dele devem ter ficado sabendo qual foi a razão.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Depois disso, qual foi o fato importante da militância?

O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Isso não foi um fato importante (risos), isso foi uma tragédia! Esse negócio de matar nunca é fato importante, entendeu? Senão, daqui a pouco, o Bush vai requerer muita medalha para ele.

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Como é que foi esse processo da sua ida para Moscou?

O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Aí é o seguinte, ida para Moscou, tem outra coisa. Para preparar o pessoal daqui para fazer curso em Moscou, o partido aqui fazia uns cursos, chamavam-se Curso Stalin. Então, passavam os pretendentes; aqueles que eles queriam mandar, eles faziam uma seleção. O partido tinha que mandar uma turma de 45 filiados para fazer curso lá. Aí fizeram o Curso Stalin, os 3 Cursos Stalin. Eu sei que passaram por esse curso umas 100 pessoas. E eu fui um deles, me chamaram, eu fui fazer o curso.

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Qual foi o ano?

O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - O curso foi dado para nós em 51. Sim, porque depois da greve, houve um período, eu fui demitido — a greve de 50. Antes disso aí, o que houve? Eu liderei uma greve entre novembro de 51 e janeiro de 52. A greve ocorreu porque o Tribunal Regional do Trabalho havia dado um percentual para nós, os patrões recorreram e o Tribunal Superior jogou embaixo.

            Nós fizemos a greve; deu bando de precatório na rua, tiroteio, morreu gente. Eu era caçado como cão leproso. Eu era Presidente do Comitê de Greve. Tinha a diretoria do sindicato e eu era o presidente do comitê de greve. Então, me caçavam muito.

Negocia para lá, negocia para cá. A Fábrica Bangu, do Guilherme da Silveira Filho, e o Major Newton, que era do PTB, mas era dono da Fábrica de Tecido São Luís Durão, nos chamaram para discutir um acordo. Aí quando chegou lá, reunimos com o Silveirinha às 6 horas da manhã, a fábrica parada. O Silveirinha propôs um acordo em separado. Foi um negócio complicado, porque a diretoria do sindicato resolveu não aceitar. Tinha lá um procurador do sindicato, que se chamava Astrogildo Pereira, que não tinha nada a ver com o outro Astrogildo, e um compadre do Jango, que era o Rodrigues, que hoje ainda está vivo e mora na Zona Oeste, era presidente do sindicato na época, resolveram que não queriam, que não era conveniente fazer o acordo. Ah! Estava o Segadas Viana na reunião.

            Aí eu levantei e disse que queria falar. Estava o pessoal do comando de greve, uma delegação. Nem consultei — errei também — tinha uma tendenciazinha a dar murro na mesa. Eu disse: “Não, não, nós vamos fazer o acordo. Pode mandar bater o acordo que a gente vai assinar agora”. (Risos.) Aí todo mundo ficou olhando assustado. “Não pode, não sei o quê”. Eu disse: “Rodrigues, vamos assinar esse acordo, porque tem um outro despontando, que é o da São Luís Durão. E nós vamos lá e vamos fazer. Para nós é importante”. Fizemos esses 2 acordos e essas duas fábricas recuaram.

            As outras fincaram o pé. José João Abdala, da Confiança, esse pessoal da América Fabril não queria acordo de jeito nenhum! A greve foi rolando, rolando, tivemos tiroteio na rua, bando precatório. Lá pelas tantas, estávamos no sindicato, no mês de janeiro, com muita dificuldade, por volta do dia 19, vinte e poucos de janeiro, nessa faixa.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - De 52?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Já de 52. O Francisco Rodrigues Gonçalves, presidente do sindicato, chegou para mim e disse: “Olha, nós recebemos um pedido do Presidente da República”.... Porque ele era trabalhista, né! o Francisco Rodrigues, compadre do Jango, então eles se comunicavam os trabalhistas.... “e o Presidente quer falar conosco”; Ele marcou. “Nós temos de estar tal dia lá, a uma hora da tarde”. Aí nós fomos. Foi a diretoria e o comitê de greve para lá.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Com o Dr. Getúlio.

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Com o Getúlio. o Getúlio estava no poder ainda em 52, segundo período dele.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda)  - Janeiro de 52?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Janeiro de 52. Essas datas, para efeito, vocês têm no registro que dei para...como é seu nome?

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) – Ana Maria.

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS – Hein? Ana Maria.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) – Ana Maria e Ivan.

             O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS – Tá. Porque esses registros coloquei no papel para haver precisão na hora em que precisar explicitar a coisa.

            Aí nós fomos lá! Chegando no Palácio do Catete, aquela escada que tinha ali, não é? veio um oficial do Exército e mandou a gente parar ali. Ficamos parados. Dentro de um bocadinho, aparece o Getúlio lá em cima da escadaria, ou desce uns 2 ou 3 degraus, e para lá no alto. Atrás dele vem o Gregório Fortunato com uma metralhadora na mão, apontada para a gente e nós embaixo.

            O Getúlio disse: “Olha, mandei chamar vocês aqui para dizer que o Diário Oficial de amanhã está publicando que vocês vão receber segundo aquilo que vocês estão reivindicando, com base na decisão do TRT do Rio. Está anulada a decisão do TST”. Era o que queríamos, pagar segundo o percentual do TRT. “A greve vai terminar hoje, amanhã todo mundo tem que estar trabalhando. Ninguém vai ser demitido, à exceção de alguns membros do Comando de Greve, que serão demitidos e pagos na forma da lei. Muito obrigado por vocês terem vindo. Boa sorte”. Sumiu.

Aí, nós fomos para o sindicato. Foi uma confusão a reunião da diretoria com o comitê de greve... Quem é que ia ser demitido? Estava na cara: eram alguns de nós do Comando de Greve. Ficou claro na reunião. Aí, o Francisco abriu o jogo: era eu, o Mário Neto, um negro integralista da Fábrica de Sedas São José, o Samuel. Então, teve isso: eu dirigi uma greve com um integralista. (Risos.) Foi gozadíssimo. Éramos 5 ou 6 ... o Sebastião dos Reis, uma cara que tinha uma perna de pau ... “Não, não pode.” – “Pode.” O pessoal da diretoria disse: “Esse é um assunto que vocês têm que resolver, por nós está fechado”. Nós nos reunimos em separado do comitê de greve e a imprensa fora, queria saber das coisas. Eu cheguei e disse: “Aqui, nenhum de vocês vai fazer uso na assembléia, a não ser para aprovar essa decisão”.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Quem disse isso?

O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Eu. “Ninguém pode dizer que eu, fulano, fulano, vamos ser demitidos; senão, essa greve vai ser derrotada. Eu posso ser demitido, mas a greve não pode ser derrotada. Se essa greve for derrotada, estamos fritos”. Rapaz, foi uma pauleira entre nós. Aí fomos para a assembléia. A maioria do comitê de greve era contra, mas ninguém falou. Falei eu apoiando; falou o Samuel. Quando falamos eu e o Samuel, a assembleia já viu a tendência. Mas tinha muita gente no plenário contra, tanto é que a assembléia aprovou, desceu todo mundo para a Mariz de Barros, começou uma briga que foi afetando a vida da Praça da Bandeira. (Risos.) Uma pauleira violenta!

No outro dia, todo mundo foi trabalhar, não é! Nós já sabíamos, eu não fui à fábrica. Fiquei em casa, porque o telefone ficou tocando na minha cabeça, aquele barulho de telefone. Impressionante, mas não fui. Três dias depois fui à fábrica, os caras me deram a coisa e disseram: “Você vai ser pago e o sindicato das indústrias fez uma cotização entre todos os industriais para indenizar vocês. Vocês vão ser indenizados com o dinheiro de todos os patrões de fábrica de tecidos”.

O que aconteceu comigo? Fui ser cobrador de ônibus, eu não tinha onde trabalhar! Fui ser cobrador de ônibus durante um período. Trabalhei na linha Central do Brasil/Leblon, nos ônibus da Viação Relâmpago; trabalhei um período ali e fui chamado ... Seis meses depois o Arruda me chamou, marcou um ponto de rua comigo lá no Engenho de Dentro.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Diógenes Arruda.

 O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS RElS - Diógenes Arruda — ele botava um chapéu preto. Ele disse: “Mandei chamar você, porque você vai para um curso”. – “Mas eu estou trabalhando.” – “Não tem importância, deixa de trabalhar que você vai ser remunerado.” Fui fazer um curso. Ele não disse mais nada. Fui fazer um curso que durou ...

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Em Moscou?

O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Não, um curso aqui — Curso Stalin! Quando cheguei na casa para o tal Curso Stalin, eram 23 alunos; estavam o João Macena, estava eu, várias pessoas conhecidas. Estava o Jorge Amado no curso! Fizemos o curso ...

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Quem é que dava as aulas?

O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Quem dava aula nessa época era o Macena, era o Arruda, era Pedro Pomar, entendeu? Esse pessoal que dava aula. Marighela. Fizemos o curso e fomos embora.

Aí, uma semana depois, me chamaram outra vez, outro ponto com o Arruda. Cheguei lá, falei com ele, já fiquei na rua, não fui para casa, na tal casa clandestina. Ele disse: “Você vai em Niterói, em tal lugar assim, assim, leva fotografia, não sei o que, você vai tirar passaporte, você vai fazer uma viagem”. Está bem, fazer uma viagem, não disseram para onde. Fui e fiz.

Aí, nos levaram para uma casa, num sábado à noite. Estava lá uma parte da turma que ia embarcar. Estávamos eu, o Pioto, de São Paulo, o Ivan, um grandalhão que tinha aqui no Rio, que gostava muito de carnaval, tinha uma porção de gente conhecida, a maioria era de paulistas, viu? Aí nos disseram: “Vocês vão viajar, vocês vão passar 2 meses na União Soviética. Vocês vão viajar, e o período é por 2 meses. Avisem as esposas de vocês”. Tudo bem.

Cheguei em casa, santinho como eu era, avisei; estava casado, tinha casado no final de 50, novinho, casado, não é! Em 51 tinha nascido meu filho mais velho, estava garotinho, novinho, devia ter uns 7, 8 meses. “Daqui há 2 meses vão te procurar e tal.” Tudo bem. Eu fui. A minha mulher pisou nas tamancas. Quem me protegeu foi minha sogra, ela entrou em minha defesa.

E fomos. Viajamos de navio para Itália, da Itália pegamos um trem até a Áustria, da Áustria fomos para Thecoslavaquia, de lá fomos para Moscou.

Estamos pensando que íamos para um hotel. Quando chegamos a Moscou, nos levaram de carro e ônibus. De repente, depois de 40 minutos ou quase 1 hora andando de ônibus, o ônibus entrou numa espécie de fazenda. Entramos numa sala grande, num edifício antigo daqueles. Chegou o Pioto, que representava a direção, era um rapaz de São Paulo, e disse: “Olha, nós estamos aqui para fazer um curso na União Soviética e vai durar 2 anos”. Dois anos, não eram 2 meses — 2 anos. Essa casa era no Distrito de Zagorsk, São Paulo, onde tem uma catedral da igreja ortodoxa lindíssima. Nós ficamos trancados naquele mundão de terra, naquela fazenda, naquele edifício bonito, 2 anos.

Comunicação. Tínhamos que dar cartas, que eram censuradas, para entregar às nossas famílias aqui. E a família, se quisesse mandar cartas para a gente, o processo era o mesmo.

Eu perdi o contato com a minha mulher. Você vai fazer o quê? Depois, tomei conhecimento que os caras não sabiam, recebiam carta e não sabiam onde eu estava, onde minha mulher morava. Enfim, foi um rolo muito grande!

Moral da história: teve o processo do curso, que dá uma gravação inteira, em 2 anos tem coisas tremendas, estão mais ou menos relatadas no meu livro. Quando voltei...

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Quais eram as matérias do curso?

O SR. HÉRCULES CORRÊA REIS - Se não me falha a memória, está nas anotações, mas tinham 10 ou 12 matérias. Tinha economia Política, Movimento Revolucionário Internacional, Cultura da Rússia, História dos Povos, enfim...

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Marxismo.

O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - ... Movimento Sindical. Claro, tudo na base do marxismo. Eram umas 10 matérias. Você tinha aula terrível. Teoria do Conhecimento. Até uma coisa gozadíssima aí, não é! Tinha um professor de filosofia baixinho, que dava aula. Alguns russos têm a mania de falar e dizer “tac”, como quem diz “sim”. É afirmativo, é a forma de falar deles.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - É um cacoete.

O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - É, um cacoete.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Você aprendeu russo?

O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS – Você vai ouvindo aquilo....aprendi, claro. Você vai ouvindo aquilo. Esse professor, numa quinta-feira, a aula dele era sábado, de filosofia, ele terminou a aula e disse: “Na semana que vem, vocês não tragam nem lápis nem caderno, não tragam nada”. Nós achamos estranho: como vamos estudar a matéria? Fazíamos os apontamentos da gente, os “apunts” porque a aula era dada em russo, transmitida em espanhol e a gente anotava em português. Eu não sabia português, muito menos espanhol e muito menos russo.

A minha primeira reação no curso foi fugir, eu e o Geraldo Rodrigues dos Santos, ele era portuário, eu era tecelão. A nossa primeira reação foi fugir. “Como vamos fugir daqui?” Mas, tinham levado nosso passaporte, nosso documento, a casa era cercada por força militar. Então, você não tinha como fugir! Quem nos salvou nessa história toda foi Armênio, Mário Alves e Apolônio de Carvalho, porque entenderam o nosso drama, iam para a biblioteca e nos ensinavam a matéria dada na aula. E aí a gente conseguia entender. Ah! Moacir Werneck de Castro também, esse ajudou muito; ele chegava e repetia aula para gente; perdia um tempo imenso para a gente aprender. Senão, como era isso...Esses 4, eles eram da minha turma, foram para Moscou comigo, Werneck, João Amazonas. João Amazonas não dava bola para a gente, nem conversava! Então, foi isso.

O cara deu a aula. No sábado seguinte, sentamos, todo mundo, 45 pessoas, 45 chialaleka como diz o russo, sentados ali na sala, e ele começou a dar aula sobre teoria....começou falando sobre Teoria do Conhecimento — ele tinha sido agitador da reforma agrária na Rússia —, e a dar exemplos. No final, ele disse assim: “Alguém tem pergunta?” Todo mundo ficou assim. “Pergunta? Como vou perguntar Teoria do Conhecimento?” Ninguém se atreveu, não é? O Pedro Pomar, tido como o intelectual do partido e tal, levantou e disse: “Eu tenho uma pergunta”. Fez uma pergunta sobre a Teoria do Conhecimento, querendo que o professor desse exemplos não figurativos, materiais, a vida, como se processa. Ele disse: “Olha, é só essa a pergunta?” Ele disse: “Só”.“Eu vou contar uma historinha para vocês. Na reforma agrária, eu era agitador do partido no campo. Então, fomos fazer reforma agrária. Então, chegamos lá no campo, levamos trator, levamos tudo para mostrar a vantagem para o camponês de fazer a reforma agrária, entendeu? Aí, eu fiz um discurso, eu era jovem, empolgado, expliquei e tal. Aí, o camponês rodou em torno do trator, olhou para mim e disse assim: ‘Eu tenho uma pergunta.’ O agitador, que era o professor, disse assim: ‘Qual é a pergunta?’ Ele disse assim: ‘Onde que eu vou amarrar os meus cavalos nessa máquina?’”(Risos.)

Quase morri de vergonha e me enfiei embaixo da carteira. Que loucura isso! E ele era um cara baixinho, gordinho, simpático, gostava de tomar umas bebidazinhas, enchia a cara, bebia vodca. Mas foi assim, para você ter uma noção do curso.

No final teve uma prova de avaliação, com banca de exame. Deu uma encrenca comigo muito grande porque os professores defendiam que no Brasil tinha aristocracia operária. Eu lia tudo sobre aristocracia para o exame. Eles já sabiam, fizeram a pergunta dirigida. Eu respondi tudo e ia saindo. Ele disse: “Não, volta cá”. Eu sentei outra vez, e o cara, que respondia pelo Brasil na comissão de organização do partido com o Ministério da União Soviética, me perguntou o seguinte: “No Brasil tem aristocracia operária?” O tal do Silva Lobo, ele tinha escrito um livro sobre isso. Olhei para a cara dele e disse: “Negativo, não tem.” Ele começou a discutir comigo. E eu disse: “Não tem, não tem. Não existe isso, não tem nada a ver com aristocracia operária da Inglaterra ou não sei de onde. Não tem nada a ver! São uns pobres miseráveis, imbecis, não sabem coisa nenhuma, não têm instrução. Vai ser aristocracia operária onde? Conversa fiada”.

Mais tarde, cá na frente, depois no segundo exílio, houve outra encrenca, que foi um discussão entre o Prestes e o (ininteligível). O Prestes disse para o (ininteligível) que o sindicato no Brasil era fascista. O (ininteligível) disse assim: “Quem foi que te disse isso?” Olhou para mim, e eu disse que eu não era fascista coisa nenhuma. Havia muito conflito de interpretação, não é!

Então, voltei para casa, cheguei exatamente no Dia de São Jorge, em 1955.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Recompôs a família?

O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Não, cheguei e fui para casa, não é! Quando cheguei, bati à porta, o garoto veio e abriu a porta, meu filho, que estava com 2 anos quase três. Quando ele me viu, ele gritou: “Mãe, tem um ladrão aqui!” Isso me custou caro: minha mulher levou uns 2 anos sem falar comigo. E eu toureando, não é! Uma loucura!

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Você voltou em 55?

O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Em 55, já entrei na campanha do Juscelino.

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Do Juscelino, não é! Era isso que queria saber.

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - No tempo em que você esteve na União Soviética, morreu o Stalin, em 1953.

O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Ele morreu antes de eu chegar lá.

 O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Morreu antes de você chegar lá.

O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - É.

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Você teve algum contato com o povo soviético, com a sociedade? Qual foi sua impressão?

O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Tinha férias, na escola tinha férias. Viajávamos para lá e para cá, íamos ao centro da cidade. Organizadamente, planificado por eles, íamos ao Teatro Bolshoi, íamos em certos lugares, 2 vezes nos levaram para comer em restaurantes. Porque a gente recebia um soldo lá de não sei quantos rublos; então, com isso fazíamos uma espécie de arremedo de vida social. Mas era tudo controlado. Saíamos de ônibus e voltávamos de ônibus, com a patrulha militar no ônibus.

O conhecimento foi esse. Fui passar férias em Tashkent. Como era metido a besta, eu gostava de usar terno branco de linho, meio amarelado. Cheguei lá naquele... Estávamos eu, o Armênio, aconteceram duas coisas interessantes. Quando saltamos nas barcas, fomos de navio pelo Rio Moscou, eu tinha na mala, botei um terno branco, sapato, aquelas coisas de carioca, sapato de crocodilo, botei aquela porcaria. Estava passeando, e o Geraldo saiu comigo; Geraldo é um pau de fumo, um negrão alto. Rapaz, quando olhamos para trás de repente um mundão de gente andando atrás de nós. (Risos.) Os russos saíram atrás da gente. “De onde vocês são?” Nessa época, a roupa lá era muito padronizada, todo mundo andava de escuro. E a gente com terno branco, Geraldo com a camisa cheia de fios de prata.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Chamando a atenção.

O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Todo mundo: “O que é isso?” Era um negócio agressivo, mas não sabíamos, até que o cara da KGB que ia conosco nessas viagens nos chamou e disse: “Olha, vocês deixem essa roupa na mala; não usem mais essa roupa, não; usem a roupa que nós demos aqui”. Era roupa toda escura, camisa, calça escura.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Padronizada.

O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Padronizada, que era que o povo soviético ainda vivia como consequência do negócio da guerra, não é! Era impressionante.

Qual foi a diferença que estabeleci? Naquela época você andava na Rua Gorki, por exemplo, você precisava falar alguma coisa e se dirigia a um miliciano. Quando ele percebia que você era estrangeiro, e outros também, mas se você se dirigia a um miliciano, ele batia continência para você.

Vinte anos depois, cheguei lá, em 1975, se você se dirigisse a um miliciano ele quase batia em você na rua. Esta é a pequena diferença.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda)  - Por quê?

O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Porque tudo se deteriorou. Por acaso, tive uma conversa com o Kossigni. Em 1976 ou 1977, no verão, fui tomar banho numa praia do Rio Moscou e saia nadando na direção do rio Moscou. Tinha uma floresta em torno do rio, fui nadando e tinha um velhinho de chapéu, pescando. Como aquela porcaria me cansou, segurei no capim, segurei no baranco e subi e fiquei em pé, descansando. E ele pescando, jogava o anzol, voltava. Cheguei perto dele e fiquei olhando; ele virou para mim e disse assim: ”Você não é russo?” Eu disse: “Não.” Abriu uma maleta e disse: “Quer comer?” Abriu uma garrafa de vodca, um sanduíche de peixe sprotsk, que eles serviam lá na lata – “Não, não.”“Você é de onde?”“Eu sou do Brasil.” Estávamos em cima, na praia, desci nadando, comecei a conversar, trocar conversa com ele. Ele disse: ”O que você está fazendo aqui?” Eu disse: “Estou estudando”. Ele disse: “Ah! Está estudando? Na Universidade de Patrício Lumumba?”“Não, estou estudando em Zagorsk.” Ele disse: “Ah! Já sei, vocês estão no Monastério de Zagorsk? Eu disse: “É.”“Ah, então, você é brasileiro, não é?” Eu disse: ”Sou”.

Começamos a conversar, e ele me fez essa pergunta sobre esse negócio da União Soviética: “Você, que esteve aqui” — porque eu disse que havia estado em 53, 55 —, “qual é a diferença?” Eu fui e contei essa diferença na milícia: “Lá batiam continência para mim. Hoje, batem”.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - E depois que você voltou desse curso, qual foi a missão que o partido te deu?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Eu fui fazer a campanha de Juscelino! Cheguei aqui no Dia de São Jorge. Cheguei em casa no Dia de São Jorge, e já saí da reunião com o Arruda com a tarefa de fazer a campanha de Juscelino.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Como é que foi?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Foi muito bom! Juscelino era uma peça...

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O partido tinha feito um acordo com Juscelino.

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS – Tinha, tinha...Não, fez em cima da pressão, não é!

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O que coube ao partido no Governo do Juscelino? Foi a Previdência?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Nada, nada, o partido não tinha cargo. Muito pouca coisa. (Falha na gravação.) ... para ter esse acordo, em termo de coisas pontuais, não sei. Não sei, porque isso deve ter sido feito pela Comissão Executiva, pelo Prestes, não sei. Mas, do ponto de vista da vida, o que houve para nós foi um espaço de fazer política sem ser preso, de organizar, de crescer, de fazer política, porque estávamos... aliás, eu costumo dizer que passei parte da minha vida aparecendo na página policial, porque ser comunista era aparecer na página policial. Do Governo Juscelino para cá, mudou. Fomos para a página política. É isso!

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Vocês não tiveram participação no Governo nenhuma?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Não. Houve acordos em alguns Estados, mas não é uma coisa... Não é o que é hoje, em que o sujeito para apoiar tem que dar o ministério, não sei o quê, essa coisa que está, virou instrumento de exercer poder.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Mas isso faz parte, né?

O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Não nos termos em que está posto, que não é para efeito de fazer política em função da Nação e do povo, não é. Isso é feito para atender pessoas, que votam, votam com os seus interesses e não com os interesses do País. Se quiserem discutir isso a fundo comigo, eu discuto. O que é isso?

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) – Não, não é o meu caso.

O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS – Não, não, estou só abrindo uma perspectiva... Se quiserem mexer esse mingau aí, eu sei mexer, porque, a partir do Governo Juscelino, eu fui clandestino e ilegal, clandestino e ilegal. Fui Deputado Estadual pela legenda do PTB aqui no Rio, Deputado constituinte da Guanabara, no Governo Lacerda. Então, discuti muito essas coisas com o Lacerda — acordo, isso, aquilo. Eu, por exemplo, fiz um acordo com o Lacerda. Eu votava a criação do sistema de transporte e de bonde que ele queria, desde que ele encampasse a Light. Acordo!

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - E ele encampou?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS – Encampou!

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Por que o PTB? Vocês estavam na clandestinidade...

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - O PCB não tinha legenda. Era perseguido, não era reconhecido. Aí, o Jango, que já tinha sido Ministro do Trabalho, ele tinha 3 vagas no diretório regional para apresentar candidato a Deputado. Uma ele deu para mim. Ele mandou uma carta ao PTB dizendo que era para dar a legenda a mim.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O Carlos Lacerda sabia que você era um dirigente comunista?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Sabia, tanto é que ele ocupou a televisão durante 20 minutos para justificar o voto da UDN em mim como primeiro Secretário da Assembleia Legislativa. Eu fui Secretário da Assembleia Legislativa 2 anos com voto da bancada da UDN. Ele foi para a televisão e disse: “Eu voto em um comunista, mas não voto em ladrão”.

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - E como é que foi essa experiência de Deputado, de Parlamentar? Você gostava?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Eu fui constituinte, não é? Primeiro, como eu disse aqui, eu aprendi a falar em uma assembleia sindical e nunca mais parei. Então, eu sou de parlar, eu sou de parlamentar, entendeu? Então, eu fui Relator do capítulo da economia da Constituição do Estado da Guanabara. O Presidente da Comissão era o Themístocles Cavalcanti, bela figura, e o Relator era o Aliomar Baleeiro. Estava lá a Sandra Cavalcanti, esse pessoal todo estava lá. Eu trabalhei muito com essa gente, e conheço... Era tudo assim, a gente trocava voto, mas assim: era um negócio muito pontual. O Aliomar Baleeiro, por exemplo, queria verba para a Universidade da Guanabara naquela época, que é a UERJ de hoje. A Universidade do Estado da Guanabara, que estava sendo criada naquela época. O Ademar Bandeira queria orçamento de verba para aquilo. Então, eu fiz um acordo com ele: eu trago a bancada do PTB para isso, e você troca a votação na alíquota de impostos assim. Entendeu?

            Esses tipos de acordos são acordos que você faz em função da sociedade. Não é acordo para você enriquecer pessoalmente. Você vai me dizer que os acordos que estão sendo postos... Você pega o negócio do propinoduto aqui, do Rio, você pega o negócio da Previdência aí, está aí na página de O Globo de hoje. Então, o que se deve à Previdência — o acordo está sendo feito assim — são 157 bilhões, e o rombo é de 65. Então...

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Então, para o PTB não é resgatável?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Sim. O que que a população tem a ver com isso? Quantos dos responsáveis aqui do Rio, que estão vivos, por que não vão para a cadeia? Não é resgatável, mas e a liberdade do cara que está solto aí? O que que ele fez? O que que ele faz? Você pega o propinoduto, prende os fiscais, estou de acordo, prende os fiscais, mas e os caras que não pagaram os impostos? Por que que o fiscal abordou o cara? Porque ele não tinha pago os impostos ao Estado. Aí, o Estado trocou a dívida dele por um percentual para ele, e, para outra, para ele pagar uma partezinha desse tamanho. Esse pessoal está indo para a cadeia? Não. A reforma tributária prevê alguma coisa com isso? Não. Se você me perguntar: “Se você estivesse lá você votava nas propostas do Lula?” Digo: “Voto, porque acho que ele não tem outra saída”. Ele não tem! Como Fernando Henrique Cardoso não tinha! O Lula criticou muito o Fernando Henrique Cardoso — entendeu? — porque era uma bazófia. Ele não tinha como resolver, e nenhum outro no Brasil de aqui e agora tem como resolver isso. Infelizmente, não tem. Com o Brasil e muitos outros países não tem saída para o tal do crescimento econômico, nos termos da economia mundial atual. Não tem. Não tem.

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Só voltando...

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Bom, mas vamos voltar à nossa...

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - O senhor chegou a ser preso?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Eu fui preso em 48. Depois participei de alguns acontecimentos. Mas depois de 64 nunca conseguiram me prender. Gastaram muita gasolina, muita coisa, mas não me prenderam. Eles me apresentaram, no sistema de comunicação social de 64 a 66, como se eu estivesse morto, porque eles queriam me prender e havia indicadores para prender e matar. Tanto é que eu e alguns de nós, que éramos muito metidos no movimento social, principalmente no movimento sindical, durante um longo período, a gente andou com uma pílula de cianureto no bolso.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Andou o quê?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Com a pílula de cianureto no bolso!

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O Marighella andava.

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Eu também andei. Se me prendem, me matam.

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Só uma coisa que a gente passou por cima, e eu queria que o senhor abordasse rapidamente. E a crise detonada pelo 20º congresso, com a denúncia dos crimes de Estado? O senhor escreveu o livro Memórias de um Stalinista.

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS – Isso!

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Como é que o senhor recebeu essa história?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Eu? O Agildo Barata foi lá no tal congresso e voltou. Eu era da Comissão de Finanças daqui do Estado da Guanabara, Distrito Federal, e, como tal, estava exercendo o cargo de tesoureiro. Quando eles reuniam a Comissão de Finança Nacional, eu ia lá, eles me chamavam. Aí, quando terminou a reunião, o Agildo Barata, muito sacana, chegou para mim e disse: “Oh, Índio, vem cá, vou te dar um papel”. E me deu um calhamaço de papel, um documento grande. Tarde da noite, eu fui embora. Peguei aquilo, botei numa pasta e fui embora. Cheguei em casa — e eu estava trabalhando na fábrica, entendeu? —, aí eu cheguei em casa fui comer alguma coisa, abri aquilo e comecei a ler. Aí eu li até o fim, entendeu? Li até o fim.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Isso em que ano?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Era o Relatório Kruschev. Era o Relatório Kruschev!

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Em 56?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Hein?

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Em 56?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - É. Em 56. Aí eu fui, eu estava trabalhando na São Luís Durão já.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Qual foi a tua impressão?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Eu fiquei desarvorado com aquilo ali. Disse: “O que que é isso?” Aí fui trabalhar. Trabalhei um dia inteiro no tear, na tecelagem, sem dormir, porque eu fiquei lendo aquilo ali, porque eu quero saber o que que é isso! Foi um choque, um choque em todos nós. Aí o partido foi para uma degringolada, né? Aqui, no Rio, eu estava em uma reunião com o Marighella, que teve uma crise de choro. O Marighella chorava feito criança. Foi um negócio terrível!

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Provocou um racha!

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Eu não chamo de racha, foi uma debandada, houve uma debandada. Racha é outra coisa. Racha foi em 62, que o João Amazonas rachou. Ele fundou o PCdoB, em 62. E claro que estava baseado nisso, porque ele resolveu reafirmar tudo aquilo que o Stalin fazia. A saída do João Amazonas, em 62, criando o PCdoB, era brigando com o Lúcio, que queria mudar, com base no Relatório de Kruschev, mudar o comportamento do partido.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Era uma dissidência stalinista.

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS – Do João Amazonas? Bota stalinista nisso!

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - E por falar em stalinista, tem uma figura polêmica no partido — inclusive a gente conversou com o senhor sobre o depoimento do João Amazonas —, o Arruda. Qual é a sua impressão do papel político do Arruda, do Diógenes Arruda, dentro da estrutura do partido? Segundo esses depoimentos que a gente colheu, ele foi um dos maiores responsáveis por essa linha ferrenhamente stalinista, de muita personalidade, muita gente o acusa. Qual é a sua impressão?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Deixa eu ver se consigo separar uma coisa. O papel político dele, quando você fala em política de um partido para a sociedade, eu acho que foi nulo. Agora, ele foi decisivo em ter uma máquina partidária a la Stalin, que não tem nada a ver com a sociedade. Você precisa separar uma coisa da outra! Leva alguma consequência para a sociedade? Eu acho que não, porque ele nos botou na página policial dos jornais. E a sociedade estava pouco interessada naquilo. Tanto é que você tem um partido que atua. A base dele, das alianças políticas, dos trabalhos de massa, tudo, é o movimento sindical, que não se deixou tragar por essas lutas. Tanto é que o Arruda nos chamava de sindicaleiros. Ele se referia a nós em termos depreciativos. Mas a aliança comunista-trabalhista, na fábrica, que levou à CUT, que levou à aliança de 64, ao CGT e tal, foi feita pelo sindicato comunista-trabalhista na fábrica. Nós nos dávamos muito bem, e era um conflito. Você pega a história, que você vai ter um conflito. Os comunistas fazendo aliança com os trabalhistas no movimento sindical, crescendo, crescendo, crescendo. Foi a CGT, do Governo Jango, entendeu? E as palavras de ordem do partido político para a Nação, em termos de poder político, eram “renúncia de Vargas”, “deposição de fulano”. Era isso! Era um conflito. Você tinha uma aliança embaixo e outra aliança de poder em cima, que era conflitante. Nunca nos casamos. Você pega 64 que você vai ver: todos os documentos produzidos por nós, comunistas, no movimento sindical, apreciando o que estava acontecendo no País, e você pega o documento do partido, são conflitantes. Nós dizíamos o seguinte: vai vir um golpe de Estado por isso, isso e isso. O partido dizia que o golpe de Estado era uma safadeza da burguesia no poder. Não era safadeza de ninguém. Vinha. Porque o conflito que o Brasil vivia naquela época, que hoje tem outra forma de manifestação, e a realidade política é outra, mas ele vinha dando sequência: ele tinha dado em 54 e em 64. Entendeu?

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Em 61...

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Porque é o problema do capitalismo estatal, que começou a criar um conflito, porque você tem um capitalismo hegemonicamente estatal no País e você tem uma economia privada em São Paulo. É outra coisa! Tanto é que o trabalhismo, o pensamento trabalhista, só veio a entrar em São Paulo com o PT. Nenhum outro partido, nem o PTB, nem nós, ninguém nunca entrou na sociedade paulista, no movimento sindical paulista, porque lá a burguesia tinha uma política para o movimento operário e sindical. Mesmo assim, o PT conseguiu entrar, mas afrouxou agora. Este PT que está aí hoje no Governo, exercendo o Governo, que ganhou a eleição, não tem nada a ver com aquele PT, que foi fundado e passou 20 anos. Daí por que a Heloísa está esbravejando. Porque ela aprendeu e prometeu uma coisa aos seus eleitores e está sendo feita outra coisa, fora do discurso! E eu acho que ela não tem razão! Por que que eu acho que ela não tem razão? Porque a vida mudou, a realidade mudou!

Agora, o Lula, o José Dirceu e não sei mais quem, eles não estão sabendo explicar o que que houve, ou não querem explicar. Eu prefiro partir de que eles não estão sabendo explicar. Por quê? Porque no mundo todo há muita divergência de interpretação dessa realidade. Eu acho que essa dúvida de interpretação existe em mim, existe no Lula, existe em muita gente.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) – Porque o partido saiu de uma posição de esquerda para a social-democracia!

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Mas não tem! Porque a economia no mundo se conformou de tal forma que durante algum tempo, na minha opinião, a saída é ainda desse tipo que está posto aí: que é a terceira via. O Estado vai resolver o problema das encomendas das empresas privadas, comprando cesta não sei o quê, cheque não sei de quê, e distribuindo num lugar de graça, outro doando. É isso que está aí! o Estado vai virar um posto de assistência social.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Agora, você há de concordar que hoje...

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS – Agora, também não tem outra saída, porque você não tem um movimento social organizado para enfrentar isso. Não tem!

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Hoje, a esquerda, na Europa, nenhum partido de esquerda importante na Europa discute a propriedade dos meios de produção. Nenhum.

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Por quê?

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Todos os partidos se alinharam com o capitalismo.

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Não, não, não. Na proposta política, não.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O partido socialista espanhol, o partido socialista...

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Não, não, não! Na proposta política, não. Eles estão praticando a terceira via do Blair, que eu estou dizendo que é o Estado resolver o problema das encomendas das empresas do capital privado. É isso! A essência é isso: distribuir de graça aquilo que... Esse sistema econômico que está aí não permite distribuição de renda; ele só permite transferência de renda! É uma política de transferir renda, ou seja, se é pobre, vai continuar pobre. Acabou! Você vai comer sanduíche todo dia, mas não vai ter mais do que isso, não.

Então, a política de transferência de renda, foi o que o Fernando Henrique Cardoso inaugurou, a rede social aqui no Brasil, e que o Lula vai ter que fazer mais e melhor do que ele. Não resta outro caminho para o Lula, pelo menos do ponto de vista imediato. Lula não vai conseguir crescimento econômico, porque não é um problema dele, não é um problema do Brasil; é um problema mundial.

            Então, como não querem discutir o fenômeno mundial, você tem hoje... Como ele se apresenta no mundo? Davos em Porto Alegre, fórum social e Davos. O que que é isso? São as 2 pontas desse fenômeno que está se desenvolvendo no mundo na área de economia: que é a globalização. E a globalização está fazendo o seguinte: os Estados nacionais estão perdendo sucessiva e crescentemente o seu controle e domínio sobre a economia. Você hoje tem o Governo da democracia e o Governo da economia. O Governo da democracia resolve tudo, decide tudo, mas quem pode resolver é o Governo da economia, que esse não é eleito, não está no Palácio, não delibera para o bem-estar social; está deliberando para o capital, o lucro. Então, há um conflito aberto. Como é que você vai resolver isso? O que que é Porto Alegre? Em Porto Alegre, todo mundo se junta festivamente, chorando, brigando, para discutir o quê? Discutir o tamanho da exclusão social e as suas vertentes. É isso que é Porto Alegre: uma espécie de fórum mundial para discutir essa coisa da exclusão social — perfeito? —, que foi praticada para se chegar à globalização.

E Davos são os caras da globalização que querem saber o que vão fazer para poder utilizar o potencial de produtividade que eles resolveram no mundo. Então, a produção, no mundo, está resolvida para qualquer regime. Nenhum outro regime liberal, socialista ou comunista, vai poder resolver isso, porque está resolvido. Agora, a distribuição, não; empacou. O nó górdio a ser resolvido é a distribuição.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) – Agora voltando ao partido, há 2 acontecimentos de que o senhor não falou.

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Eu não falei sobre vários. (Risos.)

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O manifesto de agosto, quando você já era adulto.

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS – Hã! Isso.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O manifesto de agosto foi uma loucura!

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - É esse conflito que eu disse a você entre aliança política de trabalhistas e comunistas e o negócio da direção do partido contrária a isso.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O partido e a tentativa de golpe de 61...

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Não, mas o manifesto de agosto é isso!

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - ... e o golpe de 64.

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - O manifesto de agosto é isso! Tanto é que você tem o manifesto de agosto, que é isso. Mas você tem atrás — entendeu? — o manifesto sindical de 52, elaborado pelo Marighella, que prega alianças trabalhistas e comunistas nas fábricas. Depois, você tem o de 58, que é um passo mais adiante, e tem o de agosto de 51, que tinha sido o negócio de renegar a aliança. Um ano depois, o Marighella mesmo, da Executiva, contribuiu com a diretiva nacional para produzir o manifesto sindical de 52.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - E tem também a derrocada do stalinismo.

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Sim, mas aí já é em 58. É a declaração de 58, a declaração de março de 58. Essa reflete o impacto do Relatório Kruschev no partido. Entendeu? O partido tenta sair daquilo. O partido, você nota, está sempre fazendo um esforço para largar as posições sectárias esquerdistas, mas ele não faz isso por um amadurecimento intelectual marxista interno. Ele faz sob os impactos do troço internacional. Entendeu? O Armínio discutiu isso muito comigo. Eu disse: “Armínio, a história está contra nós”. (Risos.)

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Então, o manifesto de agosto foi acusado de total irrealismo...

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Claro!

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Pregando revolução no campo...

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Isso, isso, porque estava baseado muito nos conceitos que os soviéticos tinham disso.

            Tem uma história nesse meio todo, a influência dos soviéticos, que muita pouca gente fala. Os soviéticos, eles nunca apostaram em partido comunista no Brasil. Nunca!

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Por quê?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Porque não. Para eles, o problema aqui seria resolvido com os militares. Nunca apostaram nisso. Os soviéticos não queriam partido comunista forte aqui. Aliás, partido comunista forte demais daria trabalho para eles. Eles tinham horror dos italianos por causa disso.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Dá trabalho por quê?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Porque eles apostavam na máquina militar, na máquina partidária. O stalinismo é isso. Na força bruta.

            Eu era eurocomunista, né? Quer dizer, eu fui apelidado de eurocomunista. Entendeu? Por quê? Porque, você queira ou não, o que os italianos começaram a fazer é que é o caminho correto. Hoje, a solução para essa situação de globalização do mundo passa pela Europa e não pelos Estados Unidos, embora os Estados Unidos sejam o principal ator da globalização. Mas, passa pela política europeia.

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Eu queria só voltar ao movimento sindical, mas adiantando um pouquinho também na história. O movimento sindicalista impressionou muito o Governo Jango...

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Hum, hum.

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida)- Eu não sei, o senhor acha que essa pressão do movimento sindicalista culminou com o golpe de 64?

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - O Jango assumindo, eles tinham posições estreitadas que não podiam sustentar?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Não, não, não. Ele não o obrigou a nada, porque, na realidade, ele foi derrubado antes de poder tomar atitudes, Entendeu? (Risos.) Nós queríamos uma coisa que a economia que o País tinha não comportava. Não comportava. Nós queríamos uma coisa que não estava dentro da realidade. Por que que eu estou dizendo aqui que o Lula só pode fazer isso. Se ele tentar fazer outra coisa ele se ferra. Naquela época, o Jango também não podia fazer o que queria.

O Prestes tinha uma frase que ele usou algumas vezes comigo, e eu me indispus com ele por causa disso. Ele dizia: “Não, o Jango tem a caneta e o Diário Oficial na mão”. Eu digo: “O que que você quer dizer com isso? Isso não quer dizer nada no Brasil. O Presidente da República não é o que você está pensando. Ele tem poder? Tem. Mas isso é limitado. Porque existem outras forças que têm poder. Para com isso!” Entendeu?

            Então, o Presidente da República é importante, o processo democrático, a eleição. Tudo isso é muito importante. Eu estou exultante com o processo que o Brasil está correndo. É democracia!

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O que você quer dizer é que há demanda demais?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Não, não, não! Você não podia atender, porque você não tinha solução na economia para atender.

Eu tive um “pega” com o Ulysses Guimarães depois da Constituição de 88, na sede do PMDB aqui, no Rio. Votaram a Constituição, e ele foi fazer uma palestra. Nomeou de Constituição Cidadã, direitos políticos, direitos sociais. Eu disse assim: “Ulysses, me diga uma coisa. Eu estou ultrassatisfeito com a Constituição, com os novos direitos sociais, com tudo isso. A minha pergunta para você, Ulysses, é a seguinte: quem vai pagar? Quem vai pagar isso aí? Porque vocês simplesmente disseram que a economia vai deixar de ser estatal para ser privada. Mas quem é que paga esses direitos sociais? Você tem ilusão de que o capital privado vai pagar isso? Não vai”.

Tanto é que no mundo, hoje, você tem a globalização que resolveu o problema da produtividade definitivamente, porque libertou o aumento da produtividade do trabalho da escravidão, da força física de todos nós. Entendeu? E eles só falam em flexibilização da legislação, em tirar direito disso, cortar previdência. Se você pode produzir mais, por que cortar? É uma incoerência!

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Qual é a tua ideia hoje sobre o golpe de 64? Por que aconteceu o golpe de 64?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - O golpe de 64 foi um golpe possível, porque não tinha alternativa, não se discutia, com exceção de Celso Furtado e mais algumas outras pessoas, um projeto adequado para o Brasil. E, mesmo assim, não tinha apoio da maioria dos brasileiros. Toda a filosofia, a cultura nossa é estatal.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Os americanos participaram também do golpe, não é?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - É, porque tinham interesse. Como hoje eles participam de qualquer golpe contra o Chaves, contra o Fidel Castro. (Risos.) Isso não é novidade. Esse negócio de os Estados Unidos terem essa posição não é novidade. Entendeu? Eu vejo com a maior naturalidade.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Você concorda que o Jango era um sujeito despreparado?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Politicamente, não. Não era despreparado, não. Ele tinha noção.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Porque ... (ininteligível) no exercício do poder.

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Não, não. Ele exercia o poder. Ele não tinha capacidade de ser autoritário, antidemocrático, como exigia a situação. Esse é que era o problema do Jango. Ele não tinha firmeza para tomar decisões, porque em política você tem que tomar decisões. Não é assim, não. Você toma decisões, porque as decisões ajudam a formar maioria. Quando elas não são tomadas, elas diluem, fazem a maioria diluir. Então, um dos perigos que o Lula pode correr, com o espírito dele, formado no movimento sindical, de negociação, de bater no ombro de todo mundo — entendeu? —, é, em determinada situação, até ser chamado a se transformar em um ditador. Por quê? Porque nós, dirigentes sindicais, dirigimos o sindicato assim: há o presidente, cada diretor é subordinado ao presidente e é tratado como diretor. O Lula está governando o País como se fosse presidente de São Bernardo do Campo. E cada Ministro daquele não é diretor de sindicato. Não é, não!

            Lá na frente, vão se acumulando problemas e nós vamos ter problemas! E o Lula vai ter que dar o murro na mesa. Do ponto de vista de articulação política, ele vai... Ele é muito competente, muito cioso de que precisa negociar. Mas eu temo muito que encham tanto a paciência dele que ele dê um murro na mesa.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Mas você não está explicando o que que houve em 64.

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Foi isso. Foi desarticulação política.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - De quem?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Do Governo com as tropas. Do empresariado.

            Em 64 teve omissão do empresariado? Não, eles financiaram tudo. E foi feito com as Forças Armadas. Não foi feito com o movimento de massa, não foi feito com permissão do Parlamento. Foram as Forças Armadas. E contra as Forças Armadas você faz o quê? Vem um cidadão com uma arma na mão, você está sem arma e você vai fazer o quê? Você não tem como reagir. Entendeu?

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Como é que você passou todo esse golpe aqui dentro do Brasil? Como é que foi?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Eu fiquei no Brasil de 64 a 74, clandestino. Depois tentaram me sequestrar em São Paulo. Falhou o sequestro, aí resolveram me mandar para o exterior. Eu fui, porque eu sabia que continuavam querendo me matar, entendeu?

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Você foi cassado, não foi?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Eu fui cassado. Eu sou o 13º do listão, do primeiro listão, dia 9 de abril de 64. Eu sou o 13º.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Ato 1.

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Ato 1. O chamado ato 1, porque não tinha número ainda, né?

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Como é que foi essa história lá, de São Paulo? Você vinha pela Praça da República...

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Estavam cassando a gente, né? Então, eu fui fazer o chamado ponto de rua e cruzei com um... fui falar com um cidadão que estava sendo seguido por eles. Aí eles aproveitaram e me botaram na rede. Eles falharam por isso, porque eles acrescentaram mais um cara para ser... Tanto é que nesse dia eles sequestraram o João Macena, sequestraram 3 pessoas.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Mataram o João Macena?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Nunca mais apareceu.

Então, acho que eles botaram um cara a mais e não deu certo, porque eles vieram com um Volkswagen, uma mulher e 2 policiais — um era mulher. Entendeu? A mulher estava no volante, o outro era policial. E vieram. Quando eu entrei — o Volks parou perto de mim, na beira do meio-fio, acintosamente na Praça das Bandeiras, em São Paulo. Aí, eu sinto um revólver aqui: “Entra no carro”. Era muita gente. Eu fiz o movimento de entrar no carro. Quando eu fiz esse movimento, fiz “isso” nos “documentos” do cara, né!... Bum! Bati. A arma pulou, eu comecei a gritar: “Pega ladrão! É assalto!” Aí, aquela massa ignara veio e cobriu o cara de porrada, queriam virar o táxi, o Volkswagen. Eu subi aquela escadaria e fui embora.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Que sorte, hem rapaz!

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Eu sempre fui muito determinado nas coisas. Assim como eu andava com a pílula de cianureto no bolso, eu estava disposto a dar ou levar um tiro.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Salvou tua vida ali.

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - É. Porque eles queriam isso. Eles já tinham matado o Macena, já tinham matado o Capistrano de Abreu.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Mataram 8 dos 11 integrantes do partido. Oito!

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Não, são 10.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Mataram 10?

O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Dez, mais o chofer de fronteira: 11.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Quantos eram os dirigentes?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Eram 10 dirigentes e o chofer de fronteira.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Mataram todos?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Todos. Todos desapareceram até hoje. Até hoje! Ninguém tem notícia. Eu tenho uma informação de relacionamento de área militar que diz que eles não foram sequestrados e liquidados pela força policial de repressão do Brasil e sim do americano.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Pelos americanos?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - É. Porque os americanos, quando começou o processo da tal da abertura, eles quiseram conversar com a gente.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Os americanos queriam conversar?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - É. Procuraram.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Por vocês?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - A mim, ao Dias, ao....

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) – Como foi essa conversa?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Não, só queriam marcar uma reunião conosco.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Para quê?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Eles foram procurar o Jarbas de Holanda, que é jornalista como você. Para isso. O Jarbas de Holanda se apavorou, disse: “Vocês vão ser presos”. O Jarbas de Holanda me deu o recado e disse: “Não me procura mais”. (Riso.) O Jarbas de Holanda desapareceu.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Quer dizer que os americanos é que queriam...

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Não, eles queriam discutir a abertura, pô!

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Ah, sim!

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Eles queriam discutir o que que a gente ia fazer com a abertura.

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - E por que que esse encontro não deu certo?

O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Que encontro?

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Esse encontro com os americanos.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Dos americanos.

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Porque não aceitamos. Nós não aceitamos. Mas eles já tinham abordado vários companheiros nossos.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Vocês hoje acham que foram os americanos que mataram eles.

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Eu não acho. Eu estou dizendo que tem uma informação da área militar que diz isso. Agora, eu tenho um levantamento completo, é um texto que eu tive que fazer, porque a Executiva mandou eu fazer um levantamento das prisões e perseguições do partido, que, sintomaticamente, quando começo a redigir, eu boto: “Que merda é essa?” Entendeu? E depois, lá na frente, eu vou encontrar, no livro do Gabeira, que o Nixon, quando soube que tinham raptado o embaixador dele daqui, perguntou para o funcionário da Casa Branca: “Que merda é essa?” Aí eu peguei e botei o título no documento: Que merda é essa? É horrível. É uma leitura indigesta. Aí, você vai vendo que as prisões desse pessoal... Por exemplo, o Marco Antônio não foi morto. Por quê? Porque ele foi preso pelas forças daqui, do Brasil.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Se fosse pelos americanos...

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Todo mundo... Em seguida, é preso o Hélcio, numa mesma área, mas não foi pelo mesmo pessoal. Como é que você explica que matam o Hélcio e não matam o Marco Antônio? Eles foram presos com diferença de dia e de local só. Como é que é?

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Agora, através de que meio os americanos atuavam aqui?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Eles sempre tiveram e têm polícia aqui, né! Para com isso! Eles continuam tendo polícia aqui.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Agentes nossos.

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Não, senhor! Deles, comandados por gente nossa.

            A minha opinião, hoje, é de que eles tinham organização dentro do partido.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Dentro do partido. Militando?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - É. O serviço de segurança do regime tinha uma base dentro do partido. Eu comecei a aprender isso quando a gente discutia coisas da Executiva, e 15 dias depois eles já sabiam. Alguém informou, pô! Não existe esse negócio... Como eu fui sempre atento a isso...

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Agora, um general falava que havia um informante no contexto central que eles chamavam de VIP.

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Não tinham um. Eu acho que eles tinham uma organização dentro do partido. É isso.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Dentro do partido?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - É. Eles tinham dentro do partido. Hoje eu estou convencido disso.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Os americanos ou o serviço secreto deles?

O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Os 2 lados. Eles tinham! Eles tinham.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Agora, vocês mataram um sujeito que era informante...

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Isso foi lá, em Minas.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Em 74?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Não sei. Isso aí foi lá em Minas. Um cara entregou a gráfica de Minas, o pessoal botou ácido muriático dentro dele, em cima dele...

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Ácido?

O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Ácido muriático na banheira, e ele desceu pelo ralo.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Eta, pau! Como era o nome dele?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Sei lá, pô! Essas coisas eu não gravei.

            (Pausa)

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) – Não é verdade? Isso provocou a nova debandada...do Marighella...

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Não. A debandada viria de qualquer jeito.

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) – Não é? Como é que o senhor viu o advento da luta armada? Desses partidos dissidentes?

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Você era contra que eu sei.

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS – Claro! Claro.

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) Por que você era contra e por que ficou contra?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Porque você mudou a relação de força.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Não tinha a menor chance.

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - E política, você não pode fazer política na base da ideologia. Você não pode fazer isso e fazer luta armada. Esse posicionamento era político? Não. Era ideológico. E era um negócio que tinha na história do PCB, porque o PCB sempre foi o portador hegemônico dessa ideia do sectarismo, do esquerdismo.

            Uma vez andando com o Prestes, no exílio, na rua Gorky, em Moscou, eu perguntei a ele assim: “Você não era do partido, Prestes. Por que você, na Coluna Prestes, foi para o mato? Por quê? Se as lutas sociais estavam na cidade? Você não era. E foi gozado, porque depois disso você foi ler Trótsky, foi para a Argentina”. Foi...entendeu?

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Ele era (ininteligível).

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Você está entendendo? É um negócio que está no estamento militar, no estamento comunista, da época do movimento comunista internacional — os soviéticos apostavam nas Forças Armadas e não num partido comunista de massa.

            Há toda uma ideologia da esquerda, que eu acho que não é só no Brasil, mas no Brasil isso impregnou muito. O Arruda desempenhou um papel grande nisso. Aí, sim, o Arruda, na máquina, foi um desastre, entendeu? porque ele procurou moldar a máquina numa ideologia desse teor.

            Então, se você pegar o “Que Merda é Essa” você vai pegar e ler... Eu comecei por aí. Todos os grupos de luta armada, de onde é que vieram? Saíram do PCB. Todos! Não tem um que não saiu do PCB. Você sabe como era o grupo dos 11?

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - A dissidência era...

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - O grupo dos 11 do Brizola aqui, na Guanabara, depois da apuração dos inquéritos? De cada 11 — 11 do grupo de Brizola —, 9 eram do Partido Comunista. Aqui, na Guanabara, que é a cidade mais civilizada, na época, em política. Não precisa falar muito. É isso!

            Já concordando, não sei se ele falou... Mas quando eu estava em Porto Alegre, num primeiro momento, em 64/65, o pessoal de Porto Alegre — o gaúcho gosta de uma luta armada, de uma fanfarronice — se reuniu  e começou a discutir. Então, o Brizola queria fazer uma revolução armada em Porto Alegre e começou a dizer para todo mundo que não fazia porque o Partido Comunista não queria. Aí eu cheguei na reunião e foi relatado isso. Eu disse: “Muito bem. Vocês me arranjam a documentação, transporte e vamos votar aqui que nós somos a favor desse levante. Eu vou lá comunicar ao Brizola que nós queremos fazer o levante”.

            Aí, todo mundo ficou assustado comigo, né? “Como?” Eu disse: “Ué! Vamos”. Eu fui ao Uruguai, cheguei lá e me sentei com o Brizola. “Estou aqui para isso.” Ele ficou assustado comigo, né? Eu disse: “Estou aqui para isso”. “Ah! Mas você não é contra?” Eu digo: “Não, eu sou contra, mas você está dizendo, seu pessoal todo está dizendo que é possível, e eu não vou impedir. Se é uma coisa que é possível, vamos fazer. Então, eu quero acertar com você. Você vai nos arranjar as armas. Nós vamos arranjar campo de pouso, vamos botar um comando, um C-1 nosso em Porto Alegre...”

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Dinheiro.

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Não falei em dinheiro com ele não, porque não gosto de discutir dinheiro com o Brizola. Entendeu? Então, isso!

“E daqui a 15 dias vai voltar o nosso responsável militar aqui para acertar isso com você”. Aí, o rapaz foi lá. Acertou? Nunca.

            Eu fazia, né? Era chantagem. Pura chantagem!

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - O senhor chegou a discutir com o Marighella, Orlando de Carvalho ou outras pessoas essa opção pela luta armada?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Ah, com o Marighella eu discuti muito. O Marighella rachou o partido em São Paulo. Ele estava de um lado, eu estava do outro. Então, discuti muito!

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - O senhor, inclusive, foi da comissão que...

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Que substituiu ele. Claro! Discuti muito.

Na véspera em que ele estava embarcando para Cuba, eu encontrei com ele na Frei Caneca, 8 horas da noite, e ficamos andando na rua. Ele com a metralhadora na mão, e eu andando com ele para baixo e para cima e discutindo com ele...

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Em que ano?

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) – Em 67.

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Ah, foi em 67, por aí.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Em 77?

O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Em 67, desculpe. A tricontinental foi em 67.

            Eu dizia: “Marighella deixa de ser louco, rapaz! Você vai criar um problema. Você vai morrer, oh, crioulo!” Eu chamava ele de crioulo, né? Nós andávamos muito. Eu digo: “Você está iludido! Isso não é assim”. Mas ele era muito corajoso. Ele tinha uma coragem brutal. Aí foi e deu no que deu.

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) Foi a última vez que você falou com o Marighella?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - A última vez que eu falei pessoalmente com ele foi essa: quando ele estava embarcando. Ele embarcava no dia seguinte para Cuba, entendeu? E foi aí também que eu participei das operações que transferiu... Pegar o Che Guevara em São Paulo e jogar na Bolívia.

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Como é que foi essa história?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Foi um negócio traumático, uma aventura.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Como é que vocês foram avisados de que ele vinha para cá?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Porque o Guevara chegou e estava impossível de transitar, porque as forças de esquerda não tinham organização para fazer isso.

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Em que ano foi isso?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Foi em 67, pouco depois da tricontinental.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Só o partido político podia dar... tinha rede para isso.

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS – Só o partido tinha rede para fazer isso.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - E como é que foi?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Ué! Transitamos o homem, pô! Botamos o homem dentro da Bolívia. Disse: “A partir da fronteira da Bolívia é com você!”.

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Ele ficou quanto tempo por aqui?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Ah, ele ficou um tempo lá em São Paulo.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Vocês fizeram a rede de (ininteligível)...

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Depois deslocamos ele para Goiás.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Foi por Mato Grosso,  Cáceres.

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Sim. Foram feitos vários deslocamentos. Entendeu?

            Quando saí do país, em 74, para ir para o exílio, eu não saí pelo aparelho do partido, porque estava tudo minado já. Eu fiz por minha conta e meu risco.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Você conhecia.

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Não, porque eu sabia que estava dedado. Eu estava fazendo o tal Relatório “Que Merda é Essa?” e eu tinha noção de que a polícia já tinha informação das coisas!

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Porque se você entrasse na rede do partido, você podia morrer.

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Não, morria logo! Tanto é que o dinheiro que me deram, a documentação falsa que me deram, tudo, eu peguei tudo isso e peguei um universitário do partido que era desconhecido botei na mão dele e disse: “Olha, você vai encontrar comigo na Rua Florida, em Buenos Aires, assim, assim e assim. Dia tal e tal hora”.

            Esse rapaz foi de avião, porque ele não tinha nenhum problema, levou minha roupa e eu saí por baixo, pulando de município em município, de ônibus em ônibus, ônibus. Atravessei em Jaguarão, de alpargatas, blusão, calça jeans de cobrador com uma bolsa na mão como quem ia do outro lado fazer compra. Fui bater em Montevidéu. Em Montevidéu, eu peguei aquele barco e fui bater em Buenos Aires.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Foi ao encontro lá, na Rua Florida?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Fui. No dia marcado o rapaz estava lá.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Aí, de lá você foi para aonde?

O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - De lá, eu fiquei na Argentina. Eu me apresentei ao partido comunista argentino, eles me deram cobertura. Eu fiquei uns 4 ou 5 meses na Argentina, para saber como é que estava a coisa, e depois embarquei para Roma.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - E de Roma para Moscou.

O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Em Roma, eu fui à embaixada soviética. Cheguei lá, falei com o Secretário, ele ficou me olhando, dei o passaporte para ele. Ele disse assim: “Ah, mas...” Eu disse: “Olha, não adianta você me perguntar. Você liga para Moscou e diz que está aqui fulano de tal, que sou eu, Hércules Corrêa dos Reis, com o documento tal e quer ir para Moscou”. Ele mandou eu voltar no outro dia. Cheguei lá às 3 horas da tarde e ele já me apresentou o autorizo, a passagem e disse: “Você pode ir embora.”

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - E o passaporte.

O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Tudo. Não, ele não ficou com o meu passaporte.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Ficou contigo?

O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - O meu passaporte ficou comigo. Era falso. Era falso do ponto de vista... Era um passaporte que eu tinha tirado no Paraná. Ele era chamado de documento ilegal, mas não era frio. Era tirado em Secretaria de Segurança. Eu fui lá e tirei. Porque no Brasil é assim: você chega no interior, tira uma nova certidão de idade, volta, chega ao grande centro. Está cheio... No comércio está cheio disso, cheio de comerciantes com nome fajuto, porque faliram. Eles tiram outra documentação e abrem outra firma!

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - E como é que foi na Rússia a tua experiência? Tu sentiu os sinais de decadência do regime?

O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Um eu já te contei, não é? Que é esse aí, do miliciano. E depois nas reuniões com os soviéticos, já naquela época, em 75, 76, toda a discussão deles era sobre a crise do socialismo. Eu participei de vários debates, e era isso, porque era real!

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - E quais foram as causas dessa derrocada?

O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Aí tem o documento que eu fiz: Globalização, Produtividade e Socialismo. Eles fizeram competição na área de segurança só. Eles não fizeram competição na área de produzir bens materiais de grande consumo de massa. Então, chega um momento que você não podia distribuir as coisas. Faltava. Faltava carne, faltava não sei o quê. Faltava batom para mulher, pô! Eu fiz duas viagens de Moscou para Paris. E o que que as mulheres soviéticas me pediam? Batom e calcinha — calcinha de mulher, pô! Como eu entrava pela sala VIP, eu enchia a mala de batom, aquela merda toda. Entrava no aeroporto de Moscou com aquilo — era considerado personalidade —, passava na sala VIP e entregava para elas! É isso.

Depois, o seguinte: você tinha aqueles intelectuais todos do partido, da polícia...

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Da polícia secreta.

 O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - ...polícia secreta. Eu me dava muito com essa gente. Então, eu fiz uma feijoada lá em casa, algumas delas, né. Ele levava... Eu fiz feijoada no inverno, eles gostavam muito de cantar, juntava aquele monte de gente dentro da casa, que era pequena, e ficavam de 10 da noite às 7 da manhã do outro dia, conversando e batendo papo sobre política. Entendeu? Então, o que que acontecia? Todos os soviéticos de atividade partidária organizada, não sei o que, andavam com uma pasta, dentro daquela pasta tinha sempre um Pravda, uma garrafa de vodca ou de vinho e tinha versos contra o Governo.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) – Ah! Corrupção?

O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Não. Versos contra o Governo. Piadas. Então, eles mostravam e discutiam tudo isso. Em pleno atrito da União Soviética com a China, em um jantar desses foi um cara que tinha vindo da fronteira e foi para lá. Aí eles levaram. Uma mulher que era da KGB levou ele. Aí foi lá, começou a conversar, a tomar vinho e a cantar. Eles gostavam de cantar. São farristas, né? Aí eu comecei a perguntar a ele sobre o negócio da fronteira. Ele disse: “Tem coisa nenhuma, tem encrenca nenhuma. Os chineses de lá e nós de cá, a gente festeja todo dia. Não tem atrito nenhum. Isso é história para inglês ver. Isso é para noticiário mundial”.

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - O senhor chegou a ter contato direto com o Che Guevara? Como é que foi essa história?

O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Não, eu pessoalmente não estive com ele, não.

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Como é que foi essa história?

O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Não... Eu era da direção do partido. Só quando chegou ao nosso conhecimento que nós começamos a tomar medidas e delegamos a tarefa a outros, até porque a gente não podia aparecer, né?

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Foi o partido comunista cubano que pediu?

O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Não, quem pediu foi o pessoal que acompanhava o Guevara. O partido comunista cubano, eu tenho dúvida até como ele manuseou isso.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Muita gente diz que o Guevara foi morto por causa da polícia secreta cubana, de Fidel Castro...

O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - É, outro dia saiu uma matéria no jornal sobre isso.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - ... e por causa de um agente do KGB que o traiu.

O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Tudo isso é possível, entendeu? O fato, o concreto é que ele chegou lá e tinha dificuldades para transitar para a Bolívia. É isso! E naquela época, você tinha... A filha do Bocayuva Cunha, por exemplo, que se meteu numa enrascada aqui, no Rio, eu tive que preparar documentação para ela, atravessar com ela a fronteira e mandar para fora. A filha do Bocayuva! Eu ia dizer que não? Entendeu? A gente salvou muita gente assim, porque nós tínhamos estrutura. Daí por que eles botaram o apelido na gente de Partidão, porque você funcionava aí, mas não pegava em arma.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Tinha uma rede.

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Não. É Partidão. O apelido Partidão é por causa disso.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Tinha estrutura, não é?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - É, tinha tudo. Você transitava, entendeu?

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - O senhor ficou quantos anos na clandestinidade?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Eu fiquei clandestino de 64 a 74, em São Paulo. Depois, saí para o exterior. Voltei com a Lei da Anistia — 5 anos. Fui cassado, os direitos políticos, por 15 anos. Sou um dos poucos cassados por 15 anos. Eu fui cassado por 10 anos e, depois, mais 5.

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Depois que o senhor voltou?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Não. Porque é o seguinte: eles me cassaram em 64 — 10 anos. Aí, quando julgaram um processo no STM contra mim, os condenados pegavam mais 5 anos. Aí, eu peguei mais 5 anos, dados pelo STM.

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Quando o senhor voltou, em 79, com anistia e tudo, mas aí o partido já estava em crise.

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Não, ele não...

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Com o Prestes, estava aquela...

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Não, o Prestes é uma história à parte, entende?

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O partido estava desarticulado.

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Não, não era isso, não. O partido tinha um problema que foi bem definido por Golbery do Couto e Silva, numa entrevista a um jornalista. Eu estava em Paris quando saiu a entrevista dele no Jornal do Brasil. Um repórter perguntou a ele... Acho que foi até aquele repórter que tinha no Jornal do Brasil, Derly...

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Derly Barreto.

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Isso. Acho que foi ele quem perguntou: “Mas os comunistas estão voltando.” Ele disse assim: “Não tem nenhum problema. Os comunistas vão voltar na legalidade. E eles, na legalidade, não sabem navegar. Eles foram formados para navegar na clandestinidade”.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Você acha isso?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Tanto é que esse foi o grande problema. Quando eu voltei, como eu defendia lá fora... Porque houve um momento, numa reunião lá fora, que o Prestes queria o seguinte: todo mundo ia voltar com a Lei da Anistia. Só quem voltava legal era ele. Nós todos tínhamos que entrar com documento falso e clandestino. Aí, eu disse: “Não. Eu acho se alguém tem que voltar clandestino é você. Eu vou voltar legal”. Entendeu? “Eu vou voltar legal.” Por isso, ele me... Como eu tinha a ideia de voltar ao Brasil, por causa do que estava acontecendo aqui e porque eu tinha essas ideias, ele mandou me prender em Moscou, durante o tempo em que eu estive em Moscou. Eu fiquei praticamente 3 anos preso em Moscou. Porque me tiraram o passaporte, me tiraram todos os documentos...

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O Prestes?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - O Prestes orientou o pessoal do secretariado do PCUS para não me dar nenhum documento. Aí, o cara que cuidava da documentação clandestina me chamou um dia, no hotel do partido, e me apresentou o ofício, a carta do Prestes ao secretariado, pedindo que, no meu caso, não dessem nenhum documento que me permitisse sair da fronteira da União Soviética.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Por que isso?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Porque eu queria voltar para o Brasil, e ele defendia tese contrária: que não tinha que voltar. Aí, o que que aconteceu? O cara me chamou e disse: “Como é que eu resolvo isso? Eu preciso resolver isso porque eu sou o responsável, e isso aqui é uma coisa que não dá. Como é que eu vou responder amanhã?” Eu disse: “Você inventa outra coisa qualquer aí. O que você fizer, eu cumpro. O meu problema com o meu partido é uma coisa, eu resolvo lá, no Brasil. Aqui, com você, eu não vou te atropelar”. Aí ele trouxe um plástico com um papel dentro — limpo, branco, as letras pretas, aquelas letras russas — com um número e me deu. Eu digo: “Para que isso?” Ele disse: “Onde você estiver na União Soviética, se pedirem documento, você apresenta isso”.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Era uma senha?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Não sei o que que era aquilo. Até hoje eu não sei. Eu só fui saber a repercussão disso em 2 momentos: um, no verão, em Moscou, chovia pra burro, eu tinha saído da livraria, numa rua perto do Kremlin, e fui pegar um táxi. Aí o motorista — o motorista de lá é muito parecido com o daqui; choveu, ele não quer atender ninguém. (Riso) Aí eu comecei a discutir com o cara. Eu estava com os livros. Aí, quando eu comecei a discutir, tinha um miliciano que viu a discussão — eu agitando o dedo para o cara; o cara agitando o dedo para mim. Aí, o miliciano atravessou e perguntou o que que era. Aí, ele falou, o chofer falou para ele que eu estava querendo que ele fosse levar a um lugar que não interessava a ele e tal. Aí o miliciano virou para mim e disse: “Seus documentos”. Eu peguei o papel e dei para ele. Aí, o miliciano olhou, olhou, olhou, virou para o taxista e disse: “Leva ele e não cobra”. Ele me devolveu o papel, eu botei no bolso. O chofer me levou para casa. Aí eu quis pagar, e ele disse: “Não, não recebo”.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Não sabe por quê?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - O que que é aquilo? Eu não sei. Depois, eu viajei. Fui para Leningrado, no inverno, viajei de Leningrado a Vladivostok, no trem transiberiano — 13 dias para lá, 13 dias para cá. Fui a Vladivostok, fiquei 4 dias lá e voltei. Quando cheguei em Vladivostok...

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Na Sibéria.

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - É, lá na ponta, perto do Japão, pô. Lá perto do Japão....Eu disse: eu vou ao Japão. Cheguei lá e disse: “Quero comprar. Atravessa-se de barco, não é?” Aí a moça me disse: “Niéte, Tavares! Niéte, niéte!” Ela disse: “Você não pode sair daqui”. Aí eu peguei o meu trem de volta e fui embora. (Risos.) Viajei 13 dias para lá, 13 dias para cá, no inverno. Tive direito de tomar 2 banhos — porque era 1 banho por semana!

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Isso foi em que ano?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Isso foi em 1977.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) – Quando você veio para o Brasil?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Eu vim para o Brasil direto da França. Porque houve um momento, em 1978, em que me mandaram para Bruxelas, por causa das greves aqui. O pessoal do PT e da Igreja todos iam para Bruxelas discutir. Aí, eu fazia reunião com eles para acertar as coisas aqui no Brasil.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Do PT?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - É, PT, movimento sindical, claro! Igreja e PT. Porque era uma mistura, lembra?

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O senhor veio legal?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Não. Eu estava em Bruxelas! Exilado em Bruxelas, estava vivendo em Bruxelas. Deram-me um passaporte e eu fui para Bruxelas. Eu morei lá quase 1 ano. No período das greves...

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - De lá o senhor veio para o Rio?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - De lá eu passei para Paris. Fiquei 3 meses e pouco em Paris. De Paris eu vim para o Rio. Morei 3, quase 4 meses em Paris.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) – Você ainda se considera comunista ou você mudou de posição ideológica, totalmente?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Evidente. O que que é comunismo? Vamos ver...

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - É o marxismo-leninismo.

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Não, senhor! Não, senhor! Comunismo é uma teoria lá do século XIX para uma realidade determinada, que acabou. O que estou dizendo? Que tudo o que eu fiz em cima daquela realidade eu não renego. Tinha que fazer. Acho até que fiz mal, fiz pouco. Mas a realidade mudou. Não se pode ficar repetindo aquilo, nem como proposta nem como ação.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Qual é a posição ideológica, hoje, adequada?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - A minha. Eu sou socialista. Porque o que ficou, o que está plantado aí são os valores do socialismo — que está sem solução, porque é preciso elaborar outro projeto, e a esquerda não quer elaborar; ela quer repetir o projeto da União Soviética. O PPS, por exemplo, quer repetir. O Roberto Freire quer repetir o projeto de lá. O Roberto Freire quer reviver o PCB. Ele é um homem muito bom porque estimula muito a discussão. Ele é um cara que tem coragem. Ele coloca as coisas para se discutir a nova realidade. Mas ele está amarrado. O PPS dele não vai para frente por isto, porque ele quer repetir, refazer o PCB no PPS.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Mas o PPS não é um partido socialdemocrata?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - É difícil qualificar, ouviu? É difícil qualificar, porque ele começou uma transição e agora a está negando. Não, não que seja socialdemocrata. Que o socialismo tem elementos da política socialdemocrata, o novo projeto do socialismo, tem! Não duvide disso.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Mas o socialismo não cabe nesse quadro.

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Porque o socialismo... Não, cabe! Ao contrário! Não é aquele socialismo que eu e você aprendemos no livro. Aquele acabou!

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - E qual é?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - É uma outra realidade que permite o socialismo hoje, um outro tipo de projeto de socialismo. Esse é o desafio da esquerda!

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Como é esse projeto?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Ah! tem-se de levar em conta, primeiro, que o exército proletário, para fazer desmontar o modo de produção capitalista, acabou. Isso não existe mais. Não há mais esse exército.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O senhor acha que o capitalismo acabou?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Enquanto regime de produção, acabou. Porque ele era montado em cima da escassez, da impossibilidade de produzir. E isso hoje está resolvido. Agora, o que quê não está resolvido? É o valor do socialismo na distribuição. Continua-se vivendo mal, ganhando mal — você, todo mundo. A distribuição está empacada. Tanto é que isso está causando uma crise na globalização econômica do mundo.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) – Não tem mercado!

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Claro, porque exige-se mercado, exige-se uma nova ordem econômica mundial, uma nova ordem política. E o negócio do Bush é isso. Ele não tem saída. O Estado nacional americano perdeu o controle sobre parte da economia americana; não manda mais. Ele começa, então, a sair pelos métodos e ações do imperialismo, quando você está na globalização. Que hoje o passo adiante agora é mudar essa distribuição que está aí. Portanto, no conceito socialista, é abastecer a sociedade de condições materiais, de meios de vida, ao contrário do que era antes. Antes, era negar; agora, é jogar.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) – Agora a verdade é que o capitalismo é hegemônico. Está aí. Taí o capitalismo....

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Não, não! O capitalismo enquanto modo de produção é uma coisa; enquanto política, é outra. Enquanto política, está embananado! Ele tá embananado!

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) – Mas, o modo de produção continua.

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - O Bush tem o maior poderio militar do mundo, mas não tem poder político.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - E onde é que está o poder político?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Ah! Está espalhado hoje. A rigor, o prato da balança é a Europa. Por que que o Blair, sendo da Europa, se aliou a ele? Porque o Blair tem uma proposta, que é um passo em direção a um novo tipo de socialismo, que é o Estado ser transformado em órgão de assistência social, que mantém o capitalismo sem mexer no princípio da distribuição de renda, substituindo-o pela transferência de renda. Essa é a proposta básica do Blair. E é a que o Brasil está seguindo. Porque não tem outro jeito. Agora, qual é o drástico do Brasil e da esquerda no mundo, hoje? É que não querem sentar para discutir isto — um novo projeto do socialismo.

            Eu acho que o socialismo, enquanto valor de socialismo, está mais próximo hoje do que já esteve lá atrás. O século XXI vai resolver esse embate, na minha opinião, e vai resolver bem, a favor dos valores socialistas. Esta é minha opinião, hoje. Agora, não é um assunto para um Marx resolver. São muitos Marxes, muitos Freuds. Aliás, hoje está-se precisando muito mais de Freud do que de Marx. É! É isso mesmo! Está-se precisando mais de Freud do que de Marx.

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - O senhor já está com quase 50 anos de atividade política...

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - 57.

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) – 57.

             O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS – Isso! Eu faço política desde os 14 anos, oficialmente.

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Agora vou fazer a última pergunta: valeu a pena?

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Valeu! Eu me considero um dos caras que participou e levou o mundo a mudar na direção em que está mudando. A globalização não teria existido se não fôssemos nós, se não fossem as greves, se não fossem os embates contra o capital. E ainda acho que nós fizemos pouco. Ele teve que mudar por isso. Chegou um momento em que ele não contava mais com o Estado, que perdeu a capacidade de municiá-los; e aí eles tiveram que investir em ciência e tecnologia. Foi aí que se conseguiu independência com crescimento da produtividade do trabalho e aumento incessante da produtividade: na base da ciência e da tecnologia. E para fazer isso eles fizeram uma exclusão social no mundo violenta. E por isso você tem hoje um capitalismo... O mundo hoje está assim. Você olha uma fotografia e vê isto: um capitalismo ágil, eficiente e mais não sei o quê, e um mar de exclusão. E a exclusão, meu amigo, não é a exclusão da força de trabalho, da fábrica; é a exclusão social da classe média, de setores da pequena burguesia. Esses é que estão pagando. E esses é que vão pagar mais. Por isso é que esse troço vai mudar. Porque a força física de trabalho já se ferrou há muito tempo; se ferrou no século passado. Agora é a classe média que está se ferrando agora , e vai se ferrar!

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) – Com o desemprego...

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Claro! Então, há que se mudar esse sistema de distribuição. Agora, por que eu digo que mudou? Antigamente, a nossa teoria era de que as grandes fábricas, as grandes unidades produtivas, essa força de trabalho era o exército que destruiria o modo de produção capitalista. Hoje, na globalização, o que aconteceu? As unidades ficaram deste tamanho, pequenininhas. Você não tem mais uma Bangu de 6 mil operários. Você encontra uma Bangu com 150 operários — perfeito? Onde é que está o exército, a força física material? Depois, ela se desorganizou porque ela foi para os bairros, foi para... Não está mais concentrada!

            A economia, ao se globalizar... O que é globalização? É a independência da acumulação — seja ela socialista, socialdemocrata ou capitalista. Ela se libertou dos limites da força de trabalho humana. Porque você e eu aguentávamos trabalhar 10, 12, 15 horas. A máquina, não. Bota ela para rodar, que ela roda, roda... Quebrou?! Bota outra no lugar, roda, roda...tá rodando.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - A máquina têxtil suíça...

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Eu não estou falando de produção de massa. Então, veja você. O que é, por exemplo... Agora, isso é válido para certas coisas, não é? Não quero generalizar isso. Então, isso é uma nova ordem de organização política e social do mundo. Isso tem que ser discutido, e não sou eu que vou resolver isso. Não tenho nem idade nem cabeça para sozinho resolver isso. (Risos.)

            Então, por isso eu digo a você. O que é o Fórum de Porto Alegre? O Fórum de Porto Alegre é a discussão do tamanho da exclusão social. Não é uma discussão de solução, porque não...

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Não tem proposta!

            O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Não tem, não tem. Mas Porto Alegre é muito importante para medir o tamanho da exclusão social. Acho que ninguém está fazendo melhor do que eles, compreendeu?

De outro lado, você tem Davos, que é a economia globalizada, que também está sem saída porque não tem mercado.

Eu consegui a possibilidade de produzir, no lugar de 100, 2 mil unidades. Mas não tem mercado, porque esse mercado depende de eu admitir que o preço tem que baixar. Mas como o cara que me oferece matéria-prima, energia, que não baixou a matéria-prima, eu não posso baixar o preço.

A globalização exige que você tenha uma política ambiental diferente dessa que está aí, porque você vai precisar de energia, vai precisar de madeira etc. e tal. E você tem que repor tudo isso. Isso vai desempregar ou empregar gente? Você tem que refazer. Você pega e usa o meio ambiente para produzir isso, produzir aquilo. Mas depois você vai ter que refazer: replantar florestas, restabelecer isso e isso. Aí não vai faltar água coisa nenhuma; não vai haver temperatura quente coisa nenhuma! Você deve dirigir com o resultado e a imposição da globalização para outro tipo de política ambiental, e não essa loucura de que você não pode mexer no meio ambiente. Você deve deixar essa palhaçada aqui do Rio. O tubarão chegou e matou não sei quem. Agora, o cara pegou e matou o tubarão. Direitos humanos do tubarão... Alguma coisa está errada.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Que direitos humanos?

O SR. HÉRCULES CORRÊA DOS REIS - Está aqui, rapaz! Está no noticiário do jornal, televisão! Então, o que é isso?

(Pausa.)

(Segue-se exibição de imagens.)

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Hércules Corrêa autografando, e Paiva Muniz, do PTB.

Apreensão de material subversivo no escritório de Hércules Corrêa.

Hércules Corrêa ao centro. Ivan Ribeiro e Carlos Alberto Muniz à espera de Giocondo Dias.

            Hércules Corrêa cumprimentando o Senador José Sarney.