Texto
DEPARTAMENTO DE TAQUIGRAFIA, REVISÃO E REDAÇÃO
NÚCLEO DE REDAÇÃO FINAL EM COMISSÕES
TEXTO COM REDAÇÃO FINAL
PROGRAMA MEMÓRIA POLÍTICA - ENTREVISTA COM MÁRIO GIBSON |
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EVENTO: Entrevista |
N°: ESP003/02 |
DATA: 14/05/2002 |
INÍCIO: 09h00min |
TÉRMINO: 11h54min |
DURAÇÃO: 02h53min |
TEMPO DE GRAVAÇÃO: 02h53min |
PÁGINAS: 63 |
QUARTOS: 35 |
DEPOENTE/CONVIDADO - QUALIFICAÇÃO |
MÁRIO GIBSON BARBOZA – Ex-Ministro de Estado das Relações Exteriores. |
SUMÁRIO: Entrevista com o ex-Ministro Mário Gibson Barboza – Programa Memória Política, em 14/5/2002. |
OBSERVAÇÕES |
Houve intervenções fora do microfone. Inaudíveis. Há palavras ininteligíveis. Há falhas na gravação. Não houve início formal da entrevista. Não houve encerramento formal da entrevista. O áudio encerrou-se no meio da fala do entrevistado. |
Conferência da fidelidade de conteúdo – NHIST 20/05/2009
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - ... Não gosto de me gabar, mas já que me colocam freqüentemente essa pergunta, devo responder que nasci em Olinda. Tive essa fortuna de nascer em Olinda. Naquela cidade onde cresci e até os 12 anos de idade vivi, depois mudei para o Recife. Eram separadas as duas cidades na ocasião.
Parafraseando Carlos Drummond de Andrade, diria que principalmente nasci em Olinda, uma cidade antiga em um País novo, cheia de monumentos, como se sabe. Até hoje é um monumento histórico universal, mas que para mim eram apenas lugares onde eu brincava ou a igreja onde eu ia à missa acompanhando minha mãe, sem saber, só me disseram depois, que era uma esplêndida igreja barroca. O Mosteiro de São Bento, perto da minha casa, ficava em uma rua de belíssimo nome chamada Ladeira do Varadouro, hoje, prosaicamente, chama-se Rua 15 de novembro.
Nessa cidade cresci, como já lhe disse, e fiz os primeiros estudos, inclusive no Ginásio Pernambucano. Penso que é uma sorte nascer em uma cidade pequena. Não sei como sentem os outros, aqueles que nascem nas cidades grandes, mas penso que o meu sentimento entranhado de brasilidade tem grande dívida com o caráter tão brasileiro daquela cidade onde nasci e me criei. Até hoje, essa é a emoção que sinto ao recordar os meus dias lá e a própria cidade, como já lhe disse, onde me desenvolvi e fui aprendendo as primeiras coisas do mundo. Naquele tempo, meu horizonte era aquele limitado.
Depois, fui para o Recife — nós pernambucanos dizemos o Recife e não Recife — que era uma cidade separada de Olinda. Íamos de uma cidade para outra de bonde; havia paradas do bonde e levava-se uns 20 minutos para ir de uma cidade a outra. Eram duas cidades separadas, hoje não é mais. Hoje, a civilização juntou tudo, o asfalto, etc. e tal, embora Olinda tenha conservado o caráter muito forte de cidade histórica.
Fiz os meus primeiros estudos de Direito em Pernambuco, na Faculdade de Direito do Recife. Todos nós nos orgulhávamos de ser alunos daquela instituição. Sou acadêmico da Faculdade de Direito de Recife, era chamado o Templo de Tobias em homenagem ao filósofo Tobias Barreto que lá ensinou, era muito admirado e onde criou grande fama. Nós estudantes, de brincadeira, dizíamos que o Templo de Tobias era o Templo de to be or not to be, uma paráfrase de Shakespeare. Como todos os estudantes, muito irreverentes.
Obviamente, todo mundo era de esquerda, porque estudante que não era de esquerda não era estudante. Isso não existia, sobretudo em Pernambuco, onde houve uma esquerda vaga, ninguém sabia muito bem das coisas. Entre direita e esquerda, eu diria que eram de esquerda, o que é uma classificação um pouco arbitrária, mas era isso.
Você sabe que o integralismo foi fundado em Pernambuco, na Faculdade de Direito do Recife, com um discurso de Plínio Salgado. Nunca pegou, eu nunca vi um camisa verde nas ruas do Recife, não tinham coragem de usar camisa verde. De tal modo, havia um sentimento antifascista e antidireitista.
Uma vez formado em Direito, eu, como a maioria dos nordestinos, resolvi vir para o Rio de Janeiro. No Rio de Janeiro era funcionário do Imposto sobre a Renda, como se chamava então. Um emprego que um tio meu, importante no Ministério da Fazenda, conseguiu-me para ajudar nos meus estudos, porque meu pai, que era um comerciante de certa prosperidade, morreu em uma fase ruim. Morreu moço, com 52 anos de idade. A família teve de se virar, como se diz, para pagar os meus estudos, e eu tive esse pequeno emprego no Imposto sobre a Renda, que não era nem uma repartição oficial.
Muita gente não sabe disso, e acho que é interessante lembrar. Esse terrível Imposto de Renda, que hoje nos persegue, foi criado pelo Dr. Souza Reis. O Dr. Souza Reis fez uma viagem aos Estados Unidos e descobriu que havia naquele País uma coisa chamada incontext. Ao voltar ao Brasil, propôs a Getúlio Vargas a criação desse imposto. Ele organizaria, faria uma repartição, cobraria o imposto, que iria para os cofres do Governo, e ganharia uma porcentagem por isso. É uma espécie de terceirização antes do tempo. Depois cresceu tanto que o governo decidiu oficializá-lo. E ficou uma repartição, um braço do Ministério da Fazenda. Enfim, não vale à pena entrar nesses pormenores. Apenas quero dizer que eu, quando vim para o Rio de Janeiro, era funcionário do Imposto sobre a Renda.
Não pretendia seguir a carreira fazendária, não era isso que queria; vim já formado em Direito. Formei-me muito novo, com 19 anos de idade. Fui muito precoce em muitas coisas. Com 19 anos de idade era possível naquela época porque não havia o curso intermediário. Havia o curso primário, o curso secundário, ou ginasial, e depois a faculdade. Era possível passar do ginasial para a faculdade simplesmente fazendo um exame de admissão. Como eu acabei cedo, fiz o exame de admissão no mesmo ano e entrei na faculdade de Direito com 14 anos de idade. Foi preciso o conselho reunir-se para aprovar a minha matrícula, porque o limite era 15 anos de idade, mas como eu tinha passado, eles aprovaram, eu entrei, fiz esses 5 anos e voltei.
Com 19 anos cheguei ao Rio de Janeiro disposto a ser advogado. Eu pretendia ser advogado. Nunca soube o que é uma vocação diplomática para dizer a verdade. Nem eu sabia direito como era essa história de Itamaraty, eu nunca me interessei por isso. Eu queria ser advogado, mas um advogado que chega sem um amparo, sem uma banca de advocacia para trabalhar, o que faz? Aluga uma salinha? Põe uma placa do lado de fora? Não vai ter cliente nunca, não é? E eu fiquei assim esses 2 anos, procurando saber como poderia me orientar para seguir a carreira de advocacia, indo muito à praia e gostando muito do Rio de Janeiro. Devo dizer que eu tenho a sorte de até hoje não olhar apenas a cidade do Rio de Janeiro, eu vejo a cidade do Rio de Janeiro. Talvez quem nasceu aqui não tenha essa sensação de deslumbramento que eu tive ao chegar do Nordeste, que guardei até hoje, apesar dos tempos difíceis que estamos vivendo, e não quero falar sobre isso.
Não conheço cidade mais bela no mundo, uma cidade beira-mar. Naquele tempo, já era uma cidade muito adiantada; estou falando de 1937, o começo do Estado Novo.
Fiz concurso, mas não dava certo, até que um dia me convenceram, amigos e o meu próprio tio, de que eu deveria fazer um concurso para o Itamaraty. E eu perguntei: “O que é isso, Itamaraty? “É o Ministério das Relações Exteriores”. E eu perguntei: “E isso é bom?” “É. É muito difícil, mas é bom. Você conseguindo entrar lá é.” Eu procurei o programa e verifiquei que não tinha absolutamente hipótese alguma de ser aprovado no exame. Eram 15 matérias terríveis, era um concurso organizado pelo DASP, dificílimo. Se eu estiver falando demais, pare-me.
A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Está ótimo.
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - Concurso dificílimo. Eu pensei: não vou passar nesse concurso, não há hipótese. Fiz um estudo do programa e decidi estudar 4 ou 5 matérias, e o resto seja o que Deus quiser. Português era fácil para mim porque eu sempre gostei muito da língua e sempre li muito desde menino, um pouco levado pelo meu pai. Meu pai era um comerciante que não pôde acabar seus estudos, mas era uma vocação literária extraordinária. Um grande sonetistas que se chamava Oscar Barbosa, e desde cedo o pai pôs para trabalhar para ajudá-lo em uma fábrica que tinha em Pernambuco. Ele lia muito. Imagine que ele entrou para o gabinete português de leitura no Recife e leu todos os livros. Aos domingos, uma das diversões dele era ler para mim Os Lusíadas, de Camões, pelo qual eu me apaixonei imediatamente. Nunca entendi a dificuldade que encontravam de fazer análise lógica, como se diz, de Os Lusíadas. De modo que a humanidade foi sempre a minha tendência. Em matéria de matemática, fui sempre um desastre.
Assim, a humanidade me levou para a advocacia um pouco por exclusão. Porém, ao chegar no Rio, como lhe disse, oportunidade não havia. A praia era muito sedutora, a cidade era um encanto, divertidíssima, com 3 cassinos, e com uma vida intelectual muito forte. Não se iluda a seu respeito. No Teatro Municipal, por exemplo, havia uma sociedade chamada cultura artística que levava os melhores artistas. Logo depois, com a guerra, então, com a praça para o teatro, o balé, a música de orquestra e a música instrumental, pianistas, se deslocou muito para o continente americano. O circuito era Rio-Buenos Aires. Esta, obviamente, era a cidade mais importante, com seu jeito europeu, que até hoje tem, não era nem sequer rival do Rio de Janeiro. Era uma cidade com características culturais muito mais importantes do que o Rio de Janeiro. Hoje não é mais. Estou falando naquele tempo. Gosto muito dos argentinos, mas não vamos exagerar.
Muito bem. Tenho umas 4 ou 5 matérias para estudar. Português para mim vai ser fácil, porque eu sempre gostei. Com relação ao francês e ao inglês, tinha o meu francês e inglês de ginásio, praticamente zero. Não se aprende a falar uma língua no colégio sem professor particular. O resto era Direito. Muito bem. Direito é uma coisa que eu tinha minhas noções. Tomei um professor, faço questão de dizer isso, apesar de português ser uma língua muito familiar para mim e que eu sempre cultivei muito, tomei um professor que foi, talvez, o melhor professor da minha vida. Chamava-se Gladson Chaves de Melo, um homem extraordinário. Morreu há uns 2 anos. Um homem extraordinário que me ensinou a paixão pela língua, pelo português histórico, que fazia parte do concurso. E ele, na parte de análise, análise gramatical, análise lógica e durante o tempo que estudei com ele, não me deu nenhuma lição disso, apenas me abriu um mundo cultural extraordinário. Faltando uma semana, eu disse: “Gladson, não é possível! Eu não me lembro mais como se faz análise gramatical e análise lógica, como dizia naquela época, que era uma das partes do exame”. E ele disse: “Isso é a coisa mais simples do mundo! Eu vou lhe ensinar 2 lições. Vou recordar a você. É preciso primeiro você pensar nas categorias aristotélicas.” Eu disse: “Ah, não! Aí, não! Meter Aristóteles nisso não vamos acabar tão cedo”. Ele disse: “Não, é porque os professores não explicam isso. O que é o substantivo, o que é o adjetivo, o que é o verbo, o que é o advérbio. Tudo isso foi inventado por Aristóteles, que simplificou de uma maneira extraordinária. Apenas os professores complicam isso. O que é um substantivo? O que é um adjetivo? O que é um verbo? O que é um advérbio? Facílimo! Palavras inventadas, inclusive, por Aristóteles.” Por isso que eu não sabia. Não sei se é muito sabido isso. Bom, resultado: tirei um notaço no concurso em Português. Foi a segunda nota mais alta. A primeira foi Donatello Grieco que foi do meu concurso, que fez o concurso comigo. A primeira nota em português. Ele não foi o primeiro lugar. O primeiro lugar foi o Mozart Gurgel Valente. Bom, gente muito boa, incluindo aqui quem está lhes falando, quem fez esse concurso.
Então, fui passando, passando, passando, passando, até o fim, e cheguei em quarto lugar, entre 20 colocados. Fiquei admiradíssimo, porque achava que eu ia ser reprovado.
Muito bem. Então, vi-me diante de uma profissão para a qual eu não tinha...
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Qual foi o ano?
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - Esse ano foi 1940. Uma profissão pela qual eu nunca tinha me interessado. A verdade é que, se me perguntarem o que é uma vocação diplomática, eu direi até hoje que eu não sei. Eu não sei o que é uma vocação diplomática.
Se se pensa que a vocação de diplomata é gostar de festas, de cerimônias, de viagens, é um grave equívoco, porque não é isso um diplomata. Um diplomata é, como fui verificar depois que me tornei um profissional, e acho que me tornei um bom profissional, me dediquei inteiramente a isso, só fiz isso na minha vida inteira daí em diante, e a parte do Imposto de Renda não foi importante para mim porque eu não estava para ficar lá. Enfim, fiquei quase meio século como diplomata e tive uma carreira felicíssima, afortunadíssima — é o que chamam hoje a linha Elizabeth Arden —, sem nunca jamais ter me interessado em posto algum. As coisas aconteceram, simplesmente.
Veja bem meus postos. Fui Secretário em Washington, depois vim para o Rio de Janeiro, que era onde estava o Ministério na ocasião, para trabalhar no gabinete de um homem extraordinário que era Raul Fernandes, oficial de gabinete dele. Foi porque ele me convidou para ser.
Em Washington fiquei 6 anos, anos formativos da minha vida, de 24 a 30 anos de idade. Foram anos em que absorvi intensamente a civilização americana. Era um ano de guerra quando cheguei, havia uma mobilização extraordinária naquele país.
De Washington fui chamado para servir no gabinete do Ministro. Que Ministro! Raul Fernandes, um homem extraordinário. Até no meu livro de memórias diplomáticas dedico um capítulo a ele, chamado Raul Fernandes.
De Raul Fernandes passei para o gabinete de Afonso Arinos Mello Franco. Aí já como chefe de gabinete, e depois chefe de gabinete de San Tiago Dantas. Veja que coisa extraordinária! Três grandes brasileiros! Três homens extraordinários pela cultura, pela integridade, pela inteligência. Três homens de Estado e eram realmente diferentes. E eu tive a felicidade de fazer a minha carreira junto desses homens, que foram me chamando para trabalhar com eles simplesmente. E as informações começaram a ocorrer, quando eu menos esperava.
Depois desse interregno de Washington, fui Primeiro Secretário em Bruxelas, onde fiquei pouco tempo, porque o Raul Fernandes me chamou outra vez, quando ele foi Ministro pela segunda vez, para trabalhar com ele. Depois disso houve aqueles fatos políticos da posse ou não posse do Juscelino Kubitschek, o discurso do Malan e etc., Raul Fernandes foi deposto e eu com ele. Nunca fiz política interna, mas se sai o Ministro, seu gabinete sai também.
E veja o que acho uma coisa muito curiosa. O Governo que assumiu, que foi de Juscelino, tinha razões para ter muita prevenção, digamos assim, com o Governo que tinha querido impedir a posse dele, o Governo que o antecedeu. E Raul Fernandes era um dos próceres da UDN de então, junto com Carlos Lacerda. Ele era um dos maiores..., não era um homem da ferocidade nem atividade do Carlos Lacerda, porém ele era um dos líderes da UDN. E eu, sendo chefe de gabinete dele, em qualquer Ministério, qualquer administração menos compreensiva eu seria diretamente ligado a ele, como se fosse participante também da política interna no movimento da UDN, que era um movimento contra Juscelino, mas nunca fui, nunca fui. Sempre tive minhas idéias políticas, mas nunca me alistei, nunca fui militante de partido nenhum, nunca fui concretamente de nenhuma facção. Fui sempre antifascista e antiditador. Isso foi uma coisa da minha vida, de formação mesmo.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) – Como convém a um diplomata.
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA – Como convém a um diplomata! Uma vez um amigo me perguntou, um amigo que vocês conhecem, mas eu não quero dar o nome, de quem eu gosto muito. “Uma coisa que eu não entendo na sua vida é você ter aceito ser Ministro das Relações Exteriores do Presidente Médici. Nós não entendemos isso”. Eu disse: “Bom, fulano, esse nós já não sei bem quem é. Quem são esses nós. Em segundo lugar, você até me lisonjeia, porque você acha que eu era superior àquele Governo e que isso me diminuía aceitando.
Então, quero dizer que, na minha carreira diplomática, servi 16 Presidentes. Devia ter me demitido em cada um deles?
Entrei no Itamaraty com Getúlio Vargas no Estado Novo. Não devo nada a ele. Fiz concurso de provas e fui aprovado pelas provas. Aliás, o DASP foi uma das coisas mais corretas que foram feitas neste País — concurso feito pelo DASP, nem era no Itamaraty. Depois disso, tive quantos? Linhares, Dutra, foram tantos.
O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Getúlio, novamente.
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - Getúlio novamente, Café Filho, mais tarde, ...
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Juscelino, Jango.
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - Juscelino, Jango, Jânio. Tudo isso, e os governos militares, os 4 Ministros, foram quatro ou cinco, nem me lembro mais. Bom, então, simplesmente estava servindo o meu País. Não digo isso para me desculpar. Tenho uma admiração pelo Presidente Médici, e faço questão de dizer isso com toda altivez. Foi um governo duro, foram tempos duros, os anos chamados de chumbo, mas na minha experiência com o Presidente Médici, que não me meteu absolutamente na política interna do País, nada, nunca participei disso, nunca me cobrou nada e me deu autonomia total para agir no Ministério. Aí vou dar um pulo na minha vida....
A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - O senhor assumiu o Ministério a convite do Presidente Médici?
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - Vou lhe contar como. Eu estava como Embaixador em Washington. De Embaixador em Assunção, que foi a missão diplomática mais importante que tive na minha vida, posso dizer isso depois, porque quando falo que servi em Washington, Bruxelas, Washington novamente como Embaixador, Atenas, Roma, Londres, Viena e Assunção, dizem: “Em Assunção, no Paraguai, aí você caiu um pouco?” Não. Foi a missão mais importante que tive na minha vida. Direi depois por que, se interessa, porque foi daí que nasceu Itaipu. Itaipu foi a coisa mais importante.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Sr. Embaixador, a sua gestão no Itamaraty coincidiu com um período muito duro de política interna e também foi o período em que o Brasil tornou mais engajada sua posição com os Estados Unidos.
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - Não, engajada, não, mais independente. Vou, aliás, falar um pouco sobre isso. Para não atropelar, estava como Embaixador em Washington. Bom, de Assunção, Magalhães Pinto convidou-me para ser Secretário-Geral do Itamaraty.
(interrupção dos entrevistadores. Conversas fora do contexto)
Vejam bem. Estava como Embaixador em Assunção, tendo sido removido de Viena para Assunção. Esse é um episódio mais longo, prefiro contar daqui a pouco, porque Itaipu é muito importante. Voltarei a isso. Fui removido de Viena para Assunção. Em Assunção, não consegui ficar mais de um ano, porque Magalhães Pinto, que era Ministro do Exterior, a quem não conhecia — sempre aconteciam coisas comigo com pessoas que não conhecia —, me convidou para ser Secretário-Geral, substituindo Sérgio Corrêa da Costa, que tinha assumido a embaixada em Londres. Fui Secretário-Geral do Magalhães Pinto durante um ano e pouco.
Quando vagou a embaixada em Washington, ele me mandou para Washington sem eu ter pedido nada. Queria continuar como Secretário-Geral, estava muito contente, estava fazendo uma política importante. Fui Embaixador em Washington, lá fiquei um ano. Um dia, houve a crise, a doença do Costa e Silva — já era Presidente o Costa e Silva. Vi pelos jornais que tinha sido escolhido sucessor da Junta, porque a Junta assumiu, e que a Junta tinha escolhido para suceder Costa e Silva o General Médici, que era Comandante do 3º Exército, como se chamava então em Porto Alegre.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Na verdade, não foi a Junta, mas o Alto Comando.
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - O Alto Comando, mas diretamente com a Junta, porque essa história com a Junta ele me contou muitas vezes.
Eu estou Embaixador em Washington, quando toca o telefone, às 7 horas da manhã, no meu escritório, e uma voz forte, do lado de lá, diz assim: “Como está ilustre Embaixador?” Disse: “Quem esta falando?” “Aqui é General Médici. Queria lhe comunicar que fui designado e aceitei, depois lhe conto por que, ser Presidente, substituindo o Presidente Costa e Silva. E quero lhe perguntar se o senhor aceita ser o meu Ministro das Relações Exteriores.” Eu disse: “Eu aceito, com muita honra.” Ele disse: “Muito obrigado.” Desligou o telefone. Depois pensei, o que eu fiz? Não conheço esse homem. Ele não me conhece. Mas era minha profissão, eu era Oficial- diplomata a vida inteira. Eu estava Embaixador em Washington. Se eu fosse convidado para ser Ministro da Fazenda, ou do Interior, ou da Justiça, seria diferente. Aí entraria na política interna. Mas era a política externa novamente. Eu era Embaixador em Washington e não podia deixar de aceitar. Vim para o Rio de Janeiro conversar com ele, e tive uma conversa extraordinária, porque eu disse: “O senhor me convidou para ser Ministro do Exterior — antes de ele assumir — não sei por que, porque o senhor não me conhece, eu também não lhe conheço.”
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Alguém indicou?
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - Ele nunca me disse. Ele disse: “Não, eu sei o que estou fazendo.” Eu disse: “Bom, que idéias então o senhor tem sobre política externa?”, eu perguntei. Essa foi uma conversa naquela casa que tinha no Galeão, do Ministro da Aeronáutica. Acho que ainda tem essa casa lá. Os militares ficaram lá esperando a designação pelo Congresso, porque tinha um ritual ainda a ser cumprido no Congresso. E eu sozinho com ele, uma conversa de quase 4 horas. Eu lhe disse: “Bom, que idéia o senhor tem de como deve ser a política exterior do Brasil?” Ele disse: “Eu não entendo disso. Isso quem vai dizer é o senhor”. “Bom, mas o senhor tem alguma orientação?” “Nenhuma. O Itamaraty é seu. Eu não me intrometerei no Itamaraty, o senhor responde perante mim; o Itamaraty responde perante o senhor”. Eu disse: “O senhor tem alguma indicação para Chefe de Departamento ou Secretário-Geral do Itamaraty?” “Nenhuma, nenhuma, não entendo disso. O senhor é que conhece seu pessoal, e eu lhe faço confiança absoluta.” Eu disse: “Bom, Presidente, é muito honroso, mas então eu quero dizer uma coisa ao senhor, enquanto posso falar isso. No Império, um Ministro, no segundo reinado, pediu demissão ao Imperador Pedro II. O Imperador disse para ele: ‘Mas o senhor goza de toda minha confiança’. E o Ministro respondeu: ‘Mas é que Vossa Majestadade não goza mais da minha confiança’. De modo que é recíproco. O senhor vai ter que confiar em mim, mas eu vou ter que confiar no senhor. E, a partir deste momento, eu já estou demissionário, porque eu não tenho nenhum interesse em ser Ministro das Relações Exteriores, nem quero me envolver na política interna.” Ele disse: “Bom, nisso eu respeitarei completamente. Estou gostando da sua conversa, vamos nos dar bem, Ministro, disse ele. E vou dizer mais uma coisa ao senhor. Eu não fui preparado para esse cargo, eu nunca pensei nisso. Eu sou militar. Estava satisfeito, tinha terminado a minha missão, Comandante do 3º Exército, General de 4 estrelas, na minha terra, no Rio Grande do Sul, minha carreira estava terminada. De modo que eu nunca fui preparado para ser Presidente da República, mas resisti muito a aceitar e acabei aceitando, porque achei que era uma missão que não podia recusar. Depois vou lhe contar os detalhes.” E contou várias vezes, repetindo sempre a história, absolutamente autêntica; a história é curiosa, interessante, mas é prolongar demais se eu falar.
O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) – Não, não.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) – Mas, o que ele contou?
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - Ele contou o seguinte. Ele falou mais do que eu. Falou mais de uma hora, e achei um gesto muito delicado, porque ele estava me dando uma satisfação do porquê ele tinha aceito, entende?. Ele me disse que estava lá no Rio Grande, houve a Junta, etc., e foi chamado ao Rio, Laranjeiras, onde funcionava a Junta. Em cima estava o Costa e Silva, doente, de cama, com o stroke que ele sofreu, e embaixo eles se reuniam. Situação esdrúxula, curiosíssima. Não podiam se comunicar com Costa e Silva, ele não se comunicava. Ele foi chamado, aí me disseram. “Olha, a Junta, que eram, você se lembra né?, o Almirante Rademaker, o General...
O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Almirante Rademaker...
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - Almirante Rademaker, Ministro da Marinha; Márcio, da Aeronáutica...
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Aurélio de Lira Tavares...
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - Aurélio de Lira Tavares, que era Ministro do Exército. Praticamente, embora não fosse formalizado, mas quem dirigia a Junta mesmo era o Lira Tavares. Então, o Lira Tavares tomou a palavra e disse: “Olha, nós lhe chamamos aqui para dizer que nós resolvemos que o sucessor do Presidente, que não vai mais poder recuperar-se, será você”. Ele disse: “Eu, por que eu? Eu não tenho condições disso, não sou formado para isso”. “Não, deve ser você”. “Não, eu não aceito, em hipótese alguma. Prefiro continuar lá no Comando do 3º Exército. Não estou preparado para isso, nunca pensei nisso”.
Insisti na recusa e voltei para Porto Alegre. Aí foi um mensageiro me apanhar de novo. Fui novamente conversar com eles. Novamente insistiram e novamente eu disse que não podia, que não tinha condições para isso. Não desejava mesmo, não queria.
O Médici era absolutamente desambicioso, eu nunca vi uma pessoa assim. Não tinha a menor ambição de poder. Agora, na função ele tinha autoridade total. Ele era um homem de autoridade. Mas não era um ambicioso. Ele não pretendia fazer carreira política com isso. Ele disse: “Está bem, se é uma missão que vocês estão me dando, eu vou aceitar”. E perguntou: “Quem vai ser o Vice-Presidente?”
Isso é um depoimento histórico, é interessante saber dessa conversa. Ele me contou isso no dia em que me convidou. Eu achei que ele estava me dando uma satisfação. Foi um gesto delicado. E várias vezes depois no Ministério, quando ele se lembrava, contava essa história de novo para mim, com as mesmas palavras, de modo que absolutamente autêntica.
Bom, mas perguntou: “Quem é o Vice-Presidente?” Disseram: “O Vice-Presidente você designa. Não, não acho que deva ser eu. Se vocês me escolheram, têm que escolher também o Vice-Presidente. É preciso ter um Vice-Presidente que tenha condições de me substituir se eu sair. Ele tem que ter o respaldo de vocês e não o meu, porque amanhã eu posso querer me demitir, posso morrer, posso ter o que Costa e Silva teve, então o Vice-Presidente tem que assumir. Agora, o Costa e Silva teve o desastre de saúde e vocês não deixaram assumir o Vice-Presidente. Portanto, é preciso que o Vice-Presidente tenha condições de ser também Presidente pelas mesmas pessoas que o escolheram. Totalmente lógico, não é?” Disseram: “Não, mas isso nós já decidimos.” “Então, tá bem... se já decidiram, nada feito, vou voltar para o Rio Grande. Porque a primeira coisa que eu resolvi vocês não concordaram. De modo que eu não quero.” Voltou.
Mandaram buscá-lo de novo. Uma semana depois ele veio, e disse que já não agüentava mais aquela pressão. Disseram: “Tá bem. Nós não queremos escolher pedimos a você que escolha.” Ele tinha refletido melhor e disse: “tá bem, então vou escolher. Está escolhido.” Disse que era o Almirante Rademaker, que fazia parte da Junta. Eles disseram que o Rademaker não poderia. Por quê? Porque fizemos um juramento que nenhum de nós três seria Presidente ou Vice-Presidente, teria sido um golpe de Estado e nós não queremos fazer isso. Curiosa essa mentalidade. Eu peguei a minha pasta, fechei e levantei. Eu disse: eu vou embora. A primeira decisão que eu tomei vocês já recusaram, de modo que...
Disseram: “Não, não, você continua. Tudo bem que seja o Rademaker.” Sentamos de novo. Bom, então, a partir deste momento estou presidindo a reunião. Você vai fazer isso, e isso, e isso”. Quer dizer, tomou posse, entendeu? Contando essa história que eu fiquei pasmo de ouvir. Ele disse assim: “De modo que isso é o meu estilo. O senhor administra o Itamaraty, a política externa o senhor é que sabe, eu não entendo disso. Não interferirei em nenhuma nomeação, nunca”. Nos 4 anos, 3 meses, 15 dias, e 10 horas que eu fui Ministro ele não indicou ninguém, nenhuma nomeação, nem promoção. Nem ele, nem ninguém da família dele. Tinha 2 filhos trabalhando com ele. Nunca, absolutamente. Os erros que ocorreram nesse período foram meus.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Como é que o senhor define a política externa que o senhor praticou durante a fase dura da política brasileira?
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - Eu disse a ele o seguinte: “Eu tenho idéias sobre a política externa”. Ele disse: “Está bem”.
Eu disse: “Não, mas eu quero que o senhor ouça. Acho que a política externa que foi traçada pelo Marechal Castelo Branco não é a política externa para o Brasil. É uma política externa inteiramente vinculada aos Estados Unidos. Eu não sou antiamericano, vivi nos Estados Unidos durante 10 anos. Portanto, tive uma formação lá, mas sou brasileiro e nacionalista, devo dizer isso ao Senhor. Eu sei o que é negociar com um país estrangeiro, sobretudo uma grande potência. É duro. A linguagem é dura. Temos que ter a nossa posição. A posição do Castelo Branco não é boa. Lembrem aquela frase infeliz do Juracy Magalhães que foi Ministro do Castelo Branco. “O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”. Foi uma infelicidade, coitado. O Juracy nem merecia ter essa infelicidade.
Eu sou contrário. Nada disso. Acho que temos que ter uma posição absolutamente independente. Não é agressão contra os Estados Unidos, não é nada. Em certos casos, quando concordarmos, os seguiremos, mas não a política de adesão automática. Sou contra. Pretendo modificar essa linha inteiramente. Ele disse, está certo. Estou de acordo. Faça o que você achar melhor. E foi feito.
Se vocês pegarem o discurso com que Médici inaugurou o Itamaraty em Brasília — e a mim me coube o ônus de mudar o Itamaraty para Brasília —, se você pegar o discurso dele nessa ocasião você verá que há uma análise completa do que era antes e do que ia ser agora, mas sem nenhum subterfúgio, foi abertamente dito. Esse discurso fui eu que escrevi. Não foram assessores meus, fui eu que escrevi. Dei o discurso a ele: “Para o senhor fazer, Presidente!” Ele disse: “não, eu não escrevi o discurso, você escreveu, você é que faz o discurso na inauguração do Itamaraty, em Brasília”. Eu disse: “Não, mas eu farei em outras ocasiões, mas nessa não. É o primeiro discurso que o senhor faz sobre política externa e é preciso que seja uma plataforma de Governo isso”. Ele disse: “Bom, se é assim”. Eu disse: “O discurso é esse, vamos analisar parágrafo por parágrafo. Isso que dizer isso, isso quer dizer aquilo”. Ele disse: “Estou de acordo”. Eu disse: “Não. Vá para casa, pense, o senhor pode não ser a favor de tudo. E há argumentos contra, não quer dizer que sejam verdades absolutas. O senhor pode achar argumentos contrários”. Ele disse: “Tá bom!”. Levou, depois voltou e me entregou integralmente. Disse: “Mas você é que vai fazer o discurso”. Eu digo: “Não, não sou eu, quem vai fazer é o senhor para dar autoridade ao discurso. É uma plataforma de política externa e é a primeira vez que o Presidente vai falar.” “Está bem, eu vou fazer, mas vou dizer que foi você quem escreveu”.
Ele não tinha a menor vaidade. Era uma coisa impressionante esse homem! Às vezes eu dizia: “Presidente, gostei muito daquele discurso. Ele dizia que quem escreveu foi fulano. Era assim. Era o forte dele não ter a vaidade. Ele não tinha esse calcanhar de Aquiles terrível que outros bem recentes tinham e que viviam de muita vaidade. Ele não tinha. Era a força dele, é importante isso.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Quais foram as fases mais difíceis que o senhor viveu no Itamaraty?
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA – Bom, de saída, a parte dos seqüestros, não é? Isso aí não tem nada a ver com a linha de política externa. Foi um incidente gravíssimo de política interna.
Quando eu estava Embaixador em Washington ocorreu o seqüestro do Embaixador americano Charles Burke Elbrick. De modo que eu não participei disso porque eu não estava no Brasil. Mas tive a marola que chegou até lá, por eu ser Embaixador do Brasil e o Embaixador dos Estados Unidos seqüestrado no Brasil. Os Estados Unidos estavam numa posição muito difícil, porque eles não podiam exigir que o Brasil negociasse com os terroristas porque era a linha firme da política americana não negociar com seqüestradores, para não incentivar outros seqüestros. Como eles podiam exigir do Brasil que se negociasse? De modo que eu tinha um diálogo muito curioso, durou pouco, uns 4 ou 5 dias. Imediatamente negociaram, a Junta resolveu negociar. Era a junta.
O Assistente do Secretário de Estado é com quem o Embaixador do Brasil em Washington se relaciona mais proximamente, menos com o Secretário de Estado do que com o Assistente de Secretário de Estado, que é o Secretário de Estado para a América Latina.
Eu tinha já uma amizade com ele, ou pelo menos uma relação de muita simpatia. Ele dizia: “Mário, você está livre hoje as 5 horas da tarde/ Vou passar aí para tomarmos um whisky antes do jantar”. Então, passava na embaixada, conversava. “Como é que está a situação no Brasil? Nosso embaixador seqüestrado lá, tal e coisa. Nós estamos muito preocupados com isso.” Mas não pedia, nem exigia nada. Muito bem, era uma conversa, assim, como se dizia na gíria: cerca lourenço, mas sem dizer nada. Durou pouco, porque, em 5 ou 6 dias, eu acho, foi resolvido que a Junta resolveu liberar as 5 pessoas — eram cinco, se não me engano, nesse tempo eram só cinco, eram poucos. Foi o seqüestro presidido pelo Gabeira. Foi o primeiro. Ele se arrepende disso hoje. Eram jovens que faziam isso. Naturalmente, a gente entendia, eu pelo menos entendia. Achava errado, mas entendia, o reacionário deles.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Ainda hoje não pode entrar nos Estados Unidos.
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - Não pode! Curiosíssimo, isso! E é um homem tão suave — uma coisa extraordinária —, educado, fino. Bom, escreveu aquele livro: O que é isso, companheiro!. Bem escrito. É um bom Parlamentar, coitado. Bom, isso é outro assunto.
Vim para o Brasil para ser Ministro, fui nomeado Ministro. Mal estava nomeado Ministro, seqüestram o Cônsul-Geral do Japão em São Paulo. Eu estava no Rio, porque o Ministério ainda estava no Rio, estava tratando de fazer a mudança, mas estava no Rio ainda. Telefonei para Brasília, para o Presidente Médici, e disse: “Presidente, foi seqüestrado o Cônsul-Geral do Japão. Ele disse: “Eu acabo de saber.” Eu disse: “O senhor quer que eu vá para aí ou que eu fique aqui tratando do assunto?” Porque o centro era o Rio de Janeiro, evidentemente. Brasília era um isolamento. Se é hoje, imagine como era na época. Você sabe disso muito bem. Ele disse: “Não, o senhor fique aí. Está havendo uma reunião no Ministério do Exército — chamava ainda Ministério da Guerra — no gabinete do Ministro Geisel.” Eu disse: “Bom, estou entendendo.” E só disse isso. “Muito obrigado.” “Obrigado.” E desliguei.
Está havendo uma reunião dos 3 Ministros militares e eu não fui convocado. Como!? Eu sou Ministro das Relações Exteriores, o homem é Cônsul-Geral do Japão! Peguei o carro e fui direto ao Ministério da Guerra. Direto, subi ao gabinete do Ministro, eles estavam lá conferenciando, os Ministros militares. Me viram, ficaram assim um pouco — eu achei — constrangidos e tal, mas foram muito amáveis. E o Geisel imediatamente levantou-se e disse: “Oh! Que bom o senhor ter vindo, íamos até falar com o senhor, não sei o quê e tal”, mas estavam resolvendo entre eles.
Eu me sentei lá tranqüilamente porque achava que o assunto era mais meu do que deles.
E então o Orlando Geisel disse: “Olha, nós já conversamos aqui sobre isso há mais de 1 hora e chegamos à seguinte conclusão: eu acho que não se deve negociar. Não se deve negociar porque, se nós negociarmos, vamos abrir um precedente no Governo para outros seqüestros. Aqui o Ministro da Marinha tem dúvidas. Ele acha que isso pode acontecer, é perigoso, mas também não negociar também é perigoso porque podem... Eles diziam que iam assassinar. A proclamação era que se não negociasse matariam o Embaixador dos Estados Unidos. Isso é uma coisa muito grave. Ele está na dúvida. O Ministro da Aeronáutica, que era o Márcio, ele acha que não há hipótese de negociar, é completamente contra negociar e não acredita que eles vão matar embaixador nenhum. Não têm coragem de matar o Embaixador dos Estados Unidos. O Murici estava do lado, era o Chefe do Estado Maior do Exército, disse: “Para mim fuzilava logo todos esses que estão presos.” Muito bem. “E o que que o senhor acha?”
Eu digo: “Eu sou completamente contra tudo o que ouvi. Acho que deve negociar. Não há outra posição para o bem senão o Brasil negociar, porque eu sou obrigado a ver o assunto sob o ponto de vista diplomático e do Direito Internacional. O Estado é responsável pela vida e pelo bem-estar e pela tranqüilidade e liberdade do agente diplomático de um outro país acreditado junto a esse Estado. Essa é uma responsabilidade absoluta em qualquer país civilizado. E nós pretendemos ser um país civilizado. Nós somos responsáveis pela vida do Embaixador dos Estados Unidos.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Cultura, não é?
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - Cultura. É boa.
O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Ministro, eu lhe pediria uma gentileza de voltar só um pouquinho no depoimento.
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - Onde é que eu parei?
O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Depois da hora do Murici. Quando eles lhe perguntaram: E o senhor o que acha?
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - Ah! Certo. Então, o Ministro do Exército, General Orlando Geisel, que estava praticamente presidindo a reunião, mesmo porque era no próprio Ministério da Guerra que estava se realizando, dentro do gabinete dele, mais ninguém, só tinha um ajudante de ordem dele ao lado, que não falava. Evidentemente estava só para atender um telefone, uma coisa dessas. E disse: “Essa é a opinião que nós temos aqui recolhido, a minha, a dos colegas militares, e o que o senhor acha?” Eu disse: “Sou completamente contra tudo o que os senhores disseram.” Ficaram meio assim. Eu disse: “Porque eu tenho que ver sob o ponto de vista de um diplomata e de um civil e político, de política externa.”
Devo dizer-lhes, os senhores estão esquecidos de uma coisa: é que o dever do Estado, reconhecido em todas as convenções internacionais, desde o Tratado de Viena, no século XIX, 1915, é que o Estado tem obrigação de dar proteção ao agente diplomático de um país estrangeiro acreditado junto a esse Estado; liberdade de ir e vir; liberdade de expressão; e total proteção em termos de segurança pessoal. De modo que nós somos responsáveis pela vida, mais do que pela vida, pela própria segurança do Embaixador dos Estados Unidos. O fato de ele estar em cárcere privado já é uma coisa contra o Estado brasileiro. Devia ter dado proteção a este homem, mesmo que não matem. Agora, se matarem, então vai ser um desespero. Nem quero pensar nas conseqüências se nós não concedermos.
Aí diz o Márcio, Ministro da Aeronáutica: “Ah, matar eles não matam. Isso é blefe. Eu tenho certeza que eles não matam.”
O senhor tem certeza? Como é que o senhor pode ter certeza disso, Ministro? Eu não tenho certeza que eles matam, mas também não tenho certeza que não matam.
E quando eu fiz o curso da Escola Superior de Guerra, aprendi lá — eu tinha feito em 1951 quando era 1º Secretário ainda — que os senhores trabalham com a pior das hipóteses, não com a melhor. A filosofia do Estado Maior é trabalhar com a pior hipótese. A pior hipótese é que matam. Então, o senhor não pode ignorar isso.
Ele ficou meio aborrecido com essa história. Não gostou, não.
Agora, veja bem. Diz o Geisel: “Mas nós vamos abrir um precedente. O Governo está começando, tem um mês, um mês e meio, já vai abrir um precedente de negociar com terrorista, com seqüestradores.”
Eu disse: “Não, esse Governo já abriu precedência.” Ele disse: “Como assim?” Eu disse: “Os senhores não negociaram a libertação dos presos políticos em troca do Embaixador dos Estados Unidos?” Ele disse: “Não, mas isso foi em outro Governo.” Eu digo: “Mas é diferente? Pensei que a Revolução era um Governo só. Não era o Governo da Revolução?” Aí ele ficou meio sem jeito. Disse: “Bom, isso é verdade.”
Muito bem. Eu vou dizer o seguinte: eu não sei se matam ou não matam o Embaixador dos Estados Unidos se nós não negociarmos. Não posso dizer. Se assassinam ou não. Agora se assassinarem, eu tenho certeza do que vai acontecer. Diz: “O que é?”
O Primeiro Ministro do Japão vai à (ininteligível) japonesa, convocado pelo seu Parlamento para explicar por que o Cônsul-Geral do Japão, em São Paulo, que é uma alta personalidade, é mais importante do que muitos Embaixadores do Japão no mundo, uma vez que nós temos o maior coeficiente de japoneses do mundo fora do Japão; homem importante, foi assassinado. O que o Governo japonês, desse Primeiro Ministro fez para impedir isso? E ele vai fazer uma objurgatória contra o Governo brasileiro enorme. Vai dizer que é uma ditadura militar, que não respeita o direito internacional. Ele tem que fazer isso para se defender. E vai nos ofender. E o que vai acontecer? Por uma questão de altivez nacional, vamos responder dobrando o que ele disse. E quando o senhor abrir o olho nós teremos rompido relações com o Japão. O senhor acha interessante isso? Isso eu tenho certeza. É o cenário que pode acontecer, se matarem. Agora, é bom negociar? Não, não é. Mas não negociar também é bom? Também não é. Isso é o que se chama um dilema. É um problema que não há solução. Mas é a menos ruim? É. Porque pelo menos nós mostramos que somos um País civilizado com isso.
Não ficaram convencidos. Um certo silêncio. O ajudante de ordens, que trabalhou posteriormente no gabinete do Presidente Figueiredo, Malan de Paiva Chaves, disse: “Ministro, o Presidente está lhe chamando ao telefone.” Ele poderia levantar de onde estava e ir ao fundo da sala para falar. Ele disse: “Não, quero falar na frente dos amigos. Traga o telefone para mim. Vou falar aqui na frente.” O Médici chamando de Brasília. Ele disse: “É, Emílio, estamos aqui conversando.” E disse quem estava presente, fulano, fulano, fulano. “Eu acho que não deve negociar, porque é um precedente sério, amanhã vai haver outro seqüestro, etc. O Márcio também acha isso, a mesma coisa; acha até que é um blefe, que eles não vão matar coisa nenhuma. O Ministro da Marinha tem dúvidas, por um lado, sim, por outro lado, não. O Murici acha que é melhor fuzilar logo todo mundo.” E o Médici disse qualquer coisa do outro lado, ele deu uma risada e disse: “É, Murici é de cavalaria.” Bom, disse: “Quanto ao Ministro das Relações Exteriores ele acha isso.” E resumiu, corretamente, o que eu tinha dito, não em extenso, mas o que ele disse foi correto. Resumiu.
O silêncio. Ele estrava tratando o Presidente de Emílio. Silêncio. Era o Médici falando do outro lado. Ele disse: “Muito obrigado, Presidente. Sim, Sr. Presidente. V.Exa. pode ficar tranqüilo que serão cumpridas suas ordens. Muito obrigado, Presidente.” Desligou o telefone e disse: “O Presidente disse que quem está com a razão é o senhor.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) – enquadrou!
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA – enquadrou! A razão é sua, de modo que, de agora em diante, essa negociação é sua. O que o senhor quer que a gente faça?” Eu disse: Não, fazer nada, a negociação é minha mesmo, eu que tenho que negociar. Ele disse: “Mas o senhor pode precisar de uma cobertura.” Eu disse: Se precisar, eu peço. Ele disse: “Porque os quartéis não vão gostar dessa decisão, não.” Quer dizer, oficialidade, linha dura, não ia gostar de entregar os chamados presos políticos. Eu disse: Bom, isso aí não é problema meu, não é, Ministro? É seu. Quartel não é comigo. Ele disse: “Não, o senhor terá o nosso apoio, pode ficar tranqüilo.”
E devo dizer que, daí em diante, respeitei esse homem, porque ele foi de uma correção, de uma dignidade, colocando-se a meu serviço, perguntando-me o que devo fazer, o que faço amanhã. Quer dizer, defendendo com unhas e dentes uma posição que não era dele, mas havia sido decidida pelo chefe dele, que era o Presidente da República. Veja você. Essa é uma coisa que acho respeitável em matéria de disciplina, de dignidade. Ele ficou completamente do meu lado, como se ele tivesse sido desde o começo. A missão dele era essa.
Bom, foram soltos aqueles outros, depois disso aconteceu...Bom, havia um problema: onde se asilarão os presos políticos? Eles escolheram, os próprios seqüestradores disseram... O primeiro acho que foi no México, o segundo, a Argélia. É preciso saber se o país quer receber. O senhor recebe? Disseram que recebiam, a contragosto, não gostaram nada da brincadeira. Recebemos. Então, precisava provar que eles haviam chegado lá mesmo. Eles eram transportados por um avião da FAB, com os pilotos do avião revoltados em ter de transportar aquelas pessoas que eles achavam que eram criminosos, mas obedeciam. Era a disciplina. Transportados. Chegou ao lugar? Chegou. Prove que eles chegaram lá. Poderiam estar mentindo, poder-se-ia pensar que haviam assassinado os homens, etc. Bom, tudo deu certo. Foram soltos.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Como a lista chegou ao seu conhecimento?
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - Eles publicavam, eles diziam assim... Não é exatamente assim, mas no meu livro digo exatamente cada mensagem e em que lugar foi encontrada. De repente, eles anunciavam que havia um bilhete num toalete, num café na Praça Saens Penha. Os militares iam lá, pegavam esse bilhete e no bilhete tinha todas as exigências que eles tinham deixado, entendeu? A negociação era dificílima porque eles sabiam quem nós éramos — eu era, no caso, a frente era comigo —, e eu não sabia quem eles eram. Como poderia me comunicar com eles? Por comunicados oficiais, onde já se expõe, publicamente, uma situação. Fica muito pior, entende? Não podia fazer em segredo, reservado, com uma negociação delicada dessa, tinha que (falha na gravação).
Bom, esse seqüestro dos japoneses durou pouco, não foi difícil, eram poucos. Agora, se Deus quiser, vai ficar tudo em paz. Daí a um mês, um mês e pouco, pá! seqüestraram o Embaixador da Alemanha. Agora minha posição enfraqueceu-se enormemente. Quer dizer, a teoria de que negociar vai incentivar outro seqüestro não vai acabar nunca. Depois desse vem outro, vem outro, vem outro.
Médici veio ao Rio, fez uma reunião no Palácio das Laranjeiras com o Ministro da Justiça, que era o Buzaid, comigo, com o General Geisel, os três dele, o Chefe da Casa Civil, Leitão de Abreu, o Chefe da Casa Militar, João Figueiredo, e o Chefe do SNI, enfim, um grupo que sempre acompanhava o Médici. Ali, naquela mesa em Laranjeiras, abriu a sessão. O Presidente disse: “Eu reuni os senhores para saber o que fazemos com esse novo seqüestro. Quero ouvir a opinião de cada um.” O Geisel imediatamente adiantou-se e disse: “Presidente, não tem mais o que decidir, já foi decidido. Foi decidido no seqüestro passado que deve negociar, e a negociação foi entregue ao Ministro Gibson, a quem louvo, porque negociou muito bem, de modo que nós vamos fazer a mesma coisa neste.” No fundo era o que o Médici queria ouvir. Disse: “Bom, então está encerrada a reunião. O senhor toma conta disso de novo.”
Lá vem eu de novo, mais uma vez! Mas era dureza, porque eles pediram... Eu vou dar número porque não me recordo de cor, mas no meu livro está escrito isso, se tiver a curiosidade de olhar. Eram cinqüenta e sete, era uma coisa assim enorme. Aí você não sabe que dificuldade acontece nessa hora, porque a lista...Alguns deles não eram conhecidos. O SNI e a polícia não os conheciam, não estavam presos, não sabiam quem eram, nem sabiam que eles eram subversivos. Agora, se você diz: Não, eu negocio, mas esses seis ou sete aqui não, vão pensar que você matou esses seis ou sete. Por isso você não quer entregar, ou você está fingindo que não sabe. Não era, era porque nessa conspiração toda de seqüestro e subversão de vez em quando um desaparece de propósito. Não faz saber nem aos companheiros em que lugar está para manter o segredo da atuação dele. E como ele desaparece pensa-se que foi preso. De modo que pediu honestamente a libertação pensando que eles estavam presos e não estavam. Agora, imaginem em que lugar estariam os outros? Este País é enorme! Pará, Rio Grande do Sul, Mato Grosso, Goiás. Não ficavam todos numa mesma prisão, entende? E aí foi um trabalho... Não havia computador à época, era muito difícil, você pegava lista datilografada para saber. Muito bem. Sei que acabou se acertando, durou muito tempo. Os prisioneiros foram mandados, dessa vez, para.....o Chile, não foi?
A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) – não foi para Argel?
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA – Não, esses foram para Argel, para o Chile foi o Embaixador da Suíça. Aliás, foi curioso esse negócio com o Embaixador do Chile. Para Argel. Eles iam lá, ficavam um pouco em Argel, depois refluiam, porque queriam ficar mesmo era no Chile, com o Governo Allende, porque ficava na fronteira do Brasil, aqui perto, para voltar, etc. e tal, não era golpe ficar lá.
Muito bem.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Essa lista também chegou pelos jornais, do Embaixador alemão?
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - Chegou o quê?
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Chegou pelos jornais?
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - Não, não. Deixava assim em um toalete, em um café. Está em tal lugar. Você ia ali e procurava. Agora, o que acontece? Acontecem coisas que vou contar a vocês com pormenores, porque é uma experiência sobre o que é um seqüestro e negociar um seqüestro. A responsabilidade era toda minha, se desse errado. Bom, mas eu estava certo que eu estava com a razão. E estava. Eu faria a mesma coisa hoje.
A idéia deles de que um seqüestro proporcionaria outro eu combatia. Eu dizia que isso não é verdade, porque na Guatemala o Embaixador da Alemanha foi seqüestrado. O Governo guatemalteco não negociou, não concedeu a liberação de presos, e eles mataram o Embaixador da Alemanha. A Alemanha rompeu relações com a Guatemala por causa disso, e os seqüestros continuaram na Guatemala.
Quer dizer, não há um pattern, no seqüestro não existe um programa único, que é sempre seguido. Varia de momento para momento, de um para outro. Até mesmo porque não era um só grupo subversivo, eram vários. E quem disse que aquela lista é dos seqüestrados? Pode ser um outro que está se aproveitando, porque havia o MR não sei quantos, o grupo não sei o que, vários grupos de oposição, com base na violência, matar, seqüestrar etc. Portanto, quando uma personalidade dessas era seqüestrada, muito bem inventado por eles, devo dizer, porque o pior seqüestro para um Estado, para um Governo é o de embaixador estrangeiro, porque se cria uma crise internacional, e o Governo fica amarrado por causa disso. Quando é dentro do próprio País, é mais fácil você resolver. Se disser que alguma coisa é fácil...É difícil. Mas de qualquer modo esse é terrível, porque está arriscado a ter uma crise internacional, como quase tivemos, no caso da Alemanha.
A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Mas, Embaixador, no caso de o Governo receber uma lista e ser de outra facção, de um outro grupo?
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - Chegarei lá. Vou lhe explicar.
Chego eu um dia lá na reunião dos militares, no Palácio das Laranjeiras, fizeram um grupo especial, estavam consultando listas. Digamos que fossem cinqüenta e sete, não garanto o número, mas acho que era isso, era um número muito elevado. Disseram: “Olha aqui, Ministro, está aqui” — Geraldo Fontoura que era o chefe do SNI, estava lá presente. “Desses cinqüenta e sete, nós sabemos apenas de quarenta e nove. Esses outros oito nunca ouvimos falar, não sabíamos nem que eles estavam conspirando. E agora?” Ele disse: “Vão pensar que nós não queremos entregar”. Eu disse: É claro. E esses quarenta e nove? Como é que o senhor sabe que são mesmo os quarenta e nove que os que seqüestraram querem, porque não é um grupo só, são vários. O grupo que seqüestrou pediu esses quarenta e nove ou não? Porque pode ser de outro grupo que não seqüestrou, mas que está se prevalecendo do seqüestro. Aí você solta, mas não era o que eles queriam e eles não entregam o prisioneiro. Entendeu? Digamos, você quer libertar 20 pessoas. Você tem quinze, o outro tem doze. Eles pegam e infiltram nisso os outros, ou fazem sua própria lista, para se prevalecer de um seqüestro que não fizeram. Você concede, aí o que seqüestrou diz: “Não, mas não foi isso que eu pedi, não. Vocês entregaram porque quiseram.” Como é que você vai resolver isso? Eu resolvi. Eu disse: “Bom, vamos saber se essa lista é verdadeira ou não.” Aí fiz um comunicado dizendo: “Exigimos que a exigência dos seqüestradores, a lista que eles nos mandaram, que mandem uma lista com as pessoas que eles querem libertar assinada pelo embaixador seqüestrado. O Embaixador autentica essa lista. Uma das vantagens disso é que se tem a certeza de que eram aqueles mesmo. A outra é que se cria uma complicação dos diabos, porque as pessoas que seqüestraram fazem parte de um grupo que não se comunica com você. Os que se comunicam são os que ficaram na cidade, porque se comunicam com os outros para fazer a divulgação, e que aí passam adiante, levam o mensageiro para onde estiver o outro. Digamos que os que estão negociando com você estão na Avenida Rio Branco, mas o outro está em Guaratinguetá. Portanto, não é aqui onde está o prisioneiro. Essas dificuldades foram vencidas, mas ficamos esperando a lista, que demorou uns 10 dias para chegar. Não era a mesma lista. A que eles queriam era outra.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Não era a mesma lista.
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA – Não, a lista que veio assinada, autenticada pelo Embaixador prisioneiro, era outra lista.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Quantos?
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - Digamos que uns vinte eram, os outros não eram, faziam parte de outros grupos que tinham infiltrado. Quer dizer, você ia soltar os prisioneiros, e eles não iam soltar o Embaixador, porque diriam: “Não eram esses que nós queríamos, mas outros.” Os outros continuam presos. Era um saco sem fundo.
Com essa saída, a lista passou a ser autêntica, porque se o Embaixador assinou! E havia outra coisa: nessa hora, certificava-se que o Embaixador ainda estava vivo, porque ele podia ter morrido, em um acidente, no percurso. Ou seja, podiam já tê-lo matado e continuavam a negociar como se ele estivesse vivo. Diriam: bom, no fundo eles iam faltar com a palavra deles. Prometeram que soltavam e não o fizeram porque já o tinham matado. Que palavra? Já estou vendo o que eles vão dizer. Quando eu cobrasse: “Escuta, vocês fizeram a negociação. Nós fizemos a nossa parte, vocês não fizeram a de vocês. É uma falta de dignidade, de honra.” Eles podiam dizer assim: “Honra com quem? Com esse governo militar, de ditadura autoritária? Não. Que mata todo mundo? Vocês não têm honra nenhuma.” É muito fácil fazer isso, não é verdade? “Porque você não é parceiro para nós negociarmos, vocês entregaram de bobos. Agora, nós não temos nenhuma obrigação a cumprir com um governo ditatorial.” Podiam dizer isso. Entendeu? Portanto, isso está na sua cabeça. É curioso como isso ocorre com você. Não ocorrem essas coisas se você não passou por isso. Bom, foram soltos, depois veio o da Suíça. Não vou continuar nisso.
A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) – Embaixador, eu tenho uma pergunta.
SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - o da Suíça ficou 9 meses. Foi uma coisa infernal.
A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) – nós vamos conversar sobre tudo isso.
O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - sobre o da Suíça, li um livro escrito por um dos seqüestradores em que ele dizia que realmente o governo militar aprendeu a negociar o seqüestro, o que tornou as coisas muito mais difíceis.
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - É, ficaram. Perfeitamente, a sua observação é muito correta. Quando eles aceitaram, e levaram uns 10 dias para aceitar, que nós só soltaríamos aqueles que fossem autenticados, aí eles passaram a negociar conosco. Nesse momento eles estavam negociando. Aí nós tínhamos uma negociação. Porque antigamente era unilateral, exigiam e você fazia.
No momento em que começaram a negociar, enfraqueceram-se. Eu esperava por isso. E outras coisas. Por exemplo, no caso do Embaixador da Alemanha, Holleben, certo dia sua mulher, a Embaixatriz, telefona para mim: “Preciso muito falar com o senhor e com o Ministro da Justiça Buzaid”. Telefonei para o Buzaid e fomos à casa dela, em Santa Tereza. Ela me disse: “Eu recebi aqui um telefonema dizendo que se nós deixássemos 1 milhão — não sei de que moeda na época — na estátua do Manequinho, ali em Botafogo, no Mourisco, embrulhado em papel de jornal, eles soltariam o Embaixador. O que eu devo fazer? Se não fizermos isso, eles vão matar o Embaixador.” Responsabilidade danada a sua, você tem que aconselhar a Embaixatriz, uma mulher serena, mas desesperada. Eu disse: “Acho que não é verdade. Isso aí é alguém que está querendo roubar esse dinheiro. A senhora vai dar esse dinheiro e não vão soltar ninguém, porque eles não estão com o homem, não estão com ele preso”. Ela perguntou: “Por que o senhor acha que não é verdade?” Eu disse: “Porque todo o pattern, todo o padrão do seqüestro é político, não é por dinheiro, não é para ganhar dinheiro, não é para ter lucro financeiro. É uma posição política.” Equivocada, mas é uma posição política em que correm riscos também, etc.
Diga-se de passagem que no intervalo mataram muita gente, porque os seguranças dos embaixadores foram assassinados. Pobre homens, e eu fui ao cemitério levar o corpo, a família chorando, pobres desgraçados, coitados, que tinham de fazer a segurança do Embaixador. Para seqüestrar o Holleben mataram dois que faziam a segurança dele; depois no do suíço, mataram três ou quatro, não me lembro mais. Era um desespero esse negócio.
Diante disso, a minha posição fica cada vez mais fraca, porque os militares vão dizer: mas esse camarada está abrindo o jogo. Bom, no caso do Holleben houve uma coisa muito estranha. É que foi negociado, foi concordado, verificou-se que a lista era aquela, eles foram levados ao aeroporto, os prisioneiros, foram fotografados, examinados, para mostrar que não tinham marca de tortura, etc. Isso é por conta deles, dos militares, não minha, mas fotografaram. Depois foram colocados no avião da FAB, fotografados e filmados eles sendo levados. Por isso foi levado na televisão para verem que tinha sido feito. Depois, a chegada deles no destino. A chegada no destino foi fotografada também para você provar que tinha feito, porque você poderia estar mentindo. Bom, agora, vão soltar o embaixador.
Às 8 horas da noite, isso tudo tinha sido completado. E nesse tempo eu já estava em Brasília, me mudei e fiquei no Copacabana Palace esperando o resultado. Oito horas da noite não tinham soltado ainda; 9 horas da noite, o Embaixador não apareceu; 10 horas, não apareceu; meia-noite, o Embaixador não apareceu. O que você faz? Você não vai fazer nada. É aquela hipótese terrível de que eles já tivessem matado o Embaixador e que tivessem feito a negociação, ou que estivessem continuado para pegar outras concessões.
Quando foi por volta de meia-noite, um oficial de meu gabinete que veio comigo para o Rio, o Marcos Côrtes, Embaixador aposentado, da maior dignidade, grande profissional, chegou e disse: “Olha, Ministro, o negócio está feio, o pessoal, os coronéis, o major, estão em pé de guerra. Se este homem não aparecer a Vila Militar vai descer. A Vila Militar vai descer e o senhor está perdido nessa história, porque o senhor entregou os prisioneiros sem necessidade.”
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Isso foi no caso do Embaixador alemão?
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - Alemão. O que fazer? Paciência, vamos esperar. Você fica lá na porta da embaixada e quando o Embaixador chegar você me telefona. Telefona de hora em hora. Uma hora da manhã ele telefonou, nada, nenhum sinal do Embaixador. Duas horas da manhã, nada do Embaixador. O pessoal já está no maior nervoso, o pessoal, os militares. Por volta das duas e meia, três horas, ele disse: “Acaba de chegar o Embaixador”. Puxa! Um alívio. Isso é danado, é quase uma experiência desgraçada. Veja você. Mas no caso do suíço foi diferente. Era tudo diferente.
A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Deixa eu fazer uma interrupção, antes de o senhor entrar no caso suíço. No caso do Embaixador alemão seqüestrado, o pessoal saiu.
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - Bom, o dinheiro era mentira, verificou-se que era.
A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - O pessoal que estava preso saiu e muitos deles visivelmente com marcas de tortura, extremamente violentas. Inclusive é o caso da Vera Sílvia, que saiu de cadeira de rodas. Ela foi extremamente torturada e quase todos os outros. Como ficava o Itamaraty? Como se davam explicações para a imprensa internacional, porque o caso dela era internacional.
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - Olha, minha posição, do Itamaraty... Era eu na ocasião, com quem se falava era eu. Minha posição foi sempre a seguinte: eu não tenho a menor interferência na política interna do Brasil, não sou a favor de tortura, sou contra a tortura, estou fazendo aqui a minha obrigação de salvar relações internacionais do Brasil e fazendo com que o Brasil cumpra seu dever como Estado perante outro Estado. Se foram torturados, façam o processo que quiserem, não tenho nada com isso. Eu nunca participei e nem soube de nada.
A minha posição é essa, não tinha outra. Como é que eu poderia interferir, saber. Eu acho que você exagerou ao dizer que quase todos foram torturados. Nas fotografias que eu vi quase todos não foram torturados. Eu vi isso. Não vou defender essa posição, porque eu nunca fui a favor de tortura, e não vou defender tortura, absolutamente.
A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Eu gostaria de saber...
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - Eu tratei disso no meu livro, viu? até pensei se eu falo disso ou não. Eu não tinha nada com a política interna daquela ocasião. Devo falar nisso. Achei que eu devia falar. Devo falar porque se eu não falasse seria um gesto pouco corajoso, uma covardia não querer falar no assunto. Então, eu falei e troquei, e disse que na minha opinião tinha havido, sim.
Mas você não sabe, você está no Governo e você não sabe disso, não. A não ser que você seja torturador. Não sabe não, você pensa que o poder é absoluto? Não é, nem numa ditadura o poder é absoluto.
Pelo contrário, eu acho que fiz o meu dever ao contar, neste meu livro, que duas reuniões de gabinete convocadas pelo Presidente Médici — gabinete, eu quero dizer o Ministério — com todos os Ministros e mais o Chefe do Estado Maior, ele convocou a reunião para dizer o seguinte: “Os nossos estão morrendo quando entram para desmanchar um aparelho, porque eles entram desarmados para prender. Agora, eu dei ordem para que eles também lutem. Quer dizer, se atiram, atirem de volta. Mata e morre. Isso é uma guerra. Mas prender uma pessoa, levar para uma cela e torturar é uma coisa tão ignóbil que eu tenho vontade de vomitar só de eu ouvir falar nisso. Fica proibido completamente torturar no meu Governo.” Isso ele disse na minha frente, eu contei no livro.
Fez uma segunda. “Me dizem que está continuando isso! Eu não admito que torturem no meu Governo, porque isso é uma covardia, é uma indignidade, e nós não devemos nos manchar com uma coisa dessa.” Ele disse isso. Foi obedecido? Acho que não. Acho que talvez alguns tenham recuado, mas outros fizeram.
Veja bem, aquela tortura, agora raciocinando entre nós aqui, como brasileiros, aquela tortura terrível de pau-de-arara, choques elétricos, isso é tortura, coisa da maior indignidade. Mas há um outro tipo de tortura que se pratica e que está continuando a ser praticada neste momento em todas as Polícias do mundo: deixar a pessoa sem dormir por 5 ou 6 dias, com o holofote na cara. O que é isso? Para um interrogatório. Eles se revezam, mas o interrogado não pode nem dormir.
Tortura não é apenas esfregar uma brasa de cigarro no braço, não. Isso é uma tortura psicológica que quebra o espírito de uma pessoa. Isso é feito pela Scotland Yard, é feito nos Estados Unidos, é feito no Brasil, e se continua a fazer. Infelizmente, a Polícia é o esgoto da sociedade. Se você quer obter uma informação, você diz assim: “Por obséquio, você pode dizer se você participou desse crime?” Isso não existe. O preso entra apanhando, o suspeito entra em qualquer delegacia hoje aqui no regime democrático que, felizmente, nós estamos vivendo e, apanha de saída, para amolecer o moral dele. Nem sempre, porque as pessoas variam. Há o delegado que é humano, há o delegado que é monstro. Não é verdade? Isso existe.
Eu não quero dizer, com isso eu não estou querendo justificar a tortura. Estou querendo qualificar. É preciso saber o que realmente é uma tortura. De modo que quando você diz: “Quase todos foram torturados”. Em que sentido foram torturados? Torturados no interrogatório, submeter a interrogatório? Porque a idéia deles é a seguinte: nós precisamos da informação para chegar até a chefia, saber onde está o chefe. Você entra no que eles chamavam aparelho. Aqueles são fichinhas. Você quer saber quem é que estava mandando, para evitar a continuação. Você quer pegar o cabeça. E ao fazer isso você sai da frente, porque não vai ser ...(inintelígivel)
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - E o Embaixador suíço como foi? Aí parece que eles aprenderam a negociar.
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - Aprenderam e passaram a negociar realmente. Ele, o Embaixador suíço, aliás, portou-se com uma coragem, uma dignidade extraordinária, saiu de lá. Eles eram tão maltratados psicologicamente que quando o embaixador seqüestrado era liberado ele saía falando bem dos seqüestradores. Vocês notaram isso? Se lembram disso? Como uma pessoa que é embaixador, que está dentro do seu carro e vai para o seu trabalho, inocente, não tem nada a ver com a vida interna do País, leva uma pancada na cabeça, cai desmaiado, fica com um galo na cabeça — e o Elbrick acabou morrendo depois dessa pancada, desse choque que recebeu —, matam as pessoas que estão a serviço de sua segurança, é colocado num cárcere privado... Como será esse cárcere? Podem imaginar? É um buraco, não tem toalete, não tem nada. É ameaçado de morrer a cada momento, porque ele não sabe se vai sair vivo dali. Como ele pode sair dali elogiando o seqüestrador? “Não, são rapazes muito dignos e que estão querendo o bem do País, etc.” Ameaçado, o medo. “Se você sair daqui falando mal de nós, vamos matá-lo.” É o que eles disseram. É o pavor. Têm que impor o pavor. Do ponto de vista deles, eles estavam certo. Eles não podiam deixar que o seqüestrado saísse falando mal deles.
Agora, o suíço não teve essa conversa. O suíço saiu e meteu o pau. “Não senhor, fui maltratado, sim senhor! Davam-me empurrões. Não me meteram ponta de cigarro nem em pau-de-arara, mas muitas vezes me deram pancadas para ver se eu contava o que sabia da situação interna. Fui maltratado, sim, e fiquei 7 meses.” Ficar 7 meses numa situação dessas não é brincadeira.
Gostaria de lembrar-lhes uma coisa: no meio disso tudo — espero acabar o assunto aqui —, quem foi seqüestrado? O nosso Cônsul em Montevidéu. Aí foi o contrário, o Gomide. O Gomide foi seqüestrado pelos Tupamaros em Montevidéu.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Foi uma situação dramática.
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - Você conhece o Gomide? Ele não é padre não sei por quê, mas é um homem muito religioso, muito pacato, nunca vi uma pessoa tão bondosa. Ele foi preso pelos Tupamaros, coitado. Não tinha culpa nenhuma. Eu fiquei numa situação terrível, porque, nessa ocasião, continuava preso aqui o Embaixador da Suíça. Seqüestraram o nosso diplomata em Montevidéu, e os uruguaios não fizeram negociação nenhuma com os seqüestradores, enquanto nós estávamos fazendo para salvar aqui. A minha posição era a mais delicada possível porque, quando era um estrangeiro que devíamos proteger, nós negociávamos. Quando era a nossa gente que era seqüestrada, o governo local não negociava. Difícil sustentar uma posição dessa perante a opinião pública. Não foi brincadeira não.
Afinal, o Gomide foi solto porque pagaram aos Tupamaros. Naquela ocasião, em Montevidéu — ninguém se lembra como era isso — os
Tupamaros agiam de tal modo que, quando o Gomide estava preso, uma vez dei uma instrução ao nosso Embaixador Bastian Pinto, Embaixador em Montevidéu, dizendo-lhe: “Passe uma nota dura ao Governo uruguaio porque nós exigimos que eles salvem a vida dos nossos, já que estamos fazendo com o dos outros. Não podemos aceitar que, no nosso caso, não façam o mesmo.” Aí o Embaixador disse assim: “Ministro, tome cuidado com o que o senhor está dizendo porque estamos sendo ouvidos. O telefone está grampeado.” Eu disse: “Eu quero que eles ouçam mesmo.” Ele disse: “Não é pelo governo não, mas pelos Tupamaros.” Os Tupamaros grampearam o país inteiro. Havia juiz Tupamaro. Por um momento, o Estado se dissolveu no Uruguai.
Então, foi esta mulher admirável, que não me canso de elogiar, Maria Aparecida, a mulher do Gomide, quem realmente o salvou da prisão. Ela é quem foi lá — eu não podia fazer nada — negociar com os Tupamaros. Arranjou dinheiro aqui. Foi à televisão pedir dinheiro para o marido para pagar os Tupamaros.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Ela conseguiu dinheiro como?
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - Não sei, várias pessoas deram e quem deu não quis dizer.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Era muito dinheiro?
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - Era. Primeiro foi 1 milhão, mas era muito dinheiro esse 1 milhão. Depois eles reduziram para duzentos e oitenta, trezentos. Fizeram um abatimento. Agora, foi seqüestrado também com o Cônsul dos Estados Unidos, e mataram o Cônsul dos Estados Unidos, porque não negociaram com os Tupamaros. Ela negociou com os Tupamaros. Eu já estava em Brasília, o Ministério estava lá. Duas horas, três horas da manhã, vem a empregada e diz assim: “Embaixador, está aqui a Sra. Gomide”. Ela vinha falar comigo, eu a recebi de pijama, e ela se ajoelhava aos meus pés. “Salve o meu marido?”, chorando, etc. “Minha senhora, o que eu posso fazer para o seu marido? Estou fazendo o que posso. Está sendo duro com o Governo uruguaio”.
Está vendo essa estátua aqui, aquela ali? Foi um presente que eles me deram no Uruguai, na ocasião. Depois que acabou o seqüestro, o governo me deu aquela escultura ali. Um gaúcho bonito, não? Mas por fim foram momentos muitos desagradáveis. E pense bem. O que nós fizemos para ajudá-la foi fechar os olhos, deixar que ela arranjasse o dinheiro. Um dia houve um grupo militar que veio se queixar para mim: “Essa senhora está fazendo escândalo ao falar na televisão. Isso deixa muito mal o governo”. Fiquei indignado: “Em hipótese alguma. Ela tem toda a liberdade de fazer o que quiser. Se for seqüestrado um general, vocês vão defender, não é? Então, é um colega meu e eu dou o direito a ela de fazer o que quiser! Deixe ela ir para a televisão, deixe que lhe dêem dinheiro, deixe fazer tudo”! Como é que o dinheiro ia atravessar a fronteira? Hã? Aí fechamos os olhos e atravessou com o dinheiro. Não podia, era uma coisa ilegal na época. Ela era uma mulher maravilhosa, mãe de 6 filhos.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) – Ela fez uma campanha nacional!
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - Depois desse seqüestro teve mais um, sete. Discreta, sossegada, modesta, uma dona de casa, que nessa hora virou uma leoa. Eu me emociono até hoje só de pensar no heroísmo dessa mulher. Virou uma leoa.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Admirável.
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - Admirável. Maravilhosa. Ela que libertou o marido dela, não fomos nós, foi ela quem libertou o marido. A nossa contribuição foi apenas deixar, fechar os olhos, deixar o dinheiro atravessar a fronteira, essas coisas, não é? Depois que ela libertou o marido, voltou a ser a mesma senhora, dona de casa, não aparece em coisa nenhuma. Beleza, não? Uma coisa muito bonita isso.
O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - O senhor quer fazer uma pausa de 5 minutos ou quer continuar?
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA – Não, eu continuo. Eu estou falando demais, não é?
O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) – Não, de jeito nenhum!
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Muito bem, excelente.
O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Facilidade de expressão muito grande, fala de maneira muito clara.
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - Mas eu estou consciente de que estou falando muito de política interna. Devo falar da política externa, não?
A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - A sua gestão foi tão conturbada, não é? Com esses episódios....
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - Foi sim. Posso continuar?
O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) – Pode. Eu queria fazer uma colocação exatamente sobre isso, Embaixador. A sua combinação com o Presidente Médici foi de cada um cuidar da sua parte: política interna com ele, política externa com o senhor. Mas acontece que esses fatos todos influíram de alguma forma na condução da política externa. Depois, os senhores tiveram que lidar com as denúncias que faziam no Brasil. Como é que os senhores lidaram com essa situação?
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - Explicando na medida do possível, e quando não era possível simplesmente dizendo: “são os fatos”. Que você vai fazer? Eu nunca tomei defesa disso. Por exemplo, na viagem que fiz à África, gosto de dizer algumas palavras sobre isso porque me orgulho, pois essa foi uma grande abertura da política externa brasileira; foi a primeira vez que se fez isso. Visitei 10 países em um mês, com avião especial cedido pelo Ministro da Aeronáutica, senão não podia fazer isso. Uma vez me perguntaram: “O Presidente Juscelino Kubitschek foi cassado?” Isso era entrar na política interna brasileira, não era nem no meu tempo, eu era Embaixador fora, não tinha nada com essa história, mas em uma entrevista coletiva o que você faz? “Por que ele foi cassado? Provaram corrupção contra ele, algum crime?” Eu respondi: “Verdadeiramente, eu não tenho nada a ver com isso. Não sei, mas acho que ele foi cassado por motivos políticos. Eu não vejo nenhuma razão para a cassação dele”. Com isso eu me expunha um pouco, mas aí era questão da minha dignidade pessoal: por que assumir uma coisa que não me compete? Sinceramente, a minha posição no Itamaraty, eu estava sempre disposto a me demitir. Se violassem, em uma questão de princípio, eu me demitiria. E me demiti, aliás, nessa questão da África — eu conto aqui no livro. Quando o Delfim Netto quis interferir na política africana do Itamaraty, eu fui ao Médici e pedi demissão. Disse: “Não posso”. Esse episódio está contado aí, eu não sei se vale a pena contar.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) – vale a pena contar!
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - Eu só quero dizer que, diante tudo isso, havia o seguinte. Primeiro, a mudança para Brasília. Tudo ocorria ao mesmo tempo, o que não foi fácil. Foi uma experiência terrível, porque ninguém queria sair do Rio — eu, inclusive. Mas tínhamos que sair. Eu dizia para os meus colegas: “Nós somos uma conseqüência. Quem inventou Brasília foi Juscelino Kubitschek. Se Juscelino pôde fazer Brasília do zero, no cerrado, transportando tijolo em avião, nós não temos a competência de nos instalarmos lá? É o mínimo que podemos fazer. O Presidente da República mora lá, vive lá. Congresso, Senado e Câmara estão lá. O Supremo Tribunal está lá. Os 3 Poderes estão instalados lá. Então, temos que nos mudar. A Capital do Brasil é Brasília. Vamos para lá”. O Itamaraty foi o primeiro a se mudar. Tivemos essa glória. Eu disse: “Antes que nos puxem pela orelha, vamos dizer dignamente que nós vamos nos mudar porque queremos. É um ato de vontade”. Aí o Ibrahim Sued escreveu: “Diplomacia do sertão. O Ministro, agora, vai fazer diplomacia no sertão”. Eu disse: “Maravilhoso”. Adotei essa palavra, porque antes de mudar os cisnes do Itamaraty, os cisnes todos bonitinhos, então agora vamos ser sertanejos. Boa idéia. (Risos). A campanha foi danada para a gente não se mudar. São Paulo, não. São Paulo estava pouco se incomodando, porque até a rivalidade com o Rio de Janeiro era melhor despojar, mas o Rio de Janeiro foi despojado com a mudança. Não havia a menor dúvida. Não tinha solução, tinha de mudar. Mas isso é outra história.
O que eu quero dizer é o seguinte, que havia mudança, tratava-se disso, e os seqüestros. Nada disso tem a ver com a política externa. E a política externa? Não podia fazer política externa, porque só se pensava nisso. Isso me tomou os 6 primeiros meses do Governo. Depois que parou, eu disse: “Agora vamos planejar a política externa”. Foi com esse discurso com que nos desligamos de toda uma filosofia de política externa anterior.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Só um pequeno parêntese: por que o senhor acha que pararam os seqüestros? — pararam no quarto.
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - Milagre. Eu não sei. Você se lembra da época em que seqüestravam aviões? Parou também. Por quê? Essas coisas acontecem. Não há uma decisão suprema que diga: “Não vamos fazer mais”. Eu acho que, sei lá, passa de moda. E também porque, veja bem, nessa guerra que foi o período Médici, como chamam os “anos de chumbo”, eles ganharam; quer dizer, os militares acabaram ganhando essa guerra. Estabeleceu-se uma ordem no Brasil, que você pode achar, de certo ponto de vista, antidemocrática, mas foi ordem. Você não era assaltado nas ruas do Rio de Janeiro, ninguém roubava seu automóvel. Não é verdade? Quer dizer, são situações — que não quero entrar nisso, porque nem sou cientista político — são situações em que você tem que combinar a justiça social com a imposição da autoridade. Achar simplesmente que o assalto que a gente sofre nesta cidade sitiada que é o Rio de Janeiro, hoje, é porque não há educação suficiente, isso não vai resolver nunca. Só há uma linguagem conhecida nessa hora, que é a força.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) – Como é que dizia o Vitorino Freire... “cacete não é santo, mas faz milagre.”
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - (Risos.) O Vitorino tinha dessas histórias.
A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Eu tenho uma curiosidade — uma bobabem. Em agosto de 68, no auge do regime militar, o Itamaraty promoveu uma festa — até o Collor desfilou. Houve um desfile do Pierre Cardin lá no Itamaraty.
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - Em 68?
A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Em 68. Eu me lembro exatamente...
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - Eu não estava aqui, não.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Você estava em Washington.
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - Eu estava em Washington.
A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) – Você estava em Washington? Ah, sim.
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - Eu assumi o Ministério em outubro de 69.
A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) – Ah, está certo. Eu pensei que já fosse no seu tempo. Foi no dia em que a Rússia invadiu a Thecoeslováquia.
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - Eu não estava aqui, não. Na política externa, que, afinal de contas, é mais o meu...
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - E essa intervenção do Delfim?
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - Eu chegarei lá. Primeiro, deixe-me dizer alguma coisa sobre política externa planejada. Era uma idéia de que devíamos ter independência em nossa política externa e não ficar subordinado a uma adesão automática ao que a potência maior, os Estados Unidos, determinava, até mesmo porque, às vezes, os nossos interesses não coincidiam; pelo contrário, eram conflitantes. Exemplo: mar territorial de 200 milhas. Foi feito em minha gestão. Eu Fui um dia ao Médici, já quando tudo havia acabado e estávamos tratando só da política externa, e em meu despacho com o Presidente Médici perguntei: “O que o senhor acha de decretarmos o mar territorial de 200 milhas? Dê-me sua opinião”. Ele parou e me disse: “Melhor refletir. O que o senhor acha?” Eu disse: “Eu perguntei primeiro. Quero saber seu sentimento a respeito disso, sem uma análise maior”. Ele respondeu: “O meu sentimento é a favor. Sou a favor”. Eu disse: “Então, vou fazer uma exposição de motivo ao senhor propondo isso, explicando qual é a ‘rationalia’, por que devemos fazer. Posso fazer isso?”. – “Faça”. Mas não fiz, não sou político mas também não sou tolo. Eu quero saber o que a Marinha acha. Telefonei para o Almirante Barros Nunes, que era o Ministro da Marinha, fui a ele e perguntei: “Almirante, o que o senhor acha de decretar o mar de 200 milhas?” Ele disse: “Sou a favor, sim”. Eu disse: “Admira-me que o senhor seja a favor, porque quando eu era Secretário-Geral e o senhor era Chefe do Estado Maior da Armada” — que correspondia ao cargo de Secretário-Geral —, “eu conversei isso com o senhor e o senhor disse que era absolutamente contra, porque a Marinha não tinha condições de policiar isso. O senhor era contra e agora o senhor diz que é a favor?” Ele disse: “Mas naquele tempo eu não era Ministro, agora sou. Dessa vez sou a favor”. Eu disse: “Bom, então, vamos fazer uma exposição de motivo em conjunto; nós 2 fazemos uma exposição. E vou falar com o Ministro da Agricultura — que era o Cirne Lima —, “porque tem a pesca”. Eram os 3 Ministérios. Fui ao Cirne Lima, que disse: “Não, não sou a favor disso não, porque vai criar problema com os Estados Unidos. Não quero saber disso, não”. – “Bobagem, o que os Estados Unidos têm a ver com isso? É a nossa soberania. Não temos que dar satisfações a eles.”. – “Não, eu prefiro não.” — “Mas você é o mais beneficiado, meu caro, porque você tem a pesca protegida. Eu sou o que vai ter os problemas com os Estados Unidos que você está dizendo. E a Marinha vai ter que fazer o policiamento. Você é o mais folgado” – “Não. Não aceito não.”— “Está bem”. Eu fiz a exposição com o Adalberto, e uma semana depois ele mandou uma exposição para juntar à nossa. Percebeu que estava errado. Aliás, boa pessoa, sempre me dei muito bem com ele. Só quero dizer que as coisas não eram fáceis.
O Médici disse: “Então, pedimos uma lei ao Congresso?” Eu disse: “Não pedimos lei ao Congresso coisa nenhuma! A soberania é inata; não se adquire soberania por lei. Ela existe ou não existe. É o direito natural. É o que se chama em Direito de Direito Natural. A soberania é um direito natural. Se o senhor pede uma lei e essa lei não é aprovada, o senhor renunciou à sua soberania. E todos os países já declararam”. O Uruguai já tinha feito as 200 milhas, a Argentina já tinha feito as 200 milhas. Ele disse: “Você tem razão”. E não é um decreto. É uma proclamação de que o Brasil tem o direito ao mar de 200 milhas.
Nessa hora, você pode imaginar, o mundo pegou fogo. Os Estados Unidos ficaram alucinados com isso, chegaram a me pedir que revogasse. Ah! E o Congresso resolveu fazer uma lei — que foi aprovada por unanimidade; não houve nem um voto contra — aprovando as 200 milhas. Aí, eu disse: “Agora estou garantido”.
Melhor do que isso, fizeram um samba. Quando se faz um samba já está consagrado, né? Se lembra disso? Mar das 200 Milhas. Depois do samba já está garantido! Telefonou-me o Sette Câmara, meu colega e amigo, que nessa ocasião era diretor do Jornal do Brasil, e disse: “Gibson, não somos a favor dessas 200 milhas e íamos fazer um editorial, mas vimos que a opinião pública inteira é a favor, de modo que não vamos dizer nada, vamos ficar calados”. (Risos.) – “Muito obrigado. Se quiser falar, eu falo.”
Os argumentos que nos davam para não fazermos eram formidáveis e podem impressionar à primeira vista: porque não havia Marinha para policiar um mar desse tamanho. Fazendo a conferência na Escola Superior de Guerra, logo depois, me fizeram essa pergunta: “Como o senhor acha que o Brasil pode policiar um mar de 200 milhas, se não tem Marinha para isso?” Eu disse: “Nós não temos Marinha para policiar nem o mar de uma milha — não são 200, não, de uma —, porque com essa costa extraordinária é impossível policiar. Mas o que os senhores estão querendo é fixar um critério que a soberania está na razão direta da capacidade tecnológica de um país. Quer dizer, aqueles que têm Marinha podem fixar; quem não tem, não pode. Nós fixamos e depois vamos ver. Quem fizer o delito, a gente prende”. E assim foi fixado.
Quando entrava um navio no limite de 200 milhas, o Adalberto, Ministro da Marinha, combinado comigo, às vezes, por acaso eu estava dormindo, 2 horas da manhã, ele dizia assim: “Chefe, lá na foz do Amazonas foi detectado um barco americano pescando dentro dos nossos limites. O que a gente faz?” Eu digo: “Aquilo que nós combinamos, mande se retirar. Se não se retirar, você apreende o navio.”– “E se ele resistir?” “Você atira. Estão no nosso mar, estão invadindo o nosso território; ou então prende e leva para a Capitania dos Portos. Aí passa ser problema do Ministério da Fazenda, não é mais nosso” – “Mas isso vai lhe dar um problema danado”. Eu digo: “Vai, mas é isso que a gente tem que fazer”. E dava protesto americano, protesto japonês, porque eles tinham destruído... Vocês sabem que o banco camaroneiro do Marrocos, que era fertilíssimo, foi destruído pela frota pesqueira japonesa. Chegavam com aqueles navios com garras enormes e raspavam o fundo do mar, o que sobrava era camarão. Mas na época da desova dos peixes e tudo o mais!, Quer dizer, era um crime contra a riqueza de um país! Porque aquilo é a riqueza nossa, é a nossa costa, não é verdade?
O resultado é que os Estados Unidos mandaram uma missão aqui, o Secretário da Marinha veio falar comigo e depois com o Médici. Eles vieram falar tudo isso, e eu tinha de guardar segredo, porque não queria criar um ambiente antiamericano no Brasil. Não me interessava isso. Lógico, se eu fosse contar isso, eu virava estátua em praça pública, mas era uma tentação que eu tinha de resistir, porque não interessava ter problema com os Estados Unidos.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Mas os americanos acabaram não reconhecendo isso. Acabou havendo uma negociação internacional!
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - Vou te contar como foi. Primeiro, eles recusaram. Eu cheguei a receber uma nota do Embaixador dos Estados Unidos pedindo que nós revogássemos a lei. Eu disse: “Eu vou fazer um grande favor ao senhor. Eu vou lhe restituir essa sua nota, porque uma nota como essa não fica na chancelaria brasileira e, se eu responder, vai ser muito duro.” Ele disse: “O senhor está me restituindo uma nota diplomática? Isso é uma coisa muito grave.” Eu disse: “Estou, eu sei que é grave, sim. O senhor quer deixar comigo? Eu vou responder. Não dei nem entrada aqui na nossa carteira de entrada. Diga a seu Governo que eu lhe devolvi essa nota. Eu não admito que os senhores queiram que o Brasil revogue uma lei que ele fez. Os Estados Unidos não têm nada a ver com isso. Eu servi no seu país, meu caro. Eu sei que law in the country é sagrado, ninguém toca, nenhum país pode fazer isso.” Ele botou no bolso e nunca mais falou. Essa história eu não contava publicamente. Acho, aliás, que é a primeira vez que eu estou contando.
Mas esse Secretário da Marinha veio e me disse: “O Brasil vai fechar os mares, porque aqui não vai passar mais ninguém com um mar em 200 milhas!”. – “Olha, Sr. Secretário, veja o seguinte, eu mostrei esse mapa ao Presidente Nixon”. – “Se todos os países adotarem as 200 milhas, o Mediterrâneo fica fechado, não tem mais nada”. Eu disse: “Mas, escuta, nós não somos Mediterrâneo. Nós temos uma costa atlântica com um mar enorme, do outro lado está a África; 200 milhas não vão fechar o mar absolutamente. O senhor dirá que isso é uma injustiça. É uma injustiça da natureza. O que eu posso fazer?” – “O senhor sabe quantos países no Mediterrâneo existem que não têm mar?” Eu digo: “Cinqüenta e sete”, eu fiz as contas. “Então, é uma injustiça da natureza.” Paraguai não tem mar, Bolívia... Enfim, países mediterrâneos, pelo mundo afora. Paciência. Vamos defender o nosso mar. Agora, politicamente, os navios de guerra podem passar pelo mar, desde que sejam aparentes, por exemplo, pedem licença a nós e deixaremos, submarino não pode passar submergido, tem de ser emergido, para saber que está passando no nosso mar e que nós consentimos.
Mas foi um dos momentos de política externa independente em relação aos Estados Unidos.
Veja bem, os Estados Unidos — Estados Unidos, não, o Governo Nixon — estava sofrendo a pressão dos grandes trusts de pesca do Golfo do México, que ocupam 5 ou 6 Estados da União e que dão o voto na eleição de um presidente, como você pode imaginar, e ele estava em campanha eleitoral. Então, aquela gente fazia pressão. Porque eles vinham aqui e arrebentavam. O nosso limite eram 12 milhas. Doze milhas não é nada. Você chega e pega o seu caudal pesqueiro com a maior facilidade, além dessas 12 milhas. Então, o que eles queriam era defender o interesse das indústrias pesqueiras americanas, porque politicamente não tinha nenhuma razão para fazerem isso. Inclusive, eu lhe disse: “O senhor sabem perfeitamente que” — estávamos em plena guerra fria — “se houver um conflito, uma guerra entre os Estados Unidos e a União Soviética, vocês sabem onde é que está o Brasil. Nós já mostramos a vocês isso. Deviam me agradecer de policiar esse mar”.
Resultado: fizeram um acordo de pesca conosco. Algumas pessoas não souberam ler direito esse acordo e entregaram os pontos. Porque o acordo de pesca dizia o seguinte: primeiro artigo, cada uma das partes mantém a sua posição neste acordo. Quer dizer, os Estados Unidos são contra, e o Brasil é a favor. Cada um mantém a sua posição. Parecia que o acordo estava terminado com isso, não é? Artigo segundo, para um navio de pesca americano vir ao Brasil, ele irá ao consulado do Brasil do lugar e pedirá uma licença para poder navegar dentro do mar territorial. E a pesca que for feita eventualmente está sujeita à apreensão, se for dentro das 200 milhas. Eles concediam tudo o que a gente queria. Em princípio mantinham e depois deixavam tudo. Eu queria era isso exatamente. Quer dizer, você não pode pescar sem a minha licença. E se você pescar, sem a minha licença, é uma contravenção e aí pode ser preso por contrabando, passava a ser contrabando.
Resultado: os Estados Unidos acabaram fazendo as 200 milhas. Eu disse isso a eles inclusive. Os barcos russos estão pescando nas costas da North Carolina, na Virginia, tudo o mais, acabando com os seus bancos pesqueiros. E eles fizeram também. Não foi porque eu disse, mas porque era óbvio. Eles pensaram nisso e acabaram fazendo também as 200 milhas.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Os japoneses acabaram com o banco de atum no Ceará.
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - É, meu caro. Você está vendo? Eu recebia notas... Prendemos vários barcos japoneses aqui. Mais eram americanos. É o que davam mais. E russos também.
A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Teve um francês, não é?
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - Não, francês, não. Essa foi outra história. Está falando da guerra da lagosta?
A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - É.
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - Mas isso eu não era Ministro, não. Eu era Embaixador em Viena.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Mas o caso da intervenção do Delfim na política externa.
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - É o seguinte: quando eu propus ao Médici fazer uma abertura para a África da política externa brasileira, pelos motivos que eu explicava na exposição de motivos que fiz depois para ele e que ele aprovou, ou seja, que o Brasil não é um país negro, mas é um país mestiço. Nós temos, para mim, a vantagem, a glória de ser um país mestiço, acho que isso dá muita riqueza à civilização brasileira. O coeficiente africano para a formação da nossa nacionalidade foi enorme. Quando foi decretada a abolição da escravatura no Brasil, dois terços da nossa população era de negros escravos. Este país foi construído pelo braço negro, pelo braço do escravo negro. Ele foi feito no braço do escravo negro. Foi isso que construiu o Brasil. Nós temos uma dívida moral para com a África nesse sentido. Não éramos nós, a princípio, eram os portugueses que traziam, mas mesmo depois da independência continuamos, não é? Não vamos também agora bancar os inocentes, e levamos muito tempo para proclamar a abolição.
O que aconteceu com isso? Não é só uma questão de pagar uma dívida de um remorso; é que a ligação entre o Brasil e a África é única. Eu, quando visitei esses países, verifiquei que em certos lugares da África eu tinha a impressão que estava na Bahia ou em Pernambuco. A praia é a mesma, o mar é o mesmo, a comida é a mesma. A comida é a mesma, sabe? O azeite de dendê usado na comida. E a maneira como fui acolhido com a minha comitiva era emocionante. “Afinal, vocês vieram nos ver aqui na África!”. Emocionante, você não faz idéia. O Senghor, que era o Presidente do Senegal, em Dakar, me disse: “Olhe, o pavilhão dos lusíadas hoje está nas mãos do Brasil “ Ele era um poeta, intelectual. “Vocês são os homens que nós precisamos aqui na África. Precisamos do Brasil.” Então, é uma coisa que eu voltarei um dia para tratar mais.
Aliás, fui convidado agora — e aceitei — para ser moderador de um simpósio Brasil-África que vai durar 2 dias, em Fortaleza. Vai ser aberto pelo Presidente Lula e eu serei o moderador, por causa dessa abertura que eles reconheceram . E o Lúcio Alcântara já me conhece, que é o Governador atual. Enfim, fui convidado para ser moderador e irei com muito prazer, porque acho que essa aproximação do Brasil com a África deve ser cada vez mais intensa. Infelizmente, acho que depois que eu deixei o Ministério isso foi deixado de lado em grande parte, não se progrediu.
Eu sei que África é um continente pobre, é um continente sofrido, mas ninguém tem a entrada, o prestígio natural e a importância que o Brasil tem na África. Nenhum país tem, nem os Estados Unidos, nem a Inglaterra. É extraordinário como os descendentes dos escravos, os africanos de hoje recebem a presença do Brasil, sem nenhum ressentimento com a escravidão, nada. É extraordinário. Eles querem ter uma ligação com o Brasil. E essa política, se me permitem um pouco de vaidade, eu me orgulho de ter aberto, porque acho que é um momento importante na política externa brasileira. E espero que o Governo Lula expanda isso e continue, porque a África, afinal, não se esqueça disso, é um continente sofrido, perseguido hoje pelo destino e pelas potências imperiais, colonizadoras etc. Continua o colonialismo econômico, o político terminou, mas econômico continua. Mas de lá é que veio tudo, inclusive nós, não é? O homem nasceu na África. Não nos esqueçamos disso. E riquíssimo. É um continente de grandes potencialidades — diamante, ouro, o que você quiser. Pode dizer o que você quiser. Riquíssimo. Produtos agrícolas... E o Brasil tem muito que cooperar com a África em técnicas de agricultura, de plantio, etc., construção de barragens, que nós somos extraordinários nisso. Foi isso que eu quis levar um pouco para a África, criar um entrosamento maior entre os dois países.
Quando da minha viagem à África, o primeiro país... Isso foi muito estudado. Ficamos mais de um ano estudando isso com um grupo do Itamaraty. Inclusive, os alunos do Rio Branco que se formaram naquele ano, em vez de irem trabalhar nas divisões, nas seções, nos departamentos, eu determinei que fossem fazer pesquisa sobre a África, para chegarmos lá sabendo o que queríamos e o que estávamos falando.
Então, resolvi começar a viagem pela Costa do Marfim. Por que Costa do Marfim? Porque o Governo de lá era o mais calmo. O Houphouët-Boigny era um grande estadista. E eu não sabia o que ia me esperar na África. Eu podia ser recebido agressivamente. Não sabia. Eu podia ser recebido com agressão. Quem sabe? Eu só tinha praticamente certeza de que não seria, que teriam uma compreensão maior para com o Brasil, por causa da herança da escravidão e tudo o mais. Vamos ser mal recebidos, e não fomos. Fomos bem recebidos em todos os lugares, para minha surpresa. Mas comecei na Costa do Marfim, porque eu teria um pedacinho demagógico que eu queria infiltrar na história. Era o primeiro país que eu pousava na África, a Costa do Marfim. Então, fiz um discursinho em que eu acabava dizendo assim: “No século VIII, nesta nação, o Rei Abubakar II resolveu saber o que havia do outro lado deste oceano. Nesse grande oceano, o que haverá do outro lado? E um dia fez-se ao mar com toda a sua nação, mais de 2 mil pirogas nunca voltaram. Hoje eu venho dizer o que há do outro lado desse mar. E é por isso que estou começando a visita aqui. Do outro lado do mar, tem um país chamado Brasil, de braços abertos para a África”.
Desculpe uma certa comoção que eu tenho ao dizer isso, porque foi realmente muito emocionante para mim. Não faz idéia da generosidade como fui acolhido. Houphouët-Boigny, que era rei baulê pela linha materna, que é a que prevalece na África negra — estou falando da África subsaariana — ele me fez rei honorário e me deu um objeto do tesouro dele, da família, que era um símbolo de realeza. Querem ver? Um instante...
O SR. ENTREVISTADOR( não identificado) - Depois a gente mostra.
O SR. ENTREVISTADOR( Ivan Santos) - Depois a gente filma.
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA – está ali em cima.
A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) – O senhor quer que eu pegue?
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - Pegue. Naquele cantinho ali. Posso me voltar?
O SR. ENTREVISTADOR( não identificado) – Pode.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Bastão é o símbolo..
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - ...da realeza dele, porque ele era rei em Iamassucrô, rei baulê.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Veio da etnia dele.
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - Ah, sim, total.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - E é bonito!
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - Escultura negra, simples, de madeira, mas era o símbolo da realeza. Ele me deu muitos presentes. Na minha entrada, não sei se repararam, 2 estátuas.
Então, essa abertura para a África foi uma coisa que marcou a minha gestão. Permitam-me dizer isso, não só isso, mas essa foi uma das coisas que eu considero mais importantes que tive oportunidade de fazer.
Outra, se quisesse dar um ponto mais saliente, diria que foi Itaipu.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Mais houve a intervenção do Delfim na política externa...
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - Ah, bom. É que, quando a viagem estava sendo preparada, a ponto de sair, o Assessor de Política externa do Ministério da Fazenda, aliás era funcionário do Itamaraty, o nome não interessa...
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) – Não era o Botafogo?
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - Não, Botafogo, não. O Botafogo nunca esteve tratando disso. Depois, o Botafogo foi assessor do Delfim na parte econômica, grande assessor a quem Delfim fazia muitos elogios.
Declarou o seguinte: que essa coisa de fazer visita a países africanos era uma tolice e que o Brasil devia mesmo era aceitar a oferta de Portugal de abrir pontos de comércio, mas tem outro nome, nas colônias portuguesas, que eles não chamavam de colônias, mas de Províncias Ultramarinas de Portugal.
E a minha luta era contra o colonialismo português. Uma das razões de visitar a África era essa. Eu fazia uma política contra o colonialismo, pela libertação das colônias. Isso é um caso muito comprido. Nesses 3 anos negociei muito com Portugal, mas não tive sucesso, não consegui, porém acho que fiz a minha obrigação. Quer dizer, o êxito não é sempre necessariamente a marca de todas as coisas. O cumprimento de uma obrigação é. Era uma obrigação. O Brasil tinha o dever de ajudar Portugal a se liberar dessa hipoteca colonial que pesava sobre ele. E liberar também as suas colônias.
Mas, enfim, aí era tudo completamente ao contrário, porque o Marcelo Caetano, Primeiro-Ministro, tinha oferecido isso ao Delfim exatamente para atrair o Brasil para as colônias e ajudar o domínio colonial de Portugal nessas partes da África. Era o contrário. Eu vi esse negócio e fiquei apavorado, indignado, mas como, contra tudo? Faltavam 2 meses para eu viajar.
Bom, fiquei uns 8 ou 10 dias esperando que o Governo dissesse alguma coisa, ninguém disse nada. Então, chamei o Secretário-Geral, redigi uma notinha e lhe disse: “Você chama a imprensa aqui no gabinete e diz o seguinte: a declaração do assessor do Ministro da Fazenda nesse sentido assim, assim, assim não tem a menor validade. A política externa do Brasil é determinada pelo Presidente da República e ele só tem um assessor, que é o Ministro das Relações Exteriores. Tudo o mais é fantasia e leviandade”. Bom, buscando os jornais na época, vocês se lembram?, “Gibson virou a Mesa!” “Gibson contra Delfim!” Um negócio assim danado. Eu não queria escândalo, mas eu tinha que colocar as coisas nos seus lugares, porque 2 embaixadores africanos já tinham me interpelado o que valia, se a minha política ou aquela. Interpelado já — Gana e Senegal.
No próximo despacho que eu tive com o Presidente, ele acabou o despacho e ele me disse assim: “Olha.......Ah! Eu chamei o Secretário-Geral e disse: “você dá essa nota para a imprensa e sem comentários”. – “Vão querer perguntas”. – eu disse: “Não, a nota é só essa; eu não tenho mais nada a dizer”. Quem fez foi ele, não fui eu. Quer dizer, quem declarou para a imprensa foi o Secretário-Geral. Por quê? Porque eu achei que não era o Delfim que tinha dito, era o assessor dele. Portanto, eu não ia medir forças com um subordinado do Delfim. Então, eu mandei o Secretário-Geral fazer a nota. Mas era evidente que a nota era minha.
No fim do despacho, o Médici disse assim: “Não gostei dessa nota que o Jorge Tavares Silva deu”. Eu disse: “Qual, Presidente ?” – “Essa sobre a África.” Eu disse: “Bom, antes que o senhor continue, eu quero dizer o seguinte: a nota não é dele; é minha. O senhor não vai imaginar que eu vou aceitar que o Secretário-Geral do Itamaraty faça, sem a minha instrução, uma declaração dessa natureza, que eu sei que é grave”. – “Então, é ao senhor mesmo que eu quero dizer: ‘não gostei’”. – “Por que o senhor não gostou?” – “Não gostei porque isso mostra que há uma divergência dentro do meu Governo; e o meu Governo é um Governo unido”. Eu disse: “Ah, isso não é não. O senhor vai me desculpar, mas o seu governo é um saco de gatos; cada um tem a sua opinião; o senhor impõe a sua autoridade final, mas nós somos todas pessoas com opiniões diferentes. E acontece que o senhor tem um superministro, que é o Ministro Delfim Netto, que interfere nos outros Ministérios”. Ele disse: “Eu não tenho um superministro”. Eu disse: “Tem, isso o senhor tem, sim; aliás, muito bom; está fazendo uma política econômica extraordinária. Mas eu era Embaixador em Washington e o senhor me convidou para eu ser seu Ministro. Eu não vim aqui para presidir a destruição do Itamaraty, porque no Itamaraty ninguém vai entrar enquanto eu for Ministro, não há a menor possibilidade”. Ele disse: “Não, não é isso; o senhor devia ter se queixado a mim; queixava aqui, e eu puxava a orelha do Delfim”. Eu disse: “Ah, Presidente, essa, não; primeiro que eu não vou me queixar de colega. Isso é coisa de menino. Eu não vou fazer isso. Em segundo lugar, porque o Ministro da Fazenda, que é o Delfim, dá uma nota no jornal; e, aqui no segredo do seu gabinete, o senhor diz a ele que é contra. Mas o que fica valendo é o que ele publicou. Essa, não. Se ele fizer isso, de novo, eu vou dizer outra vez a mesma coisa, a não ser que o senhor diga. O senhor não disse nada; eu fiquei esperando. O senhor não disse, eu tive que dizer. Estou até lhe defendendo, porque essa política o senhor aprovou. Eu fiz uma exposição de motivos, e o senhor aprovou. E com isso, eu não podia mais ir à África com essa divergência”. Ele disse: “Não, mas eu não gosto disso”. – “Então, lamento muito. Estou vendo que o senhor está, realmente, contrariado. Então, a partir deste momento, eu não sou mais seu ministro, eu renuncio”. Ele disse: “Não, não é isso o que eu estou querendo, não; estou muito satisfeito com o senhor, eu quero que o senhor continue”. Eu disse: “Não, Presidente, vamos fazer o seguinte: o cargo está à sua disposição”. Ele me disse: “Os cargos estão sempre à disposição do Presidente da República”. Ai eu virei pernambucano. Eu disse: “Não, nesse caso, não. O senhor não está me botando para fora; quem está saindo sou eu. Agora, é de homem para homem; eu saio porque eu quero. O senhor não está me botando para fora”. Aí ele teve um gesto muito generoso. Naquela hora, eu ia embora, eu estava liquidado, ele podia ter me esmagado, bateu no meu joelho, estou vendo até hoje, e disse assim: “Você é um pernambucano de sangue muito quente, sabe? Nós estamos nos dando muito bem; você tem razão, mas não me deixe mal fazendo essa divergência”. Eu disse: “Deixarei sempre, se o senhor não reagir, eu deixo”. – “Não, não. vamos acabar com o assunto e tal.” – “Está bem.”
No dia seguinte, ele me chamou para o despacho e disse: “Olha, aquela conversa ontem, eu não dormi; não leva a mal, não; nós, generais, não sabemos falar as coisas direito. Mas você tem razão; não vai acontecer mais isso, não. O seu Ministério pode ficar tranqüilo”.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) – O cara chiou!
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - De fato, o Delfim nunca mais fez nada. Eu não tinha nada contra o Delfim, não. A questão é que ele era realmente um superministro. Ele era! Ele derrubou 2 ou 3 Ministros.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Derrubou o Cirne.
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - Derrubou o Cirne. Você lembra ? Eu disse: “No Itamaraty, ele não vai me derrubar, não; eu saio porque eu quero”. Mas também ficar para quê? Para que você quer ser Ministro? Me explica uma coisa: é um lugar que só dá dor de cabeça. Você quer ser Ministro para ter um carro com chapa oficial, é para isso que você quer ser Ministro? Agora, se você não tem autoridade não vale a pena ser Ministro. Você não tem autoridade absoluta, porque tem o Presidente da República, o Chefe do Governo, não é verdade?, mas se você não tiver autoridade dentro do seu setor é melhor não ser.
Estou dizendo isso porque tem coisas hoje em dia que eu não estou gostando, mas não quero falar sobre isso não.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda)- É uma questão de dignidade.
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - Não é verdade? Bom...então.
O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - O senhor, no começo da entrevista, nos disse uma coisa muito curiosa, que o seu posto mais importante desses todos que o senhor teve na sua carreira foi o de Embaixador em Assunção.
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - Excluindo o de Ministro.
O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Exatamente.
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - Eu falo na minha carreira profissional.
O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Então isso está gravado, agora eu gostaria que o senhor...
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - Vou explicar por quê. O meu primeiro posto, escandalosamente bom, foi em Viena, porque o San Thiago, quando deixou o Ministério, me mandou para Viena sem que eu pedisse. Embaixador em Viena, que eu gostei muito, uma cidade extraordinária, vocês conhecem, civilizadíssima, mas é um posto marginal para a política externa brasileira — tudo é relativo, não é? Para a antiga Thecoeslováquia a Áustria é um posto importantíssimo; para nós não é, assim como nós não somos para eles. Relações culturais, etc., país respeitável, a que a civilização ocidental deve tanto, mas do tipo de relacionamento internacional não é um país capital.
Eu fui Embaixador de 1962 a 1966. É bom guardar essas datas: de 1962 a 1966. Quando eu cheguei lá, o Presidente era João Goulart, foi quem me nomeou para lá, com quem eu tinha relações de muita simpatia, nunca fui ao Palácio nem nada, mas ele era um homem afável, era um homem delicado e gostava de mim. Não tinha nenhuma capacidade para governar — governo zero. Nunca vi incapacidade igual. Se aquilo tivesse continuado, não sou a favor de golpe militar, mas se tivesse continuado aquilo virava uma república sindicalista que quem mandava não ia nem ser ele, mas ele não tinha disso, não. Agora, a presença dele era uma presença cordial.
Posso contar o episódio sobre isso?
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Claro.
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - Quando eu estava Embaixador em Viena, eu vinha todos os anos ao Rio nas minhas férias, e procurava imediatamente o San Thiago Dantas, que foi o homem mais inteligente que eu conheci na minha vida. Não digo que foi um dos homens mais inteligentes. O maior talento que eu conheci na minha vida foi San Thiago Dantas. Tenho por ele uma admiração eterna. Admirável homem, maravilhoso, cultura, pensamento, criador, criativo, extraordinário, agradável, educado, delicado, firme, todas as qualidades. Um grave erro ele ter sido recusado para ser Primeiro-Ministro, porque este País seria outro. É como se a Índia tivesse recusado o Nehru. Esse era o San Thiago.
Bom, o San Thiago me mandou para lá, sem eu pedir também. E eu vinha todo ano aqui e visitava ele; minha mãe estava muito doente e eu a visitava e passava as férias aqui. Em março de 1964, na primeira quinzena de março de 1964, nos primeiros dias de 1964, cheguei de férias aqui e fui imediatamente à casa dele conversar com ele, visitá-lo, no terraço dele, na Rua Dona Mariana, não sei se vocês conheceram, uma casa belíssima, inteligente a casa, como tudo que ele fazia, de bom gosto. Ele era um homem que sabia tudo, sabe? era um Pico della Mirandola moderno. Ele tanto falava sobre os Propileus da Acrópole de Atenas, quanto sobre a fórmula para fazer uma órbita elíptica de um foguete sobre a Terra. Ele sabia tudo, não sei como ele sabia, mas sabia, sem ostentação, o que vinha na hora.
Chegamos lá, conversamos, e ele estava muito preocupado com a situação do Brasil naquele momento. Princípio de março de 1964, veja bem a data. Eu estava conversando isso com ele, quando chegou o Renato Archer, de quem eu era amigo, tinha trabalhado junto com ele quando o San Thiago tinha sido Ministro, e eu disse: “Este Governo está acabado, isso não existe mais”. E o Renato discutiu comigo :”Não, não, não, você não sabe nada disso”. Eu disse: “Sei”. – “ Nós temos um esquema militar imbatível” – este é um depoimento curioso, eu vou dar para vocês. “Temos um esquema militar imbatível”. Eu disse: “Que esquema militar vocês têm?” “Generais conosco, ninguém derruba este Governo”. Eu disse: “Escuta, vocês têm os seguintes generais: General Odilo, um general de esquerda e apóia vocês; o Chefe da Casa Militar, Assis Brasil, que apóia o Jango, mas ele não tem comando, não tem tropa nenhuma, força não tem nenhuma; tem o General Kruel, em São Paulo, que é amigo do Jango, mas se você puxar um lenço vermelho ele diz que você é comunista, tem horror. Na hora em que disserem que o Jango é comunista ele derruba o Jango, não tenha dúvida, porque ele só pensa nisso; e o Ministro da Guerra, evidentemente, está ao lado do Presidente, não tem mais ninguém, porque na hora em que o Presidente tinha acabado de nomear Chefe do Estado Maior do Exército, General Castello Branco, é porque ele não tem mais nenhum general, porque esse conspira contra ele, todo mundo sabe. Nomeou Castello Branco é porque não tem mais outro general para nomear, não tem mais ninguém”. Aí o Renato disse assim: “Você não é político e não é militar, fica metido a falar coisas que você não entende” (Risos.). Eu disse: “Você é as duas coisas, mas está errado, não tem esquema nenhum”.
Conversa que o San Thiago ouviu. Uma hora ele disse assim: “Vamos almoçar lá no Copacabana Palace, no Bife de Ouro?“ Eu disse: “Vamos”. O Jango estava hospedado naquele apartamento que ele tinha ali no Edifício Chopin.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Essa conversa foi na frente do San Thiago Dantas?
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - Foi com o San Thiago e com o Renato, no terraço da casa dele. O San Thiago não falava, estava só ouvindo, mas com um ar pensativo, até meio triste, já estava bem doente, coitado. Tinha acabado de ser Ministro da Fazenda. Ele foi Ministro do Exterior, foi Ministro da Fazenda, derrubado por Brizola, não é verdade?. Depois ele não tinha pasta, não tinha cargo nenhum, e estava querendo organizar a Frente Única, juntar aquilo que o Carlos Lacerda também quis.
Bom, no almoço, eu falei muito mal do Governo: “Este Governo anda péssimo, isso não pode continuar”. Fiz muita crítica. Aí, o San Thiago disse assim, me deu uma gozada: ”Você está maduro para fazer política, viu?” – “Deus me livre, porque eu nunca fiz política”. Ele disse: “Por que você diz isso? Porque quando a gente começa a achar que tudo está ruim, então você vai lá fazer; se eleja e vá fazer; se você quiser, eu elejo você”. Eu disse: “Deputado por que partido?” Ele disse: “PTB, que é o meu partido”. Eu disse: “Nem pensar; eu não sou a favor desse seu partido”. – “Então outro”. “Não, eu não gosto de nenhum partido, nem UDN, nem PSD. Eu não quero. Política não é comigo, não; minha política é outra”.
Bom, aí acabou o almoço, e ele foi e disse assim: ”Vou visitar o Presidente”, o Jango. “Você quer vir comigo?” – “Quero”. Eu já tinha pedido ao Araújo Castro, que era Ministro então, que me levasse ao Presidente para eu apresentar meus respeitos a ele. Afinal, eu era embaixador dele.
Chegamos ao apartamento dele, simples, apartamento modesto, aqui no Edifício Chopin; esperamos um instantinho, ele entrou na sala, puxando aquela perna dele: “Oh, Ministro, prazer em vê-lo”, me deu um abraço. “Você está contente? Você está em Viena, não é?” – “O senhor me mandou para lá”.– “Você está contente lá?” Eu disse: ”Contentíssimo”. “Não, não, lá é um posto que não tem importância; você precisa vir para cá para o Brasil”. – “Não, Presidente, está ótimo.” Eu não fico aqui coisa nenhuma. Ele, nesse tempo, mudava de Ministro a cada 2 meses. Vai ver que ele está querendo que eu seja Ministro. Nem pensar, não podia, impossível, não estava combinando com ele.
Aí eu disse: “Vim só apresentar meus respeitos. Muito obrigado, Presidente”. Ele disse: “Não, fica aí”. – “Não, o senhor vai conversar com o Ministro San Thiago Dantas e eu não devo estar presente”. Ele disse: “Não, eu faço questão que você fique”. Aí o San Thiago disse: “Se o Presidente está mandando, você fica”. Meio constrangido, mas fiquei, achando que estava atrapalhando; não ia dizer nada evidentemente, mas a minha presença podia ser constrangedora.
Aí o San Thiago disse assim: “Presidente, por que o senhor nomeou Ney Galvão em substituição ao Carvalho Pinto para Ministro da Fazenda?” Tinha havido umas cartas do Carvalho Pinto, era um momento que tinha acontecido na véspera essa nomeação. Aí diz o Jango: “Por que, professor?” — chamava ele de professor. Ele disse assim: “Porque é uma nomeação, francamente, muito pobre. Ele não é nem honesto. Quer dizer, como é que o senhor pode nomear Ministro da Fazenda uma pessoa assim?”. Aí diz o Jango: “É, talvez, mas ele tem uma grande vantagem: eu posso demiti-lo na hora em que eu quiser, porque ele não tem apoio político nenhum”.
E eu cá comigo: não é possível! Que critério para nomear um Ministro da Fazenda é esse, num momento de crise terrível como o que estávamos vivendo? Ouvi aquilo estupefato. E o Jango emendou dizendo assim: “Aliás, isto aqui vai de mal a pior. Porque esse Brizola fica escalando sobre mim dentro do meu partido. Ele quer a liderança do partido, mas eu não posso dar a liderança para ele. Então eu escalo sobre ele. Ele escala sobre mim, e eu escalo sobre ele. Isso vai acabar mal”. Foi acabar num golpe militar. Isso era mais ou menos dia 8 ou 10 de março.
“Eu, para que partido posso ir? Para a UDN? Carlos Lacerda não me aceita lá. PSD? Amaral Peixoto? Amaral Peixoto tem sua Presidência e não quer dividi-la comigo. Eu não posso ir para lá. Tenho de ficar no meu, o PTB. E eu não posso perder a liderança para Brizola. Agora, para não perder a liderança, tenho de escalar a cada dia”. Vai acabar num golpe.
Juro que a conversa foi essa mesmo. Eu tive a visão de uma personagem de tragédia grega, em que tudo vai-se encaminhando para um final trágico, e os protagonistas não podem evitar, porque os deuses já decidiram que vai ser assim. Se ele disser uma palavra ou fizer um gesto, não acontece. Mas ele não disse a palavra nem faz o gesto. Foi uma coisa extraordinária essa conversa. Me ficou gravada. Estou vendo hoje essa conversa.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Ele não tinha saída.
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - Não tinha saída? Tinha, se ele tivesse se rebelado. Mas ele não conseguia. E deu naquele comício, 20 dias depois, aquele comício da Central do Brasil, quando ele se empolgou com a mulher, discursou e tudo o mais. Era um comício que prometia fechar o Congresso para passar reformas, o diabo a quatro.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Todo o Partido Comunista presente...
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - Bem, mas você me perguntou sobre o Paraguai, não é? Vamos encerrar agora, porque já falei demais.
Veja bem, eu cheguei a Viena em 1962, no Governo João Goulart. Lá fiquei de 1962 a 1966. No meio de minha gestão lá, houve a Revolução de 1964. Fiquei sob suspeição, porque eu havia sido chefe de gabinete de San Thiago Dantas, que tinha idéias que se diziam um tanto nacionalistas. Havia a suspeição de que eu seria um subversivo, um comunista, sei lá o quê. Cheguei a constar de uma lista para ser cassado. Eu, tranqüilo. Paciência. Não cometi nada disso. Querem fazer? O que eu posso fazer?
Um dia recebo um telegrama assinado “Exteriores”, que dizia o seguinte: “O Governo da República, confiante na lealdade de V.Exa. para com a Revolução, oferece a chefia da missão da Embaixada do Brasil no Paraguai, missão importantíssima, onde temos uma crise gravíssima neste momento. Aguardo sua resposta”. Respondi: “Fico muito honrado com esse convite, porque realmente é um posto de combate, e é muito lisonjeiro que me seja oferecido. Mas não posso aceitar, porque a minha lealdade não é para com a Revolução, e sim para com o Brasil. De modo que, nessas condições, eu não aceito”. Então chamei meu Ministro-Conselheiro, André Mesquita, e disse: “Vou-me embora para o Brasil. Vou ser cassado. Você assuma a Embaixada, porque evidentemente o próximo telegrama vai me comunicar que estou demitido”.
Não. Passaram-se uns 5 dias e recebi outro telegrama, anulando o telegrama que me mandaram: “Rogo anular o meu telegrama número tanto e o seu telegrama” — a minha resposta; anulava ambos. E, em seguida, veio outro telegrama, que dizia: “Rogo a V.Exa. responder se aceita ser chefe da missão do Brasil no Paraguai, posto que consideramos da maior relevância neste momento etc.”. E aí, sim, respondi: “Com muita honra, com muito prazer”.
Ainda houve esse pequeno incidente. Mas veja que as coisas são curiosas. Nunca imaginei que eu ia ser Ministro de um governo da Revolução. Não é uma coisa curiosa isso que me aconteceu na vida? (Risos.)
Mas, quando cheguei ao Paraguai, cremaram uma bandeira brasileira, em Assunção, na rua principal, em minha homenagem, e a embaixada amanheceu toda pichada: “Fora o invasor brasileiro!”
Vocês todos se lembram do episódio que nós tivemos da disputa de fronteira. Mas acho que isso é para outra entrevista, porque isso é muito comprido. Só quero dizer o seguinte: cheguei em dezembro de 1966 lá e saí em dezembro de 1967. Fiquei só 1 ano.
Essa situação reverteu completamente, porque, na primeira conversa que o Ministro do Exterior teve comigo, Sapena Pastor, me fez uma objurgatória terrível quanto à atuação do Brasil na fronteira, dizendo que o Brasil estava arrancando marco de fronteira. Tratava-se da fronteira das chamadas Sete Quedas.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Foi o Juracy?
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - É, o Juracy tinha assinado a Ata das Cataratas, e ficou nisso. Mas o negócio não parou, porque as Sete Quedas — eu quero ser breve, mas sou obrigado a contar isso, não tem jeito —, na verdade, eram vinte e tantas quedas. A queda principal era a que eles chamavam de quinta queda; nós todos a chamávamos de quinta queda.
Em 2 palavras: a fronteira do Brasil com o Paraguai — só tem de um lado, porque do outro lado já é o Rio Paraguai; mas é só no norte — estende-se de Foz do Iguaçu até essa quinta queda das Sete Quedas, que é a principal, pelo talvegue do Rio Paraná. Refiro-me à fronteira fluvial. No meio do rio é a fronteira. Daí, defronte das Sete Quedas, o Rio Paraná continua para o norte e passa a ser rio brasileiro — inflectindo-se, em ângulo reto para a direita, começa uma linha de fronteira seca, que pega divisores de água da cadeia de monte de Amambaí até chegar ao Rio Apa, onde pega o talvegue desse rio e vai até o Rio Paraguai, onde acaba na foz do Rio Paraguai, e então acaba a fronteira do Brasil com o Paraguai.
O problema era que, na altura da quinta queda, o Paraguai achava que a fronteira era 2 quilômetros mais abaixo, o que daria ao Paraguai a soberania sobre a quinta queda, que era uma cachoeira com potencial colossal, evidentemente, de produção de energia elétrica.
Quando eu cheguei, no primeiro dia, na primeira conversa que tive com Sapena Pastor, ele se queixou que tinha havido problemas lá de arrancar marco, no campo de pouso de avião paraguaio, Porto Coronel Renato, pequeno destacamento. A bandeira brasileira estava, eles arrancavam a bandeira brasileira, um inferno! Estou resumindo porque é muito comprido. Mas o que importa é isso.
Então, eram 2 quilômetros mais ao norte, e esses 2 quilômetros estavam gerando um problema que estava virando guerra. Porque o paraguaio é um povo nobre, pelo qual fiquei com grande admiração, mas que só conhece 2 sentimentos: o amor e o ódio. E é um povo suicida. Eles se metem numa campanha dessas como provou na guerra da Tríplice Aliança. Morrem, mas não se entregam nunca, não é? É uma gente brava, de sentimentos primitivos. Então, o ódio contra o Brasil lá era total, porque o governo espalhou isso.
Eu entrava numa loja para comprar uma coisa, e ninguém me servia. Já sabiam que era Embaixador do Brasil. Já estavam me conhecendo. A situação estava nesse ponto.
O Sapena Pastor se queixou, e eu disse: “Ministro, eu não vim aqui discutir com o senhor problema de fronteira”. “Mas como? Esse é o problema que nós temos”. Eu disse: “Eu não vim discutir problema de fronteira com o senhor porque o senhor não tem razão, historicamente, geograficamente e geologicamente. Eu estudei muito esse problema antes de vir para cá. Eu sei que o senhor não tem razão”. Ele retrucou, mas eu disse: “Não, o senhor me deixe terminar. O senhor não tem razão, mas o senhor não pode mais voltar atrás, porque a opinião pública toda já está no Paraguai mobilizada para reivindicar essa fronteira. O senhor não pode voltar atrás. Por outro lado, nós não podemos conceder nada ao senhor, porque ninguém concede território. Soberania é uma coisa sagrada. O País que concede um território está liquidado. O governo cai. Não existe isso. Portanto, esse é um problema que não tem solução. Nem o Barão do Rio Branco resolveria esse problema em termos de fronteira, porque é um problema em que uma das partes acha que não há problema. Nós achamos que não há problema nenhum”. “Então, o que o senhor propõe?” “Eu proponho que a gente pense numa solução de envolvimento bilateral econômico tão grande que esse problema desapareça, de cooperação com o Paraguai (ininteligível)”. “Que tipo de programa?” “Vamos fazer uma hidrelétrica nessa zona, partilhada entre o Brasil e o Paraguai?” Ele perguntou: “E a cachoeira?”. Eu disse: “Ela vai submergir; deixa de existir. É uma pena, porque é uma beleza da natureza, mas isso significa muito e pode ser uma grande hidrelétrica”. “E como é que se faz isso?” “Tem que fazer um estudo de viabilidade”. “Nós assinamos um acordo — nós 2, o senhor e eu —, uma nota reversais, criando uma comissão mista, que encomendará um estudo de viabilidade a um consórcio estrangeiro. Não deve ser nem brasileiro nem paraguaio, para ser imparcial. Essa é uma idéia geral. Os termos da nota a gente combina depois”. Ele disse: “Eu vou pensar”.
Eu voltei para a embaixada e, no dia seguinte, às 6 horas da manhã, toca o telefone na minha cabeceira. Era o chefe de gabinete do Stroessner, que me disse assim: “O Presidente está lhe esperando dentro de meia hora”. Não tinha marcado audiência nenhuma. Então, fui como estava, de qualquer jeito. Não pude nem fazer barba, porque não dava tempo.
Cheguei lá, o Stroessner disse: “O senhor me desculpe chamá-lo a esta hora, embaixador, tão cedo assim”. Eu disse: “Oh! Presidente, eu começo a trabalhar às 4 horas da manhã. Isso para mim não é nada”. Eu estava dormindo. Ele disse: “Você teve uma conversa com o Ministro Sapena que me interessou. Quer me expor melhor isso?” Eu expus. E ele disse: “E a nossa reivindicação da fronteira?” Eu disse: “Enquanto estiver sendo feito o estudo de viabilidade, congela-se o problema. Depois do estudo pronto, a gente verifica se faz ou não uma hidrelétrica. O senhor não perde nunca a sua causa. Continua com ela. Não renuncia a ela, mas também não continua, porque nós somos obrigados a replicar. E não se fala no assunto”. “Me interessa essa idéia”. Eu disse: “Vamos criar um complexo de interesses tão grande que isso é até uma coisa secundária. Dois quilômetros não são nada.” Ele disse: “Então você fala com o Sapena”. Falei com o Sapena e fiquei com um projeto de nota. E aí me dei conta de que não tinha instrução para fazer isso. E agora?
Telefonei para o Rio — o Ministro ainda era o Juracy — e contei o que tinha acontecido. O Ministro disse: “Mas eu não lhe dei instrução para isso”. Eu disse: “É verdade. Excedi o meu mandato. Mas não é uma boa idéia?” “É, a idéia é boa. Vá em frente. Continua! ”. E aí começou a aventura de Itaipu. Nascia Itaipu nesse momento.
Aquilo que pensávamos que seriam 50 quilômetros a jusante da quinta queda, que era em Porto Mendes, verificou-se, pelo estudo de viabilidade, que não era lá. Devia ser muito mais abaixo, quase em Foz do Iguaçu, o que nos deu o problema com a Argentina, desnecessariamente, porque a Argentina não tinha a menor razão.
Então, eu passei a nota, foi criada a Comissão, encomendou-se o estudo de viabilidade a um consórcio ítalo-americano, o que havia de melhor na época, e o Brasil financiou esse projeto que nos custou 6 milhões de dólares. Depois descontaria isso da conta do Paraguai. Consegui isso também do governo brasileiro, que fizesse essa aposta.
Eu aí fui ser Secretário-Geral, fui ser Embaixador em Washington. Enquanto isso, estavam fazendo o estudo de viabilidade. E parou o assunto completamente. Quando voltei de Washington para ser Ministro, 2 ou 3 meses depois, entraram em meu gabinete o Dias Leite, Ministro de Minas e Energia, e o Mário Bhering, Presidente da ELETROBRÁS, 2 figuras admiráveis, com um calhamaço deste tamanho, e disseram: “Esse é o estudo de viabilidade”. Tinha acabado o estudo de viabilidade. “Agora o problema é seu. Você negocia isso com o Paraguai”.
Então, quero dizer que o diplomata raramente começa e acaba uma coisa. Ele é transferido, o assunto evolui. Eu tive a sorte e a felicidade de que comecei este problema com esta conversa, dando essa idéia e, sem que tivesse sido feito nada, voltei, negociei durante 3 anos e, em 20 de abril de 1973, assinei o acordo de Itaipu em Brasília, na frente dos 2 presidentes. Sapena e eu assinamos o acordo de Itaipu.
A princípio, ia se chamar Sete Quedas, mas o Paraguai propôs o nome de Itaipu, que quer dizer, em guarani, água cantando na pedra. Belo nome! Não é? Na língua guarani que eu nunca consegui aprender - é uma bela língua — para a guerra e para o amor, dizem eles!
Mas, então, devo confessar que minha embaixada em Assunção não foi um posto, foi uma missão que se realizou felizmente, graças a Deus, porque nos deu 12 milhões e 600 mil quilowatts de energia que, se não tivesse sido instalada, o parque industrial de São Paulo teria parado.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) – Agora, o que se diz é que aquilo era uma obra ditada por interesse de natureza geopolítica, é uma bomba. O Délio Jardim de Mattos me disse uma vez que quem ia proteger Itaipu era a Força Aérea Argentina.
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - Ignorância. Não é nada disso. Uma vez ouvi um Senador na televisão — não vou dizer o nome, porque até o aprecio e não quero falar mal —, no ano passado, fazendo um discurso com a maior leviandade. Ele dizia: “E aí, para satisfazer a vaidade de uns generais, fizemos uma obra faraônica, sem a menor necessidade, que foi essa tal de Itaipu”.
Dizer uma coisa dessa? Um Senador da República não tem direito de dizer uma coisa dessa, porque é de uma ignorância. Se não tivesse havido Itaipu, o Estado de São Paulo parava! parava mesmo! Porque nós estávamos com fome de energia. O Brasil crescia a 11% do seu PIB, ao ano, nessa ocasião. Não era uma fantasia.
E há também uma outra teoria, que explico no meu livro. O homem que fez a hidrelétrica de Paulo Afonso, o engenheiro Marcondes Ferraz, achava que devíamos desviar o curso do Rio Paraná para o Brasil, fazer uma hidrelétrica no Brasil e depois devolver o rio outra vez para o seu curso. Você já imaginou isso? Um roubo internacional. Não haveria corte de Justiça que não desse razão ao Paraguai. E era guerra! Fazer uma coisa dessa é um ato de guerra! Inacreditável! E tem mais: Marcondes Ferraz, um homem por quem tenho o maior respeito...
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Eu queria falar isto: a glória da engenharia do Brasil, Marcondes Ferraz, disse aqui no Congresso que, se se recuasse 1 quilômetro, saindo do território do Paraguai, seriam perdidos 1 milhão de quilowwatts e se faria a usina unicamente no Brasil.
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - Era o plano dele. Mas tinha outra coisa: ele não tinha plano nenhum. Ele tinha o traço da engenharia no escritório dele. Porque nunca fez estudo de viabilidade. Quando foi feito o estudo de viabilidade, verificou-se que ali não podia ser feita uma hidrelétrica, porque é um basalto muito friável e que não agüenta as fundações de uma grande hidrelétrica. As fundações de Itaipu são da altura dos edifícios da avenida central. Isso é o alicerce de Itaipu. E ali não cabia.
Nós pensávamos em fazer 50 quilômetros a jusante — era o plano da ELETROBRÁS. O estudo de viabilidade indicou que também não era o ideal, porque o rio seguia pelo cânion, e o aproveitamento máximo era onde foi feita.
Mas lá onde o nosso bom engenheiro Marcondes Ferraz indicou, homem pelo qual sempre tive respeito, estava completamente vidrado nessa idéia, e estava errado. Você não faz idéia do que eu sofri, porque ele me telefonou no dia em que eu ia assinar o acordo, às 8 horas da manhã, e disse: “Peço-lhe, pelo amor de Deus, que sua mão não segure nessa caneta para assinar esse acordo contra o Brasil”. Eu respondi: “Não me dê tristeza num dia de tanta alegria”. Ele disse: “Eu sou contra”. Eu disse: “O senhor quer falar com o Presidente sobre isso antes?” Ele disse: “Quero”. “Eu vou arranjar uma audiência”. Fiz ele falar com o Presidente Médici, que o ouviu delicadamente e depois me chamou e disse: “Não faz sentido o que ele está dizendo, não tem sentido”. Como é que se pode imaginar a idéia de desviar o curso de um rio, que é um rio internacional, é um rio que faz fronteira, fazer uma hidrelétrica aqui, num lugar em que não se pode fazer, porque é ruim, porque é um basalto friável, não agüenta alicerces grandes, e depois pegar o rio e levá-lo de volta!? Qual é o país que vai agüentar uma coisa dessas? E um país que já estava quase em guerra conosco!.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Paraguai e Argentina.
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - Não, depois entrou a Argentina na história, que não queria que a gente fizesse Itaipu. Mas essa é outra conversa muito comprida.
O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Existe realmente esse risco de Itaipu, se abrirem as comportas, inundar Buenos Aires ou é só um mito?
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - É claro que não! (Risos.)
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) – É o que dizia Délio Jardim de Mattos.
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - Os argentinos deram 3 razões para serem contra. Querem que eu conte isso? Mas já está tão tarde! Eu não me incomodo, mas estou tomando o tempo de vocês. Não vai caber no programa, porque isso agora já é muito comprido, vão ter que cortar alguma coisa. (Risos) Cortem os seqüestros, cortem o que quiserem, mas não cortem isso, não, nem a África, que é a menina dos meus olhos. África, Itaipu e 200 milhas não me cortem, não. (Risos.)
(comentários ininteligíveis)
Chegou um momento em que houve a Conferência do Meio Ambiente de Estocolmo, a primeira conferência. A segunda conferência foi a Eco, aqui no Rio. Nessa conferência, a Argentina apresentou a tese dela de consulta prévia. Num rio de curso internacional não se pode fazer nenhuma obra sem consultar o ribeirinho a jusante, inferior, para não causar prejuízos sensíveis a ele. Então, não podíamos fazer nada sem consultar, era a tese argentina, na Declaração de Assunção, que eu a subscrevi. Achei ótima a teoria, porque dizia assim: nada que possa causar prejuízo sensível ao vizinho ribeirinho. Então, o ônus da prova tinha que ser do vizinho ribeirinho de que nós causaríamos um prejuízo sensível. Eles em 3 anos lutaram contra mim e não conseguiram provar isso. O que eles queriam era nos levar à corte de Justiça internacional de Haia para embargar nossa obra, dizendo que ia prejudicá-los.
Quais eram as razões que alegavam os argentinos, afirmando que íamos prejudicá-los? Primeiro é que ia romper a barragem e ia inundar território argentino. A segunda razão é que ia criar caramujo, xistosomose, contaminar as águas do rio. E a terceira razão é que com essa cota que tínhamos, de 12 milhões e 600 mil quilowatts, nós íamos diminuir a cota da represa de Corpus, que a Argentina queria fazer com o Paraguai. Lembram-se disso?
Quando chegou ao final da Conferência de Estocolmo, eles estavam com a grande maioria a favor deles, e tínhamos 7 ou 8 países somente que nos defendiam nisso; é o art. 20 da Convenção. Mas lá em Estocolmo só se podia resolver por consenso, não por voto. De modo que foi aprovada a Convenção e ficou o ponto 20 para ser discutido na Assembléia Geral das Nações Unidas, que se realizaria daí a meses.
Começamos a negociar com a Argentina, para ver se ela cedia nisso. Não cedia, e chegou um momento em que ela disse ao nosso Embaixador em Buenos Aires — estava sendo negociado em Buenos Aires —: “O Brasil precisa entender que nós estamos negociando de um ponto de vista vencedor, de modo que não vamos fazer concessão alguma”. Aí mandei dizer ao nosso Embaixador: “Isso é um desaforo muito grande. Diga aos argentinos que nesse ponto não negocio mais. Vou à Assembléia da ONU, na semana que vem, e o chanceler argentino também vai, Brigadeiro Mac Loughlin, e lá vou discutir isso com ele”. Então fomos. Lá nos encontramos.
Durante 4 dias e 4 noites, sem dormir, discutimos esse assunto, procurando fazer uma resolução para apresentar à Assembléia, conjunta, dos 2 países, e mais o Paraguai. Mas o Paraguai estava de fora. A discussão era Brasil e Argentina. O Paraguai faria o que disséssemos. No fim de 4 noites sem dormir não tínhamos chegado a uma conclusão, e eu, na Embaixada argentina, na ONU, por volta de 2 horas da manhã, disse: “Olha, Chanceler, vamos fazer o seguinte: vamos pedir aos nossos assessores, inclusive aos nossos embaixadores, que se retirem da sala, para nós 2 conversarmos sozinhos, tête-à-tête”. Eles ficaram meio assim... “Depois, naturalmente, vamos dizer o que conversamos, mas o que vou dizer ao senhor não pode ser dito na frente deles”. Ele disse: “Está bem”. Saíram, e eu disse: “Olha, os senhores argumentaram 3 coisas para não concordarem com a construção de Itaipu. Vamos examiná-las. Primeiro, a barragem. A barragem vai estourar. Os nossos barrageiros são os melhores do mundo; são considerados como tal, não é ufanismo isso, não. Têm experiência e fizeram todo o complexo de Urubupungá, Ilha Solteira etc., tudo, tudo. Nós temos barragens por este País afora”.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Começaram por São Francisco.
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - São Francisco. “E nunca rompeu barragem nenhuma. Mas quem sabe agora pode ser que rompa, não é?. Então, muito bem. Estou convidando neste momento, oficialmente, o senhor a mandar um grupo de engenheiros argentinos especializados para estudar e construir conosco essa barragem, para os senhores terem garantia de que ela é firme”. Ele disse: “Não, não é preciso”. “O senhor recusa?” “Não, não é preciso”. Então, o primeiro argumento.
O segundo: vai dar caramujo nas águas. “Posso dizer ao senhor que uma coisa não vai acontecer? Está bem, o senhor mande um grupo de sanitaristas seus, para estudar conosco essas águas até nós fecharmos completamente a barreira. Agora, quero dizer o seguinte: nunca deu nenhum caramujo no Rio Paraná, e depois os senhores lá em baixo vão ter caramujo se der para nós também. Isso não é argumento. Mas estou convidando um grupo de sanitaristas para vir. O senhor quer mandar?” “Não, não é preciso”.
“O terceiro argumento é que os senhores dizem que nós prejudicamos a cota de Corpus com a nossa cota”. Ele disse: “É, isso realmente nos preocupa muito”. As outras ele descartou, sabia que eram simplesmente para nos atrapalhar. Eu disse: “Aí quero dizer ao senhor o seguinte: primeiro de tudo, Itaipu é um acordo internacional praticamente feito — já está quase fechado, vamos assinar —, houve um amplo estudo de viabilidade, é um projeto, e os senhores têm uma aspiração, não é um projeto, nunca fizeram um estudo de viabilidade, nunca conseguiram do Paraguai o consentimento para fazer essa barragem” — que era internacional, binacional, como a nossa. “Nunca conseguiram o consentimento do governo paraguaio. Não têm certeza de que vai ser onde vai ser, porque nós pensávamos que ia ser muito mais ao norte, acabou sendo muito mais ao sul e talvez seja mais embaixo. De modo que estamos discutindo um projeto contra uma aspiração. É impossível uma discussão dessas. Mas tem mais o seguinte: a cota de Corpus que os senhores querem fazer, se isso não os satisfizerem, digo mais o seguinte, essa cota invade o território brasileiro, e nós não vamos deixar o senhor invadir o território brasileiro com sua represa. Ela invade o território brasileiro. Nós já estudamos isso. O senhor sabia disso? Posso lhe dar os estudos. A sua cota de Corpus invade o território brasileiro, de modo que nós não vamos deixar o senhor fazer essa cota”. Aí ele parou e disse assim: “E então?” Eu disse: “Bom, então é o seguinte: não é um capricho nosso fazer essa hidrelétrica, Ministro. O Brasil está crescendo, nós temos fome de energia. Se não fizermos essa represa, o nosso parque industrial de São Paulo, como já disse, vai fechar. Não temos energia suficiente, não é nem para crescer, é para manter. Isso nós vamos fazer porque nós precisamos. Temos certeza de que os senhores não vão ser prejudicados. Não há nada que impeça a gente de fazer isso, a não ser uma coisa”. Ele disse: “Qual é?” Eu disse: “Guerra. Declare guerra ao Brasil. O senhor é militar e entende o que estou dizendo”.
Chega um momento em que diplomata tem que ser duro, porque não tem jeito. Foi o único argumento. “Isso é uma guerra, porque nós vamos fazer. Qualquer discussão que a gente tenha, parta do ponto de vista de que vai ser feita a hidrelétrica. Daí em diante nós chegaremos a um acordo. Mas que ela vai ser feita, vai. Os senhores não querem eu sei por quê. É porque o senhor acha que o norte despovoado da Argentina vai ser sugado geoeconomicamente pela produção de energia brasileira”.
Eu sabia disso porque o antecessor dele tinha-me confessado isso. Eu não podia dizer para não denunciar o homem. Pablo Pardo tinha-me dito isso e eu fiquei pasmo. Aí ele parou. A embaixada Argentina fica na margem do southwest, em Manhattan; bonita embaixada. Eu não sei se ainda é a mesma. É escuro do outro lado. Ele foi até a janela, numa distância assim, e ficou olhando, de costas para mim, para fora. Ficou uns 5 minutos. Quando voltou disse assim: “O senhor tem razão. Vamos assinar esse acordo”. (Risos.)
Disse isto! Uma coisa maravilhosa que aconteceu, um milagre! “O senhor tem razão”. Eu disse: “Então, vamos fazer o seguinte, vamos apresentar uma declaração conjunta que satisfaça aos 2 países, e ao Paraguai também, naturalmente”.”Pois não!” Assinamos o projeto, que tínhamos que entregar às 10 horas da manhã. Era o último prazo para entregar a resolução na Assembléia da ONU. Saí dali já eram 7 horas da manhã. Telefonei ao Sapena Pastor e disse: “Sapena, fizemos isso assim, assim e assim. Desculpe não termos botado você nessa discussão”. Ele disse: “Não, a minha instrução é de acordo com o Brasil”. “Então, quero que você assine também. Passei no hotel dele, e ele assinou”. Disse ao nosso Embaixador na ONU: “Convoque o grupo latino-americano, para que o grupo latino-americano assine também isso na ONU”. Esse era um projeto de resolução latino-americano, que foi apresentado, pra grande escândalo da Assembléia, que pensava que ia haver a maior guerra do Brasil naquela ocasião, e presenciaram a paz total.
Foi aprovada, por unanimidade, pela Assembléia da ONU, com abstenção do grupo soviético; não foram contra, abstiveram-se. Foi um rolo compressor aquela resolução, com aplausos etc.
No dia seguinte, eu embarcava para o Brasil, ele, para Buenos Aires. Marquei um encontro com ele nas Nações Unidas e disse: “Olha, Ministro, meus parabéns. O senhor fez o certo. O senhor pode ter certeza de que não prejudicou o seu país. Nós temos muita coisa para fazer juntos, Brasil e Argentina. Não queremos nenhuma hostilidade. É importantíssima uma ligação Brasil/Argentina. Brasil e Argentina juntos são mais do que 1 mais 1 igual a 2. É uma potência que se forma. Não queremos hostilizar os senhores em nada. Mas é uma coisa da qual precisamos, e não prejudica os senhores. Agora, a opinião argentina está muito movida contra isso, é muito violenta”. Realmente Rojas (Isaac) que fazia uma campanha terrível, não é?. Eu o conheci muito, quando fui Ministro-Conselheiro em Buenos Aires. Eu me dava com ele. Eu disse: “O senhor vai ser crucificado quando chegar lá, e eu fico com pena, porque o senhor é homem de bem, é patriota, o senhor fez o correto, mas não vão lhe entender. Então, faça o seguinte: quando o senhor chegar lá, o senhor apresenta isso como uma vitória da Argentina sobre o Brasil. Diga que a Argentina conseguiu uma resolução com o Brasil que beneficia a Argentina. É uma vitória sua. Apresente assim”. Ele disse: “Mas o senhor como é fica, se eu disser isso?” Eu disse: “Eu não me preocupo, não. Eu me defendo, pode deixar. Nem vou discutir com o senhor, não vou dizer nada”. Ele fez. Chegou lá, convocou a imprensa e disse isso. O meu pessoal lá do gabinete, em Brasília — Luizinho Barbosa, Flávio Almeida Sales, o pessoal que estava sempre ali em cima, permanentemente no Itamaraty — veio para mim direto: “Como é? O Chanceler argentino disse que o Brasil foi derrotado nas Nações Unidas, que eles conseguiram a resolução como eles queriam”. Eu disse: “Vocês já leram a resolução?” Eles disseram: “Não”. “Então vocês levem para casa e leiam. Eu não digo mais nada”. E houve um silêncio e não ficou em nada. (Risos.)
De modo que estou contando isso com toda essa extensão porque é uma coisa que me emociona até hoje ter tido a sorte de conseguir isso, porque foi sorte e um conjunto também de circunstâncias. Também trabalhei por isso, evidentemente. Eu lutei, tinha as minhas razões, mas podia não acontecer, não é?
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O senhor começou e terminou.
(Interferência)
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) – Falou muito bem, muito bem.
A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Foi um depoimento maravilhoso.
O SR. ENTREVISTADOR (não identificado) - Maravilhoso, Embaixador.
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - Obrigado.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Parabéns. Muito bom.
O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Esclarecedor.
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - Obrigado. Tive muito prazer.
(Interferência)
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - Eu sei que já tomei tempo demais de vocês...
O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Não, imagina!
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - ...mas faço questão de dizer (falha na gravação) em que consiste uma vocação diplomática.
“Se por tal se entende o gosto fútil pelos prazeres mundanos, pelas festas de sociedade, então o equívoco é grave e pode ser funesto. Pois ser diplomata é, antes de tudo, aceitar a condição de estrangeiro, na maior parte da existência. É conformar-se em viver num país que não é o nosso e que nunca nos aceitará totalmente, por mais que nele possamos criar um círculo sempre provisório de relações, num meio em que devemos cuidadosamente respeitar para não ferir susceptibilidades, pois a crítica não é tolerada quando provém de um estrangeiro. É resignar-se a viver longe da família e dos amigos, a ponto de, por causa de prolongadas ausências, faltarem assuntos quando nos reencontramos. É ficar fisicamente afastado do povo a que pertencemos e que forma o nosso substrato psicológico e social. É ter equilíbrio emocional para muitas vezes suportar a solidão. É possuir ou adquirir a qualidade de saber adaptar-se. É ter gosto pela negociação e pela conciliação, resistindo ou cedendo, conforme o caso, para chegar a um fim que nunca será inteiramente satisfatório. É ter a humildade de se converter em um especialista em generalidades e saber pouco de muito, em vez de muito de pouco, o contrário, portanto, que caracteriza (falha na gravação) digo como o Apóstolo São Paulo”: "Terminei o meu caminho, tive um bom combate e conservei a fé”.
A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) – É emocionante mesmo, não é?
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O senhor fez uma (ininteligível) carreira, não foi?
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - Tive uma carreira muito afortunada realmente, mas não conheço maior alegria do que falar em nome do Brasil.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Muito bom, embaixador. Parabéns!
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - Isso me emociona. Se tivesse que recomeçar, faria tudo de novo. Não fiz outra coisa. Quer dizer, ignoro coisas à beça. Saber o quê? O que sei? Conversar, negociar, ser ator.
A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - É a arte da diplomacia, não é?
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - É a conciliação, como o senhor falou também.
O SR. MÁRIO GIBSON BARBOZA - É ter a humildade de aceitar os resultados que nem sempre...