Legislação Informatizada - LEI Nº 11.343, DE 23 DE AGOSTO DE 2006 - Exposição de Motivos

LEI Nº 11.343, DE 23 DE AGOSTO DE 2006

Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências.

Justificação

 

     Achando-se em vigor durante mais de duas décadas, sofreu a Lei de Tóxicos - Lei nº 6.368/76, ao longo desse tempo, modificações que visavam a adaptá-la às transformações pelas quais passaram o uso, o abuso, a dependência e o tráfico ilícito de substâncias ou produtos capazes de gerar dependência física ou psíquica. Todavia, apesar das tentativas de atualização do tratamento legal dispensado tais questões, acabou ele sendo superado pelo caráter crescentemente empresarial da atividade ilícita que tem por objeto as referidas substâncias e produtos. Tema dos mais complexos, dele tratava projeto de lei que por cerca de uma década teve curso no Poder Legislativo, onde passou, como não poderia deixar de ser, pelos debates e críticas de que sempre são alvo os assuntos apaixonantes. Finalmente, levado à sanção governamental, recebeu o projeto extenso veto, entrando em vigor, portanto, apenas alguns de seus dispositivos. Em consequência, fez-se urgente a produção de normas que, substituindo as vetadas, permitissem a formação de um todo cujas partes guardassem a necessária coerência entre si. Foi quando o Poder Executivo remeteu ao Legislativo o projeto, que recebeu o número 6.108, que visava exatamente a substituir as normas vetadas. Ocorre que o projeto trouxe, tanto quanto o propósito de solucionar a questão, imprecisões que certamente haveriam de tornar-se, se convertidas em lei, em gravos óbices à sua aplicação.

     Foi exatamente o que se pretendeu fazer, reunindo num só projeto as mais modernas e avançadas propostas, recolhidas em meio a numerosas iniciativas legislativas do Legislativo, Executivo e Comissões Parlamentares.

     Longe de prestigiar qualquer seguimento envolvido no trato na ampla temática, procurou-se estruturar um sistema (que, desde há muito reclamado, parece ter sido, com sua ausência, uma das concausas mais importantes do incremento do narcotráfico) que coordenasse as ações, políticas e estratégias governamentais destinadas ao trato do problema, nele inserindo todos os organismos que dele devem participar.

     Na construção do referido sistema, teve-se em conta, inicialmente, que é precipuamente à União Federal que compete prevenir e reprimir os crimes - como os de tráfico ilícito de substâncias capazes de gerar dependência física ou psíquica - que o Brasil, por tratado, tenha se obrigado a reprimir. Não descuidou o projeto, porém, de toma em consideração outros aspectos, igualmente relevantes, que o problema encerra.

     Com efeito, não se olvidou, de um lado, a autonomia dos Estados-membros, de que decorre a impossibilidade de dirigir-lhes a União determinações não contidas na Constituição Federal, nem, de outro, o papel de significativa importância que o tráfico de drogas desempenha no comprometimento da segurança pública, essa função precípua sua 1.

     Necessário pois arrebatar os Estados-membros para a integração ao sistema, sem porém ferir sua autonomia, a solução encontrada foi a de, nos termos do § 2º do artigo 4º, submeter a liberação de recursos financeiros em seu favor à sua adesão às diretrizes básicas dos convênios e ao fornecimento de dados básicas dos convênios e ao fornecimento de dados estatísticos indispensáveis à formulação de estratégicas.

     É do Sistema, aliás, que cuida o Capítulo I, do projeto, em que são distribuídas competências aos órgãos que necessariamente o devem compor. E nele, também, que se esclarece (art. 1º, parágrafo único) quais são os objetos materiais da Lei 2. Ao fazê-lo, cuidou-se ali, e em todo o texto, de suprimir a referência a "drogas" feita em vários expertos consultados, as expressões "substâncias" e "produtos" englobam todos os objetos que se pretende alcançar, de modo que a referência a "drogas" é desnecessária. Pior, até, pois como não há, segundo antiga regra interpretativa, palavras inúteis na lei, a referência a "drogas" poderia; dificultar sua compreensão e aplicação. Corrigiu-se também, a partir daí, a referência reiterada a "produtos... ou drogas considerados ilícitos ou que causem dependência física ou psíquica". Na realidade, ao afirmar (art. 1º A) que os objetos da Lei seriam as "substâncias ou produtos (ou drogas, no texto original) causadores de dependência "ou considerados ilícitos", cometia o projeto gravíssimo equívoco, que era preciso corrigir. É que, ao dizer que a lei seria aplicável às substâncias (ou produtos, ou drogas) capazes de causar dependência, ou às consideradas ilícitas, abria o projeto a possibilidade de que qualquer substância ou produto, fosse ou não capaz de gerar dependência, se visse alcançando pelas sanções nele previstas3. Demais disso, com a redação proposta, prevendo a alternatividade, fugia o projeto ao fim visado pelo legislador, que é, a toda evidência, o de considerar criminosas as condutas que tenham por objeto substâncias ou produtos capazes de gerar dependência, e nada mais. Também se suprimiu a referência a "ilícitos". É que o ser "ilícito" em realidade decorre de amoldar-se a conduta e seu objeto ao tipo penal, não de uma referência genérica feita nas disposições gerais. De fato, não se considera "ilícita" o produto ou substância, mas sim a conduta não autorizada que o tem por objeto material4.

     Ainda no que pertine às disposições gerais, manteve-se, no artigo 3º, parágrafo primeiro, a redação proposta "o sistema...é", pois se acha em vigor, atualmente, o Decreto nº 3.696 de 21 de dezembro de 2000, que efetivamente o estrutura.

     Cuida-se ainda, no Capítulo I, de disciplinar, no artigo 7º, a alienação, em hasta pública, das substâncias ou produtos quem aptos a produzir dependência, sejam de propriedade de empresas que entrem em processo falimentar. Inova-se, porém nesse particular, ao propor-se à preservação de medicamentos em condições de emprego, aos quais se deve dar uso socialmente mais adequado que a simples incineração. E, com tal escopo, determina a projeto que fiquem sob a responsabilidade do órgão fiscalizado - o Ministério da Saúde - com o fim de destiná-lo à rede pública de saúde.

     No capítulo II, pertinente à prevenção, erradicação e tratamento, inicialmente se estabelece que são proibidos no País as substâncias ou produtos que causem dependência física ou psíquica, assim como o plantio, cultura, colheita e exploração de vegetais dos quais possam ser extraídos, ressalvam-se, porém, evidentemente, as hipóteses de autorização legal ou regulamentar, esta de competência, segundo o projeto, do Ministério da Saúde. Nesse particular, prevendo o projeto que a autorização para plantio dar-se-ia em local determinado, acrescentou-se também "prazo". E que, vedado, em regra, o plantio, pareceu de bom tom que as exceções fossem limitadas não apenas geograficamente, como se propunha, mas também temporalmente, como se propõe.

     É também na seção I do Capítulo II que são estabelecidas regras referentes à destruição dos cultivos, substâncias e produtos ilícitos. Amplia porém o texto proposto à idéia, desde a muito defendia, e aliás acolhida no projeto que tramitou no Congresso Nacional, de cometer-se à delegado de polícia a tarefa de destruir as substâncias ou produtos que causem dependência. Ao mesmo transfere a atribuição5, porém, reveste o projeto de dar maior solenidade o respectivo ato (exigem-se as presenças do Ministério Público e da autoridade sanitária, dependendo o ato de autoridade sanitária, dependendo o ato de autorização judicial e sucedendo-a auto circunstanciado). Suprime a proposta, assim, grave falha que a aplicação da lei anterior revelou existir: embora o artigo 40, da Lei nº 6.368/76, cometes-se a órgão do Ministério da Saúde a incumbência de guardar as substâncias, dando-lhes depois destino (inclusive destruindo-as, quando fosse o caso) adequado, esbarrou a atribuição num óbice, consiste na impossibilidade de guardar ela, com a necessária segurança, até a destruição, coisas que por seu elevado valor despertavam já, e hoje mais ainda, grande cobiça, especialmente das organizações criminosas. A realidade, com efeito, é que, dependendo a destruição das autoridades sanitárias, não se vergavam elas e com justas razões, até o comando legal, eis que lhes faltavam meios para garantir-se contra eventual subtração. E, com isso, transformaram-se as delegacias de polícia não só em depósitos de presos, mas também de preciosas e caras substâncias, disso resultando a elevação do risco de mantê-las sob custódia6. Para reverter tal quadro, a proposta que se submete, além das cautelas já mencionadas, permite que a destruição seja determinada pelo juiz, na sentença e, em casos excepcionais, mesmo antes dela7.8

     No que pertine à prevenção, impõe o projeto a estabelecimentos, instituições e entidades a mais variadas (art. 10) o engajamento no esforço, que deve ser de toda a sociedade, destinado a evitar a difusão do consumo e tráfico ilícito de substâncias ou produtos capazes de gerar dependência.

     Quanto ao tratamento dos usuários de substâncias, dele já cuidava, adequadamente, a legislação anterior, pelo que nesse particular nenhuma alteração de monta se promoveu, se não a inclusão, determinada pelo parágrafo quinto do artigo 12, das instituições particulares de tratamento entre as destinatárias dos recursos do SUS. Em realidade, já prevista a criação de uma ampla rede estatal de tratamento, na legislação anterior, tal propósito não se converteu em ações práticas, ao que parece exatamente em razão da falta de recursos financeiros. O quadro que se formou, a partir de então, é composto, de um lado, de instituições privadas, cujo funcionamento depende, na grande maioria dos casos, da caridade ou sacrifício de alguns; de outro lado, acham-se os serviços públicos de saúde, que, como sabido, são insuficientes para atender á demanda.

     Nessas circunstâncias, em que a existência do tratamento (tanto quanto a prevenção), depende basicamente de boa vontade e recursos escassos, duas medidas são adotadas com o fim de resolver o problema. Uma delas, como já assinalado, é permiti a sobrevivência das instituições de tratamento, destinando-lhes recursos do SUS, mas submetendo-as, por outro lado, à fiscalização dos CONENS.

     Outra medida foi a criação, como aliás preconizada internacionalmente, de fontes de custeio das ações de prevenção, repressão e tratamento, que se volta - eis a grande mudança - dos cofres do contribuinte para os de quem tenha amealhado riqueza através da prática de crimes.

     Com efeito, ao tratar dos crimes e pernas, o projeto prestigia soluções que, desde há muito defendida pelos especialistas, poderiam talvez, se antes estivessem sido adotadas, reduzir o verdade caos em que nos encontrarmos.

     Assim foi que, sensível aos reclamos de todos, as várias condutas previstas no artigo 12, da Lei 6.368/76, distribuem-se hoje entre outros tipos, associando-se a cada um a reprimenda adequada. Foi como o projeto, mantendo o severo tratamento recomendado para certas condutas, abrandou, conforme unanimemente reclamado, o dispensado a outras.

     Não se imagine, todavia, que é ou foi liberalizante o projeto ao prever o diverso tratamento a que nos referimos. Ao revés, criando por exemplo o tipo autônomo consistente em "induzir ou instigar alguém" ao consumo de substância ou produto (conduta que, na Lei 6.368/76, é equiparada ao tráfico), o projeto, ao atribuir-lhe pena menos severa que a atual, não mais faz depender a existência do crime da produção do resultado "consumo". Esse, quando ocorra, apenas provoca o deslocamento, para cima, dos limites mínimos é máximo das penas previstas.

     Também previu o projeto penas menores para o denominado "consumo compartilhado" da droga, hoje tratado com rigor que, segundo os especialistas, viola o princípio da proporcionalidade. Por isso, para tal conduta se previu a imposição de penas mais severas que as medidas educativas reservadas aos que apenas pratiquem as condutas hoje descritas no artigo 16, embora também estas lhes sejam impostas.

     Outra questão tratada pelo projeto, e que em sendo objeto de profunda discussão, é a que se refere ao pequeno traficante, de regra dependente, embora imputável, para quem sempre se exigiu tratamento mais benigno. Não olvidando a importância do tema, e a necessidade de tratar de modo diferenciado os traficantes profissionais e ocasionais, prestigia estes o projeto com a possibilidade, submetia ao atendimento a requisitos rigoroso como convém, de redução das penas, ao mesmo tempo em que se determina sejam submetidos, nos estabelecimentos em que recolhidos, ao necessário tratamento.

     Deputados Magno Matta e Warderley Martins

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1De fato, se é certo que à União Federal compete, precipuamente, a repressão aos crimes de tráfico ilícito, também o é que dele resultam numerosos delitos (furtos e roubos, praticados frequentemente por usuários de drogas com o fim de com seu produto adquirir drogas; crimes de ímpeto, praticados pelo que, utilizando-se de drogas, tomam-se por seu efeito mais explosivo; corrupção, quando agentes do crime servidores públicos estaduais; homicídios, praticados entre componentes de bandos ou quadrilhas rivais, ou contra os que adquiram e não paguem as drogas; etc...) por cuja prevenção e repressão são responsáveis os Estados-membros. Assim, embora não incumbidos precipuamente da repressão a alguns delitos, suportam os Estados de forma mais acentuada seus efeitos e os custos que geram. Exemplo claro disso é que, numa Capital de Estado-membro, a Cidade de Belo Horizonte, mais de sessenta por cento dos homicídios têm na sua origem o tráfico ilícito de drogas.

2Optou-se, nesse caso, pela fórmula, já consagrada pela Lei nº 6.368/76, e por vários textos legais alienígenas, de remeter (sem renunciar o legislador a igual competência) a órgão da Administração Pública a tarefa de relacionar as substâncias a que apenas em gênero se refere à Lei. Tal fórmula, se de um lado aparentemente dificulta a compreensão da lei, de outro lhe confere a agilidade desejável para que, criando-se nova droga, possa ela ser alcançada pela lei (para tanto basta sua inserção em portaria, não sendo necessário o longo e lento processo legislativo), antes que o seja pela difusão de seu consumo.

3A tanto bastaria que viesse, por lei ou ato administrativo, a ser considerado ilícito, ainda que incapaz de gerar dependência.

4Há, de fato, nas leis de tóxicos, uma delicada arquitetura, que olvidou o projeto e que se tentará em rápidas linhas esclarecer. Há, conhecidas da ciência humana, numerosas substâncias ou produtos capazes de gerar dependência física ou psíquica. Muitos foram os que, submetidos a testes variados, revelaram-se eficazes como medicamentos. Outros não. Era necessário, portanto, tratar de uns e outros. Os primeiros, sendo medicamentos capazes de gerar dependência, podem ou não ser o objeto material de condutas permitidas. Assim, quando tais substâncias ou produtos sejam objeto de condutas permitidas, as condutas são tidas por ilícitas. Quando, porém. Tais substâncias ou produtos sejam objeto material de condutas não autorizadas (ou praticadas sem autorização), tornam-se elas (as condutas) ilícitas. Além dessas, substâncias e produtos há que, submetidos a testes, não revelaram qualquer utilidade terapêutica. Esses, por óbvio, têm seu comércio proibido. Todavia, mesmo as condutas que os tenham por objeto podem ser lícitas, bastando que a conduta tenha sido precedida de autorização do órgão competente. Permitam-se, para completar a compreensão, os seguintes exemplos, que se crêem elucidativos: (1) João, de posse de receita, vai a farmácia, e ali adquire o medicamento, sabidamente capaz de gerar dependência; (2) a Faculdade de Farmácia, da UFMG, para fins de pesquisa e educação, adquire, mediante autorização do Ministério da Saúde, certa quantidade de heroína, produto sabidamente inútil nas terapeutas; (3) João, dirigindo-se à farmácia da esquina, consegue que o balconista, pessoa de suas relações, lhe venda, sem receita, certa quantidade de Diazepam; (4) João, dirigindo-se a certo local, adquire cloridrato de cocaína, produto que nenhuma utilidade terapêutica tem. Nos dois primeiros casos, a conduta é lícita, por praticada com autorização, embora, na segunda delas o objeto seja "proibido". Quanto às duas últimas, são ambas ilícitas, pois ambas foram praticadas sem autorização (na quarta, a autorização sequer poderia ser concebida). Como se vê, pois, a ilicitude é qualidade que grava a conduta indevida, não a substância ou produto.

5E o faz o projeto exatamente com o fim de permitir mais célere destruição daquilo que por sua própria natureza já expõe a risco a coletividade.

6Bem examinado, vê-se que a questão da custódia de substâncias sempre trouxe graves inconvenientes, a saber: a ampliação das possibilidades de desvio e recolocação no mercado; a criação da possibilidade de ações violentas de criminosos, contra delegacias, visando a subtrair drogas; o deslocamento de policiais, tão mais numerosos quanto maior a quantidade e valor das drogas, para a sua custódia, em prejuízo de desenvolvimento de ações de investigações.

7Em ambos os casos, determina a proposta que seja mantido, em proporção determinada pelo juiz, quantidade suficiente para a elaboração, se necessária, de novo laudo.

8Além disso, como não raramente as substâncias e produtos que abarrotam as unidades policiais são aquelas apreendidas em processo já findos, estabelece a proposta que sua incineração far-se-á, a qualquer tempo, por determinação judicial, de ofício, mediante representação da delegado de polícia ou a requerimento do MP.


Este texto não substitui o original publicado no Diário do Senado Federal de 07/05/2002


Publicação:
  • Diário do Senado Federal - 7/5/2002, Página 7389 (Exposição de Motivos)