Legislação Informatizada - LEI Nº 12.015, DE 7 DE AGOSTO DE 2009 - Exposição de Motivos

LEI Nº 12.015, DE 7 DE AGOSTO DE 2009

Altera o Título VI da Parte Especial do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, e o art. 1º da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, que dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos do inciso XLIII do art. 5º da Constituição Federal e revoga a Lei nº 2.252, de 1º de julho de 1954, que trata de corrupção de menores.

Justificação

     A CPMI sobre a violência e as redes de exploração sexual de crianças e adolescentes possui a faculdade de apresentar proposições legislativas baseadas nas conclusões de suas investigações, o que leva obrigatoriamente à reflexão abrangente sobre o direito posto, o proposto e o a propor.

     A respeito do fato determinado que está sendo investigado por essa CPMI, a natural reflexão sobre o direito posto recai sobre o Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848/40) e o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90).

     Sobre a legislação penal reinante pairam concepções características de época de exercício autoritário de poder - a primeira metade dos anos 40 - e de padrão insuficiente de repressão aos crimes sexuais, seja por estigmas sociais, seja pelos valores preconceituosos atribuídos ao objeto e às finalidades da proteção pretendida. Trata-se de reivindicação antiga dos grupos e entidades que lidam com a temática, sob o argumento de que a norma penal, além de desatualizada quanto a termos e enfoques, não atende a situações reais de violação da liberdade sexual do indivíduo e do desenvolvimento de sua sexualidade, em especial quando tais crimes são dirigidos contra crianças e adolescentes, resultando, nesse caso, no descumprimento do mandamento constitucional contido no art. 227, § 4º, de que "a lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente".

     Partindo dessa perspectiva, foi criado, em consórcio com a CPMI, um Grupo de Estudos de Análise Legislativa em reunião de setembro de 2003 da Comissão Intersetorial de Combate à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, então coordenada pela Secretaria Nacional de Justiça, do Ministério da Justiça. Esse Grupo produziu anteprojeto, que culminou na presente proposição, e teve representantes dos seguintes órgãos e instituições:

     Ministério da Justiça, Secretaria Especial de Direitos Humanos, Ministério Público do Trabalho, Ministério Público Federal, Defensoria Pública da União, Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes e Organização Internacional do Trabalho.

     Do ponto de vista metodológico adotado pelo referido Grupo de Trabalho, foram considerados de modo particular os estudos desenvolvidos pela Associação dos Magistrados e Promotores da Infância e Juventude (ABMP), pela Organização Internacional do Trabalho, pelo Centro de Defesa da Criança e do Adolescente - CDECA/EMAUS e pela PESTRAF, pesquisa sobre tráfico de mulheres e crianças realizada pelo Centro de Referência, Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescentes (CECRIA). Essa última pesquisa, a propósito, foi amplamente debatida no início dos trabalhos da CPMI.

     Importante também considerar que a opção por esses estudos se deu em razão de eles partirem da realidade vivida pelas crianças e adolescentes explorados, o que direcionou as adequações legais sugeridas para a repressão de violações concretas. Para se ter uma referência atual, é importante ressaltar que a CPMI investigou situações de violência não contempladas pela legislação penal, que resultam na impunidade dos agressores e na dificuldade de combate a essa situação, facilitando a sua perpetuação.

     A primeira alteração proposta é sobre a nomenclatura do capítulo do Código Penal em tela que, de modo significativo, intitula-se dos Crimes Contra os Costumes. Para a ciência penal, os nomes e os títulos são fundamentais, pois delineiam o bem jurídico a ser tutelado. Assim, a concepção atual brasileira não se dispõe a proteger a liberdade ou dignidade sexual, tampouco o desenvolvimento benfazejo da sexualidade, mas hábitos, moralismos e eventuais avaliações da sociedade sobre estes. Dessa forma, a construção legislativa deve começar por alterar o foco da proteção, o que o presente projeto de lei fez ao nomear o Título VI da Parte Especial do Código Penal como dos Crimes Contra a Liberdade e o Desenvolvimento Sexual.

     Ressalte-se, outrossim, que foi examinada a hipótese de as disposições comporem capítulo do Título I da Parte Especial do Código Penal:

     "Dos Crimes Contra A Pessoa". Optou-se, no entanto, pela sua não inserção nesse título, não somente pela dificuldade prática na inserção dos tipos penais previstos com o necessário realinhamento dos artigos, como também pela necessidade de se dar destaque à questão, que, integrada aos crimes contra a pessoa, perderia a ênfase e importância, quando a sociedade precisa entender e incorporar o direito fundamental da pessoa humana de liberdade e desenvolvimento sexual, porque condição para manutenção da sua integridade e dignidade.

     Outros pontos do Código Penal (CP) que explicitam equívocos de formulação claros estão em expressões como o de mulher honesta, para caracterizar o crime de posse sexual mediante fraude (art. 215 do CP), de atentado ao pudor mediante fraude (art. 216 do CP) e de rapto violento ou mediante fraude para fim libidinoso (art. 219 do CP). No crime de posse sexual (art. 215 do CP), há aumento de pena se for praticado contra mulher virgem menor de 18 e maior de 14 anos, o que denota outra concepção estigmatizada e valorizada socialmente, a da virgindade. Portanto, o presente projeto sintetiza os arts. 215 e 216 no tipo penal "crime de violação sexual mediante fraude" (novo art. 215), em que há prática com alguém de conjunção carnal ou ato libidinoso, mediante fraude, o que deve salvaguardar a mulher de estigmas atinentes a sua virgindade ou moral.

     Igualmente com base na virgindade é a formulação do crime de sedução (art. 217 do CP), que implica em seduzir virgem menor de 18 anos e maior de 14 e ter com ela conjunção carnal.

     Ora, o crime contra pessoas que se encontram em determinada faixa etária não deve ser condicionado à virgindade, nem crimes contra mulheres devem ser avaliados por sua pretensa honestidade, conforme apontam outros projetos de lei em trâmite, como o PLC nº 103/2003.

     Além de suprimir tais formulações, o presente projeto, por inspiração da definição ínsita no Estatuto do Tribunal Penal Internacional, cria novo tipo penal que não distingue a violência sexual por serem vítimas pessoas do sexo masculino ou feminino. Seria a renovada definição de estupro (novo art. 213 do CP), que implica constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele/ela se pratique outro ato libidinoso. A nova redação pretende também corrigir outra limitação da atual legislação, ao não restringir o crime de estupro à conjunção carnal em violência à mulher, que a jurisprudência entende como sendo ato sexual vaginal. Ao contrário, esse crime envolveria a prática de outros atos libidinosos. Isso significa que os atuais crimes de estupro (art. 213 do CP) e atentado violento ao pudor (art. 214 do CP) são unidos em um só tipo penal: "estupro".

     Em relação ao novo art. 213, a pena base atual, que é de 6 a 10 anos, é mantida, mas está prevista a possibilidade de imposição de 8 a 12 anos de reclusão se do ato resulta lesão corporal de natureza grave (definida pelos §§ 1º e 2º do art. 129 do CP) ou se a vítima tiver idade de 14 a 18 anos. E, se da conduta resulta morte, essa faixa é estipulada em 12 a 20 anos.

     O constrangimento agressivo previsto pelo novo art. 213 e sua forma mais severa contra a adolescentes a partir de 14 anos devem ser lidos a partir do novo art. 217 proposto. Esse artigo, que tipifica o estupro de vulneráveis, substitui o atual regime de presunção de violência contra criança ou adolescente menor de 14 anos, previsto no art. 224 do Código Penal. Apesar de poder a CPMI advogar que é absoluta a presunção de violência de que trata o art. 224, não é esse o entendimento em muitos julgados. O projeto de reforma do Código Penal, então, destaca a vulnerabilidade de certas pessoas, não somente crianças e adolescentes com idade até 14 anos, mas também a pessoa que, por enfermidade ou deficiência mental, não possuir discernimento para a prática do ato sexual, e aquela que não pode, por qualquer motivo, oferecer resistência; e com essas pessoas considera como crime ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso; sem entrar no mérito da violência e sua presunção. Trata-se de objetividade fática.

     Esclareça-se que, em se tratando de crianças e adolescentes na faixa etária referida, sujeitos da proteção especial prevista na Constituição Federal e na Convenção da Organização das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, ratificada pelo Brasil, não há situação admitida de compatibilidade ente o desenvolvimento sexual e o início da prática sexual. Afastar ou minimizar tal situação seria exacerbar a vulnerabilidade, numa negativa de seus direitos fundamentais. Não é demais lembrar que, para a Convenção da ONU, criança é toda pessoa até a idade de 18 anos. Entretanto, a considerar o gradual desenvolvimento, respeita-se certa liberdade sexual de pessoas entre 14 e 18 anos.

     Com relação aos demais artigos integrantes do Capítulo 1 do Título VI do Código Penal, além de considerar como sujeito passivo toda e qualquer pessoa, não apenas a mulher honesta, manteve-se o crime de assédio sexual de que trata o art. 216-A, mas acrescentando aumento de pena se a vítima for menor de 18 anos. Lembra-se que assédio sexual é o constrangimento com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente de sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função. Faz-se tal inclusão por dois motivos. Primeiro, que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) permite o trabalho para adolescentes (art. 60 e seguintes), o que poderia colocá-lo na situação de subordinação hierárquica ou de ascendência profissional, e, segundo, que, mesmo diante de relação irregular de trabalho infantil, é preciso assegurar proteção às crianças envolvidas e punir com mais razão os autores dessa relação irregular cumulada com assédio sexual, o que no Brasil se verifica em muitas situações, como a do trabalho doméstico. Entende-se, assim, que hierarquia e ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função não dependem de perfeição formal na caracterização do vínculo profissional.

     O Capítulo II do Código Penal tem também alterado o seu enunciado para "Dos Crimes Contra o Desenvolvimento Sexual de Vulnerável", passando os seus artigos a tratarem, além do "Estupro de vulnerável" (art. 217), já comentado, que substitui o antigo crime de sedução, dos seguintes crimes: "Mediação para servir à lascívia de outrem"," Satisfação de lascívia mediante presença de criança ou adolescente" e "Favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual de vulnerável".

     Inicialmente, com a modificação do crime de sedução (art. 217), esse capítulo aperfeiçoa ou incorpora novos crimes contra crianças e adolescentes, sempre independentemente de sua virgindade e de gênero. Importa novamente mencionar que o projeto admite certa liberdade sexual de adolescentes entre 14 e 18 anos, mas os protege conta aliciamento ou perversão que mine tal liberdade. Além disso, inclui entre os vulneráveis, no crime de estupro e no de favorecimento da prostituição, as pessoas que, por enfermidade ou deficiência mental, não tenham o necessário descimento para a prática do ato.

     É importante frisar que, como a CPMI pretendeu combater especialmente redes de exploração sexual comercial, atenção foi dada à definição do crime de favorecimento à prostituição e outras formas de exploração sexual de vulneráveis. E, nesse sentido, amplia o art. 244-A da ECA, porquanto, além de "submete?', toma também "induzir" e "atrair à prostituição" núcleos do tipo penal. Outra atenção foi dada em relação ao cliente da prostituição infantil, acrescentando-se o art. 218-B, do qual deve constar parágrafo a dispor que incorre também no crime de favorecimento quem tem conjunção carnal ou pratica outro ato libidinoso com pessoa menor de 18 e maior de 14 anos. Vale lembrar que alguém que mantenha relações sexuais com pessoa menor de 14 anos cometeria estupro de vulneráveis (novo art. 217), em situação de prostituição ou não. Também incorre em crime quem induz pessoa menor de 14 a satisfazer a lascívia de outrem, imputado com reclusão e, se cometido para obter vantagem econômica, também com multa (art. 218).

     Utilizou-se, aqui, a expressão "prostituição", apesar de haver contestação sobre essa terminologia quando se refere ao envolvimento de crianças e de adolescentes. Observou-se o disposto no Protocolo Facultativo da Convenção sobre os Direitos da Criança quanto à venda de crianças, à prostituição e pornografia infantil, que entende a prostituição infantil como a utilização de crianças em atividades sexuais em troca de remuneração ou de qualquer retribuição. Entretanto, essa expressão é contestada pelos movimentos sociais que enfrentam a questão, sendo preferida à utilização do termo "exploração sexual comercial infantil", que envolveria não só a prostituição em sentido estrito, mas também a pornografia, o tráfico de pessoas para fim sexual, turismo sexual, entre outras formas de exploração. Além disso, considera-se que a expressão "prostituição" potencializa a discriminação às crianças e adolescentes vítimas, ao mesmo tempo em que oculta a responsabilidade dos adultos, nesse tipo de violência, como aliciadores, indutores ou "clientes".

     Entretanto, simbolicamente, prostituição é a expressão mais emblemática, apesar de se reconhecerem às razões doutrinárias, o que levou a fazer menção, no tipo penal, a outras formas de exploração sexual comercial das crianças e adolescentes.

     Outro crime proposto é o da satisfação de lascívia mediante presença de pessoa menor de 14 anos, que implica considerar crime a prática de conjunção carnal ou outro ato libidinoso diante dessa criança ou adolescente para satisfazer lascívia própria ou de outrem. Ou induzir essa pessoa a presenciar tal prática sexual (art. 218 - A).

     O Capítulo III, "Do Rapto", foi eliminado. O art. 219 (rapto violento ou mediante fraude) tutela a "mulher honesta". Tal conceito refere-se a comportamento moral que se exigia apenas das mulheres, conforme já comentado. Se houver violência ou grave ameaça que resulte em conjunção carnal ou ato libidinoso, a conduta será reprimida por meio da nova redação do art. 213, sendo irrelevante para caracterização do crime o tempo em que a vítima esteve submetida à violência. O art. 220 trata de rapto consensual entre as idades de 14 e 21 anos. A supressão deste artigo é coerente com a eliminação do art. 217 enquanto crime de sedução. Cabe aos pais ou responsáveis pelos adolescentes, independentemente do gênero, delimitar, por meio do pátrio poder, da curatela ou tutela, sua liberdade sexual. O pátrio poder, a tutela e a curatela são institutos assegurados pelo ECA, e atentar conta estes institutos configura crimes previstos no seu art. 237 ou nos arts. 248 e 249 do Código Penal.

     No Capítulo IV, que trata das "Disposições Gerais", somente pequenas alterações foram feitas, buscando atualização na redação e maior explicitação quanto ao alcance pretendido, à exceção do art. 225, que trata da ação penal, agora prevista como pública em qualquer circunstância. Trata-se de reivindicação de todos que enfrentam a problemática. Sem dúvida, a eficácia na proteção da liberdade sexual da pessoa e, em especial, a proteção ao desenvolvimento da sexualidade da criança e do adolescente são questões de interesse público, de ordem pública, não podendo em hipótese alguma ser dependente de ação penal privada e passível das correlatas possibilidades de renúncia e de perdão do ofendido ou ofendida ou ainda de quem tem qualidade para representá-los. Na prática, as qualidades da ação penal privada, no caso de violação de criança ou adolescente, têm contribuído para resguardar cumplicidades, intimidar e, assim, consagrar impunidade.

     Outra modificação nesse capítulo diz respeito ao aumento de pena, cujas alterações foram de duas ordens. Primeiro, aperfeiçoando o dispositivo que agrava a pena por proximidade afetiva ou por relação de poder com a vítima, suprime-se referência a pai adotivo em razão de ser considerado, com a Constituição de 1988, inequivocamente como ascendente. Porém, inclui-se madrasta, além de padrasto, por se tratar de gênero feminino de radical diferente do masculino, mas não se repete a versão feminina quando o radical é o mesmo do masculino. Dessa forma, som ente há menção a irmão, enteado, tutor, curador, preceptor, empregador, companheiro, sem adotar a linguagem inclusiva. A não adoção de linguagem inclusiva se deve ao fato de ter sido entendido que essa posição deveria ser feita a todo o Código Penal, e não a fragmentos, sob o risco de perder a lógica sistêmica.

     Além dos citados, também se agrava a pena ao cônjuge, que é substantivo sobrecomum, além de ao companheiro, pois a relação conjugal não pode estar associada à violência doméstica; e cambia-se a expressão "por qualquer outro título tem autoridade sobre ela" [a vítima] por "se assumiu, por lei ou outra forma, obrigação de cuidado, proteção ou vigilância". Essa última expressão está em consonância com o disposto no art. 13, § 2º, alínea a, que dispõe sobre a relevância da omissão de certos agentes para dar causa a algum crime.

     Ainda quanto ao aumento da pena, altera-se o inciso III, do art. 226, por considerar-se que a mera condição de estado civil de casado não pode ser considerada plausível para elevar a pena. Em substituição, o novo inciso III prevê como forma de aumento de pena, quando da violência sexual resultar a gravidez da vítima, o que se aproxima conceitualmente do crime contra a humanidade ou crime de guerra de gravidez forçada, incidente em situações em que se apregoa a limpeza étnica. Por fim, acresce-se parágrafo IV, que também aumenta a pena de um sexto a um terço se o agente transmite a vitima doença venérea de que sabe ou deve saber que está contaminado.

     O Capítulo V do Título VI do Código Penal é amplamente modificado pela proposição, que passa a ser intitulado de "Do Lenocínio e Do Tráfico de Pessoas para fim de Exploração Sexual".

     Inicialmente, não cabe reprimir apenas o tráfico de mulheres, mas de todas as pessoas. A pesquisa realizada pelo CECRIA, a chamada PESTRAF, é pródiga em demonstrar isso. Evidenciou, também, a necessidade de penalizar o tráfico interno, infelizmente, uma realidade. As rotas internas de tráfico não se destinam apenas à saída da pessoa para fora do País, mas também ao seu deslocamento para servir às redes internas de exploração sexual comercial.

     A proposta, portanto, procura corrigir isso, prevendo dois tipos penais, cujos sujeitos passivos são a pessoa e entre cujos agentes se incluem aqueles que de alguma forma contribuem para facilitar o tráfico, interno ou internacional.

     Outra modificação diz respeito ao tipo penal previsto no atual art. 228. Para melhor explicitação da incidência do tipo, introduziu-se a expressão "exploração sexual" e a ação "dificultar". Elimina-se também referência feita pelo § 1º do art. 228 ao § 1º do art. 227, pois este é revogado. A redação do art. 227, que versa sobre a indução de pessoa maior de 14 anos a satisfazer a lascívia de alguém, foi considerada imprópria diante do reconhecimento da liberdade sexual.

     Mantida a mediação à lascívia de pessoa menor de 14 anos (art. 218), tendo em vista o fato de tal indução de pessoa menor de 18 anos ou outro vulnerável à satisfação de lascívia de outrem ser considerada como favorecimento à prostituição, bem como admitindo que, se houver violência ou fraude, cairíamos em outros tipos (como "estupro" ou "violação sexual mediante fraude"), optou-se pela revogação.

     As demais revogações previstas foram para adequação do projeto, de um lado, a fim de permitir fusões de tipos, e, de outro, conceber de modo inovador a repressão penal em matéria de garantia da dignidade sexual, conforme foi demonstrado. Nesse sentido, cumpre ainda mencionar as revogações dos incisos VII e VIII do art. 107, tendo em vista a CPMI não admitir extinção de punibilidade pela acomodação social do casamento da vítima com o agente ou com terceiros.

     Outro ponto importante defendido nesse projeto é o da imprescritibilidade dos crimes sexuais quando praticados de modo generalizado ou sistemático. Na realidade, trata-se de incorporar ao ordenamento brasileiro a concepção de crimes contra a humanidade já consagrada pelo direito internacional. É fato que o Brasil não ratificou a Convenção de 1968 sobre a imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade e crimes de guerra, mas a razão não se deve à oposição interna ao instituto da não prescrição, e sim porque a ratificação encerraria consigo o efeito de retroatividade das disposições da Convenção. Criada pela Comissão de Direitos Humanos da ONU, essa norma pretendia alcançar os crimes ocorridos durante a Segunda Guerra Mundial, o que explica sua proposição de considerar esses crimes imprescritíveis.

     De qualquer forma, além desse instrumento, a jurisprudência internacional, principalmente dos tribunais internacionais ad hoc para a Ex-Iugoslávia e Ruanda, bem como o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, consagrou a imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade. Entendem-se por crimes contra a humanidade atos atentatórios aos direitos humanos quando se cometam por atos múltiplos (crime generalizado) ou façam parte de piano político estatal ou de outra organização não-estatal, legalizada ou não (crime sistemático). Entre as violações aos direitos humanos que caracterizam os crimes contra a humanidade estão as de índole sexual, como exemplifica o art. 7º, § 1º, alínea g, do Estatuto de Roma:

     Agressão sexual, escravidão sexual, prostituição forçada, gravidez forçada, esterilização forçada ou qualquer outra forma de violência no campo sexual de gravidade comparável.

     A imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade incorpora-se ao ordenamento interno pelos tratados ratificados pelo Brasil, como o Estatuto de Roma ou outros tratados que impõem aos Estados a postura de julgar ou extraditar os perpetradores desse tipo de crime, como é o caso da Convenção da ONU contra a tortura. Um dos canais de recepção constitucional da imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade é o § 2º do art. 5º da Constituição Federal, que determina a inclusão do disposto nos tratados internacionais para garantir a proteção aos direitos fundamentais. Dessa forma, por lei fundada no direito internacional pode-se aumentar as formas já existentes de imprescritibilidade no diploma constitucional, nomeadamente para racismo e crimes contra a ordem constitucional e o Estado democrático.

     O projeto proposto considera como crimes contra a humanidade, se praticados de modo generalizado ou sistemático (inclusão do § 2º no art. 109 do CP), o estupro, o estupro de vulneráveis, o favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual, tráfico internacional ou interno de pessoas.

     Por fim, além de modificar, com as proposições deste projeto, o disposto em matéria de penas pela Lei de Crimes Hediondos, explicitamente foi necessário adequar tal lei à nova proposta, adaptando as referências aos artigos que tipificam o estupro cumulado com lesão corporal grave ou seguido de morte.


Este texto não substitui o original publicado no Diário do Senado Federal de 14/09/2004


Publicação:
  • Diário do Senado Federal - 14/9/2004, Página 29238 (Exposição de Motivos)