09 de dezembro de 2003 14h18

DEPARTAMENTO DE TAQUIGRAFIA, REVISÃO E REDAÇÃO

NÚCLEO DE REDAÇÃO FINAL EM COMISSÕES

TEXTO COM REDAÇÃO FINAL

CONSELHO DE ÉTICA E DECORO PARLAMENTAR

EVENTO: Seminário

DATA: 09/12/03 - INÍCIO: 14h18min - TÉRMINO: 17h57min

DEPOENTE/CONVIDADO — QUALIFICAÇÃO

DEPUTADO JOSÉ THOMAZ NONÔ - Deputado Federal.

JORGE HAGE SOBRINHO - Subcontrolador-Geral da União.

ROBERTO ROMANO - Professor da Universidade de Campinas — UNICAMP.

RICARDO CALDAS - Professor da Universidade de Brasília — UnB.

SUMÁRIO: I Encontro Nacional sobre Ética e Decoro Parlamentar. Painéis: Decoro Parlamentar — Do Processo Disciplinar e das Penalidades Aplicáveis e Ética Política e Controle dos Gastos Públicos.

OBSERVAÇÕES: Há trechos inaudíveis; Há intervenção em língua estrangeira.

O SR. PRESIDENTE (Deputado Orlando Fantazzini) - Declaro abertos os trabalhos desta reunião.

Neste período da tarde, o Deputado Chico Alencar conduzirá os trabalhos e coordenará as atividades.

O Dr. Jorge Hage e o Deputado José Thomaz Nonô serão os expositores de hoje e já se encontram presentes.

Passo, então, a coordenação dos trabalhos ao Deputado Chico Alencar, para que possa compor a Mesa e dar início às explanações.

O SR. PRESIDENTE (Deputado Chico Alencar) - Boa tarde a todos. Vamos dar seguimento ao 3º painel do I Encontro Nacional sobre Ética e Decoro Parlamentar, fundamental para garantir a credibilidade da representação política.

O tema Ética Política e Controle dos Gastos Públicos será exposto pelo Dr. Jorge Hage, Subcontrolador-Geral da União, a quem convido a tomar assento à mesa dos trabalhos.

Em seguida, o Deputado José Thomaz Nonô abordará tema stricto sensu sobre Decoro Parlamentar — Do Processo Disciplinar e das Penalidades Aplicáveis. (Pausa.)

O Dr. Jorge nos informa que havia trazido algumas transparências. Não sei se já há condições técnicas para projetá-las. Estamos resolvendo a questão.

Deputado José Thomaz Nonô, se V.Exa. quiser inverter a ordem de inscrição, até que cheguem os técnicos, poderá usar da palavra, por 30 minutos, com o brilho e o entusiasmo de sempre.

O SR. DEPUTADO JOSÉ THOMAZ NONÔ - Sr. Presidente, Deputado Chico Alencar; Deputado Jorge Hage, antigo colega na Câmara dos Deputados, hoje investido de relevantes funções no Poder Executivo; meus senhores, minhas senhoras, a rigor, não atormentarei ninguém com exposição de 30 minutos sobre ética e decoro parlamentar e sobre punições aplicáveis, até porque o tema que me coube neste encontro é restrito, quase de natureza eminentemente processual.

O que procurarei aqui transmitir são alguns conceitos básicos das penalidades aplicáveis, controvérsias surgidas por incompatibilidades ou divergências entre os diplomas legais que regulamentam a matéria e, finalmente, a experiência.

O Conselho de Ética — não sei se os senhores dele têm conhecimento — foi instalado na Legislatura passada e funcionou de forma efetiva, quer dizer, com casos a julgar, apenas no último ano, quando foi apreciado nele o processo de cassação do ex-Deputado José Aleksandro, representante do Acre. Foi feita também, no momento da sua instalação, nos primeiros meses de trabalho — tive a ventura de ser o primeiro Presidente dessa entidade —, adequação das normas legais.

Eu gostaria de dizer aos senhores que algumas considerações são de natureza eminentemente pessoal. Sou Parlamentar, digamos assim, um pouco atípico nesta Casa. Parcela ponderável do Regimento Interno da Casa é de minha autoria. Coordenei trabalhos a ele relativos. Mas a primeira lamentação que faço — seria interessante para pessoas que se debruçam sobre a matéria — é a de que há algum tempo não se faz nele nenhuma alteração.

Os problemas vão surgindo, caros colegas. E esta Casa, sufocada pela miríade de problemas que a ela vêm, tem a virtude, ou o defeito, segundo a ótica de alguns, de trabalhar muito em cima das questões de fato, fazendo prevalecer o interesse imediato da sociedade e relevando, ou pelo menos valorando de forma não tão positiva, a ponderação e a construção de norma legal mais aplicável.

O Conselho de Ética é bem exemplo disso. Permita-me, Sr. Presidente, fazer breve introdução atinente a ele. O projeto original que criava o Código de Ética, do qual o Conselho é decorrência, dormitou nesta Casa por 8 longos anos. Foi iniciativa do Deputado Waldir Pires, passou pelas mãos do Deputado José Dirceu, do Deputado, hoje Prefeito de Aracaju, Marcelo Déda e pelas minhas. E alguns dos muitos imponderáveis do processo parlamentar impediam que algo se concretizasse.

Obviamente, era um anseio difuso da sociedade e dos setores mais esclarecidos desta Casa que houvesse definição de ilícitos e de fatos que atentassem contra o bom comportamento, contra o decoro. Essas noções até hoje procuram definições mais precisas, mas, na prática, o cidadão comum, o jurista e o Deputado, mais do que qualquer outro, uma vez que faz a ligação política na sociedade, sabe quando se infringem valores que deviam pautar e regrar o seu comportamento.

Num dos muitos escândalos que periodicamente afetam a sociedade brasileira — não gosto de rememorar fatos negativos —, espanou-se o pó do projeto e aprovou-se o Código de Ética, que pode ser visto sob 2 faces.

A primeira, sem dúvida alguma, é altamente positiva. Pela primeira vez, a Casa encarregou-se de disciplinar, de discutir, de conceituar o que é ética parlamentar, o que acontece com a transgressão, como devemos fazer, e o código foi debatido e votado como era possível.

Tenho 6 mandatos na Casa e sou dos 13 Deputados mais antigos. Já tive a honra de presidir a Comissão de Constituição e Justiça e de Redação. Sou preservador da forma, não por minha deformação profissional de membro do Ministério Público aposentado, com muito orgulho, mas por entender que é necessário, numa rotina, explicitação formal para impedir o que ocorre, com muita freqüência, no Parlamento: a interpretação da norma segundo a vontade do Presidente. Isso acontece no Plenário, com qualquer Presidente. Não me refiro evidentemente ao Presidente atual, mas a todos, sem exceção. As nossas normas internas sempre encontram ambigüidades, frestas, desvãos e vazios. E aplica-se a hermenêutica de última hora para preencher essas lacunas. Isso, de certa forma, transfere-se às Comissões. Enfim, é procedimento cristalizado na Casa.

Há doutrinadores que dizem que isso representa prudente cautela, porque a vida política é muito sujeita a novidades, nem todas benéficas. A natureza do mandato parlamentar é delegação especialíssima. Então, é conveniente deixar certa margem para a interpretação do momento. É opinião respeitável, mas não me parece a melhor escolha a ser feita.

Aprovou-se o Código de Ética, que trazia situações discrepantes da melhor doutrina e, o que é mais grave, algumas disposições de natureza conflituosa em relação à norma legal vigente, aos textos constitucionais e à legislação infraconstitucional em vigor.

O Código definia, no art. 4º, os atos incompatíveis com o decoro parlamentar:

"Art. 4º Constituem procedimentos incompatíveis com o decoro parlamentar, puníveis com a perda do mandato:

I - abusar das prerrogativas constitucionais asseguradas aos membros do Congresso Nacional".

A Constituição Federal, no art. 55, explicita quais são esses eventos:

"II - perceber, a qualquer título, em proveito próprio ou de outrem, no exercício da atividade parlamentar, vantagens indevidas;"

De novo, art. 55, § 1º.

"III - celebrar acordo que tenha por objeto a posse do suplente, condicionando-a a contraprestação financeira ou a prática de atos contrários aos deveres éticos ou regimentais dos deputados;

IV - fraudar, por qualquer meio ou forma, o regular andamento dos trabalhos legislativos para alterar o resultado de deliberação;

V - omitir intencionalmente informação relevante ou, nas mesmas condições, prestar informação falsa nas declarações de que trata o art. 18".

O art. 18, por sua vez, explicita que o Deputado tem de apresentar à Mesa as certas declarações. Até o 30º dia seguinte ao encerramento do prazo para oferecimento da declaração do Imposto de Renda, apresentar cópia. Ao assumir o mandato, para fins de posse, apresentar declaração de bens. São disposições para que a sociedade tenha acesso à declaração patrimonial do parlamentar.

Depois o Código elenca, nos vários incisos do art. 5º, uma série de outros ilícitos, se é que podemos usar a palavra, menores. Explicita: perturbar a ordem das sessões; praticar atos que infrinjam as regras de boa conduta; praticar ofensas físicas ou morais, desacatar outro Parlamentar — essa é uma expressão de ambigüidade fantástica, pois, se cassássemos todos os Deputados que desacataram colegas, esta Casa, por vezes, seria um imenso vazio; usar os poderes ou prerrogativas do cargo para constranger ou aliciar servidor; revelar o conteúdo de debates ou deliberações que a Câmara ou Comissão hajam resolvido serem secretos.

Isso seria objeto de CPI permanente. Estou na Casa há 21 anos e desconheço reunião secreta. Todas as reuniões secretas de que participei estavam no jornal Correio Braziliense, em O Globo, no Jornal do Brasil, na Folha de S.Paulo, em O Estado de São Paulo noutro dia e, na semana seguinte, na revista Veja, na ISTOÉ, na Época. O conceito de secreto nesta Casa é muito fluido e, sendo assim, vaza por debaixo da porta, pela janela e é imediatamente recolhido por atento agente da imprensa.

Segue a lista: revelar informações de caráter confidencial; usar verba de gabinete, etc., etc., etc. Depois vêm disposições sobre o que o Deputado deve ou não fazer.

Aqui, o primeiro e grande equívoco da nossa legislação. Os familiarizados com o Direito Penal sabem que norma penal branca e nada são exatamente a mesma coisa. Definir que é ilícito, que é equívoco e não estabelecer sanção é a mesma coisa que não definir coisa nenhuma para efeitos práticos. Não estou falando aqui como cultor do Direito, doutrinário e como professor que já me esqueci que fui, como promotor que há muitos anos não sou. Estou falando na qualidade de Deputado, operando o instrumental legal viabilizado para os demais colegas e a sociedade no sentido de que fizesse crítica em relação a essas funções.

Hoje, a rigor, no dispositivo constitucional, há apenas uma sanção: a perda do mandato. O Código introduziu algumas outras com impropriedades manifestas. Suspensão temporária de mandato é expressão profundamente equivocada. Devemos tratar de suspensão de mandato, porque toda suspensão é temporária, ou perda temporária de mandato. Era a melhor escolha do legislador. Na realidade, o que está aí é suspensão temporária.

Estamos tentando consertar isso por outras vias. Tramitam na Casa mais ou menos 28 mil projetos. As prioridades, sem dúvida alguma, deságuam sobre outras vertentes. Há também a relativa tranqüilidade sobre o campo ético imposta pelo Presidente Orlando Fantazzini, uma vez que em 2002, graças a Deus, nenhum processo desse tipo chegou ao Conselho de Ética.

O fato é que existe flagrante descompasso entre a sanção e a norma. Imaginemos que um Deputado entre no plenário da Câmara — é um exercício de ficção — com 2 doses de uísque a mais do que o seu fígado tolera e, vamos usar versão escatológica, vomite no chão. Sem dúvida alguma, é ato atentatório ao decoro parlamentar. Não é um bom comportamento. É ato punível pela cassação? Um cidadão que teve 100, 250, 300 mil votos da sociedade, de forma livre, poderá perder o mandato por um ato desses? Ou por dizer palavrões? Às vezes, eles são ditos apenas com prudência e longe dos microfones ou por incontinência de natureza verbal. Na estipulação legal, trata-se de perda de mandato. Temos tentado consertar isso.

Em seguida ao Código, já na nossa gestão, elaboramos regulamento com todos os membros da Comissão, e procurou-se disciplinar melhor a matéria, tipificar o deslize de natureza ética e a sanção respectiva. Fizemos gradação nas sanções. Faço questão de dizer que o problema legal persiste. Há norma interna corporis, que a Casa freqüentemente opera. Houve em passado não muito remoto — evidentemente que não se pode precisar nomes — sanção que seria aplicada a um Senador da República. Seus ilustres pares pensaram muito em lhe aplicar perda temporária de mandato e não o cassar. Não o fizeram porque recearam. A meu ver, foi um justo receio, porque, ao recorrer da decisão, o Judiciário não acolheria a punição, que não está prevista na Carta Magna.

Há 2 anos tramita na Casa PEC de minha autoria. Na verdade, trata-se de uma inversão, porque deveríamos adequar a legislação infraconstitucional ao texto da Constituição. Como já há legislação, se entendermos assim o nosso Código, vamos tentar adequar o texto constitucional à vivência da Casa. Então, acrescentaríamos parágrafo ao art. 53 da Constituição Federal e diríamos:

"Nos casos de conduta incompatível com o decoro parlamentar, os deputados e senadores estão sujeitos às seguintes penalidades, aplicáveis de acordo com os Regimentos Internos das respectivas Casas:

I - censura verbal ou escrita;

II - suspensão de prerrogativas regimentais;

III - suspensão do exercício do mandato;

IV - perda do mandato".

Isso seria, a nosso ver, o que mais se apropria ao que foi inserido no Código, inserido no Regimento e, sobretudo, à prática parlamentar, guardando ponderabilidade equivalente entre o ato, a transgressão ética ao decoro e a sanção recebida.

É bom lembrar que há notórias dificuldades com Parlamentares de formação jurídica exacerbada que trazem para a Casa a sua experiência forense. Os promotores agem como promotores, os juízes e juízas agem como tal, os advogados — não falo da imensa multidão de bacharéis que assola o País —, trazem para cá inconscientemente todos os ganhos profissionais adquiridos por sua longa militância.

Quem for à Comissão de Constituição e Justiça e de Redação, num dia festivo, ficará, sem dúvida alguma, seduzido pelo debate. Esta Casa é plural, e os Presidentes de Comissões — digo isso porque já tive a ventura de ser um deles —, às vezes são engenheiros, médicos. Há presidentes de todas as formações. E os debates nem sempre são processuais ou jurídicos stricto sensu. E realmente não é para ser assim.

A primeira coisa que o Parlamentar tem que fazer ao trabalhar nesta Casa é despir-se das suas deformações profissionais. Ninguém fala nesta Casa na qualidade de médico, na qualidade de advogado, porque médicos e advogados existem aos milhares no País, mas sim na qualidade de Deputado Federal, que no País são 513. É salutar que a sua formação profissional, que colheu na sabedoria das ruas ou que aprendeu nas escolas, seja trazida, vamos dizer, ex post, para enriquecer sua prática parlamentar, mas vai encontrar aqui e ali diferenças fundamentais.

Presidi a Comissão de Constituição e Justiça — e o Jorge Hage sabe disso — na época da cassação dos então denominados Anões do Orçamento. A sociedade presenciou a cassação dos Anões do Orçamento. Foi uma festa cívica. Mas só Deus sabe os problemas que advieram. Porque, primeiro, foi um julgamento de iguais, e todo julgamento de iguais é doloroso. E foi um julgamento de iguais especiais. Muitos questionam o Deputado A, o Deputado B: esse Deputado é um delinqüente completo. Que só encontra identidade com os delinqüentes que votaram nele. Todos aqui foram eleitos, escolhidos, selecionados, honrados, bafejados pelo voto popular. Salvo para os defensores das ditaduras éticas — e não me incluo entre eles, até porque acho que os conceitos são excludentes —, não inventaram uma maneira melhor de eleger do que o voto. Aqui não é, ao contrário do que muitos pensam, o convento de São Francisco de Assis, nem uma irmandade dominicana, nem nada disso. Aqui é um retrato da sociedade brasileira, embora a sociedade brasileira aqui e ali não goste de se ver no espelho — isso é outro problema. Mas a cada 4 anos o povo tem oportunidade de mudar gente, sistemas. E acho que não há ainda nada melhor do que isso.

Mas, no exame, é bom lembrar que o convívio parlamentar é como em outra qualquer corporação. Não sei o que são os senhores, mas se são estudantes universitários e convivem durante 4 anos, criam-se vínculos, amizade, etc., naturais, decorrentes do convívio.

Depois, você, ao subtrair o mandato de um Parlamentar, tem que ter um cuidado profundo e um exame muito atento de tudo quanto se produz. Porque, na realidade, o que se está fazendo é anular a delegação da vontade expressa por milhares de eleitores, às vezes muitos milhares, às vezes poucos milhares, não importa, mas milhares suficientes para tê-lo trazido aqui. Não me esqueço da sempre criativa experiência do Estado de São Paulo, que fez com que alguns colegas não tivessem sequer 1 milhar. Mas, carregados por 1 milhão, aqui estão com legitimidade idêntica à de todos nós.

Então, o processo é conturbado, difícil, e nós procuramos nos cercar. Ao contrário do que pensam — alguns que me estejam ouvindo pela primeira vez não estranhem, não sou um descrente do Parlamento, bem ao contrário, sou um apaixonado do lugar em que trabalho —, aqui se constrói o que há de melhor na sociedade brasileira, esta Casa reserva um dos melhores quadros nacionais e, o que é mais importante, quadros com visões nacionais.

Venho do Estado de Alagoas, e se me perguntarem se hoje eu sou melhor ou pior Deputado do que fui quando cheguei a esta Casa, em 1983, respondo que sou infinitamente melhor, porque sou um quadro profissional como outro qualquer: aprendi, comparei, instrui-me. Só aqui e em outros poucos lugares pode-se ter a visão nacional de um país tão grande, tão plural, tão complexo, com gente de todos os níveis, de todas as formações, de todos os matizes ideológicos. Se esta Casa não ensinar outra coisa, ensina, ao menos aos ouvidos abertos, a rara virtude de ouvir, de entender que o seu adversário é apenas um adversário, um divergente num determinado momento sobre um determinado tema. Nem sempre essas divergências se perpetuam na sociedade brasileira. E, hoje, mais do que nunca, mudar de idéia, de ponto de vista, de opinião é uma atividade recorrente, suprapartidária e suprapoder, no Legislativo, no Executivo e no Judiciário.

Portanto, esta é a visão que temos das nossas dificuldades processuais.

Já estou sendo advertido pelo Deputado Chico Alencar. Esse é outro problema da Casa. Todos nós somos insubordinados e prolixos, mas são melhores os que falam muito do que os que não falam nada, porque jamais vamos saber o que pensam os que não falam nada — esses é que são perigosos.

Agora vamos tentar adentrar outro tema. O processo de cassação, de representação na Câmara dos Deputados é um processo que apresenta algumas peculiaridades, a meu ver, muito negativas, mas nós ainda não conseguimos consertar. Em linhas gerais, é o seguinte — e agora falo não mais da parte substantiva da pena, mas do processo. Aqui, o Conselho de Ética funciona — e bem o sabe o Presidente Orlando Fantazzini — como um apêndice da Mesa. A Mesa é uma entidade composta pelo Presidente, pelos Vice-Presidentes, pelos Secretários, que, digamos, são os regentes das atividades da Casa.

Na minha gestão aqui na Presidência, talvez pelo inusitado começo, recebemos mais de 300 representações, inclusive algumas contra Vereador, Deputado Estadual — o que não é bem a nossa seara.

A grande dificuldade é esta: hoje, esse procedimento não vai ao Conselho de Ética. Ele é formulado contra a Mesa. Quem quiser representar contra algum dos 513 Deputados, formula contra a Mesa, que manda à Corregedoria. E, aí, mais uma das imperfeições. A Corregedoria é um ente que, a meu ver, deveria ser afastado desse processo. A Corregedoria atuou porque não havia outro órgão. A Corregedoria exerce o poder de polícia interna da Casa. Por exemplo, quando quebram uma vidraça, quando a segurança extrapola, quando a polícia entra aqui e a gente quer colocá-la para fora, quando some uma câmara, quando quebram um microfone, essas são funções da Corregedoria da Casa. Como não havia outro órgão, todos os processos de infringência ética iam para a Corregedoria. Como o nosso Código foi feito — lembrem-se do que eu disse no começo —, digamos assim, de forma muito atabalhoada, para atender a um determinado reclamo, e nas circunstâncias foi um avanço, mas não é perfeito, o processo hoje vai para a Corregedoria, que faz, então, a coleta de provas e notifica o Deputado, que apresenta defesa. Depois o processo é devolvido à Mesa, que, então, reflete à luz do que foi produzido pela Corregedoria da Câmara dos Deputados e, se entender passível de punição, remete ao Conselho de Ética. E, aqui, o Conselho, em notável bis in idem, notifica as mesmas pessoas que foram ouvidas na Corregedoria, evidentemente com acréscimo de alguns subsídios, para que o Deputado apresente a mesma defesa e, de certa forma, você produza com mais substância, com mais amplitude de defesa, com mais profundidade, sem dúvida alguma, mas também inequivocamente, vamos dizer, como um passo até certo ponto repetitivo daquilo que já foi produzido.

Nossa idéia — e acho que este seminário se insere também nesse contexto — é tentarmos junto à Mesa, ano que vem, disciplinar melhor essa questão.

Minha contribuição pessoal é entender que as representações devem ser oferecidas contra a Mesa e esta deve encaminhá-las ao Conselho de Ética. Não se pode permitir que entre pelo Conselho de Ética, porque de novo estamos diante de "réus" — entre aspas — especialíssimos. A política gera correligionários, adversários, simpatizantes e exacerba o emocional coletivo.

Se aqui fôssemos abrir um processo cada vez que chegasse papel de representação contra um Deputado, trabalharíamos por demais. Eu já respondi, por exemplo, a 18 ações populares. Agora caiu de moda, mas na época do regime militar, como não havia outra forma, todo cidadão que ficava revoltado com o salário mínimo insignificante entrava com uma ação popular contra os Deputados que votaram esse salário. Respondi a 6 ações dessas. Quando venderam a Vale do Rio Doce, também houve uma ação movida por um advogado do Rio de Janeiro. Então, há que separar essas coisas das infringências de natureza ética comportamentais.

A última reflexão que eu deixaria para os participantes é a seguinte: bem ou mal, a Câmara dos Deputados produziu um texto que permite que os Parlamentares possam ser punidos por ela própria, e poucas são as entidades que concebem esse tipo de instrumento. Isso é muito importante, porque sinaliza para dentro e para fora. Para fora, ele sinaliza para a sociedade, mostrando que existe possibilidade de punição, que existem normas. Se infringidas, qualquer cidadão pode e deve fazer uma representação. E sinaliza para dentro, porque os 513 companheiros que aqui têm assento, periodicamente renováveis, segundo uma série histórica, em 53%, sabem que devem cumprir com os mandamentos de ética e do decoro.

Tanto foi interessante a concepção do Conselho de Ética que hoje o número de "denúncias" — entre aspas, porque não são formais, são notitias criminis, digamos assim — que chegam à Câmara curiosamente se mantém estável e declinante, em razão de a sociedade entender, na minha percepção, que há disposição e vontade política de aperfeiçoar o comportamento de seus representantes.

Em decorrência do exíguo tempo de que dispomos, em linhas gerais era o que poderíamos dizer. São temas polêmicos, e acho que o debate irá esclarecê-los melhor.

Abstive-me de fazê-lo, porque acredito que não seria atrativo lermos a Constituição ou, textualmente, o que diz o dispositivo.

Em suma é o seguinte: temos 4 tipos de sanções, que, de certa forma, apresentam-se, pari passu, de acordo com a gravidade cometida pelo Parlamentar. Existe um processo, que, no entender de alguns, é o mais adequado possível, e no de outros, ao qual me filio, é um tanto quanto repetitivo e poderia ter melhor tramitação.

A Câmara sempre aperfeiçoou seus instrumentos. O que temos hoje em termos de Regimento, sem dúvida alguma é melhor do que o que tínhamos há 8 ou 10 anos. Também nesse campo, conseguimos espalhar o Código pelas Assembléias. Algumas se louvaram expressamente na nossa sugestão nas Câmaras Municipais. O ideal é que isso se uniformize no âmbito do Legislativo de ponta a ponta, Câmara dos Deputados, Senado Federal, Câmaras Municipais, Assembléias Legislativas, Assembléia Distrital.

Minha visão é esta, e acho que podemos aprofundá-la no debate.

Muito obrigado. (Palmas.)

O SR. PRESIDENTE (Deputado Chico Alencar) - Muito obrigado, Deputado José Thomaz Nonô. V.Exa. confirmou o que eu já havia dito antes. Não por mero elogio protocolar, o pensamento de V.Exa. é grande e brilhante.

Concedo a palavra ao Dr. Jorge Hage, Subcontrolador-Geral da União, que tratará de tema importantíssimo nesses tempos em que política se mistura com criação de gafanhoto e ranários. Isso povoa nosso universo. Quando garoto, eu gostava das fábulas de La Fontaine. Mas hoje formiga e cigarra não têm aparecido muito. Raposas e outros bichos, talvez.

Então, com a palavra o Dr. Jorge Hage: Ética Política e Controle dos Gastos Públicos.

O SR. JORGE HAGE SOBRINHO - Sr. Presidente; Deputado José Thomaz Nonô, meu companheiro de painel; Deputado Orlando Fantazzini; demais Parlamentares presentes; Srs. Parlamentares Estaduais e Municipais; autoridades; senhoras e senhores, é com muita satisfação e honra que compareço a esta reunião, e por várias razões. Primeiro porque volto à Casa por onde passei e, segundo, porque venho substituir o mestre Waldir Pires, Ministro do Controle e da Transparência, Chefe da Controladoria-Geral da União, que por se encontrar em viagem ao exterior para celebrar a Convenção da ONU de Combate à Corrupção, que será assinada no México nos próximos dias, não pôde estar presente.

A alegria de rever companheiros e colegas é sempre algo que se acrescenta à grande honra de participar deste evento promovido em muito boa hora pelo Conselho de Ética e Decoro Parlamentar, por iniciativa do Presidente, Deputado Orlando Fantazzini.

É desnecessário dizer por que este debate é extremamente oportuno. O Deputado José Thomaz Nonô, ao falar sobre ética e decoro parlamentar, com a experiência que tem como ex-Presidente deste Conselho, ressaltou de modo suficiente a importância do evento.

Pelo fato de que em seguida à minha explanação mestres como o Prof. Roberto Romano, da UNICAMP, e o Prof. Ricardo Caldas, da UnB, dissertarão sobre ética na política, dispenso-me de tecer quaisquer considerações de caráter mais teórico ou genérico a respeito do tema. Irei diretamente ao contraponto do meu assunto: controle dos gastos públicos.

Falarei especificamente sobre a experiência de controle dos gastos públicos que vem sendo implementada no novo órgão do Governo do Presidente Lula, a Controladoria-Geral da União, dirigida pelo Ministro do Controle e da Transparência, Waldir Pires, que vem dando nova dimensão e nova visão ao assunto, colocando em outro patamar os gastos públicos no País.

Se me permitirem, farei uso de algumas transparências como apoio a minha explanação.

(Segue-se exibição de imagens.)

Começarei lembrando à Casa que as atribuições da Controladoria-Geral da União decorrem, antes de mais nada, do próprio texto constitucional. Particularmente, no art. 74, a Constituição impõe ao Executivo, ao Legislativo e ao Judiciário que mantenham sistemas de controle interno. Esse é o papel da Controladoria-Geral da União no tocante ao Executivo, portanto, no que se refere aos gastos públicos federais, da União, do Poder Executivo.

A atribuição de ser o órgão central do sistema de controle interno traduz-se concretamente, em termos de seu enunciado constitucional, em avaliar o cumprimento das metas previstas nos planos plurianuais, os PPAs, a execução dos planos de governo e dos orçamentos anuais da União; comprovar a legalidade e avaliar os resultados, quanto à eficácia e eficiência da gestão orçamentária, financeira e patrimonial de todos os órgãos da administração federal — não somente deles, mas de todo e qualquer ente público ou privado que aplique recursos da União, essa é uma observação de fundamental importância; exercer o controle das operações de crédito, avais e garantias; e apoiar o controle externo, aquele que é exercido pelo Tribunal de Contas da União, como órgão de auxílio às 2 Casas do Congresso Nacional.

O § 1º desse artigo atribui expressamente aos responsáveis pelo controle interno o dever de dar ciência ao Tribunal de Contas de todas as irregularidades ou ilegalidades de que tenham conhecimento, sob pena de responsabilidade solidária.

A Controladoria-Geral da União opera, com base no texto constitucional, nas seguintes linhas de ênfase. Eu diria que se organizou, para melhor atender ao que manda o texto constitucional, da forma como está exposto nesse quadro, em 3 grandes segmentos: um órgão de ouvidoria, um órgão específico de controle interno, que já existia, a Secretaria Federal de Controle, cujas atribuições têm sido reforçadas e ampliadas, e as corregedorias.

No Governo passado, foi criada a Corregedoria-Geral da União, há cerca de 2 anos, como órgão distinto e separado da Secretaria Federal de Controle Interno. Depois foi feita a justaposição desses 2 órgãos. Mas a integração de funcionamento nunca foi alcançada. Tem sido a primeira tarefa do atual Governo reorganizar o órgão resultante da justaposição de organismos que têm história, gênese e cultura diferentes.

Atualmente funcionamos assim: a Ouvidoria é basicamente quem recebe as reclamações quanto à qualidade da prestação de serviços; as Corregedorias recebem denúncias, atuam em etapa inicial de diligências e em etapa posterior de atividade de correição, embora ocorra de início não diretamente, uma vez que instaurar procedimentos disciplinares é de responsabilidade de cada Ministério, pela linha hierárquica. Ou seja, ao superior hierárquico daquele que cometeu a irregularidade cabe instaurar o Procedimento Administrativo Disciplinar — PAD. Cabe à Controladoria, por meio de suas Corregedorias, acompanhar a implementação dessas recomendações, a cobrança quando não são cumpridas e até o refazimento, a anulação dos trabalhos e a avocação, quando houver omissão da autoridade responsável.

No meio fica a Secretaria Federal de Controle Interno, que exerce as atribuições de controle stricto sensu, basicamente com o uso de técnicas de auditoria e fiscalização. Essa parcela do órgão dispõe de pessoal altamente qualificado, do quadro de carreira, todos concursados. São cerca de 1.400 profissionais: metade espalhada nas 26 unidades, em todas as Capitais, e a outra metade no órgão central, em Brasília. Atuam na defesa do patrimônio público e na busca da transparência na gestão.

A filosofia de controle do Governo Lula, traduzida pela Controladoria-Geral da União, assenta-se basicamente em 3 ou 4 pontos fundamentais que merecem ser destacados.

O primeiro reside na combinação entre o que pode ser feito pelos controles institucionais administrativos, digamos assim, e aquilo que é tarefa do controle social. Partimos da premissa de que, por melhor que venha a ser no futuro, com o atendimento de todas as necessidades de recursos, de dotações de pessoal e de orçamento, de modernização da legislação, por melhor que se chegue em termos de controles institucionais, nunca se dará conta de tudo aquilo que tem de ser feito para o controle pleno dos gastos públicos, para a fiscalização da boa gestão, sem o controle da sociedade. É da combinação de tudo isso que podemos chegar à situação satisfatória. Por isso, reside na união do controle feito pelo aparelho público, pelo cidadão, pela sociedade, pelos conselhos locais, pelas Câmaras Municipais, pelas organizações da sociedade civil, pelos sindicatos, pelas entidades, pela imprensa o domínio do gasto público.

O segundo pilar da filosofia de controle reside na absoluta e total transparência dos gastos públicos. Aliás, é o que alimenta a possibilidade de estimular o controle social. Com a prestação de informações completas sobre todos os recursos destinados a todos os entes federais, estaduais e municipais, a exibição da forma mais ampla possível, por meio de todos as condições disponíveis que a tecnologia moderna propicia, também por intermédio do SIAFI — todos sabemos de suas limitações, somente inteligível por meia dúzia de privilegiados e especialistas, até mesmo aqui no Parlamento. Por vivência própria, sei que somente os Parlamentares que têm os melhores assessores, treinados e especializados, conseguem fiscalizar os gastos públicos por intermédio do SIAFI. Não é fácil, esse sistema não é ferramenta inteligível pelo cidadão comum. Estamos buscando criar outros instrumentos, sobre os quais me deterei um pouco mais adiante, portais da transparência e outras formas de fazer a informação chegar em linguagem inteligível ao cidadão, em qualquer lugar do País.

Ainda em termos da nossa filosofia básica, menciono a articulação intensa entre as diversas instituições que têm papel a desempenhar em matéria de controle. A Controladoria sabe que não pode trabalhar sozinha, e nem quer. Ela quer trabalhar integrada, e já o faz com o Tribunal de Contas da União, a Polícia Federal, a Secretaria Nacional de Justiça, a AGU, os Ministérios Públicos Federal e Estaduais, entre outras instituições. Já me referi à integração e à intercomplementaridade entre as várias subfunções da Controladoria quando me detive na nova estrutura.

Ainda em termos de nova estrutura, agora descendo ao detalhe mais interno, vale mencionar que a própria distribuição do trabalho entre as 3 Corregedorias de que dispomos foi alterada no atual Governo, deixando de se organizar em etapas do processo, em Corregedoria de Instrução, de Execução e de Procedimento, e passando a se organizar em funções de Governo. Uma Corregedoria, da área econômica, tem responsabilidade pelos assuntos relativos aos Ministérios da área econômica (Planejamento, Fazenda), aos bancos oficiais, às instituições financeiras oficiais (Caixa Econômica Federal, Banco do Brasil); a Corregedoria da área social cuida de Ministérios afins (Educação, Saúde, Trabalho, Assistência Social), e o Corregedor, Dr. Eduardo Freitas, nos honra com sua presença; a Corregedoria do setor de infra-estrutura cuida das Pastas ligadas à área (Transporte, Minas e Energia). O ideal seriam 30 Corregedorias, cada uma dirigida para os assuntos de um Ministério. Na impossibilidade, trabalhamos com o que é possível.

Postas essas premissas — não quero alongar-me muito nelas —, vou limitar-me a mencionar os principais e os novos projetos em curso na Controladoria-Geral da União, a começar pelo Programa Sorteios Públicos, que dá maior visibilidade para a população, porque tem grande difusão na imprensa. Por intermédio desse programa, lançado pelo Ministro Waldir Pires, a Controladoria-Geral da União sorteia mensalmente, no auditório da Caixa Econômica Federal, pela mesma metodologia aplicada à Loteria Federal, à Sena ou à Loto, o Município que vai ser auditado durante 1 ou 2 semanas. São 50 por mês.

Evidentemente, por trás dessa idéia está a tentativa de, por intermédio da parte, atingir-se o todo. Não é possível ter recursos humanos e materiais para fiscalizar os 5.600 Municípios brasileiros. Refiro-me a espaços municipais, não a Prefeituras. Nossa fiscalização toma o local como um território, uma delimitação geográfica para auditar todos os recursos federais, e somente eles. Não nos envolvemos com verbas municipais nem estaduais. Fiscalizamos a aplicação dos recursos federais por quem quer seja, não só pelas autoridades municipais, também pelos órgãos estaduais e federais que ali operam diretamente e pelas instituições privadas, organizações da sociedade civil que recebem recursos por meio de convênios e também empreendimentos financiados com recursos dos fundos públicos de investimento. A idéia, claro, é inibir a corrupção nos outros 5.550 mil. Enquanto estamos fiscalizando 50, sabemos que esses outros órgãos de todos os níveis que atuam nos demais Municípios sabem que pode ser sua vez no próximo sorteio.

Ao mesmo tempo, a idéia é estimular o controle social, fazer com que a população, informada da ida dos auditores lá e dos recursos repassados por todos os programas federais — da bolsa-escola à área de telecomunicações — passe a exercer melhor, diretamente ou por seus mediadores (Câmaras Municipais, Conselhos), seu papel de controle social. Nessa linha, já foram fiscalizados os números aí projetados.

Vou me referir agora ao portal da transparência, instrumento no qual pretendemos traduzir em linguagem inteligível algumas informações que se encontram no SIAFI e acrescentar outras, fazendo com que, através de equipamento instalado em agência do Banco do Brasil, da Caixa Econômica ou dos Correios, instituições que têm grande capilaridade no País, qualquer cidadão possa acessar a informação atualizada. A idéia do Ministro Waldir Pires é, além da informação pela via eletrônica, levá-la por outros maneiras também. Sabemos que há localidades em que a população não acessará os dados, nem tendo à disposição o equipamento.

Em seguida, vou me referir à instalação do Conselho de Transparência Pública e Combate à Corrupção, outro instrumento no âmbito de cúpula, já aprovado por esta Casa na Lei nº 10.683, de 2003. Agora depende apenas da aprovação pelo Presidente da República da minuta do decreto que lhe foi encaminhada pelo Ministro Waldir Pires. Esperamos que isso ocorra ainda este ano ou, no máximo, no início do próximo.

O Conselho de Transparência e Combate à Corrupção é órgão de consulta, de debate e de apresentação de sugestões à Controladoria-Geral da União, integrado paritariamente por membros dos setores público e privado. Do setor público, participarão representantes dos Ministérios mais diretamente envolvidos com a problemática. Além da Controladoria, Ministérios da Justiça, da Fazenda, do Planejamento, AGU. Participarão também, como convidados, representantes do Ministério Público e do Tribunal de Contas da União. Do setor privado, participarão entidades representativas dos trabalhadores (centrais sindicais) e dos empresários (confederações da indústria, do comércio, da agricultura), CNBB, OAB, ABI, organizações desse porte da sociedade civil.

Outro projeto que merece destaque, a nosso ver, é o IV Fórum Global de Combate à Corrupção. O Brasil foi distinguido, quando da realização do III Fórum Global de Combate à Corrupção, realizado na Coréia, em 2003, e, em reconhecimento ao trabalho que vem sendo desenvolvido na área pelo Governo Lula, foi escolhido para sede do próximo fórum, a ser realizado em 2005, com participação prevista de mais de 100 países. O primeiro foi realizado nos Estados Unidos, o segundo, na Holanda, o terceiro, na Coréia, o quarto será aqui, para honra de todos nós.

Passo agora ao Sistema de Acompanhamento de Resultados e Recomendações, para esclarecer melhor qual é nosso papel, uma vez que muitas vezes a Controladoria é cobrada, pela população e pela imprensa, quanto aos resultados finais das auditorias que fazemos, quando há o que se chama separação de Poderes, felizmente. A Controladoria não pode, ela própria, ser aquela a buscar as provas, formular a acusação, julgar e condenar. Então, é sempre importante relembrarmos que fazemos a nossa parte.

Encaminhamos os resultados ao Ministério Público, Federal ou Estadual, conforme o caso; à Advocacia-Geral da União, para ações de ressarcimento dos cofres públicos, que cabem à AGU e também ao Ministério Público, via ação de improbidade, no plano cível, e denúncia, no plano criminal; e ao Tribunal de Contas, que tem outros tipos de sanções a aplicar, como multa, ressarcimento.

Do ponto de vista da administração do Poder Executivo, encaminhamos aos Ministérios gestores para que eles complementem as apurações e instaurem o contraditório, que não é parte nossa. O processo administrativo e o processo de tomada de contas especiais serão instaurados pelo órgão gestor do recurso, e aí poderá haver sancionamento na esfera administrativa dos gestores.

Seja como for, o sancionamento das condutas não cabe à Controladoria &mdashfazemos; sempre questão de deixar isso muito claro. Mas nossa preocupação é muito grande com o acompanhamento desses processos. Por isso, o Ministro Waldir Pires determinou — e estamos montando — um sistema informatizado para acompanhamento dos resultados do nosso trabalho já na esfera de outros órgãos, a fim de informarmos ao cidadão que nos indague o que aconteceu na auditoria que realizamos, publicada pela imprensa, mas que ele não sabe em que deu, em que vai dar. Podemos, portanto, acompanhar, mas não interferir, obviamente.

Refiro-me à nossa atuação em matéria de lavagem de dinheiro pela evidente conexão com a corrupção, que é nosso papel combater. Apenas registro que, segundo dados mais recentes, está comprovado que o crime antecedente que hoje aparece com maior freqüência nos casos de lavagem de dinheiro não é o narcotráfico, não é o contrabando, não é o terrorismo, mas a corrupção. Daí nosso enorme empenho em entrar nessa área em articulação com outros órgãos envolvidos no combate à lavagem de dinheiro. Temos autorização da Vara Federal de Curitiba para aprofundar investigações de agentes públicos envolvidos no caso BANESTADO, um dos trabalhos em que as Casas do Congresso estão envolvidas por meio de CPI.

Quanto à revisão nas temáticas de prestação de contas de convênios, passaria por ela sem maiores referências.

No próximo quadro, destaco apenas a revisão da legislação da quarentena, que, pelo nosso diagnóstico, é absolutamente insuficiente, é uma brincadeira. São meia dúzia de casos abrangidos pela incidência da norma de quarentena, membros de 3 ou 4 conselhos, e mais nada. Conselho de Ministros, 2 câmaras deles, Conselho Monetário Nacional e mais nada. Quer dizer, o resto está livre da quarentena?

Bem, se quarentena não é bom remédio, vamos acabar com ela. Não vamos ficar fazendo de conta que temos um sistema de quarentena, porque não temos. Nossa idéia é propor sua revisão, na qual já estamos trabalhando.

Sobre o Projeto Cartilha, faço referência por ser de fundamental importância para nós. Estamos trabalhando para produzir uma cartilha para os agentes municipais e outra para a população em geral, como 2 passos iniciais nesse trabalho de esclarecimento que melhor instrumentalize o controle dos gastos públicos em todas as esferas. Celebramos convênios com os Ministérios Públicos Estaduais e Federal, Polícia Federal e outros dentro da filosofia de intensa articulação com o trabalho dos vários órgãos.

Projeto a iniciar em 2004. A prioridade é amplo programa de treinamento e capacitação dos agentes municipais, porque estamos constatando o que já imaginávamos, ou seja, que em determinado percentual dos casos o que há por trás das irregularidades encontradas não é corrupção, não é fraude, mas desconhecimento, falta de capacitação. Por isso, estamos fazendo cartilha e vamos iniciar um programa de treinamento. Quanto à outra parcela, que é fraude, desvio, as sanções são estabelecidas na lei. Para essa parcela, a providência é treinar, capacitar, esclarecer.

A reformulação da legislação dos conselhos municipais, no quadro anterior, também é outra prioridade nossa. Sabemos que os conselhos municipais tanto na área dos programas de educação como da saúde não funcionam na grande maioria dos Municípios, não têm autonomia e independência mínimas para controlar nada. Então, é outra balela.

O Governo da União descentraliza a execução dos programas. Ora, muito bem, isso é ótimo, é perfeito, no mundo inteiro se recomenda que a execução seja descentralizada. Mas é preciso que a descentralização seja acompanhada de controle, e o único capaz de dar conta de tudo é o controle social. O controle administrativo jamais conseguirá abranger tudo. Ou melhoramos as condições dos conselhos de controlar, ou, como sabemos, vamos conseguir alguma coisa pela inibição, pelo efeito exemplar, mas jamais chegaremos à totalidade.

Nesse quadro final, destaco o Projeto Ética e Cidadania nas Escolas, que tem a ver com a temática também aqui abordada, a ética. Trata-se de iniciativa do Ministro Waldir Pires, que fez proposição ao Ministro Cristovam Buarque, da Educação, e estamos começando os estudos a fim de examinar a possibilidade de implantação não como disciplina nova, mas como os chamados temas transversais. Seria um tema transversal a ser implementado nas escolas de ensino fundamental e médio, para começar de baixo, desde a formação básica, a incutir nos futuros cidadãos deste País noções de ética e cidadania.

Os senhores me desculpem se usei mais tempo do que tinha direito. Muito obrigado pela atenção. (Palmas.)

O SR. PRESIDENTE (Deputado Chico Alencar) - Agradeço ao Deputado Jorge Hage, que inclusive me colocou, na condição de petista, diante de mais um inédito desafio: tive de controlar a controladoria. Desculpe-me. Mas o fiz em razão da dinâmica do trabalho parlamentar. Há outra Comissão funcionando, da qual o Deputado José Thomaz Nonô é membro ativo, como em todas das quais participa.

Então, para aproveitar os 2 expositores, considerando que os Profs. Roberto Romano e Ricardo Caldas já estão aqui, sugiro dedicarmos breve tempo para alguns questionamentos que o Plenário queira fazer a ambos. Solicito o máximo de objetividade. Seriam de 4 a 6 indagações na seqüência, às quais os expositores responderiam também em bloco, e nós instalaríamos o painel final deste seminário.

Registro a presença da Sra. Adísia Sá, decana da Comissão de Ética e Direitos Humanos da Federação Nacional dos Jornalistas. Convido-a, se quiser, a tomar assento à mesa. Fique à vontade.

O espaço está aberto a perguntas. Peço que a pessoa se identifique.

O SR. ALBERTO ABRAÃO - Boa-tarde. Represento o Município de Sarandi, mas sou de Maringá, noroeste do Paraná. Reporto-me a um aspecto da exposição do Deputado José Thomaz Nonô que considero de grande importância na questão da representação, porque os votos são de todos, mas a forma como que se captam as votações na base tem muito a ver com uma forma de procedimento que deve, na minha opinião, passar a ser avaliada nesta Casa. Existe a chamada emenda individual, que tem provocado uma confusão de competências, ao que nos parece.

O SR. DEPUTADO JOSÉ THOMAZ NONÔ - Emendas orçamentárias.

O SR. ALBERTO ABRAÃO - Exato, emendas orçamentárias. O Deputado, ao longo do seu mandato, na base, começa a entregar equipamentos a Prefeitos das pequenas cidades e se apresenta como um grande Deputado tão-somente por esse trabalho. Como sabemos que a corrupção não é apenas a apropriação de dinheiro, mas o desvio de finalidades e competências, não seria essa uma matéria a ser apreciada pela Comissão, pelo Conselho de Ética desta Casa, para buscar talvez mecanismos melhores para impedir isso?

O SR. DEPUTADO JOSÉ THOMAZ NONÔ - Sr. Presidente, se V.Exa. me permitir, eu gostaria de dar a resposta, porque tenho medo de que se perca qualquer coisa. Quero esclarecer ao Sr. Presidente e aos Srs. Parlamentares que sou Presidente da Comissão da ALCA, onde está havendo uma reunião paralela, mas pedi ao meu funcionário da Presidência que me assinale quando lá estiver em emergência. Então, enquanto eu puder ser honrado com este convívio fraterno, fico por aqui. A ALCA espera, se Deus quiser, muitos anos.

Quero dizer ao Dr. Alberto Abraão, em relação à emenda individual, que essa é uma discussão filosófica sobre orçamento. Aqui o senhor vai encontrar dezenas de posições discrepantes. A primeira coisa, a meu ver, é que não me parece nenhuma infração de natureza ética e comportamental a existência da emenda individual ou da emenda coletiva.

O Executivo, todos os Executivos — isso é também, de novo, suprapartidário: tucanos, petistas, maoístas, chineses, existencialistas, militares, civis, todos os Executivos — têm a síndrome da perfeição. Todos acham que o seu projeto orçamentário é o melhor do mundo. Aliás, a origem dos Deputados e Senadores se deu na Inglaterra, há quase um milênio, exatamente com o objetivo de fiscalizar, de tutelar o ímpeto de bem servir do Executivo. O Executivo tem a vontade divina de servir bem e também a presunção divina de que no seu seio não há corrupção, tráfico de influência, nada disso. Há uma presunção juris et de juri de que tudo que vem de lá vem certo. E vejam: não estou me referindo ao nosso Presidente Lula. Estou me referindo a todos, Lula inclusive.

O ideal era que, como na época do sistema militar, recebêssemos um Orçamento pronto — o ideal para alguns. Naquela época, o Orçamento vinha pronto, e o Congresso dizia "sim" ou "não" à peça orçamentária como um todo. Sou Deputado ainda remanescente do Governo de Figueiredo, e a única desvantagem de termos muito tempo na Casa é que já vimos quase tudo. Naquela época se dizia: por que interferir no Orçamento? O Orçamento vem, o Parlamento aprova ou rejeita. Como via de regra os Governos militares tinham maiorias parlamentares, o que acontecia? O Orçamento era aprovado in totum e alentava a vontade do Executivo.

A emenda parlamentar é uma tentativa de alterar a vontade do Executivo dentro do mesmo universo de gastos, e houve avanços nisso. Antigamente, as emendas caíam do céu: "Vamos fazer um viaduto novo ligando Curitiba a Maringá". "Quanto custa?" "Pouco importa. Coloque aí e depois vemos como fazer". Isso não existe mais na Casa. Hoje, adequamos dentro do que está disposto e fazemos as emendas individuais.

Há outro tipo de emenda. Vou aproveitar para falar sobre isso, porque há pessoas aqui que não são muito familiarizadas com a Casa. Existem as emendas de bancada. Neste caso, há um maior grau de coesão e de consenso ou de dissenso, porque elas são as que traduzem a vontade dos Estados. As bancadas se reúnem e, algumas vezes em episódio edificante de identidade política e outras em caso explícito de morticínio, a portas fechadas, decidem o que é prioritário e o que não é, o que é importante e o que não é.

Eu, particularmente, não gosto de emenda individual, mas não pela razão que V.Sa. atentou. É legítimo ao Parlamentar tentar traduzir aquele anseio da sua base que não é atendido. É bom notar, sobretudo nos Estados e Municípios mais pobres da Federação, que temos uma distribuição perversa. Nas horas vagas, fui Secretário da Fazenda também. Mais ou menos 80% dos Municípios brasileiros vivem da transferência federal, do Fundo de Participação, de outras cositas mais ou desses recursos que aportam, via emenda, via não sei o quê, no Orçamento do Prefeito Municipal. Na realidade, ele não tem capacidade de gerar recursos suficientes para atender a suas demandas sociais e precisa, eu diria, desesperadamente, de um olhar atento do Governo Federal. O problema é que o Governo Federal — e, de novo, todos os Governos Federais — tem um viés mega.

Às vezes, leio alguns iluminados de jornais brasileiros. Por exemplo, temos 2 ou 3 colunistas femininas que deviam ser Ministras, porque elas sabem tanto e tão profundamente sobre tudo que algum Presidente, algum dia na vida, vai ter o gesto de bom senso de convidá-las para exercer um cargo, ao invés de nos receitarem diuturnamente lições de economia de jornal.

Como é que se escolhe? O Governo Federal tem o viés da grande obra. Todo Governo adora fazer uma megaestrada, uma rodovia Norte&mdashSul;, de preferência de Amapá ao Chuí — quanto mais ramal, melhor —, um grande aeroporto e um grande porto. Isso é até natural. Em um país grande como o nosso, é muito difícil que a atenção do Executivo se volte para o micro, para o pontual. Então, o que acontece? Freqüentemente, os nossos Orçamentos, como são mandados, contemplam obras estruturantes e uma série de coisas importantes, mas não contemplam aquela coisinha pequenininha, que na realidade, via de regra — estou falando em tese —, é aquilo de que realmente o Município mais necessita.

Vou dar um exemplo prático disso. Sou do Estado de Alagoas ou do que restou dele — pouca coisa — depois do Governo Collor. Diga-se de passagem que ele empolgou a sociedade brasileira. Eu era o único Parlamentar contra. Lembro aos amnésicos ou esquecidos que o confisco da poupança, a maior barbaridade de todos os tempos cometida no ordenamento jurídico deste País, foi rejeitado por apenas 56 Deputados e considerado constitucional e perfeito pelo Supremo Tribunal Federal. O Ministro Sidney Sanches até hoje não fala comigo pessoalmente por causa de alguns comentários amáveis que teci à época sobre S.Exa. e sua decisão.

Como o nosso Ministro Mantega — falo dele como falaria de qualquer um outro — vai se lembrar de que Itapipoca, nos rincões da Paraíba, precisa desesperadamente de um posto de saúde? Esse Município não quer um megahospital, uma rodovia, um açude extraordinário, que será entregue à empreiteira tal ou qual, não quer um aeroporto supersônico, não quer nada disso, quer apenas um posto de saúde.

Freqüentemente, o Orçamento não traduz esses anseios, porque eles são pequenos, focalizados, pontuais. Dentro desse universo de atenção, desse tipo de demanda, é que o Parlamentar faz sua emenda individual.

A outra questão que V.Sa. aborda é diferente. Sobre a apreciação do Deputado pelo eleitor devemos ter mais ou menos 1.500 obras doutrinárias. Temos os famosos marqueteiros, um universo de pessoas que se dedicam a pesquisar a alma humana para entender como é que você acha Fulano de Tal bom, Fulano de Tal mau, essa iniciativa boa, essa iniciativa má. É muito difícil um juízo de valor dessa forma. Inúmeros eleitores — pela sua própria pergunta, tenho absoluta convicção de que é um eleitor qualificado, mas nem todos são assim —, de forma equivocada, eu concordo, medem Deputado como se fosse pedreiro. Vou dar um exemplo, perdoe-me se cometo alguma heresia, mas esta Casa é generosa, o público também, sobre o caso recente da Senadora Heloísa Helena, do meu Estado. Meu Estado é exótico, pois produz o Renan Calheiros e a Heloísa Helena. Coisas da vida. Mas ambos são muitos cortejados pelo Presidente Lula, que é, digamos assim, um homem afetivo, com grande coração, que recebe no seu seio todas as forças políticas que querem ajudar o Brasil. Partindo desse ponto de vista patriótico, a Senadora Heloísa Helena tinha o primeiro lugar em todas as pesquisas do meu Estado para Prefeito. E hoje ela é a quinta. Aí dirão os sábios do jornal: "A senadora perdeu o rumo". Isso evidentemente nos jornais do Paraná e de São Paulo, que estão há anos-luz do Estado de Alagoas, que é a vanguarda do atraso nacional. O senhor sabe qual é a leitura lá? A Senadora lutou 20 anos — e é a leitura do Ministro José Dirceu, também — para botar o PT no poder. E ao botar o PT no poder, tendo a chance de fazer a sua favela, a sua escola, a sua ambulância, ela está na Oposição. Não dá para entender, e despenca.

Eu sou homem de mídia, também entendo um pouco disso. Essa é a leitura das pesquisas que eu tenho, claríssimas. Estou-lhe trazendo esse exemplo — talvez não seja a verdade absoluta — simplesmente para ajudar as pessoas, porque foi feita essa formulação sobre a engenharia civil, o pedreiro, a pessoa que fez o muro, a escola. Não é à toa que os faraós faziam as pirâmides, e todos os brasileiros, de Cabral até os dias de hoje, cada um construiu em maior ou menor grau a sua pirâmide. Fico feliz quando a pirâmide encontra ressonância social, o que é um avanço fantástico. O pior é quando alguém faz uma para satisfazer o seu ego. Mas a idéia, em si, não me parece de forma alguma antiética. É absolutamente explicável, pelo tipo de demanda que se cobra.

Julgo-me um Deputado de opinião, não tenho reduto eleitoral. Mas volta e meia, e durante 21 anos, eu encontro pessoas que dizem: "Ah! E a escola de não sei de onde?" Não conseguem entender, sequer, entre os diferentes graus de aplicação desses recursos, o que é da competência da União, do Estado e do Município, até porque a superposição de gastos, desde Duarte Coelho, donatário da Capitania de Pernambuco, é recorrente deste País. As ações de saúde são feitas pela União, pelo Estado e pelo Município; ações da educação são feitas pela União, pelo Estado e pelo Município; e agora tem a PPP, ainda entra a iniciativa privada nessa seara pública. Deveria ser a PPPP — o último P é de promíscuo, que também traz uma conotação, no mínimo, perigosa quanto a esse tipo de relacionamento.

Então, é essa a razão de as emendas existirem. Não vejo nenhuma infringência ética. Seria muito melhor se a proposta orçamentária contemplasse essas pequenas obras. Uma invenção petista — sou do PFL — muito boa é o orçamento participativo. Quando você consegue discutir e ao apresentar o Orçamento fazê-lo com a oitiva ex ante da base onde se vai aplicar esse recurso, você tem uma estrutura orçamentária muito melhor.

Mas o Brasil é uma ficção. Morei nos Estados unidos muito tempo, e lá a visão do orçamento é outra. Aqui o senhor tem uma peça de ficção. Nosso Orçamento não é nada, o nosso Orçamento de 2004, que será votado, não com o meu voto, contempla recursos que talvez possam existir ou não, contemplam recursos de tributos que ainda estão sendo, e em má hora, implementados por esta Casa ou pelo Senado Federal. No entanto, eles já estão lá na proposta. É o caso raro de o ovo anteceder a galinha. Mas a biologia política contemporânea permite essas coisas. Então, essa é a razão de existirem emendas individuais. E se, em algum momento, são menores, podem ter certeza que há delitos infinitamente superiores não apenas no geral da Casa, mas no próprio Orçamento.

O SR. PRESIDENTE (Deputado Chico Alencar) - Bom, o Deputado Thomaz Nonô, do PFL, é um subversivo, não é?

O SR. DEPUTADO JOSÉ THOMAZ NONÔ - Dizia um conterrâneo dele, o Milton Temer, que eu era um agente infiltrado no PFL. (Risos.)

O SR. PRESIDENTE (Deputado Chico Alencar) - E de qualquer maneira, para garantirmos o princípio da equanimidade aqui, sei que o Prof. Roberto Romano tem uma indagação a fazer ao Sr. Jorge Hage. Que a faça, e depois nós vamos ver mais uma e outra questão para garantir o tempo do próximo painel. Primeiro, o Prof. Roberto. Só um detalhe, vou fazer um comentário muito breve. O clientelismo e a forma como se usa a própria emenda individual pode ser muito funesta para a boa prática política. Lá no Rio de Janeiro — fui Deputado Estadual —, uma colega de representação chegou a um nível quase macabro. Ela tinha carro funerário e botava até o nome dela: "Na vida e na morte, a Deputado Fulana de Tal é a sua sorte". (Risos.) O povo precisa enterrar mesmo seus mortos, e com isso ela já está no seu quinto ou sexto mandato.

O SR. DEPUTADO JOSÉ THOMAZ NONÔ - Os agraciados na segunda etapa votavam também ou não? (Risos.)

O SR. PRESIDENTE (Deputado Chico Alencar) - Com a palavra o Prof. Roberto Romano.

O SR. ROBERTO ROMANO - Quero parabenizar os 2 homens públicos que eu acompanho diuturnamente. sou admirador de ambos.

Meus cumprimentos à Controladoria pelas medidas que estão sendo implementadas. Eu acreditava que o orçamento participativo já era um elemento educador, mas as medidas apresentadas me parecem muito mais realistas e muito mais sérias. Não que o orçamento participativo não seja sério, mas entendo que essas medidas são mais efetivas.

Não sei se por deformação profissional, tive a impressão de ouvir, num certo momento, o Sr. Jorge Hage falar da participação da CNBB em conselho. Gostaria de saber a que título.

Obrigado.

O SR. JORGE HAGE SOBRINHO - Prof. Roberto Romano, muito me honra poder dialogar com V.Sa., pois sou seu admirador e leitor assíduo.

O Conselho da Transparência foi concebido e definido na Lei nº 10.683 como órgão colegiado consultivo com a finalidade de sugerir e debater medidas de aperfeiçoamento dos métodos, sistemas e estratégias de incremento da transparência, do controle e do combate à corrupção e à impunidade, com representação paritária do setor público e do setor privado, isto é, da sociedade civil.

No decreto que virá regulamentar a lei — ainda em estado de minuta em exame na Casa Civil —, a proposta de constituição é a seguinte. Autoridades do Poder Executivo: o Ministro da Transparência, Waldir Pires; representantes da Casa Civil, da AGU, do Ministério da Justiça, do Ministério da Fazenda, do Ministério do Planejamento, da Comissão de Ética Pública; e, como autoridades ainda públicas, mas convidadas, porque não são do Executivo, representantes do Tribunal do Contas e do Ministério Público da União.

Representantes convidados da sociedade civil: 1 representante da OAB, 1 da ABI, 1 da Transparência Brasil, 1 da Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais — ABONG, 1 da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil — CNBB, e 1 do Conselho Nacional dos Pastores do Brasil. Além desses, 1 representante dos trabalhadores, indicado em regime de alternância — para ficar paritário sem crescer muito além dos 18 membros — pelas seguintes entidades: Central Única dos Trabalhadores, CGT, Força Sindical, Social Democracia e CONTAG; e 1 representante dos empregadores, também indicado em regime de alternância pelas Confederações Nacional da Agricultura, do Comércio, da Indústria, das Instituições Financeiras e dos Transportes. Por fim, ainda fará parte dos representantes da sociedade civil um cidadão brasileiro que exerça atividade acadêmica, científica, cultural ou artística, escolhido entre pessoas de idoneidade moral e reputação ilibada, cuja atuação seja notória na área de competência do Conselho.

Esse é o desenho do Conselho. Por isso, a CNBB irá participar.

Obrigado.

O SR. PRESIDENTE (Deputado Chico Alencar) - Com a palavra o Sr. Jacinto Teles.

O SR. JACINTO TELES - Sou Vereador pelo PT na cidade de Teresina, Capital do Piauí.

Meus cumprimentos ao Presidente, ora representado pelo Deputado Chico Alencar, e aos expositores. Está sendo um prazer participar deste evento.

Minha pergunta é endereçada ao Sr. Jorge Hage Sobrinho.

Atuo na área de penitenciárias e fui Coordenador Nacional do Fórum de Ações Penitenciárias, na parte do servidor prisional.

Em nome do Fórum, encaminhamos ao Tribunal de Contas da União denúncia de suposta construção de penitenciária no Estado do Maranhão, mais especificamente em pequena cidade próxima a Imperatriz. O caso, no entanto, estava no Ministério da Justiça, com acesso disponibilizado por meio da Internet: 2 milhões de reais já haviam sido liberados, mas da obra não havia sequer os alicerces, como de fato até hoje não existem.

Lamentavelmente, o TCU nos devolveu a denúncia, não obstante o que dispõe a Constituição sobre qualquer cidadão ser parte legítima para fazer denúncias.

Alegaram que a denúncia fora feita em nome do Fórum, que, embora uma junção de entidades de pessoas jurídicas, não se constitui em pessoa jurídica. De forma que o processo está parado.

A verba foi destinada ao Estado do Maranhão, mas o Município em questão, vizinho a Imperatriz — não me recordo do nome no momento —, não foi sorteado. Esse exemplo pode servir de base para outros. Gostaria de saber de V.Sa. como proceder, sobretudo se já se tiverem passado 5 anos, prazo em que, se não me engano, prescreve o crime de improbidade por autoridades. Pergunto: como formular a denúncia à Controladoria-Geral da União? Mesmo não tendo o Município sido objeto do sorteio, há probabilidade de a Controladoria proceder à investigação?

Por último, reforço o convite a V.Sa. para a conferência a realizar-se em Teresina no dia 16 de dezembro.

O SR. PRESIDENTE (Deputado Chico Alencar) - Pergunto se mais alguém tem alguma questão a fazer aos debatedores.

O SR. ANDRÉ-BOR ROZA - Sou de organização não-governamental e tenho uma pergunta para o Sr. Jorge Hage Sobrinho.

Constrói-se um hospital-geral para 4 Municípios. Passado um determinado tempo, fizeram-se as bases desse hospital-geral, que foram desmembradas por lei. A quem pertence o dinheiro liberado, sem que se tenha concluído o hospital?

O SR. PRESIDENTE (Deputado Chico Alencar) - Mais alguém deseja fazer algum questionamento? (Pausa.) Pois não. Então, encerraremos depois as indagações a esta Mesa, para iniciarmos o painel final.

O SR. DALMO RIBEIRO SILVA - Sou Deputado Estadual e Presidente da Comissão de Ética e Decoro Parlamentar da Assembléia Legislativa de Minas Gerais.

Minhas saudações aos membros da Mesa. É com muita alegria que participo deste primeiro encontro tão importante.

Gostaria de apresentar ao Sr. Jorge Hage Sobrinho uma breve questão relativa aos Municípios sorteados para fiscalização da participação do Governo Federal nas contas municipais.

Minas Gerais tem recebido, com muita satisfação, a participação do Governo Federal na fiscalização dos Municípios.

Sabemos das dificuldades relativas à gestão do dinheiro público. São 5 mil Municípios e inúmeros Vereadores, Câmaras Municipais e sociedades civis organizadas que encaminham às Assembléias, para seus Deputados, solicitação de providências quanto ao mau uso da coisa pública por Prefeitos, etc. Basta dizer que há, em Minas Gerais, a Promotoria Pública contra Crimes de Prefeitos Municipais.

Por isso, indago se haveria outro mecanismo que não seja sorteio. Há muitos Municípios que estão realmente aguardando e que já fizeram denúncias ao Ministério Público e ao Tribunal de Contas da União. Cassação não conseguimos, porque efetivamente é um julgamento político, e realmente o dinheiro público é empregado de forma indevida, para a insatisfação da comunidade.

Meus parabéns a V.Sa. e também ao Deputado José Thomaz Nonô, que muito admiro e acompanho por sua conduta, por ter iniciado, nesta Casa, o Conselho de Ética, o que nos inspirou.

Por fim, destaco a efetiva participação de meu Governador Aécio Neves nesta Casa e também em nossa Assembléia Legislativa, onde conta com grande respeito.

Obrigado.

O SR. PRESIDENTE (Deputado Chico Alencar) - Antes de passar a palavra aos expositores para a conclusão do painel, passo a palavra ao Deputado José Thomaz Nonô, que está sendo chamado a comparecer em outra Comissão.

O SR. DEPUTADO JOSÉ THOMAZ NONÔ - Em primeiro lugar, agradeço ao colega de Minas Gerais a consideração generosa.

Sou admirador do Governador Aécio Neves. Tive o privilégio de ser colega do seu pai e do seu avô e acredito em genética. Embora às vezes o DNA se mude, esse não é o caso de Minas Gerais. O Governador Aécio Neves honra a todos nós.

Foi iniciativa dele exatamente a tramitação acelerada do Código, dispondo de amplos poderes. Conseguimos fazer isso consensualmente no ano atrasado. Enfim, toda essa estrutura — e essas iniciativas que hoje encontram na gestão do Deputado Orlando Fantazzini absoluto eco — foi devida, posso lhe dizer, majoritariamente, à determinação e à vontade política do então Presidente da Casa Aécio Neves, hoje Governador de Minas Gerais.

Minha identidade com Minas Gerais é tão grande que sou agricultor em Iturama. Então, conheço bem o Estado de V.Exa.

Vou fazer rápidos comentários a respeito do que vi. Em primeiro lugar, farei uma consideração de natureza genérica. Sou muito franco. Isso me cria alguns problemas, mas gosto deles. Enquanto os Tribunais de Contas — da União, dos Estados e dos Municípios — se limitarem ao exame formal de contas... Não vou dizer desses órgãos o que maldosamente disse o ex-Presidente Getúlio Vargas. O que se observa é que isso é coisa antiga. Uma vez, um intrépido amigo de Getúlio Vargas disse ao Presidente: "Esse Tribunal de Contas deveria ser fechado, ele não fiscaliza nada". O Presidente respondeu: "Nunca. Onde vou arquivar os meus amigos?" Essa frase é de Getúlio Vargas, não de Lula. Muito menos de Fernando Henrique, que perdeu amigos, mas não perdia a frase.

O grande defeito dos Tribunais de Contas — falo agora como membro do Ministério Público — reside no exame formal. Quem lida no dia-a-dia da política — aqui estão Vereadores e Prefeitos — sabe perfeitamente que, via de regra, a contabilidade do Prefeito gatuno é irretocável. A maior indústria deste País é a de liminar, e a segunda, a de nota fria. Essas são as empresas que prosperam no País.

Por exemplo, para 50 mil metros quadrados de calçamento, existe uma nota fiscal que diz "tantos metros cúbicos de paralelepípedo assim ou assado" e outra nota que diz "serviços prestados nessa rua" e "está não sei onde e não sei onde". Mas em momento algum os nossos órgãos encarregados da auditoria vão ao lugar.

Não presumo que toda prestação de contas formalmente irretorquível é falha — nada disso — , mas conheço, por experiência própria, como dizia o poeta João Cabral de Melo Neto, pelo sofrer, como são essas coisas.

Então, a primeira grande lacuna é não haver fiscalização material. Disso vem um corolário de discussões — como é, como não é, falta gente, tem pessoal —, mas o fato é esse.

Conheço adutoras no Nordeste que devem estar no terceiro andar. Já se fez a encanação do térreo, do primeiro andar, deve estar no segundo ou no terceiro. Também sou doutor nisso.

Há um artifício muito em voga, para o qual os tribunais não atentam. Deixa-se determinada obra para terminar e há um resíduo. Esse resíduo é corrigido na emenda do ano que vem. Na dotação orçamentária do ano que vem, paga-se esse resíduo. E continua a falta física da obra. É assim que obras que deveriam durar 1 ano duram 2.

Quando fui Secretário da Fazenda do meu Estado, que na época ocupou o primeiro lugar em arrecadação durante 31 meses seguidos, tive o prazer de anular 170 concorrências. Como o meu Estado é pequeno, não tem a dimensão de Minas Gerais, pode-se ver fisicamente onde estão os canos, as torneiras, as escolas, os hospitais.

Quando o País fizer auditagem física de obras, estará restaurada a moralidade. Não é preciso nada além disso. A questão é simplesmente verificar se estão lá os mil sacos de cimento, a tonelada de pedra, os tais carros, as coisas diversas.

Meu Estado é sensacional. Acaba de desaparecer um lote de 700 armas compradas com recursos chorados do Ministério da Justiça. Coisa curiosa: fuzis, pistolas para a Polícia sumiram.

Então, o departamento de sumiço deste País também é fantástico. Mas a cada sumiço corresponde uma nota fiscal linda, que está lá, bonitinha. Vivemos nos enganando nesse universo formal em vez de mergulharmos no universo material das coisas.

A segunda questão — e não é da minha seara, é da seara do meu grande amigo Waldir Pires, aqui representado pelo companheiro Jorge Hage — diz respeito ao sorteio dos Municípios. Quero dizer que sou favorável ao sorteio. O ideal é que esses instrumentos de correção e fiscalização — já discutimos muito isso aqui — contassem realmente com pessoal suficiente para, em linguagem popular, dar uma geral, fiscalizar essas coisas. Mas na realidade não existe.

E aí há uma presunção. "V.Exa. é Deputado, representa uma ONG, é Vereador." Sabemos que no universo político qualquer decisão é politicamente contestável. Se se escolhe, por qualquer critério, há suspeita... E aprendi nesta Casa que os gatunos são supra-ideológicos. Há gatunos de esquerda, de direita, de centro, moderado, avançado, conservador, progressista. Há os assumidos, os cínicos, os enrustidos, os embutidos, os discretos, os escandalosos. A sociedade brasileira tem hímen complacente. Esse é outro problema. Não rompe nunca, não cede nunca. Não é possível! São coisas que nos revoltam.

Minha preocupação com a ética é essa. Gostaria que esta Casa fosse a melhor possível. E ela será a melhor possível na medida em que nosso povo tiver estudado mais, lido mais e, sobretudo, for mais bem informado e o Poder Público e o Judiciário cumprirem com suas funções. Temos carências em todos os Poderes. Não vou reeditar aqui a recente guerra entre o Presidente Lula e o Presidente do Supremo, porque ambos já sabem perfeitamente como pelear. Mas que de vez em quando é necessário um saudável estremecimento para que as coisas avancem, é.

O Judiciário também é cúmplice de uma série de barbaridades neste País. O sorteio foi a melhor forma que se encontrou. E digo isso com absoluta clareza. Lamento é que sejam só 50. Gostaria que fossem mais, porque temos quase 6 mil Municípios. Então, realmente é um universo de amostragem pequeno. Mas, vejam bem, é um critério neutro, isento, não se pode dizer que aquela roleta é tendenciosa. Se os Prefeitos sorteados, digamos assim, forem delinqüentes, direi que é uma manifestação da vontade divina. E se não forem, se forem éticos, direi que novamente Deus intercede para proclamar sua lisura. Não conheço nenhum método melhor do que esse.

A rigor, os Tribunais de Contas já têm esse tipo de atribuição de fiscalizar o global. Conheço cada barbaridade nos Estados da Federação! Casos escandalosos, que são chancelados pelos tribunais. Agora, é uma discussão infindável.

Alagoas tem uma vocação autoritária muito grande. O nosso segundo Presidente da República... O companheiro Jorge Hage não conhece isso, pois é um democrata baiano — aliás, democrata baiano é pleonasmo. A Bahia tem muitos democratas, alguns até exagerados. Mas não quero entrar nessa seara. Certa feita, alguns empresários ingleses fraudaram uma concorrência, e o Presidente Floriano Peixoto mandou prendê-los. Naquela época, o Rio de Janeiro era menor. E um juiz mandou soltar. S.Exa. mandou prender o juiz. E quando estavam presos os fraudadores e o juiz, veio uma comissão do tribunal, desembargadores notáveis, e, com muito jeito, aproximaram-se do Presidente e disseram: "Presidente, como V.Exa. sabe, temos habeas corpus". S.Exa. rabiscava um papel, não tirava a vista dele, e as pessoas foram ficando incomodadas com o seu silêncio. Como disse, eram cidadãos notáveis. E aí eles disseram: "O que V.Exa. pensa?" "Estou pensando quem impetrará habeas corpus para os senhores", disse o Presidente. (Risos.) E aí a decisão saiu, digamos assim, de forma expontânea. O ladrão foi punido, e por aí vai.

Portanto, não estou fazendo aqui uma defesa, mas acho que um razoável rigor na lei ajuda.

Vou me despedir, Deputado Chico Alencar, com uma consideração que faço questão de fazer perante qualquer assembléia. Sou do Ministério Público, tenho interesse sobretudo na preservação dos Poderes independentes e harmônicos entre si — às vezes, são menos harmônicos —, mas, sem dúvida alguma, o nosso Poder Judiciário necessita de algum tipo de controle externo.

Nos Estados Unidos, que têm formalmente o sistema judiciário melhor aparelhado, não sei se os senhores sabem, as decisões da Suprema Corte podem ser revistas pelo Congresso Nacional. Ao logo de 250 anos de história, só duas vezes isso ocorreu. Mas é um exemplo de que não há decisão divina, as decisões humanas são falíveis, pouco importa quem as tome.

Outro dia, em uma discussão sobre o controle externo, perguntei a um ilustre Ministro, que foi Deputado Federal — é meu amigo, não vou dizer o nome, mas ele pesa muito, tem uns 140 quilos —, se ele, senhor do peso da sua cultura e da sua massa adiposa, se acomodar sobre um processo, como é que se faz para o processo andar? Desafio que me mostrem no Código o recurso, desafio que me mostrem a medida cautelar, desafio que me mostrem o processo administrativo. E os agnósticos não podem nem devem se queixar ao Bispo nem ao Cardeal, têm de se queixar no sistema jurídico. E perguntei a S.Exa. o Ministro Nelson Jobim o que fazer se ele sentar em cima de um processo. Não tem resposta. E há processos que estão no Supremo há 19 anos. Foi julgado na semana passada, no STJ, um processo que tinha 92 anos. Se não fizermos nada a respeito da autonomia dos Poderes, chegaremos a lugar algum.

Votei no Presidente Lula, confesso o meu desalento com o começo do Governo, confesso a minha decepção com uma série de iniciativas, mas confesso também a minha fé de que tudo tem conserto. E como não há vestibular para Presidente da República, é necessário que ele passe com nota 4,7 nos dois primeiros semestres para ver se se recupera. Senão, daqui a 4 anos, pegam ele, como pegaram todos os outros. Mas o Presidente fez muito bem quando suscitou, digamos que de forma canhestra, esse tipo de inconformismo.

O Conselho de Ética da Casa é também o lugar dos inconformados. Quando o cidadão se sentir agredido, iludido, enganado por aquele em quem votou, ou por aquele em quem o vizinho votou, ou por aquele que o seu Estado mandou, a omissão é tão criminosa quanto a ação. A solidariedade deve ser sobretudo do cidadão. E quando o cidadão se apetrecha, adquire os instrumentos e protesta de forma consciente, a sociedade responde de forma afirmativa.

O que fazemos nesta Casa — e este Seminário é extremamente oportuno — é uma tarefa difícil, amarga, desigual, não é confortável de forma alguma. Mas é necessária para que a sociedade, o eleitor, todos saibamos que a Casa não é complacente com desvios de natureza comportamental. É claro que será aperfeiçoado, à medida que a sociedade exigir. Quando vejo um encontro como este, e estamos apenas engantinhando, esse Conselho tem pouco mais de um ano, tenho certeza de que aperfeiçoaremos todos esses instrumentos.

Mecanismos como o que o Dr. Jorge Hage defende e integra são extraordinários porque oferecem transparência. Quanto mais transparente, quanto mais visível, quanto mais passível de ser apurada eventual irregularidade ou elogiar eventual acerto, melhor para a sociedade brasileira.

O último recado é que os Deputados aqui são exatamente como as pessoas que votaram neles. Digo isso porque como cidadão me irrito profundamente quando as pessoas acusam o Congresso Nacional disso ou daquilo. O Congresso Nacional é formado por pessoas eleitas. Quando pergunto a alguém na rua em quem votou, respondem que não lembram. Devem lembrar, sim. Eu me lembro em quem votei para todos os cargos, não só para Deputado Federal. E se a pessoa votou com tal leviandade que não lhe permite se lembrar em quem votou há dois anos, então merece tudo de ruim que acontece.

Essa é uma manifestação muito franca. Queremos aperfeiçoar a ordem e é com esse sistema que aperfeiçoaremos aqui os nossos instrumentos. E a sociedade brasileira está cada vez mais ativa, mais arguta, mais consciente de suas prerrogativas. Tenho certeza de que, juntos, encontraremos o caminho.

O Dr. Jorge Hage responderá às perguntas dirigidas a ele. Como não há mais perguntas específicas dirigidas a mim, agradeço a oportunidade e volto a pedir permissão para deixar uma questão divina, a ética, por outra terrena, que é a Comissão da ALCA, terrena e dolorosa, antes que os gringos nos engulam.

Muito obrigado. (Palmas.)

O SR. PRESIDENTE (Deputado Chico Alencar) - Agradeço ao Deputado José Thomaz Nonô.

Com a palavra o Dr. Jorge Hage.

O SR. JORGE HAGE SOBRINHO - Sr. Presidente, para facilitar os trabalhos e ganhar tempo, enfeixarei e analisar em conjunto as três perguntas, porque até certo ponto elas são convergentes.

Pergunta do Vereador Jacinto Teles, de Teresina: o que faremos com as denúncias não sorteadas? A pergunta do Deputado da Comissão de Ética da Assembléia Legislativa de Minas Gerais — quero lhe pedir que transmita o meu abraço ao Governador Aécio Neves, de quem tive a honra e o prazer de ser companheiro na Constituinte — também é nessa direção: Que mecanismos, que não sejam sorteios, poderíamos adotar para atender ao volume de pedidos, à demanda que é infinitamente superior à nossa capacidade de resposta? Essa é também parte da pergunta do Sr. André. Posteriormente responderei a outra parte da indagação dele.

O mecanismo concebido na Controladoria, no atual Governo, foi o do sorteio, não porque imaginamos que sorteando 50 Municípios por mês, ou 100, como gostaríamos que fosse, se tivéssemos mais pessoal, déssemos conta do universo de 5.600 Municípios. Isso não seria possível mesmo em 4 anos de Governo. A função do sorteio é exercer o papel de persuasão, de inibição da corrupção e das fraudes e das irregularidades delas decorrentes. As irregularidades devidas ao despreparo são outro problema. Temos de trabalhar com um programa de capacitação, de distribuição de instrução, de cartilhas e de manuais, nos quais estamos começando a investir.

Mesmo nos detendo no campo da corrupção, da fraude, do desvio, a idéia do sorteio objetiva inibir essas práticas em todos os Municípios do País pelo receio de que ele seja o próximo sorteado. Segundo, com isso estamos estimulando o controle social. Como disse no início, a nossa filosofia básica aponta nessa direção. Não temos nenhuma ilusão de que os controles institucionais públicos oficiais sejam capazes de dar conta do imenso problema. Se a população não participar disso diretamente, não teremos condições de dar conta da fiscalização necessária e de alerta em relação a todos administradores desse País. É da combinação desses fatores que imaginamos chegar ao desejável.

Quero também salientar que não trabalhamos somente com o programa de sorteio, temos vários outros. Como o tempo foi muito curto, não pude me deter nos demais. Temos uma atividade chamada Auditorias Sistemáticas, que sempre foi e continua sendo desempenhada pela Secretária de Controle. Temos a Auditoria de Gestão, com avaliação anual dos gestores federais, que também continua atuando. Temos auditorias especiais, em caso de denúncias. Recebemos denúncias e, apesar de estarmos longe de ter condições de responder a todas — temos hoje algumas centenas de denúncias represadas sem condições de atendimento, organizamos forças-tarefas juntamente com outros órgãos, como o Ministério Público, Procuradorias da República nos Estados e Promotorias de Justiça dos Estados.

Já celebramos convênios com todos os Ministérios Públicos dos 26 Estados brasileiros e do Distrito Federal, com todas as Procuradorias de Justiça dos Estados e com órgãos de auditoria e controladoria estaduais. Temos um pedido de convênio com a Auditoria Geral do Estado de Minas Gerais e já está minutado convênio a ser assinado pelo Ministro Waldir Pires e o Governador Aécio Neves, ainda sem data marcada.

Assinaremos convênio com a Polícia Federal, que dá segurança ao nosso pessoal. Essa segurança é necessária, porque os auditores sofrem ameaças. Certa vez, alguns ficaram sitiados dentro de um hotel e só foram resgatados no dia seguinte pela Polícia Federal e pela Polícia Rodoviária. Muitos já foram vítimas de tocais e, em conseqüência, policiais federais ficaram feridos em incidentes no nosso trabalho — a Polícia nos ajuda não só nisso, mas também com seu apoio técnico, sua expertise em prova pericial e tomada de depoimentos, porque nosso pessoal não tem formação nessa função. Então, fazemos uma soma de esforços.

Em Roraima, estamos trabalhando junto com o Ministério Público Federal, Estadual e a Polícia Federal no caso dos "gafanhotos" e no caso do Município de Cantá, onde há um escândalo de grandes dimensões.

Fizemos forças-tarefas em conjunto com esses órgãos em Porto Seguro, que resultou, no último dia 3, no afastamento do Prefeito. O TRF da 1ª Região baseou-se nas provas colhidas pela Controladoria, e o Ministério Público, que acompanhou o trabalho desde o início e entrou com ação de improbidade e obteve seu afastamento. Respondendo à denuncia, trabalhamos em conjunto no Município de Satuba, em Alagoas, terra do Deputado José Thomaz Nonô; no Município de Barra do Corda, no Maranhão; no Município de Cansanção, a Bahia. Também na Bahia trabalhamos nos Municípios de Mucuri e Maragogipe, de onde já foi afastado o Prefeito; no Município de Guamaré, no Rio Grande do Norte; Município de Anápolis, em Goiás; Jacutinga, em Minas Gerais, enfim, um certo número de Municípios têm sido atendidos devido a denúncias.

Sei que estamos muito longe de poder atender a toda a demanda, porque não temos condições materiais. O quadro de auditores, de analistas e técnicos de finanças e controle foi previsto em lei do Congresso Nacional, em 1995, para contar com 5 mil analistas e técnicos. Recebemos a equipe de auditoria do Governo passado com 1.500 funcionários. Foi a atenção dada ao controle nos Governos anteriores.

Restrições orçamentárias sempre existiram, mas se admitia pessoal sempre que se fazia necessário na Receita Federal, para poderem arrecadar recursos da população. No entanto, isso não acontece para controlar a despesa, porque ninguém nunca esteve interessado em controlar despesas. A aplicação de recursos é sempre questão de escolha política — todos nesta Casa, nas Casas Legislativas dos Estados e Municípios sabem disso. Não é verdadeira a afirmação de que não há dinheiro para isso. Há dinheiro para o que é prioridade política em cada Governo. Controle nunca foi prioridade neste País. Por isso, de 5 mil cargos, 3.500 estão vagos.

Sexta-feira se encerram as inscrições para concurso público que deverá preencher inicialmente 300 vagas. Para o próximo ano, já fizemos o pedido para mais 500 vagas. E assim ampliaremos nossa capacidade de dar respostas, mas sem nenhuma ilusão de que o controle, pelo aparato institucional, dará conta do recado. Teremos de contar com o controle da sociedade, do cidadão individualmente, das suas organizações locais, dos sindicatos, associações e conselhos, em cuja legislação temos de mexer para torná-los realmente autônomos e não presididos pela esposa do Prefeito ou do Secretário de Educação, porque isso é brincadeira.

Por fim, registro que o controle físico de resultados, a que se referia meu colega e amigo Deputado José Thomaz Nonô, é o que fazemos in loco. É exatamente essa diferença qualitativa entre o controle praticado hoje e aquele tradicional dos órgãos de controle de contas — que era o controle no papel, da nota fiscal.

Quase toda semana há na imprensa referência às notas fiscais falsas que encontramos, porque as conferimos in loco. Não nos interessa que mostrem a compra feita da merenda escolar, mas vamos entrevistar in loco os alunos, seus pais e os professores para saber se a merenda foi distribuída, por quanto tempo deixou de ser distribuída. Não interessa a nota fiscal mostrando a despesa da obra para a construção de poços e cisternas; há poucos dias, demonstramos que, de 105 poços, só encontramos 40 — 65 não existiam. Se ficarmos só no controle do papel, nunca chegaremos a lugar algum. É também o controle físico de resultado que a Controladoria faz.

Já me estendi demasiado. Agradeço mais uma vez pela honra do convívio com os senhores, pela oportunidade de expor o trabalho de controle interno da Controladoria-Geral da União a platéia tão seleta de representantes dos Poderes Legislativos, das três esferas de Governo, e com presenças tão ilustres como a do Prof. Roberto Romano, do Prof. Ricardo Caldas e de representantes da sociedade civil.

Aliás, falando em sociedade civil, devo-lhe o restante da resposta quanto a saber a quem pertence o hospital que seria construído e que foi desmembrado em quatro Municípios, segundo entendi. Isso depende de exame do caso concreto; não tenho condições de dar a resposta aqui. E também acrescento que, se se tratar de recurso federal, o senhor pode encaminhar a denúncia para nós. Se for recurso estadual ou municipal, aí não entramos.

Agradeço ao Presidente, Deputado Chico Alencar, e a todos os senhores pela paciência e pela gentileza na nossa recepção.

Muito obrigado. (Palmas.)

O SR. PRESIDENTE (Deputado Chico Alencar) - Agradeço ao Subcontrolador-Geral da União e ex-Deputado Jorge Hage.

A sociedade brasileira toda faz grande aposta no controle daquilo que o senso comum identifica como um dos 5 maiores problemas nacionais, que é a corrupção. Avançar nesse sentido é muito importante. Tenho certeza de que V.Sa. e o Ministro Waldir Pires, pela história de vida, são os mais capacitados para liderar esse controle, que também tem de ser da sociedade. Muito obrigado.

Ato contínuo, já instalo nosso último painel, com largo atraso, ressaltando que quem esperou não se arrependerá. Convido o Prof. Roberto Romano, da UNICAMP, e o Prof. Ricardo Caldas, da UnB, para comporem a Mesa e iniciarmos nossos trabalhos.

Registro a presença do Deputado Elimar Máximo Damasceno, de São Paulo. Já estiveram aqui conosco os Deputados Júlio Delgado, João Almeida, Gustavo Fruet, Fernando Gabeira, além da importante presença do Deputado Orlando Fantazzini, que, com sua equipe do Conselho de Ética organizou este tão importante seminário. Parabéns a S.Exas.

Iniciaremos o último painel, porque sei que nossos debatedores têm horário. Torço para que a Ordem do Dia não se inicie no plenário. De qualquer forma, tenho convicção de que será muito proveitoso.

Com a palavra aquele a quem me permitirei chamar de Roberto pela nossa amizade de quase meio século. Muito prazer, Roberto, em vê-lo aqui.

O SR. ROBERTO ROMANO - Em primeiro lugar, agradeço ao Deputado Orlando Fantazzini o convite. O que o Chico disse é verdade: conhecemo-nos em 1966, no Rio de Janeiro.

O SR. PRESIDENTE (Deputado Chico Alencar) - No jardim de infância, digamos, nas primeiras letras.

O SR. ROBERTO ROMANO - Fizemos muita passeata, lutamos contra a ditadura e outras coisas mais.

Quando me foi proposto esse tema, lembrei de 2 autores que me parecem estratégicos para pensar a questão tanto do decorum quanto da ética e, sobretudo, que permitem fazer a ligação da ética parlamentar com a vida civil.

O primeiro é o autor da maior ética moderna: Spinoza, que tem 2 tratados políticos absolutamente importantes: o Tratado Político e o Tratado Teológico-Político. No caso de Spinoza, parece-me importante reter a lição que destaca o respeito e a reverência que os cargos públicos devem suscitar na população. Spinoza tem uma idéia contrária à de Hobbes: quando se faz o pacto político, não se abre mão do direito de natureza; continua-se plenamente um ser natural e um ser pensante. Não existe possibilidade de separar essas qualidades dos seres humanos, porque elas não são só destes; nós somos atributos da substância divina.

Spinoza é monista. Então, quando pensamos, de certo modo, é Deus quem pensa; quando agimos, é Deus quem age. Não existe poder humano capaz de limitar a força dos homens quando pensam e quando agem. Portanto, alienar essa força é um absurdo, no pensamento de Spinoza e contrariamente ao de Hobbes.

Isso leva Spinoza a dizer no Tratado Político que o poder tem que contar com a atitude natural dos homens e não pode modificar sua natureza. É esse ponto que me parece importante. Ele diz: "O Estado tem a força e, portanto, o direito de fazer com que os homens tenham asas para voar ou, o que é tão impossível quanto, que eles considerem com respeito o que excita o riso e o desgosto". Não se pode esperar, exercendo cargo público, que os homens deixem de observar as pessoas.

Por que são importantes o medo e a reverência? Em primeiro lugar, porque nunca — e aí ele também se coloca contra Hobbes — abrimos mão do nosso poder. Cada indivíduo tem poder, cada grupo tem poder, que se exerce no interesse próprio — esse também é um ponto importante —, e apenas e tão-somente por questão de cálculo racional os homens aceitam abrir mão desse poder em função do coletivo. Quer dizer, se essa cessão de poderes não é retribuída e se o Estado não retribui essa confiança, ele deixa imediatamente de existir.

Por isso, uma autoridade que se apresente, do ponto de vista público, como um legislador que não segue a lei é o pior criminoso dentro do Estado; é aquele que impede a existência do Estado; é pior do que o ladrão; é pior do que o assassino, porque a existência do Estado é a única tranqüilidade e segurança dos cidadãos.

Quando os cidadãos, diz Spinoza, percebem que seu interesse, a segurança, a expansão do corpo, a alegria, os saberes, etc., não estão sendo cumpridos pelo Estrado, eles agem de maneira imediata na busca dos seus interesses. Esse é um ponto que me parece importante. O texto está com os senhores e não me estenderei.

Spinoza é leitor e seguidor de Maquiavel. Sobre essa busca dos interesses grupais ou individuais, quando o Estado e os legisladores — ele insiste nisso —, aqueles que fazem as leis, não devolvem aos cidadãos aquilo que se espera do Estado, os indivíduos permanecem na sua situação de massa. Spinoza faz uma distinção muito clara entre povo e vulgo. O povo reunido, obedecendo às leis e contemplando o exemplo dos legisladores e dos governantes, é o povo democrático; o vulgo é quando ele não tem mais essas determinações nem esses exemplos e se torna uma massa furiosa. O povo é temível, diz ele, nessa hora.

Isso é perfeitamente possível de entender quando vemos a situação de países que não conseguem estabelecer o regime democrático, com certeza, e que têm autoridades que não legislam em função do interesse público, mas usam o interesse público para seu interesse particular.

Deixo o Spinoza com um pedido aos senhores, sobretudo aos que trabalham com a questão da ética no Parlamento, para que realmente aprofundem a leitura de Spinoza, porque se trata não apenas de um pensador realista, ao modo de Maquiavel, mas do maior pensador democrático do Ocidente. Não estou exagerando. Nesse caso, temos efetivamente uma fundação de pensamento democrático extremamente realista. Os senhores sabem que boa parte das críticas feitas à democracia, desde Platão, assumidas por Hobbes e pelo pensamento conservador, têm fundamento, não são despropositadas. Nesse caso, temos na profundidade de Platão uma defesa da democracia e, ao mesmo tempo, um enorme realismo no trato dessa questão.

Deixo Spinoza e passo ao mais importante monumento político sobre a sociedade contemporânea e a violência societária, que é o livro de Elias Canetti: Massa e Poder. Trata-se de um expositor frio dos fenômenos que levaram aos desastres nazistas e fascistas e a todas as formas totalitárias e genocidas do século XX. Canetti mostra até que ponto a voragem das massas pode ser conduzida nos genocídios dos campos de concentração onde milhões foram abatidos.

O capítulo de Massa e Poder mais grave para a questão da ética e do decoro parlamentares é o intitulado A essência do sistema parlamentar. Nele, Canetti mostra que a política no Parlamento continua a guerra geral por outros meios. Os senhores sabem que essa tese vem de Clausewitz e define até hoje o pensamento estratégico das potências imperiais. A continuação da política na guerra, como a continuação da guerra na política, são lados complementares, teorizados por Hobbes, por Maquiavel, por Platão e por Tucídides. Mas Clausewitz deu aos dois enunciados sua abrangência máxima.

Em Massa e Poder, o Parlamento é um campo de guerra prolongado. Os partidos constituem a extensão da estrutura psicológica dos exércitos combatentes. A essência parlamentar encontra-se nesse elemento bélico. A diferença encontra-se no fato de que a guerra no Parlamento é feita para evitar a guerra civil. Enquanto nesta última todos podem ser mortos, no Parlamento são escolhidos indivíduos que lutam em nome dos interesses dos seus eleitores, mas não podem ser mortos. Este é o pleno sentido da imunidade parlamentar: em vez das balas e das baionetas, os votos no plenário. Essa garantia repercute na vida civil, que vive sempre em guerra, dando-lhe condições de prolongar a vida.

Citando Canetti: Numa votação parlamentar não há nada a ser feito senão verificar a força de ambos os grupos num mesmo lugar. Não basta que se conheça isto desde o princípio. Um partido pode contar com 360 delegados e o outro com 240; a votação continua sendo decisiva em todos os instantes em que existe uma verdadeira medição. Ela é o resquício do choque sangrento que se expressa de múltiplas maneiras com ameaças, insultos e agressão física, que pode levar a golpes ou a lutas. Mas a contagem dos votos representa o final da batalha. Supõe-se que os 360 tenham triunfado sobre os 240. A massa dos mortos fica fora do jogo. Dentro do Parlamento não deve haver mais mortos. Esta intenção é expressa da maneira mais clara na imunidade parlamentar, que tem um duplo aspecto: fora, em relação ao governo e aos seus órgãos; dentro, entre os seus pares (este segundo ponto geralmente não recebe a devida atenção).

Ninguém jamais acreditou realmente que a opinião da maioria numa votação seja, devido ao seu maior peso, também a mais sensata. Vontade confronta-se com vontade, como numa guerra; cada uma dessas vontades tem a convicção do maior direito próprio e da própria razão. O sentido de um partido consiste justamente em manter vivas esta vontade e esta convicção. O adversário que fica em minoria não se submete porque de repente tenha deixado de acreditar em seu direito, mas apenas porque se dá por vencido. É fácil para ele dar-se por vencido, pois nada lhe sucede. Ele não é castigado por sua atitude hostil anterior. Caso se tratasse de colocar sua vida em jogo, ele reagiria de forma complemente diferente Ele conta porém com batalhas futuras. E o número destas batalhas não tem limite fixado e ele não morre em batalha alguma.

Esta imunidade contra a morte é a essência de todas as demais imunidades parlamentares e a fonte de todas as garantias dadas aos cidadãos que seguem a lei redigida pelo Parlamento, sancionada e imposta pelo Executivo, julgada pelo Judiciário. O sistema representativo só funciona se ela existir. "Ele desmorona", diz Canetti, "assim que algum posto seja ocupado por alguém que se permita contar com a morte de qualquer um dos membros da corporação" parlamentar. Nada é mais perigoso do que ver mortos entre vivos. Uma guerra é uma guerra porque inclui mortos em seu resultado. Um parlamento só é um parlamento enquanto excluir os mortos.

Com a imunidade parlamentar vive e morre o Parlamento de qualquer país.

Na eleição geral, a imunidade estratégica ainda não é a dos eleitores, mas a das cédulas de votação. É permitido influenciar os eleitores de quase todas as maneiras, até o momento em que eles se comprometem definitivamente com o nome de sua preferência, que o escrevem ou que o assinalam. O candidato oposto é ironizado e entregue ao ódio generalizado de todas as maneiras possíveis. O eleitor pode parecer que não se decide em muitas batalhas eleitorais; se ele tiver orientação política, seus destinos variáveis têm para ele o maior dos encantos.

A sacralidade do voto nas cédulas e a votação sem mortes, a imunidade parlamentar afastam a matança que se mantém na vida civil. Todos os votos, o dos cidadãos e dos parlamentares, são anotados em números. Quem joga com estes números, quem os adultera, quem os falsifica, volta a dar lugar à morte e nem sequer se apercebe disto.

Os entusiasmados amantes da guerra, que gostam de fazer pouco das cédulas de votação, confessam desta forma suas próprias sangrentas intenções. As cédulas de votação, da mesma forma como os tratados, não passam de simples pedaços de papel para eles. Como estes papéis não estão manchados de sangue, não têm valor para eles; para eles valem apenas as decisões pelo sangue. O Deputado é um eleitor concentrado; os momentos muito isolados em que o eleitor existe como tal acumulam-se muito mais para o Deputado. Ele existe justamente para votar com freqüência. Mas também é muito menor o número de pessoas entre as quais o delegado vota. Sua intensidade e o seu exercício devem substituir em excitação o que os eleitores extraem de seus grandes números.

Tanto o pensador político do século XVII, quanto o prêmio Nobel no século XX mostram a importância da ética e do decoro parlamentar para a vida em segurança mínima dos homens reunidos em sociedade. Segundo ambos, a guerra de todos contra todos não é abolida com o advento do Estado. Ela continua na vida civil, com toda a violência. O meio para atenuá-la é justamente a tarefa dos legisladores e dos governantes, os quais têm imunidade como se fossem portadores de bandeiras brancas no debate que suspende, no âmbito dos parlamentos, a matança, a cobiça, a rapacidade, os truques que os indivíduos e grupos usam uns contra os outros. Se existe fraude na bandeira, se existem pessoas que se julgam acima dos regimentos e das leis porque investidas da função parlamentar, se existe atentado à ética e ao decoro, desaparece o Estado, instaura-se a morte e a guerra como fruto daqueles atentados. Os senhores conhecem como ninguém a violência tradicional da sociedade brasileira, que se prolonga e agrava em nossos dias. Em nossa vida civil, a morte ronda as relações de vizinhança, de parentesco, comerciais, políticas, ideológicas. A capangagem, a prática do escravismo, o uso de mão-de-obra barata e jovem no tráfico de drogas, a barbaridade do trânsito urbano e nas estradas, as fraudes, o assassinato de mulheres pelos maridos em nome da pretensa honra, o estupro de crianças em pleno lar, os abortos clandestinos que jogam o nada sobre embriões e corpos de jovens mulheres aos milhares, as lutas ao redor da terra, o desprezo pelos pobres postos em mãos médicas canhestras ou de má-fé, o descontrole das polícias cuja opção preferencial é pelos negros e demais negativamente privilegiados, os plágios universitários, a espionagem industrial, e temos uma lista infindável de crimes e práticas letais saídas da caixa de Pandora chamada sociedade civil brasileira.

Nesse universo de tristeza infinita, a confiança na palavra dos governantes e dos legisladores é o único meio de fazer com que os cidadãos abandonem as suas armas ou deixem de ser cúmplices ou vítimas dos que estão fora da lei. Quem frauda um painel de votação ou mente da tribuna, quem se apodera de bens públicos no Orçamento Nacional, quem desvia recursos para sua conta privada comete crime de lesa fé pública e de golpe contra o Estado. Quem promete algo nos palanques e pratica o seu oposto nos palácios dá um passo tremendo rumo à redução do povo soberano ao estatuto de vulgo sem dignidade. Ensina que a palavra dada não tem substância. E sem palavra confiável não existe Parlamento, porque o próprio nome, Parlamento, é o lugar que sucedeu a prática racional grega do logos, do discurso racional que tranqüiliza e protege os cidadãos. É isto que diz Canetti ao criticar os que adulteram votos. Eles, na verdade, desejam regimes sem votos, regimes onde o único voto permitido é a morte na guerra de cada um contra todos.

Citei o ensinamento de Spinoza e de Canetti para introduzir o nosso problema, justamente numa Casa abalada nas últimas décadas por gravíssimos atentados à ética e ao decoro. Em termos pessoais, como professor de ética na universidade pública, não me furtei à crítica e à análise pública daqueles problemas. Fui inclusive processado por um de seus pares porque não me calei diante de atentados às exigências éticas. Absolvido pela Justiça, continuo acreditando que o Parlamento é a via para atenuarmos a guerra de todos contra todos, gravíssima no Brasil. Se o Estado perde sua força e a fé pública, ganham terreno as potências da morte genérica, vencem os bandidos. É sintomático que as quadrilhas organizadas dominem parte do território de nossas grandes cidades, definam espaços de quase soberania — inclusive arregimentando colaboradores nos 3 Poderes oficiais — na mesma proporção em que a cidadania perde a confiança no regime democrático e na política. Se fracassar no Brasil a vida dos parlamentos, a voragem da morte levará nossa esperança de vida, em primeiro lugar, e de vida livre e digna.

É por esse motivo que saúdo os promotores deste evento e todos os senhores. Saúdo na iniciativa de se discutir a ética e o decoro parlamentar, o Estado democrático de direito, sonho dos cidadãos honestos de nosso País.

Muito obrigado. (Palmas.)

O SR. PRESIDENTE (Deputado Chico Alencar) - Agradecemos ao Prof. Roberto Romano a participação.

Convido o demiurgo deste encontro, um lutador em prol da ética pública, a assumir lugar à Mesa.

Com a palavra o Prof. Ricardo Caldas.

O SR. RICARDO CALDAS - Antes de começar a exposição, quero agradecer ao Deputado Orlando Fantazzini, aqui representado pelo Deputado Chico Alencar, o amável convite, e também dizer que, para mim, é uma honra e um privilégio estar nesta Comissão.

Fiquei muito honrado em ter participado da Comissão de Reforma Política e muito satisfeito em saber que ela já aprovou, em texto preliminar, ponto que tive a oportunidade de defender na própria Comissão: a reforma global. Havia ficado um tanto surpreso ao perceber que a reforma estava sendo discutida pouco pontualmente. Na minha visão, ela tinha de ser discutida sob perspectiva global, voltada para o cidadão. Na ocasião, disseram que a minha visão era minoritária, que não teria nenhuma possibilidade de ser aprovada. No final das contas, acho que a sociedade brasileira foi a vencedora.

É sobretudo uma honra estar ao lado de pessoa tão ilustre quanto o Prof. Roberto Romano. Tenho certeza de que minha apresentação não terá o mesmo brilhantismo da de S.Sa. Ainda assim, peço aos presentes que sejam pacientes e me cedam cerca de 15 ou 20 minutos de seu tempo. (Pausa.)

Pretendo mostrar um pouco da visão histórica da ética e como a ética, de certa forma, não mudou ao longo do tempo. Pretendo mostrar também como se conceitua a ética hoje e qual a nossa necessidade de ética. Falarei ainda sobre o que, no meu entendimento, se denomina de crise da ética moderna — não sei se o Prof. Roberto Romano terá oportunidade de me corrigir.

Basicamente, falarei da origem do termo, do que poderíamos entender por ética, e de como ela evoluiu.

Vamos passar para o segundo (inaudível). Isso pode se traduzir de duas formas... (inaudível) e também outros valores e propriedades de caráter. Esse tipo de tradução dá origem também a entendimentos diferenciados sobre o que viria a ser a ética.

Se analisarmos do ponto de vista dos costumes, o que teríamos? O estudo dos costumes não nos auxilia a conhecer a moral nem a compreender a ética. Ou seja, simplesmente falar quais são os costumes de uma sociedade não nos diz o que é certo ou o que é errado. Costumes referem-se simplesmente a usos e tradições e, em princípio, deles não poderiam vir, ou advir, uma noção de ética, ou de ética pública, o termo sobre o qual me convidaram a falar.

Na tradução para o alemão, por exemplo, utilizou-se algumas vezes a palavra sitten, que refere a costumes, mas no sentido de moral superior baseada nas tradições e costumes. Daí também a dificuldade em se obter conceito ou visão do que realmente seria a ética.

Outra visão, a que de certa forma prevaleceu, foi a de Aristóteles, de que ética seria a propriedade de caráter. Nessa perspectiva, a ética representa os estudos sobre o ethos nesse sentido ou sobre a propriedade de caráter, porque essas poderiam ser boas ou más. E daí vem todo o estudo que os antigos chamavam de virtudes ou vícios.

É interessante que o conceito de ética ficou tão difundido ao longo do tempo que se formos verificar, por exemplo, no Dicionário de Política, de Bobbio, talvez a fonte mais conhecida, mais legítima e mais bem vista na área de Ciência Política, ele nem sequer menciona o termo ética.

Na acepção corrente, poderíamos entender ética simplesmente como o estudo dos juízos da conduta humana, a qual pode ser qualificada como boa ou má, seja de forma relativa, ou seja, vendo de sociedade para sociedade, ou vendo a conduta como boa ou má de uma forma absoluta.

A grande dificuldade da ética antiga e da ética moderna, já adianto, é a questão de como definir bom ou ruim, boa ou má. Quer dizer, o que é uma atitude boa, o que é uma atitude má? Esse aspecto terá reflexos tanto na vida privada do indivíduo quanto também na vida pública da pólis, ou no caso aqui, do Parlamento.

Observamos uma grande confusão das pessoas entre o que é ética e o que seria moral. A ética seria, como vimos, o juízo da conduta humana. E o que seria então moral? A moral poderíamos definir como um conjunto de regras, costumes e valores que prevalecem ao longo do tempo em um certo período: a moral vitoriana, a moral nazista, a moral helênica, etc. Ou seja, ela está associada a uma dada sociedade, a um certo período.

Aí chegamos ao ponto de o que seria a ética na Antigüidade. Para os gregos, a idéia de ética está diretamente associada com a política. Como já foi mencionado pelo Prof. Romano, a questão da ética e da política é porque ela permitia os grandes debates. Então, os conflitos deveriam ser trazidos a público e ser manifestados na pólis. Daí a importância da oratória, que era a maneira como as pessoas poderiam se manifestar, e até mesmo havia, de certa forma, uma luta, mas só que era uma luta oral, não era uma luta das armas. Isso já foi mencionado aqui.

O que seria então a política na visão antiga? A política visa ao bem-estar da sociedade. Esse conceito é tão importante, tão caro e tão difícil de ser definido. O que é bem-estar? Diria que os conceitos mais importantes da Ciência Política, especialmente a Ciência Política contemporânea, têm dificuldades em serem definidos. O que é um bem público? O que é um bem comum? Existe ou não uma vontade geral? Essa é uma das grandes discussões em Ciência Política.

Com essa perspectiva de bem-estar da sociedade, então, a ação de governar e propor leis estaria comprometida com a preservação dessa mesma cidade, combinada com a aptidão para comandar com sabedoria e justiça.

Outro conceito quase que praticamente impossível, e talvez o Prof. Romano tenha outra opinião sobre isso, é definir o que seria justiça. A justiça é algo que as pessoas têm a impressão se ela existe ou não, mas é difícil medir, é difícil definir, é difícil quantificá-la. O que acho interessante nessa visão é a política voltada para o bem comum, o bem-estar, e baseada na idéia de sabedoria e justiça.

O que seria político na Antigüidade? Acho importante resgatarmos esse conceito — fico me considerando cada vez mais um saudosista, eu já me considero um defensor dos velhos tempos nesse sentido, o professor falou dos conservadores —, o político é o homem de bem. Então, diria que perdemos essa noção tão simples, tão básica e tão importante na Grécia Antiga, na Antigüidade, etc. E hoje temos até dificuldade. Quando as pessoas falam isso, as pessoas pensam: "O fulano é um ingênuo, ele não sabe das coisas que estão acontecendo". Mas, na verdade, essa era a razão verdadeira da política, era a essência da política. Trouxe aqui, mesmo correndo o risco de, ao final, ser taxado de ingênuo, ultrapassado, etc. Não faz mal.

Esse político converte a experiência na disposição para a prudência, entendida como a ciência prática do legislador. Vejam então algo mais interessante: o legislador tem que estar voltado para o bem-estar da sua cidade; logo tem que legislar com prudência.

Aqui, a tradução perante cada situação, ou problema descoberto, a virtude de deliberar com pertinência a respeito do existente e do eventual, a fim de esclarecer o critério justo de ação política. Vejam novamente a idéia de justiça implícita na ação política. Ou seja, o legislador atua em função dos casos existentes, mas também em função de casos futuros. A intenção é que haja uma lei geral, justa e que seja aceita por todos.

É claro, é óbvio — não precisaria dizer, porque todos sabem disso —, que a Justiça é um dos princípios gerais do Direito, mas, às vezes, as pessoas não percebem isso. Então, o que seria a lei? A lei seria a prudência aplicada ao governo da cidade. É interessante essa visão.

Como poderíamos relacionar ética e política? A política estaria associada a uma vida bem conduzida. Vejam que aqui, mais uma vez, temos a idéia de uma ação valorada, o que seria uma vida bem conduzida ou mal conduzida? Novamente a idéia de valores, ou seja, alguém opinará sobre esse valor. E aqui discuto outro ponto, já mencionado pelo Prof. Romano, a política unindo-se à ética na retórica. Assim, a retórica seria o objeto do debate. Para Aristóteles, ela contribui para definir, digamos, uma potência humana, ou dito de maneira mais moderna, para potencializar o indivíduo.

Os torneios oratórios substituíram a resolução violenta dos conflitos, como bem disse o professor aqui, o Parlamento dá origem a lutas, a brigas, etc., mas em muitos casos são lutas por valores, lutas por idéias, lutas por ideais. Enquanto as pessoas estiverem lutando no Parlamento, a harmonia social está garantida.

O uso da palavra enuncia um projeto. A palavra pode ser de crítica, de denúncia, de reforço da autoridade e até de constituição da capacidade de manifestar o justo e o injusto. Vejam novamente a idéia de justiça trazida à vida política. Ou seja, não se pode falar em vida política sem se ter em mente o conceito de justiça ou conceito de ética.

A política ética na teologia medieval.

Outro ponto interessante, porque já se tem uma mudança de perspectiva. Na Idade Média, havia a idéia de uma ordem superior imposta a todos por Deus, sob a forma de lei. Ou seja, todo Poder vem de Deus. O advento e o sucesso do cristianismo acabou levando essa nova perspectiva a tomar corpo na Filosofia. Pouco antes, em Roma, havia o reino de César, temporal. Na Idade Média, surge mais um: o reino de Deus, espiritual. Ambos seriam continuação dessa perspectiva de visão divina. Nasce uma nova forma de governo: a teocracia. Hoje, alguns dizem: a teocracia é uma coisa ultrapassada, velha. Mas até hoje existe no Irã, Arábia Saudita e em outros países. A legitimação do regime se dá então pela palavra de Deus. Passa-se então dos civitas para o de regnu, de cidadão para o de reino, ou seja, a idéia de reino onde o cidadão passa a ser um súdito. Haverá um senhor para o qual se presta um serviço de vassalagem, e o reino, a idéia de Cristo Rei, a idéia da cidade de Deus.

Não preciso nem dizer que o maior defensor dessa perspectiva foi justamente Santo Agostinho. Forma-se então uma espécie de oposição entre a lei divina e a lei humana. O que seria a cidade ideal na concepção de Santo Agostinho? O que ele diz? Aquilo é modelo de cidade, mas nós nunca vamos alcançá-lo. Porém, isso não quer dizer que não devamos perseguir esse ideal. Ele é o nosso objetivo.

Uma cidade perfeita seria aquela baseada nas escrituras, que se contraporia à decadente cidade humana, onde a lei divina foi degradada. Esse modelo, o sonho de cidade ideal, também está presente em Platão.

São Tomás de Aquino retomou a visão aristotélica de bem comum. Difere na parte em que São Tomás de Aquino diz que política consiste no aprendizado da legislação justa, do ordenamento das coisas e dos homens, tendo em vista o bem coletivo e a justiça divina.

Vejam que independentemente do período histórico, alguns conceitos são perenes, ou seja, a idéia de justiça permanece, a idéia de legislação voltada para o bem comum permanece. Apenas na perspectiva medieval, ou logo depois, Deus é o legislador de todas as coisas. Ele vai impor a lei eterna, a lei divina.

Existe o governo divino que visa o bem comum. Não se trata de mais um modelo, agora é uma possibilidade. Então, para São Tomás de Aquino, as pessoas deviam implantar esse governo divino na Terra.

Com o advento da modernidade e o nascimento do Estado moderno, surgem outras correntes de pensamento, como o humanismo e o racionalismo. Essas formas de pensamento reestruturarão completamente a perspectiva política. É o início da separação do religioso e do político, como já havia ocorrido de certa forma na Grécia Antiga e em Roma. Agora, volta a se separar dentro de uma nova perspectiva.

Alguns autores, e não desejava entrar nessa discussão, talvez a maior parte deles, apontam O Príncipe, de Nicolau Maquiavel, como o ponto de referência dessa divisão. Por que Maquiavel? Porque ele busca a verdade das coisas. Maquiavel não aceita mais a idéia de uma verdade divina, de uma lei divina. A política é governada por outras leis que não as leis divinas. As leis políticas são próprias. Aí Maquiavel estabelece a divisão entre a moral e a política. A partir daí, certos atos realizados pela política estariam justificados. Não seriam justificados do ponto de vista do indivíduo, mas politicamente são aceitáveis. Então, como mencionei, política e moral estão separadas. E o príncipe — talvez seja o melhor exemplo disso —, para se manter no poder, pode recorrer a várias artimanhas, como exercer todo o mal de uma vez só e o bem aos poucos.

Surge então Spinoza, bastante citado aqui. Não quero me alongar neste ponto, apenas chamar a atenção para um aspecto interessante. Ele muda e por isso é considerado um dos maiores pensadores da questão ética. Ele muda o conceito de Deus e de ética. Começa a falar que Deus é o Universo, e alguns autores dizem que a posição dele se aproxima de algo que lembraria o panteísmo. No entanto, ele vai mais além, e esse é o ponto interessante, porque ao mesmo tempo em que diz que Deus é tudo, Deus acaba não sendo nada; se Deus está presente em todas as coisas, ele também não está presente em nenhuma, ou seja, ele acaba tirando o aspecto divino de Deus. Tanto isso é verdade que ele diz: o homem existe para ser feliz. Ora, se Deus nunca disse isso, a perspectiva é mundana, não é mais divina — essa é uma interpretação.

O que o homem busca para ser feliz? Ele busca o prazer e a ausência de dor, que não são conceitos divinos, mas conceitos individuais, completamente opostos àquela perspectiva. O homem bom e feliz, o homem sábio que busca o conhecimento também não são objetivos de perspectiva divina. Todo homem deve amar a si mesmo e procurar o que é útil. É a concepção utilitarista da sociedade centrada no homem e não em Deus. Ao mesmo tempo em que Spinoza fala da importância de Deus acaba de certa forma dessacralizando o Divino, ao mencionar e valorizar princípios humanos.

Nietzsche é outro autor que merece ser citado, e evidentemente não posso citar todos. Talvez Nietzsche represente o fim de um ciclo quando diz que Deus está morto. Ele acaba completamente com qualquer elo possível e imaginário, qualquer associação entre Deus e a sociedade. Ele considera o cristianismo uma doença social destrutiva, porque transforma homens em ovelhas, em pessoas passivas. Afirma ainda que não é isso que precisamos; na verdade, precisamos de super-homens. Ele radicaliza bastante sua vida, sua perspectiva. Para Nietzsche, o homem deve atingir o seu mais alto potencial e sem nenhum limite, vejam só. Aqui ele menospreza completamente qualquer noção de ética. O que é ética para Nietzsche? A moralidade do indivíduo está acima do bem e do mal. Isto é, o indivíduo está livre para agir conforme a sua consciência determina. Esse ponto me lembra muito, não sei se o Prof. Romano concorda, a idéia do Leviatã, de Hobbes: o imperador, o soberano não tem limitações; ele age conforme a sua consciência. Então, esse super-homem está acima do rebanho. Ele não é mais prisioneiro dos costumes nem da moral. Toma suas decisões éticas baseado em sua própria moralidade, que não é imposta pela sociedade.

Vejam o risco a que chegamos: é o completo o desaparecimento da ética. Não preciso dizer — a maioria dos senhores e senhoras sabe disso — que Nietzsche é considerado por muitos, e me incluo nesse grupo, como um dos principais inspiradores do regime nazista. Vejam então que a idéia de ética, de bondade ou de moralidade simplesmente desaparece, em razão desse super-homem que, no caso, alguns autores consideram como o homem ariano, o homem nazista.

Próximo. Chegamos à ética na sociedade política contemporânea. E tomo a liberdade de citar Marx Weber, um dos autores que considero dos maiores sociólogos de todos os tempos, não só século XX, mas talvez de todo o período contemporâneo. Weber dizia que existem dois tipos de ética: a ética da convicção e a ética da responsabilidade. O político jamais pode ter a ética da convicção. O político, por exemplo, jamais pode ser um pacifista. Por quê? Porque em alguns momentos ele pode ter de tomar uma decisão que vai acarretar a morte de pessoas, como no caso de uma guerra. Se ele for um pacifista, ele vai pensar: não posso agir dessa forma, porque contraria os meus princípios. Weber diz que o homem político tem de ser pragmático. E eu poderia citar como exemplo Gandhi, ótimo para libertar a Índia da dominação britânica, mas talvez um mau Primeiro-Ministro em virtude das decisões que teria de tomar.

E o que ele diz ? Que o político deve atuar em razão da ética da responsabilidade. E o que seria essa ética da responsabilidade? Ele deve estar consciente de que suas ações terão efeitos nas gerações seguintes.

Aproveito a oportunidade para citar um caso real. Durante a Segunda Guerra Mundial, Churchill recebeu informações de que os nazistas iriam bombardear uma cidade próxima a Londres. Ele tinha também a informação de que nessa cidade haveria um culto com cerca de 300 pessoas no momento do bombardeio. Se houvesse o bombardeio, essas pessoas certamente morreriam. Sempre um exemplo nas discussões sobre ética, a pergunta é a seguinte: o que Churchill deveria fazer? Avisar as pessoas sobre o iminente bombardeio e, com isso, salvar vidas humanas, ou permitir o bombardeio e manter em segredo a decifração do código dos nazistas e, com isso, possibilitar que futuros segredos militares fossem desvendados?

Não preciso dizer qual foi a opção do Churchill. Ele fez a opção pela última alternativa. Ou seja, deixou a cidade ser bombardeada; talvez centenas de vidas tenham sido afetadas pelo bombardeio nazista. Mas o que ele poderia argumentar a seu favor? Eu agi com a ética da responsabilidade. Aquelas vidas humanas perdidas no bombardeio foram a contribuição do Reino Unido para a derrota do regime totalitário nazista. Então, ele não agiu conforme a ética da convicção, mas conforme a ética da responsabilidade proposta por Marx Weber.

Próximo. Chegamos ao ponto final. Quero manter-me fiel à minha promessa de falar em torno de 15 minutos, para não perder a atenção das senhoras e dos senhores. Quero referir-me agora à crise da ética que vivemos hoje.

Por que existe essa crise da ética? Porque não temos mais nenhum referencial. Como não existe mais uma relação entre moral, religião, bons costumes, o que é certo, o que é errado, as pessoas se sentem sem ter que dar satisfação dos seus atos. Ah! Mas existe a lei. É claro que existe a lei. Mas sabemos também que nem todas as pessoas seguem a lei na esfera privada.

Então, quais são as grandes questões do nosso tempo, tanto no final do século XX, quanto no início do século XXI? Eu ousaria dizer que as grandes questões do final do século XX e do século XXI são as questões éticas. Quem em parte traz para nós essas discussões, por exemplo, mas não apenas eles, são os ecologistas. Quando os ecologistas falam: temos de pensar nas próximas gerações, eles estão atuando de maneira ética, ou seja, estão preocupados com a ética da responsabilidade no sentido weberiano. Não sei se eles sabem disso, mas estão seguindo a segunda versão da ética do Weber.

Direitos humanos. Neste particular, quero destacar o papel importantíssimo das organizações internacionais, da Comissão de Direitos Humanos da ONU. Quando alguém cria uma carta de direitos humanos, traz a questão da ética para o primeiro plano. Se, em muitos casos, o príncipe abandonou a moral para simplesmente seguir a razão do Estado, as organizações internacionais tentam resgatar essa moral e ética perdidas.

Não quero entrar na discussão se os direitos humanos devem ser vistos de uma perspectiva universalista, globalista ou se são relativos, variam de cultura para cultura — essa é outra discussão —, o que quero ressaltar a importância de se resgatar o conceito de direitos humanos. Por exemplo, a questão do aborto. Deve haver aborto legal ou não? Nos Estados Unidos, até hoje não há legislação federal sobre aborto — alguns Estados possuem, mas a União, não. Todas as decisões importantes sobre aborto nos Estados Unidos foram tomadas pela Suprema Corte. A questão da eutanásia, também uma grande polêmica, a questão da bioética, a questão de transgênicos ... Vejam o paradoxo do final do século XX, início do século XXI: a ciência avançou tanto, é até capaz de criar vidas em laboratórios, e o cientista, que não tem de dar satisfação a ninguém dos seus atos, agora está sendo premido por questões éticas.

Até que ponto ele pode criar uma vida humana? Não temos resposta para essas questões, porque a ética está em crise. Por isso, é importante resgatarmos o conceito de ética.

Estamos vivendo a questão da guerra no Iraque. Quantas vidas foram perdidas em virtude da política externa ou do interesse nacional de uma potência imperial?! Como a sociedade internacional reage a esse fato?

"Ora, mas existe a Organização das Nações Unidas", dirão alguns. Com certeza, existe a ONU, mas o que a ONU fez relativamente à atuação concreta de um Estado? Nada. Ela se viu paralisada. E somos novamente obrigados a resgatar Hobbes: quem falou mais alto foi aquele que tinha a força, o poder, tinha o maior exército do planeta.

Mas será que é esse tipo de sociedade que queremos? Será que nós queremos ser governados pela força, por um modelo de democracia, por um estilo de vida que não é o nosso? Não quero entrar no mérito da questão — se gosto ou não do Governo Bush; não tenho nada contra nem a favor, pelo contrário —, mas quero mencionar uma ação específica sobre a qual acho que vale a pena todos refletirem. Uma das primeiras ações que ele tomou após a vitória, não para Presidente em 2000, mas para a Câmara e o Senado em 2002, foi uma nova lei que restringe os direitos humanos. Hoje, nos Estados Unidos, qualquer indivíduo pode ser detido pelos órgãos de segurança baseado apenas em forte suspeita, para ser investigados se praticou algum ato terroristas ou se nele está envolvido. E o indivíduo pode ficar — não sei quantos exatamente — talvez mais de 30 dias preso sem ter um processo constituído contra ele. Isso é gravíssimo. Nem em nosso regime militar chegamos a esse ponto.

Agradeço mais uma vez ao Dr. Pinotti e aos senhores a presença. Estou à disposição, caso haja alguma pergunta.

O SR. PRESIDENTE (Deputado Chico Alencar) - Agradecendo aos Profs. Ricardo Caldas e Roberto Romano, reiteramos que as exposições foram riquíssimas, muito instigantes e valiosas, produziram um nível de reflexão que, no pragmatismo do Parlamento, nem sempre acontece.

Temos 30 minutos para os debates, respeitando o horário de partida dos nossos convidados e o da sessão plenária da Casa, que terá Ordem do Dia. Vou insistir na sistemática que o Deputado José Thomaz Nonô, de forma rebelde — S.Exa. é um revolucionário do PFL —, impediu, que é um conjunto de indagações. Peço aos debatedores para registrarem as perguntas. Depois, faremos as considerações finais.

Está franqueada a palavra ao Plenário para a formulação de perguntas.

Com a palavra a Sra. Adísia Sá. Seja bem-vinda.

A SRA. ADÍSIA SÁ - Boa-tarde. Eu sou a professora e jornalista. Valeu a pena ter saído ontem do Ceará e retornar amanhã para assistir a esse encontro. O coroamento, sem sombra de dúvida, ocorreu agora, quando se fez uma reflexão sobre ética, a parte justamente de que estamos precisando: da teoria e da provocação.

Tenho duas perguntas a fazer. A primeira é dirigida ao Prof. Romano. O Prof. Romano fez uma análise do quadro político-social do Brasil, dando uma visão panorâmica desse quadro que tanto nos angustia. Mas, como um pensador, ele não nos deu uma resposta — apenas nos provocou, nos instigou. Como eu ainda me ligo muito a Marx, e nós já explicamos muito o mundo em uma das suas teses sobre Feuerbach, agora chegou o momento de mudar o mundo. Pergunto ao professor: neste quadro, nós não temos um caminho? Que caminho seria esse?

E ao Prof. Caldas farei a outra pergunta. Costumo, em "n" palestras que tenho feito pelo Brasil sobre ética — que é minha área predileta, fora a do jornalismo —, dizer que sou muito feliz com esse momento de grande impacto e de tragédia humana que vivemos, em que nada está — ainda o velho Marx &mdashest;á sustentado, tudo está se esvaindo. Neste momento de contradições, neste mundo de indagações que nos cerca — indagações que levam as pessoas de pensamento a uma angústia filosófica e existencial —, sinto-me feliz. Tudo está se esgarçando, tudo está sendo destruído, tudo está desmoronando. Pergunto, então, ao Prof. Caldas: este momento de hecatombe epistemológica, existencial, política, não será um parto, não estaremos partureando uma nova ética?

Muito obrigada.

O SR. PRESIDENTE (Deputado Chico Alencar) - Obrigado. Alguém mais?

O SR. ANDRÉ BOR-ROZA - (Exposição em espanhol)

O SR. PRESIDENTE (Deputado Chico Alencar) Mais alguém? (Pausa.)

Então, permitam-me algumas palavras. Os nossos professores foram os gregos; passamos por Spinoza e chegamos a Weber. Agora, eu quero "tupiniquinizar" a questão.

Na sua origem, a República brasileira foi fortemente influenciada pelo positivismo. E o positivismo tem um elemento autoritário forte no exercício da política. E o certo é que chegamos ao início do século XXI com uma inegável crise da representação.

Senso comum: todo político é ladrão. Há até uma música gravada pelo sobrinho do Tim Maia que diz: "Manuel foi para o céu.... se eu fosse um político minha vida não estaria assim". A gente dança distraidamente e é subtraído em tenebrosas transações...

A minha indagação é muito imediatista talvez. Será que há elementos para se perceber, no Brasil de hoje, de democracia formal — democracia formal que na República Velha garantiu o predomínio oligárquico —, do século XXI, inclusive com a troca de guarda no Palácio do Planalto, aqui ao lado, possibilidades concretas de avançar nessa questão comezinha da ética na política? Que passos este Parlamento, por exemplo, poderia dar no sentido de avançar nesse aspecto, para ganhar credibilidade?

Hoje de manhã, Presidente João Paulo Cunha, abrir este seminário, disse que o Poder Legislativo é o mais aberto, o mais transparente e, por isso, apanha mais. Mesmo assim — e parece até erudição pequenininha de musicólogo —, todo mundo diz que o Parlamento não é a Geni nacional. É ótimo ser Geni. Ninguém ouviu a música, nem percebeu a letra do Chico. A Geni era mal vista, mas era fundamental: ela é que salva a população. No entanto, não é bem isso o que o povo pensa de nós. Não somos nem Geni — e nós contribuímos para isso, no exercício do mandato.

Concretamente, para essa representação ser mais substantiva, para o povo se identificar um pouco mais conosco, para afastarmos de vez o perigo do autoritarismo, para aquela frase muito bonita do Mário Covas — não sei se perceberam, gravada em bronze no hall do Anexo II desta Casa, "Com todas as mazelas, com todas as mediocridades, é melhor um Parlamento do que nenhum Parlamento" — ser confirmada, que avanços os senhores nos recomendariam, como cidadãos que estão lá na base? Porque tenho certeza de que a Comissão de Ética e Decoro há de tentar também, durante o nosso mandato, melhorar essa concepção.

O SR. DEPUTADO ORLANDO FANTAZZINI - Deputado Chico Alencar, permita-me fazer um questionamento que muito me preocupa. Andei refletindo sobre essa questão da ética da convicção e da ética da responsabilidade. Parece-me que muita gente, sob o manto da ética da responsabilidade, justifica tantas mazelas, tantos desrespeitos e tanto aviltamento à dignidade humana. Hoje, isso deve estar prevalecendo nos Parlamentos em geral e não só aqui no Brasil. E podemos fazer menção aos Parlamentos americano, inglês e tantos outros, que apóiam a invasão ao Iraque, o genocídio. Será que essa ética da responsabilidade não é uma criação para justificar a falta de ética na vida cotidiana dos Parlamentos e da sociedade como um todo?

O SR. ALBERTO ARAGÃO - Boa-tarde.

Quero parabenizar os presentes e dizer o seguinte.

Pegando a deixa do Deputado Orlando Fantazzini, falamos da ética da convicção e da ética da responsabilidade, mas me parece que temos duas ordens: a ordem do dever ser, do ideal, e a ordem da realidade. E ainda podemos falar da ética da efetividade. Seria a concretude, a realização dos propósitos, dos princípios incluídos na Carta Magna para o cidadão. A ética da efetividade dos direitos talvez seja um ponto importante.

O SR. JAIME FERREIRA LOPES - Sou assessor da Comissão de Desenvolvimento Urbano e Interior da Câmara dos Deputados.

Pelas exposições aqui proferidas, também dá para apreender isso. A sensação que vivemos hoje é a do império do pragmatismo, não só na política, mas também no contexto da vida em geral. Hoje, ser pragmático se tornou um caminho louvável que deve ser sempre perseguido. E, às vezes, em nome ou a partir dessa visão de que se deva ser pragmático sempre, a ética vai para o espaço. E quando, às vezes, alguém se coloca contrário a essa visão, é tachado de jurássico, de não ser moderno.

Então, como sair dessa contradição — e essa seria a minha indagação — ao mesmo tempo, sem perder a capacidade de ser pragmático? Em alguns momentos, isso é necessário, mas não como norteador da vida política.

O SR. RUY SIQUEIRA - Sou Professor de Ética do UniCEUB e Secretário da Comissão de Direitos Humanos.

Quero fazer uma pergunta ao Prof. Ricardo Caldas. Nessa crise dos paradigmas que vivemos atualmente, a crise da ética, enfim, em outras instâncias — parece que foi trazida a questão da simpatia pelo conceito tradicional —, a pergunta é a seguinte: o que seria esse retorno à simpatia, ao conceito tradicional? Eu tenho um problema sério. O senhor em Estados teocráticos. De novo, é velha a idéia etnocêntrica, que é o islâmico. E esquecemos que a modernidade não deu conta dessa superação do Estado teocrático. Em algumas Constituições dos países nórdicos — estou falando da Europa moderna —, está inserida no preâmbulo a idéia da igreja reformada. No Preâmbulo da Constituição brasileira está a inscrita a palavra Deus. A minha pergunta é: nesse retorno ao conceito tradicional, é possível construir uma ética desvencilhada dessa cultura cristã, tão forte e presente na moral e na ética, por exemplo, e até mesmo no Direito, sobretudo positivista?

O SR. PRESIDENTE (Deputado Chico Alencar) - Vamos agora para a etapa final, ouvindo primeiramente o Prof. Roberto Romano.

O SR. ROBERTO ROMANO - Diante de todas as perguntas, a começar pela da Sra. Adísia Sá, gostaria de fazer uma profissão de fé.

Sou adepto das luzes do século XVIII e sou platônico. Por que sou platônico e adepto das luzes? Porque acredito que a vida humana é uma produção técnica. Ela é uma produção de arte. Em Platão, o demiurgo é um technist. Ele produz o cosmos, e o faz com tamanho engenho e arte que fica contente, porque o mundo é bonito, ele vale a pena.

Na base dessa máquina do mundo, exposta no Timeu, ele propõe a República. A República é uma máquina de viver bem. É uma técnica produzida para que as pessoas vivam bem e felizes. Nessa perspectiva, governar — ele usa uma metáfora de ordem técnica — é tingir almas com a tintura das leis. Por quê? Se alguém apenas colore o exterior do corpo, o sol vai embora e desaparece o respeito. Mas se tinge as almas com a tintura das leis, não precisa mais forçar. Aquilo é uma atividade técnica do indivíduo; ele vive aquilo daquela maneira; ele aprende a técnica de procurar traços.

Outra metáfora muito utilizada por Platão é a da caça. É preciso que o Estado impeça a caça do homem pelo homem — a guerra — e impeça a caça do homem pelo homem — a escravidão. No caso, quando fala da justiça, a justiça é como se fosse uma caça. Ela está no meio da moita. Diz, então, Sócrates que temos de cercar a caça, mas não temos garantia de que vamos agarrar a caça, porque ela pode fugir, pois é um animal astucioso. Portanto, ninguém pode dizer que tem a justiça na mão. A justiça é uma busca; é uma tentativa técnica de agarrar o que é correto. Definições a priori de que isso é justo e isso é injusto são absolutamente errôneas sem o conhecimento técnico e sem a prática da política.

Nessa medida, o pensamento platônico — infelizmente Platão é conhecido pela sua versão neoplatônica — reduz ao máximo a hierarquia na coisa no ser, e traz a possibilidade de estabelecer gradações na atividade técnica e no pensamento.

Ora, o que fazem os pensamentos neoplatônicos, de Santo Agostinho, etc.? Introduzem justamente a hierarquia. Temos um Deus — inefável, indizível, etc. —, que jorra como fonte de luz e vai se tornando cada vez menos claro e menos translúcido quanto mais próximo dos seres inferiores. Temos a hierarquia, no caso de Dionísio, o Areopagita, com o grande texto que serviu de espinha dorsal para Santo Tomás de Aquino e outros, com a idéia de que o cosmos inteiro é uma hierarquia de luz e, portanto, não pode existir igualdade. Assim, toda a técnica humana é impotente para quebrar o laço da hierarquia. Existem Deus, anjos, arcanjos, padres, freiras e, lá embaixo, está o leigo comum. É contra a cosmovisão que as luzes, e também o Renascimento, se voltaram. Por isso, o grande peso da técnica no caso das luzes, o apelo à técnica, a política como técnica.

Claro que os argumentos conservadores restauraram a idéia de hierarquia. O romantismo conservador, o positivismo e outros pensam a hierarquia contra a igualdade, que a igualdade é um conceito metafísico, uma bobagem da Revolução Francesa. Assim, temos instaurada a idéia de ordem e de hierarquia. Nesse quadro, o que mais se ataca é justamente a identificação da palavra humana como técnica; o peso do logos como capacidade de transformar, de nomear o mundo e de servir como instrumento.

André Leroi-Gouhran, grande etnólogo do século XX — que me parece cada vez mais leitura urgentíssima, sobretudo em sociedades como a nossa —, mostra a interdependência do instrumento técnico do nosso corpo e da palavra. Ele mostra bem que, quando começamos a nos erguer, a ficar de pé e emitimos os primeiros vagidos, as primeiras palavras com sentido, a nossa estrutura craniana mudou: aumentou o crânio e diminuiu o queixo. Ele usa uma expressão muito interessante: "somos inteligentes porque ficamos de pé". Acho isso fantástico. A palavra é um elemento técnico, um elemento de liberação.

O que vejo como questão primeira em termos de atividade política? É claro que a filosofia sempre foi uma tentativa de curar a palavra. Se existe uma crítica virulenta no plano da cultura à logorréia é a filosofia, que sempre procurou encontrar palavras que tenham sentido e eficácia e se estabeleceu como terapia da palavra. Hoje em dia, é mais do que urgente a terapia da palavra, porque, em nome da crítica e da recusa da democracia, se fez a crítica da palavra. Quando alguém diz "isso é mero discurso", lembro-me da frase de Hegel: "Discursos dirigidos a povos são atos". A propaganda é muito clara nessa linha e a manipulação fascista foi isso: atos. Não se separa o ato da palavra, porque a palavra encaminha, justifica o ato.

Nessa medida, Sra. Adísia Sá, parece-me que a sua atividade, a atividade da imprensa, da universidade, do Parlamento, é justamente a primeira atividade política no sentido de restaurar a dignidade da palavra e a confiança na palavra. Quando estendo a mão e digo "pegue, que você não cairá no abismo", se isso for falso significará morte. Portanto, "confie no Parlamento, mas votaremos todas as leis que vêm do Executivo", "confie no Parlamento, mas lhes trairemos", ou, segundo o exemplo do Deputado José Thomaz Nonô, "confie no Parlamento, mas na hora de votar o confisco das poupanças, apoiamos o Executivo", isso me parece um elemento importante.

Do ponto de vista político, não conheço outro filósofo que tenha dado mais importância à palavra do que Marx, que tem uma formulação muito bonita sobre a palavra e o valor do peso da palavra, inclusive em uma discussão muito prática justamente sobre o dia de trabalho. Na discussão do dia de trabalho, Marx faz a distinção das palavras gewalt e kraft, mostrando que não podemos jamais deixar — para escândalo de boa parte do marxismo — de ter esperança na possibilidade de uma lei do Estado que modifique as relações sociais. Literalmente, foi preciso uma lei do Estado para diminuir a jornada de trabalho. Essa questão precisa ser bem pensada.

Perdoem-me por falar nesta Casa desta maneira, mas o Estado brasileiro foi ideado para ser contra-revolucionário. Quando o querido D. João VI veio fugido de Napoleão, trouxe com ele a idéia de criar nos trópicos um Estado que não caísse nas loucuras das revoluções francesa e americana. Antes, já tinham reprimido as nossas revoluções, como a Inconfidência Mineira, que era das luzes. É muito interessante lembrar que os inconfidentes queriam instalar uma fábrica e uma universidade, duas coisas proibidas.

Quando D. João VI veio com essa idéia, trouxe como proposta retirar do Estado brasileiro aquilo que teria sido a desgraça da Revolução Francesa, isto é, o poder dos Deputados, o poder das assembléias. Na condição de Deputados Federais, V.Exas. devem se lembrar bem da anedota: "Saúdo Vossa Majestade", quando o Imperador fechou o Parlamento e os Parlamentares se inclinaram diante do canhão. Quando eles vieram com essa perspectiva, no Primeiro Império, houve o contrabando da teoria do Poder Moderador, de Benjamin Constant — o deles, não o nosso; não o positivista, mas o liberal francês. Em Benjamin Constant — basta ler seus textos — o Poder Moderador é neutro e serve para diminuir as tensões e os choques, dar um contributo para melhorar a máquina do Estado, ideada por Montesquieu — trata-se de uma máquina, porque é uma balança —,a inflexão dada na Constituição do Estado brasileiro ao Poder Moderador foi que este deixou de ser neutro e passou a ser determinante sobre os 2 outros Poderes. É por isso que, se os senhores lerem Carl Schmitt, um dos mais ferrenhos defensores do poder decisionista, verão o elogio ao Poder Moderador do Império brasileiro.

O que ocorreu quando se deu o final do Império? Houve a subsunção, a passagem silenciosa, mas muito eficaz, do Poder Moderador, com todas as suas prerrogativas, para a Presidência da República. Vivemos essa realidade e não tocamos nela. Se me pedirem alguma coisa nessa linha, diria o seguinte. Primeiro fato: pense-se a estrutura, a gênese e a lógica do Estado brasileiro. Veja-se se a introdução dessas prerrogativas da Presidência da República correspondem ou não à diminuição da importância dos outros Poderes e se a caça ao Parlamento e caça do Parlamento à Presidência da República — porque também ocorre —, não provocam o desequilíbrio permanente que notamos na República brasileira.

Este é um ponto que me parece grave. Discutimos, discutimos, mas supondo sempre este não-dito: temos o Poder Moderador. A tal ponto que os Presidentes da República — não digo o atual —, estiveram colocados em tal solidão que os define como guardiães únicos da totalidade do Estado. Se ocorre qualquer problema na Presidência da República, o Estado inteiro entra em absoluta subversão. Não preciso lembrar a abdicação de Jânio Quadros e tudo o que sucedeu durante o regime militar como resultado desse desequilíbrio.

No meu entender, temos de ter a visão dessa ética, porque isso se transformou em costume. Infelizmente, em decorrência disso, o Brasil é um país executivo-centrista. Em qualquer instituição, o Gabinete é o mais importante. Na universidade, se você for um bom membro da congregação, já é candidato a diretor, se for um bom membro do conselho, já é candidato a reitor. Tem-se a ilusão de que tudo vai ser resolvido no gabinete reitoral. E se desvaloriza as congregações e as instâncias do debate e da palavra, inclusive. Existe a crença, que o positivismo muito ajudou a piorar, de que o Executivo, decide e é capaz. O positivismo é uma espécie de transformação perversa do platonismo.

Luiz Pereira Barreto, em seu discurso de 1900 ao Clube dos Engenheiros, tem como idéia central: os engenheiros sabem, por isso podem prever, por isso podem prover. Assim, só pode fazer política aquele que é um técnico, que é um cientista do poder. O resto não tem mais importância. Claro que os engenheiros não mandam mais; hoje, são os economistas. Os economistas têm o monopólio do saber, da previsão e do golpe de Estado. Perdoem-me, mas no Banco Central temos mais poder efetivo concentrado do que no Parlamento inteiro, justamente pela preeminência do Executivo, o que leva a muitos abusos, como as medidas provisórias e tudo o mais que os senhores conhecem muito bem. Duas ditaduras, a de Vargas e a militar, acentuaram o peso do Executivo, que virou um ethos, um costume.

Parece-me que é preciso lutar pela valorização do Parlamento, do diálogo e dos outros Poderes, mesmo que estes não queiram, como o Judiciário. Senão, não vejo possibilidade de se estabelecer efetivamente uma República igualitária no País.

A imprensa parece-me fundamental, mesmo com as mazelas que tem, e eu as conheço profundamente. Parece-me que a imprensa é uma forma de se manter o valor do logos, o valor da palavra, o valor da fé pública. É por isso que tenho essa convicção. (Palmas.)

O SR. PRESIDENTE (Deputado Chico Alencar) - Agradeço ao Prof. Roberto Romano a participação .Concedo a palavra ao Prof. Ricardo Caldas.

O SR. RICARDO CALDAS - Não vou falar sobre positivismo, porque o Prof. Roberto já dissertou sobre o tema. Prefiro responder às perguntas que me foram endereçadas.

Quanto à questão da tragédia humana mencionada pela Sra. Adísia Sá, concordo plenamente, e esqueci de mencionar a pobreza. Estamos convivendo com a pobreza nos planos nacional e internacional e em níveis crescentes. Essa é também uma questão que gera uma indagação ética.

Na verdade, não tenho assistente. Foi apenas uma brincadeira, não sei se engraçada ou não. Mas, para a informação do Plenário, acho que seria interessante mencionar.

Quanto à crise da representação do Parlamento, concordo que ela exista — e, aliás, já a procurei expor na Comissão da Reforma Política. Destacarei alguns elementos do nosso sistema eleitoral, que não reflete mais a vontade da população, na minha forma de ver. Está havendo um distanciamento entre o eleitor e o eleito, e o nosso sistema não contribui para diminuí-lo, ao contrário. Defendo 2 pontos importantíssimos para corrigir isso: primeiro, o parlamentarismo, que aproxima o eleitor do Governo. Temos de retomar a discussão sobre o parlamentarismo; e, junto com ele, sugiro o sistema distrital misto, em que a metade do território é divido em distritos e a outra em listas. Permite-se, assim, que o indivíduo vote numa pessoa da qual ele está próximo.

Outro ponto fundamental: não se pode falar em representação, em Câmara dos Deputados ou em Senado Federal sem falar em partidos políticos. Precisamos fortalecer os partidos políticos. A nossa civilização, hoje, na minha forma de ver, não fortalece esses partidos. O voto em aberto acabam estimulando uma guerra interna entre os Deputados, que deveriam atuar de forma conjunta. Não vejo como fortalecer o Legislativo sem uma reforma política.

Há algo de novo? Eu diria que sim. A própria discussão encaminhada inicialmente pelos ecologistas e depois por outros grupos, defensores de aborto, contra a eutanásia, etc., está nos levando a repensar a sociedade. Como vejo a nossa sociedade?

Nesse aspecto, sigo tanto a visão de Raimundo Faoro quanto a de Sérgio Buarque. Vivemos ainda, por menos que queiramos e não gostemos de ouvir isso, numa sociedade tutelada, paternalista, desarticulada como um todo. Ela só é articulada quando existem grandes interesses em jogo, os quais, em geral, são específicos, de grupos de pressão que terão, por exemplo, um ganho econômico, mas sociedade no sentido de povo vejo como essencialmente desarticulada. As grandes discussões não chegam à população. Ainda vivemos com essa herança patrimonialista, difícil de romper. Isso é algo que levaremos muito tempo para modificar.

Vejo de positivo, até certo ponto, as ONGs, no sentido de que elas mobilizam as pessoas e geram capital social. Há controvérsias em Ciência Política sobre a questão. Alguns autores da Ciência Política não aceitam que as ONGs sejam estratégias de mobilização, mas, na verdade, grupos mobilizados para atender a interesses específicos.

Não vejo dessa forma. Acredito que as ONGs e a sociedade civil podem levar a um crescimento da cidadania. Cito como exemplo o movimento do Betinho contra a fome, que acabou gerando uma mobilização nacional e sendo incorporado pelo atual Governo com um dos pontos de sua agenda.

A questão do capital social é fundamental, no sentido de que procura resgatar a idéia de civitas, de cidadão, de alguém que pode dar uma contribuição à sociedade. Essa idéia de civismo, tão mal utilizada nas disciplinas de OSPB, EPB, etc., agora está ganhando nova roupagem, de civismo não militaresco, de preocupação com algo além dos nossos próprios interesses, ou seja, de agirmos em favor do nosso bairro, da nossa coletividade. E, a propósito, recomendo, para quem tiver oportunidade de ler, o trabalho do Putnam, em que ele analisa por que o norte da Itália se desenvolveu mais do que o sul e por que o sul da Itália é tão pobre e tão clientelista. Qual a sua conclusão? Não há capital social no sul; o capital social da Itália concentra-se no norte, onde as pessoas participam mais da vida comum. Elas exigem mais, portanto, há mais transparência. Então, o capital social contribui para 2 aspectos: fortalecimento da democracia e desenvolvimento econômico. São teses absolutamente originais e interessantes, que recomendo a quem tiver oportunidade de ler.

A questão da ética da responsabilidade. Weber, pelo menos na leitura que faço, em nenhum momento sugere que a responsabilidade seja a maneira de alguém não ter convicções. O estadista deve ter convicções, é claro, tanto que ele divide os políticos em 2 grupos: os que vivem da política, que querem extrair recursos da política, e os que vivem para a política. Ele supõe, é evidente, que quem vive para a política tenha algum grau de dedicação.

Obviamente o estadista tem de ter convicções, mas no momento de agir ele tem de levar em consideração as conseqüências da sua decisão. Esse o sentido da ética da responsabilidade. Às vezes, ele pode até estar ferindo uma convicção sua, como no caso de Churchill. Pode ser que Churchill não fosse a favor de que pessoas morressem, mas era um momento em que havia a necessidade de uma ação contra um mal maior, no caso, o regime totalitário. A ética da responsabilidade, então, neste caso, acaba sendo superior à ética da convicção.

Foi mencionada a questão da ética da efetividade. Da mesma forma que o Prof. Romano, que se identificou com Platão, eu quero tomar a liberdade de me identificar com Sócrates e Aristóteles, no sentido de que devemos buscar novamente a virtude, que está no meio termo, no equilíbrio. Se alguém radicaliza demais, se vai para um extremo, perde a noção do meio termo. Aristóteles dizia não acreditar na sabedoria individual, mas na sabedoria do coletivo. É nisso também em que acredito.

Não se pode defender a efetividade, ou seja, os fins, sem defender os meios; senão, passamos todos a ser oportunistas — qualquer coisa que façamos vale a pena se der um resultado certo. Por exemplo, o bloqueio do Collor estaria correto se ele tivesse conseguido derrubar a inflação. Eu acho que não. Aí vem a questão da virtude novamente. O que é um cidadão virtuoso? E já me considero respondendo um pouco à pergunta sobre em que sentido me considero um saudosista. Saudosista no sentido de buscar, de ter e de querer retomar um pouco a visão de ética, que já está perdida. Todos deveríamos ter a ética como forma básica de conduta.

Atualmente, que as empresas modernas procuram? Muitas delas disseram não à corrupção, ao trabalho forçado, ao trabalho infantil. Cito como exemplo o Instituto Ethos, que procura estimular nos empresários a idéia de ética. Está havendo uma retomada da ética, acredito. E eu diria que a retomada da ética — talvez eu esteja sendo otimista demais — se dá em face da crise que acompanhou o século XIX, o excesso de racionalismo que perdeu a referência completamente entre o certo e o errado. O relativismo em excesso acaba contribuindo para que não exista nenhum tipo de ética.

Responderei às últimas perguntas em conjunto, se eu puder. Elas se referem ao império do pragmatismo e à crise dos paradigmas. Concordo que um excesso de pragmatismo leva ao fim da ética. Ou seja, se o seu grupo está fazendo uma coisa que o beneficia daquilo, você simplesmente fecha os olhos e diz: "Eu topo, estou dentro, quero participar disso", porque é conveniente para você.

E aqui quero retomar as idéias de Antígona, tanto a de Annouille, quanto a de Sófocles, que coloca os seus princípios acima dos da cidade. O sogro dela havia proibido que os militares mortos fossem enterrados em certa região, e seu irmão havia sido morto e estava do outro lado do campo de batalha. Proibida de enterrá-lo, ela disse: "Não vou seguir essa, lei porque não posso seguir uma lei injusta". Ela era casada com o filho do rei, considerado o melhor partido, jovem, belo, rico etc. As pessoas perguntavam-lhe: "Você vai abrir mão do seu casamento para defender o enterro do seu irmão?" E ela respondia: "Vou, porque não posso viver numa sociedade em que os princípios pessoais têm de ser encobertos por uma vontade que não é a minha". Ou seja, não há respeito ao indivíduo, não há princípios, não há ética, não há moral, pois, de acordo com a lei do sogro dela, quem enterrasse alguém morto na batalha seria, necessariamente, executado. Então, ela prefere a execução a viver em uma sociedade sem ética.

Aliás, essa é a mesma posição de Sócrates. Foi oferecido a ele inúmeras oportunidades para escapar da execução, porém ele dizia: "Não, prefiro ser executado, mas manter meus princípios, a viver em uma sociedade em que não acredito. Se a sociedade permitida pelos deuses é tão boa, não vejo a hora de vir a pertencer a essa nova sociedade. Se ela existe, vou aprender com ela, talvez eu possa evoluir; se ela não existe, pelo menos dei a minha contribuição nessa sociedade que vivemos."

Acredito que a crise do paradigma — e os senhores têm a liberdade de discordar — não é por causa da influência cristã. Da minha parte, eu seria até hipócrita se dissesse que a ética tem de ser atrelada à religião x, y ou z. Devemos estar acima disso. Devemos buscar o que cada princípio ou cada filosofia pode trazer de bom.

Existem princípios que são absolutos e princípios que são relativos. Ou seja, existem alguns valores que mudam de uma sociedade para outra, mas existem também alguns valores que são comuns, como não matar. Se citar, por exemplo, não roubar, vou entrar em crise com a sociedade cigana. Os ciganos não têm conceito de propriedade; logo, eles não possuem conceito de roubo. Não é que eles defendam o roubo, não. Mas para defender se essa xícara é minha ou da Câmara ou se esse copo é da Câmara ou meu, tenho de aceitar o conceito de propriedade. Se não aceito o conceito de propriedade, posso levar esse copo ou essa xícara e não incorrer na prática de crime. Vejam, então, que em algumas sociedades não há esse conceito.

De qualquer forma, há alguns valores que podem ser aceitos pela maior parte da sociedade, talvez excetuando os ciganos, e que seriam as bases dessa nova ética, que é o que os ecologistas, hoje, estão buscando quando falam em desenvolvimento sustentável. O desenvolvimento sustentável é justamente a manutenção de um patrimônio que não é nosso — as florestas, os rios, os lagos — mas que recebemos e que temos a obrigação de preservá-lo para as próximas gerações. Qual o direito que temos de aniquilar espécies inteiras? De levá-las ao extermínio simplesmente pelo prazer? O homem é o único animal que mata pelo prazer, nenhum outro faz isso.

Há alguns pontos básicos dessa nova ética que não devemos discriminar, tenha origem cristã ou islâmica. As coisas boas de cada sociedade podem ser a base de uma nova ética que poderia ser uma referência — citei os ecologistas como um exemplo disso.

Penso ter respondido a todas as perguntas de maneira completa ou incompleta. Mais uma vez só me resta agradecer aos que vieram prestigiar a nossa apresentação e ao Deputado Chico Alencar, que está representando o Deputado Orlando Fantazzini.

O SR. PRESIDENTE (Deputado Chico Alencar) - Muito obrigado, Prof. Ricardo Caldas.

Encerro aqui a minha tarefa de coordenador desta Mesa.

Um bom critério para avaliarmos como usamos o tempo é verificar se, ao fazer qualquer coisa — de tomar um café a participar de um debate —, saímos melhores do que entramos. Creio que esse sentimento é generalizado.

Também saio um pouco mais angustiado, mas positivamente, para avançar no caminho de pelo menos não matar — não matar inclusive a esperança da população, que é teimosa em desejar dias melhores.

Passo o comando dos trabalhos ao chefe desse seminário. Novamente parabenizo o Deputado Orlando Fantazzini e sua dedicada equipe, que proporcionaram um momento de luz no Parlamento, o que não é muito comum. (Palmas.)

O SR. PRESIDENTE (Deputado Orlando Fantazzini) - Agradecemos ao Prof. Ricardo Caldas, já o fiz pessoalmente ao Prof. Roberto Romano, e a todos a presença.

Temos a convicção de que este primeiro encontro representou enorme contribuição no sentido de que mantenhamos em nossa agenda, quotidianamente, o tema ética e decoro parlamentar.

Temos também a convicção de que este é o primeiro de vários outros encontros, seminários e debates que serão realizados em Assembléias Legislativas, Câmaras Municipais, até para que possamos, aprimorando esses conceitos, manter uma presença mais constante na sociedade e, ao mesmo tempo, aperfeiçoar o modelo democrático que queremos.

Agradeço aos membros do Conselho de Ética, em especial ao Deputado Chico Alencar, que compartilhou comigo a coordenação dos trabalhos — hoje estive de manhã, e ele, à tarde —, e aos Deputado Patrus Ananias e Luciano Zica, que fizeram exposições, e a presença do Deputado José Thomaz Nonô, ex-Presidente do Conselho de Ética.

Precisamos aprofundar-nos nesse tema, o que esperamos ocorra num futuro próximo, fazendo com que a sociedade tenha do Parlamento não mais a visão de um dos piores Poderes da República, mas que se sinta verdadeiramente representada por aqueles que decidiu escolher para a defesa dos seus interesses.

Muito obrigado a todos. Um agradecimento especial aos funcionários do Conselho de Ética que se desdobraram para que este encontro pudesse realizar-se na data de hoje.