Texto

DEPARTAMENTO DE TAQUIGRAFIA, REVISÃO E REDAÇÃO

 

NÚCLEO DE REDAÇÃO FINAL EM COMISSÕES

 

TEXTO COM REDAÇÃO FINAL

 

PROGRAMA MEMÓRIA POLÍTICA - TV CÂMARA

EVENTO: Entrevista

N°: ESP009/03

DATA: 07/05/2003

INÍCIO:

TÉRMINO:

 DURAÇÃO: 2h09min

TEMPO DE GRAVAÇÃO: 2h09min

PÁGINAS: 33

QUARTOS: 26

 

 

DEPOENTE/CONVIDADO - QUALIFICAÇÃO

 

JOSÉ MINDLIN - Advogado, empresário e bibliófilo.

 

 

SUMÁRIO: Entrevista com o Sr. José Mindlin.

 

 

OBSERVAÇÕES

 

Há falha na gravação.

Conferência da fidelidade de conteúdo – NHIST 1º/07/2010

O SR. JOSÉ MINDLIN - Bom, vamos começar por uma história antiga, né!

Meus pais nasceram na Rússia. Conheciam-se lá, mas saíram de lá em 1905 e se perderam de vista, tomaram caminhos diferentes. Mamãe foi para a Suíça, onde tinha irmãos. Meu pai foi para a França. Entrou na Escola de Belas Artes, porque gostava muito de pintura e de Arte em geral, mas teve lá uma experiência negativa, vendo artistas que pintavam os quadros e, na saída, iam vender para poder comer. Aí ele achou que esse caminho não era muito atraente e preferiu escolher uma outra atividade que lhe permitisse ganhar a vida e comprar coisas de arte, curtir pinturas, gravuras, desenhos. Foi para os Estados Unidos, onde foi dentista prático. Naquela ocasião, em Nova Iorque, não havia necessidade do curso universitário. Ele deve ter trabalhado com dentistas de lá.

Em 1910, papai e mamãe se encontraram em Nova Iorque. Foi naturalmente uma coisa sensacional. Casaram-se e resolveram vir para o Brasil, onde mamãe tinha irmãos. Isso em 1910. Mamãe já estava grávida do filho mais velho, meu irmão Henrique, que no curso da vida foi um dos meus maiores, senão o meu maior amigo, além de irmão. Depois, nasceu minha irmã Ester, que vive ainda. Hoje somos só nós dois vivos. Eu nasci em 1914, e meu irmão Arnaldo nasceu em 1916. Henrique e Arnaldo infelizmente faleceram, e nós é que estamos aqui, os filhos do meio.

Papai e mamãe se ambientaram de uma forma espetacular, como vejo, porque aprenderam rapidamente a língua. Papai teve de fazer o curso de Odontologia para poder exercer a profissão, mas, enquanto estudava, trabalhava com dentistas daqui, que se tornaram amigos. Em poucos meses ele aprendeu português e conseguiu fazer o vestibular na Faculdade de Odontologia, onde se formou.

Eles tiveram a sabedoria de que a língua em casa fosse o português. Nós começamos a falar e falar com eles em português, o que nos permitiu crescer como os brasileiros que somos. É muito comum que imigrantes falem com os filhos a língua do país de onde vieram, e que esses filhos passem a vida falando português com sotaque, o que felizmente não nos aconteceu.

É bem possível também que, além da sabedoria de falar o português, eles quisessem se reservar ao russo para nós não entendermos, para terem as conversas particulares deles.

Acho que nos anos 1918 ou 1919 devem ter vindo uns primos nossos, um irmão de papai. E esses primos aprenderam português conosco, e nós aprendemos o russo com eles. De modo que meus pais perderam o instrumento do segredo, mas não creio que tivesse havido qualquer trauma em casa por causa disso.

Nós aprendemos o russo. Eu até hoje falo russo com razoável fluência. Falo mais ou menos correntemente, mas não corretamente, porque a língua não é fácil, e leio com dificuldade. Sou meio analfabeto em russo.

Nós crescemos também sob uma outra influência importante que foi a influência francesa, que dominava a vida cultural naquele tempo. Tivemos uma governanta russa que falava o francês perfeito, sem o sotaque russo, que não sei imitar bem mas não é bonito. Então, o francês é que ficou sendo a nossa segunda língua. Quando aprendi a ler, a gente lia tanto em francês quanto em português. Naquele tempo, em português, traduções dos Contos de Grimm, de Andersen; Condessa de Ségur; livros franceses; Monteiro Lobato ainda não tinha aparecido. A verdade é que, em 1920, quando eu ainda não lia bem, saiu o Narizinho. Por sinal, no centenário de Lobato, fiz um fac-símile dessa edição original com os desenhos de Voltolino, em um projeto dentro da Metal Leve, em que eu, sem perguntar até para os meus companheiros, fui fazendo reimpressões de revistas do Modernismo, de obras que não se encontravam no mercado. E fazíamos sem qualquer interesse comercial, distribuindo a maior parte da edição e só colocando em livraria para permitir que pessoas que não nos conheciam ou que nós não conhecêssemos tivessem acesso aos livros. E aí publicamos uma porção de coisas. Mas isso é história para mais tarde.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Como é que começou o interesse do senhor pelos livros?

            O SR. JOSÉ MINDLIN - O ambiente em casa era um ambiente cultural. Meus pais eram autodidatas, mas liam. Havia uma boa biblioteca, falava-se muito de autores e de literatura.

Eu tenho aqui, na biblioteca, coisas que papai tinha de moço. Ainda ontem peguei uma biografia de Ibsen com o nome dele escrito em russo, numa encadernação que ele mandou fazer no Brasil que tinha as iniciais dele na lombada, mas que evidentemente ele comprou nos Estados Unidos, ainda quando moço.

Ele tinha paixão por Arte; Artes Plásticas, principalmente. E eu acho que herdei essa paixão, dirigida para livros. Eu gosto muito de Artes Plásticas também, mas, se eu tivesse de optar, e de certa forma optei pelos livros, embora gostando também de Artes Plásticas.

Papai teve, no início, uma formação acadêmica. Ele morreu muito moço, com 52 anos, de modo que não chegou ao Modernismo. Mas, da pintura acadêmica, ele passou para os flamengos e holandeses   dos séculos XVI e XVII. Estudou o assunto e começou a fazer, não propriamente restauração, mas exame técnico. Ele instalou em casa um laboratório; tinha um micrótomo que cortava lâminas de madeira, para verificar se eram madeiras usadas naquele tempo, nos quadros, para poder determinar a autenticidade; estudava os pigmentos. Fez um estudo bastante completo, tanto que, quando houve uma retrospectiva de Rembrandt, em Amsterdam — eu creio que em 1930 ou 1931 —, ele fez a extravagância de ir à Holanda para ver essa exposição, e visitou o Rijksmuseum, que era o Museu Nacional da Holanda, visitou o laboratório, querendo aprender as técnicas. E aí, quando eles viram o trabalho que ele fazia, disseram que ele não tinha o que aprender, que ele já tinha capacidade de fazer a identificação por si mesmo. Ele era realmente um apaixonado disso.

Foi o melhor dentista do seu tempo, em São Paulo. Era conhecido como o “dentista norte-americano”, mas a Odontologia era um meio de vida e não uma coisa que o apaixonasse.

            Mas vamos voltar um pouco para trás, para a infância. Eu nasci em 1914, na Rua Cincinato Braga, e a Guita, minha mulher, nasceu na Rua 13 de Maio. Ou seja, nós 2 nascemos no Paraíso. Tanto a Cincinato Braga como a 13 de Maio eram no Bairro Paraíso, de São Paulo. Mas fomos morar logo na Vila Mariana, onde eu fiquei até os 5 anos de idade.

Tínhamos uns vizinhos. De um lado, eram uns vizinhos alemães que, durante a guerra, nós provocávamos cantando “morra o alemão na boca de canhão”. Era aquela travessura de criança. E, do outro lado, moravam esses primos que vieram da Rússia. E um deles, o Leonido, felizmente ainda vivo, foi meu companheiro de grandes travessuras. Além disso, nós começamos até uma atividade que poderia ser classificada de empresarial. Embora vocação de empresário eu não tivesse, virei empresário por acaso, como também vai aparecer mais tarde. Mas nós tínhamos uma plantação de rabanetes e vendíamos os rabanetes para os nossos pais.

            Com 5 anos de idade — mais ou menos 5, 6 anos —, nós mudamos para a Rua Marquês de Paranaguá. E a última recomendação que eu fiz para o meu primo, do carro, foi: “Cuide dos rabanetes”. Incompreensivelmente, hoje eu não gosto de rabanete, mas não tenho explicação para isso.

            Agora, durante esse tempo... Ainda em 1914, antes de irmos para a Vila Mariana, meus pais resolveram voltar para os Estados Unidos. Eu não sei se houve qualquer problema familiar com os cunhados, irmãos de mamãe; não sei bem a razão, mas eles resolveram voltar para os Estados Unidos. Isso em 1914. Eu tinha umas 3 semanas, 4 semanas, quando nós embarcamos num navio inglês, o Voltaire — o engraçado é que era um navio inglês com o nome de Voltaire —, porque eles não queriam viajar pelo Lloyd Brasileiro, achando que não seria confortável, mas teria sido muito melhor porque o navio foi interceptado, na altura do Pará, por um cruzador alemão, que fez todos os passageiros descerem nos barcos salva-vidas e afundou o navio. De modo que eu, com 4 ou 5 semanas, fui prisioneiro dos alemães. Foi a minha primeira grande aventura na vida.

            Eu queria parar um pouco, pegar uma pastilha de...

            (Pausa.)

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Você foi com eles?

            O SR. JOSÉ MINDLIN - Fomos. Os 3 irmãos: meu irmão mais velho, minha irmã e eu.

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Só para recuperar: o senhor estava no navio, desceram todos do navio, e os alemães...

            O SR. JOSÉ MINDLIN - Afundaram o navio e levaram os passageiros para Belém. Eu não sei por quanto tempo a gente esteve em alto-mar. Não deve ter sido nada agradável.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Claro.

            O SR. JOSÉ MINDLIN - Mas aí eu realmente só sei por ouvir contar. Enfim, a minha prevenção contra os alemães guerreiros...

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O senhor deve ter ficado no braço de alguém, né?

            O SR. JOSÉ MINDLIN - Hã?

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O senhor, com algumas semanas, era um bebê...

            O SR. JOSÉ MINDLIN - É.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Alguém deve ter ficado com o senhor.

            O SR. JOSÉ MINDLIN - Meus pais, né? Eram 3 filhos! Imagina o casal com... Henrique tinha 3 anos e meio, mais ou menos, quase 4; Ester, 2; e eu, bebê.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Tudo bebê.

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Pode continuar, Dr. Mindlin, por favor.

            O SR. JOSÉ MINDLIN - De modo que, como digo, com poucas semanas, eu fui prisioneiro dos alemães. Já é um registro mais ou menos histórico.

A viagem não... Eles chegaram em Belém, e pouco depois passou o navio do Lloyd que eles não tinham querido pegar, e eles seguiram viagem nesse navio do Lloyd.

Mas chegaram aos Estados Unidos e não se adaptaram mais. A estada no Brasil os tinha fixado ao País. Por isso é que eu acho que a viagem tinha sido determinada por algum problema familiar, porque papai tinha-se ambientado perfeitamente no Brasil. E lá mamãe adoeceu. Voltaram para o Brasil no começo de 1915. Estiveram lá poucos meses, voltaram e aí ficaram definitivamente no Brasil.

            A ambientação de papai, por exemplo: além da questão do curso, ele foi um dos primeiros sócios da Sociedade de Cultura Artística, que foi fundada em 1912. Era amigo de Nestor Rangel Pestana, que era Diretor de O Estado e uma espécie de mentor das Artes em São Paulo. Isso mostra a ambientação.

Em 1912 mesmo houve uma exposição de escultura de um artista sueco, Zajic. E eu, por acaso, encontrei um catálogo dessa exposição de 1912 que tinha um busto de papai feito pelo Zajic. Tudo isso são sinais da ambientação dele.

E aí, curiosamente, pelas voltas que o mundo dá, eu me tornei Presidente da Sociedade de Cultura Artística. Estou lá já há alguns anos na Presidência. A Sociedade completou 90 anos, de modo que é um pouco mais velha que eu. Mas é uma sociedade que se mantém durante muitos anos. Eu me lembro do tempo em que cobravam dos sócios 5 mil réis por mês, dando o direito à entrada, nos concertos, de 1 cavalheiro e 2 damas. Foi engraçada a ideia de fazer essa determinação. Eu até quis propor aos companheiros que a gente fizesse 1 dama e 2 cavalheiros. Mas agora não há mais sócios; são assinaturas para as temporadas.

            Mas, então, voltaram para o Brasil, e aí é que devem ter ido para a Vila Mariana, de onde as lembranças que eu tenho não são muitas. Mas uma é dessa plantação de rabanetes, com o meu primo. Outra lembrança que eu tenho é da gripe espanhola de 1918, que devastou a cidade. E meus pais organizaram uma cozinha popular. Eu me lembro dos caldeirões na frente do portão, para distribuir comida para a vizinhança, porque havia muita gente pobre, muita gente que estava com a vida desorganizada por morte de alguém na família. Eu não me lembro desse detalhe, mas depois a gente estudou e viu que foi uma devastação mesmo!

            De modo que com esta história de pneumonia asiática não dá para brincar! A gente nunca deve subestimar os perigos. Em 1932, Hitler era objeto de caçoada no mundo inteiro; em 1933, ele pegou o Poder. É um pouco como o La Peste, de Camus, que vai mostrando como essas coisas vão crescendo.

            E, então, essa pneumonia também não deve ser subestimada como perigo. As epidemias se alastram e, se não há cuidado, as consequências podem ser terríveis.

Mas, enfim, isso eu menciono mais como exemplo do cuidado que se deve ter nas ameaças à coletividade, especialmente políticas, não tanto do ponto de vista sanitário, não é!

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - O senhor estudou, aqui em São Paulo, em colégio público...

            O SR. JOSÉ MINDLIN - Não. Eu estudei na Escola Americana, onde realmente aprendi a ler. Eu entrei em 1922. Não, eu já sabia ler, mas fiz um curso na Escola Americana, e o primeiro ano do Mackenzie. Com um problema: do Mackenzie só se podia seguir Engenharia, porque o curso não era reconhecido. Mas, em 1927, foi permitido um programa especial de ginásio que dava a possibilidade de estudar onde quisesse e fazer exame vago das matérias no ginásio do Estado. E eu aproveitei isso, fiz um exame de Geografia em 1927 e depois terminei o ginásio em 1930. Eu fazia várias matérias aí no Rio Branco; já estudava 4 ou 5 matérias por ano, fazia os exames no ginásio do Estado; e isso me permitiu, depois, entrar na Faculdade de Direito.

            Mas vamos voltar um pouco lá para a Vila Mariana.

A colônia russa e judia era pequena em São Paulo, mas os artistas que vinham eram quase todos judeus russos ou russos não judeus. E eles se reuniam geralmente em casa. Eram recebidos em casa, com os outros amigos da colônia russa. Com isso, por exemplo, nós ficamos conhecendo Anna Pavlova, a grande dançarina, que ficou sendo muito amiga de casa. A cada vez que ela voltava ao Brasil, vinha lá em casa. Então, eu me lembro dela em outras visitas, não nessa primeira.

            Mas mostra que o ambiente era um ambiente cultural. Por sinal, ela trouxe para a minha irmã uma boneca lindíssima, e meu irmão mais velho e uns primos resolveram brincar de Inferno e puseram a boneca num forno que havia no fundo do quintal. E minha irmã acha até hoje que eu também tomei parte nessa travessura, mas realmente não tomei. Destruíram a boneca.

            Então, a gente tem essas lembranças. Mas Vila Mariana era quase uma roça: não havia nada que se compare com o que é hoje. E aí é que mudamos para Marquês de Paranaguá.

Eu entrei na Escola Americana e fiquei até 1927 na Escola Americana e no Mackenzie. Depois fiz os exames vagos. Em 1928 e 1929, eu fiz 10 matérias. Com a de Geografia, que eu tinha feito em 1927, ficou faltando 1 matéria, História, que eu deveria fazer em 1930.

            Mas aí eu resolvi que eu queria trabalhar e disse a papai que eu tinha praticamente todo o tempo vago — era só o curso de História que eu fazia no Rio Branco. E papai perguntou o que eu queria fazer. Eu disse: “Qualquer coisa. Eu faço qualquer coisa, mas eu quero trabalhar e ocupar parte do meu tempo”. E queria um dinheirinho para comprar livros, mas não queria pedir a papai dinheiro para comprar livros que não fossem de estudo.

            Aí papai chegou um dia em casa e disse: “Olha, arrumei um emprego para você. Eu tenho um amigo importador de frutas que precisa de alguém que fique na entrada do Mercado Central, controlando os caminhões que chegam. E você vai, então, fazer isso”. Eu engoli em seco porque não era um trabalho como esse que eu queria, mas, como eu tinha dito que faria qualquer trabalho, eu disse: “Tudo bem! Vamos em frente!”.

            Eu tinha uma certa precocidade, eu acho, naquele tempo, mas que hoje não existe mais. Há bastante tempo que a precocidade desapareceu. Mas aí eu disse: “Vamos”. Aí papai disse: “Não. Eu estou brincando. Eu conversei com o Dr. Nestor Rangel Pestana, e você vai entrar no Estado, como redator e repórter”. Eu tinha 15 anos e meio nessa ocasião. Fui o redator mais novo no Estado. E fiquei até 1934. E foi uma escola magnífica. É uma coisa que... Todo jovem que tenha oportunidade de trabalhar em jornal não deve perder essa oportunidade, porque é um... Você aprende a conhecer a sociedade, os bastidores da sociedade, os bastidores da política; encontra gente a mais variada. E, principalmente, no meu caso, eu aprendi a escrever, com simplicidade, com clareza, numa linguagem acessível a um público médio. E O Estado fazia absoluta questão da correção do texto.

            Então, essa contribuição para mim, eu acho, foi a coisa mais importante até do que eu aprendi como experiência de vida. As 2 coisas são importantes. É difícil dizer qual foi a mais importante.

Mas houve episódios curiosos. Em 1930, O Estado era o  núcleo da conspiração da Revolução. Então, vinha gente do Partido Democrático; todo o pessoal contra o PRP — Partido Republicano Paulista, que era a República Velha; o PRP e o PRM — Partido Republicano Mineiro controlavam a política brasileira. E, no Estado, predominava a presença de oposição a esse regime e de gente do Partido Democrático conspirando para a Revolução de 1930. Então, eu era chamado na sala do Dr. Julinho, o Júlio Mesquita Filho, para transmitir as mensagens e instruções da Revolução para o Rio, onde o Vivaldo Coaracy, que assinava “VCY” nos artigos, era diretor da sucursal. E eu tinha de transmitir as mensagens em inglês para driblar a censura, que era de escuta, e os censores só falavam francês.

            De modo que vemos que era outro Brasil. E, para mim, também foi uma coisa sensacional porque eu, um menino com 15 anos e pouco, estava tomando parte na formulação da Revolução.

            Aliás, todos eram de oposição em casa também. Então, quando Getúlio entrou, foi uma festa; manifestações incríveis de entusiasmo, de aplauso; e que depois mudou muito. Getúlio ficou sendo objeto de grande crítica em São Paulo, que em boa parte foi injusta. Mas isso visto retrospectivamente. Naquela ocasião, São Paulo se tornou contra o Governo do Getúlio.

            Aí veio um primo dos Estados Unidos — porque a família que era da Rússia, uma parte ficou nos Estados Unidos, e uma parte veio para o Brasil, de modo que tínhamos muitos primos nos Estados Unidos — e veio um que já era um bom advogado e convenceu meus pais de que minha irmã e eu tínhamos de ir para os Estados Unidos, estudar lá, porque seriam oportunidades melhores do que aqui. Eu acho que ele tinha-se apaixonado por minha irmã, e o resto, então, tudo foi pretexto para nós irmos. E nós fomos com mamãe; nós 2 e mamãe fomos, eu acho, em setembro de 1930... Não, em 1931, nós fomos em 1931, e até fizemos um semestre na Universidade de Columbia.

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Só uma interrupção. Desculpe-me.

O senhor ficou como redator de O Estado de S. Paulo...

            O SR. JOSÉ MINDLIN - Sim.

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - ... de que período a que período?

            O SR. JOSÉ MINDLIN - Bom, de 1930 a 1934, mas com 2 interrupções. Uma delas foi essa viagem aos Estados Unidos. Por sinal, a redação me fez uma festa de despedida. E eu tenho uma fotografia de toda a redação de O Estado, em que tomam parte Nestor Rangel Pestana, Júlio de Mesquita Filho, e todos os redatores se despedindo de mim e esperando que eu voltasse para o jornal, o que aconteceu mais ou menos 6 meses depois.

Nós fizemos um curso na Universidade de Columbia, curso de extensão universitária.

            Mas era o tempo da Lei Seca. E mamãe ficou horrorizada com os costumes dissolutos: jovens de 13 e 14 anos já procuravam bebidas e tudo. Então, c como mamãe zelava muito pela nossa pureza, resolveu voltar para o Brasil, o que, aliás, foi muito bom. Viemos. E eu me preparei para fazer o vestibular na Faculdade de Direito, onde entrei em 1932, mas continuando no Estado.

Aí vem o período de faculdade, que foi uma coisa também cheia de lembranças. A faculdade era muito politizada naquele tempo, tanto na questão de São Paulo versus Getúlio, porque havia os interventores que controlavam a cidade; tinha cavalaria nas ruas, tinha conflitos, tiroteios... Também foi quando começou a diferença marcante entre a esquerda e a direita.

Na faculdade havia muitos integralistas e muitos comunistas ou simpatizantes do comunismo, que era o meu caso; no meu caso, era uma simpatia, mas não uma participação partidária; era mais no sentido de que a gente estava acordando para os problemas sociais e para a necessidade de mudar a sociedade. E quem falasse em mudar a sociedade era marcado como comunista.

Eu acho que não entrei no Partido Comunista naquela época porque sempre fui muito individualista, e a ideia de disciplina partidária me horrorizava. Então, eu tinha lá as minhas ideias, o meu pensamento, mas estava na posição mesmo de centro ou centro-esquerda.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Quem eram os seus contemporâneos?

O SR. JOSÉ MINDLIN - Olha, uns dos líderes integralistas era Roland Corbusier, Ângelo Arruda. Quem mais? Não sei se vocês se lembram de alguns nomes da época...

Walter Moreira Sales foi também meu colega de turma e teve lá as suas inclinações integralistas, mas foi uma coisa que passou logo. Eu tinha um outro colega, Manuel Ferraz de Campos Salles, neto do Campos Salles, que estava no integralismo, e esse eu consegui convencer a deixar o integralismo.

Assim como eu tinha alguma simpatia pela esquerda, já naquela época tinha um horror à direita. Já achava naquela época que a direita é mais perigosa do que a esquerda, que é o que está acontecendo hoje nos Estados Unidos: esta guinada para a direita, que é uma coisa extremamente preocupante.

Mas uma coisa que aconteceu, interessante, na faculdade, foi que um dia... Deixem-me ver quem eram... Vamos ver se me lembro no curso da conversa. Convidaram-me para uma reunião, em que eu devia me comprometer a manter segredo absoluto. E eu fui. E era a reunião da chamada Bucha, a Burschenschaft, que era uma sociedade de apoio mútuo que tinha sido formada no século XIX, por volta de 1830, por Júlio Frank. Era uma sociedade de apoio mútuo — não era maçonaria, mas era de apoio mútuo mesmo, e que fazia coisas muito parecidas com a maçonaria, porque a política brasileira era dominada por membros da Bucha. Quem denunciou a Bucha, com muita energia, foi o Paulo Duarte, em 1924.

Mas, naquele tempo, os Presidentes da República eram da Bucha; os cargos no Judiciário, os cargos no Congresso eram determinados pela Bucha.

E eu estava sendo convidado, até com promessas mirabolantes: eu iria dirigir um jornal... Mas eu queria saber quem comandava, com quem eu ia lidar. E isso era absolutamente secreto, não era admissível. E aí, pensando com os meus botões, disse: “Não. Não vou entrar numa coisa no escuro”. E recusei o convite, com grande decepção dos colegas que me tinham convidado, porque...

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) – O Júlio Mesquita Neto, o Julinho Mesquita, era um dos dirigentes.

O SR. JOSÉ MINDLIN - Era um dos dirigentes, sim. O Júlio Mesquita Filho. Eu conheci o Júlio e o Ruy, filhos de Júlio Mesquita Filho, quando crianças. Quando eles assumiram a direção do Estado, eu até já tinha saído. Mas, como eu voltei ao Estado para um conselho que Júlio Neto formou, eu fiquei sendo o elemento mais antigo do Estado.

Mas, naquela altura, já não se falava mais em Bucha. Creio que não existe mais ou, se existe, é absolutamente insignificante.

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - O senhor quer água?

O SR. JOSÉ MINDLIN – Água.

(Pausa.) Olha, isso aqui vai longe, né?

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Não. Aí é como o senhor quiser. Sinta-se à vontade.

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - (Falha na gravação) ...o primeiro livro que o senhor leu, e do encantamento que isso lhe provocou. Como é que foi essa relação? Como é que começou essa sua relação com os livros? Qual foi o primeiro livro que lhe encantou, que lhe abriu esse...

O SR. JOSÉ MINDLIN - Bom, mas eu vou entrar nisso porque...

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Deixem ele completar esse negócio da Bucha porque é importante. A Bucha fundou a USP, a Universidade de São Paulo!

O SR. JOSÉ MINDLIN - É! A Bucha dominava a vida do País!

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Vejam a importância! Até Lacerda fala, naquele livro Depoimento; Carlos Lacerda faz uma longa dissertação para os jornalistas do O Estado de S. Paulo sobre o papel importante da Bucha e sobre o papel relevante que teve Júlio de Mesquita Filho na condução dela!

O SR. JOSÉ MINDLIN - É. Esse depoimento de Carlos Lacerda eu não conheço, mas realmente a Bucha financiava estudos de gente que tivesse um potencial de atividade política. Se não me engano, Artur Bernardes teve os estudos financiados, e foi levado à Presidência, e depois desapontou muito os paulistas. Mas quase todas as figuras de certa importância na vida brasileira, tanto na política quanto na vida profissional, tinham sido apoiadas pela Bucha.

E eu resolvi não entrar. E isso me afastou de alguns colegas. Um era João Paulo Arruda. Mas, assim mesmo, a gente continuou amigo depois, pelo resto da vida.

Mas eu resolvi não entrar porque, como eu digo, não ia entrar numa coisa no escuro sem saber quem é que estava dirigindo. A gente só chegaria a saber qual era a hierarquia da Bucha no caminhar do tempo. Eu ia entrar, eram colegas que estavam me convidando, que seriam os primeiros orientadores; depois eu ficaria na posição desses colegas, conhecendo o degrau mais alto; mas aí eu resolvi não  entrar. E até não mencionei isso durante muitos anos, por causa do compromisso de segredo. Mas depois achei que estava prescrito. Isso depois de 20, 30 anos. Quando realmente a Bucha perdeu a expressão e se tornou um fato histórico, eu passei a mencionar.

            A escola, a faculdade, era de professores antigos, que liam as preleções, com aquela voz monótona, durante 50 minutos. E eu conseguia ler as preleções em casa, em 15 minutos. De modo que o que eu fazia era sentar no fundo da sala — eram salas grandes, para mais de 100 alunos; havia 2 turmas, com cento e poucos alunos cada uma — e ficava lendo 2 horas, 3 horas, quando estava lá na aula. Isso me valeu como fonte de leitura inestimável. Li Os Ensaios, de Montaigne; li O Teatro, de Shakespeare; li os autores brasileiros.

Eu já tinha lido, aos 12 anos, Lendas e Narrativas, de Alexandre Herculano, um livro que me impressionou muito; já tinha lido Machado de Assis; tinha lido A Retirada de Laguna e as obras todas de Taunay; O Ateneu, um livro que me impressionou muito, desde a infância. E, ao mesmo tempo, tinha lido coisas mais sérias. Havia um autor francês, Salomon Reinach, que tinha feito um livro sobre a História Geral da Arte: Orpheus: Histoire Générale des Religions. Eu li todo aquele calhamaço antes dos 13 anos.

E a minha leitura foi se desenvolvendo na faculdade. Foi um hábito que me ficou para o resto da vida: nunca andar sem um livro e aproveitar a soma dos pequenos períodos para a leitura.

            Impressionou-me muito, naquela ocasião, logo que comecei a ler os chamados “livros sérios”, foi Machado de Assis, né! E esse eu continuo até hoje lendo, relendo textos. A cada ano eu leio alguma coisa de Machado: ou romance, ou contos, ou crônicas. Indiscutivelmente, ele foi o grande escritor do século XIX. Do século XX, eu diria que o grande escritor foi Guimarães Rosa.

E eu lia muito em francês. Então, naquela época, eu comecei a ler Anatole France, que hoje eu acho que é injustamente considerado um escritor menor, mas que é um excelente escritor. Quando morreu Alfredo Pujol, que tinha uma biblioteca excelente, papai foi conosco lá. Eu comprei um discurso de Anatole France quando esteve no Brasil, com a dedicatória dele a Alfredo Pujol. Quer dizer, aí eu já estava enfronhado nesse campo de perdição que é a leitura e a formação de biblioteca.

Eu tinha começado bem antes, aliás. Eu comecei a formar a biblioteca em 1927. Eu corria os sebos de São Paulo e encontrei uma edição portuguesa do Discurso sobre a História Universal, de Bossuet, publicado em Coimbra em 1740. Fiquei fascinado. Foi o primeiro livro antigo que eu comprei. Depois, verifiquei e aprendi que idade não é documento. Há livros antigos que não têm a menor importância e livros modernos, bem mais recentes, que não são importantes como texto, mas que são raros, difíceis de se encontrar.

Na mesma ocasião, recebi de uma tia, no aniversário, História do Brasil, do Frei Vicente do Salvador, publicada pela Melhoramentos, com notas do Rodolfo Garcia e Capistrano de Abreu. E aí eu li também com o maior interesse e comecei a procurar coisas sobre o Brasil. Isso foi o início da formação da Brasiliana.

Peguei a bibliografia da história do Frei Vicente. Escrevi para várias livrarias pedindo as obras mencionadas, mas eram todas obras raras, inencontráveis. Hoje, praticamente todas elas estão na Biblioteca.

Mas aquilo foi o início da formação da Biblioteca, em 1927, que é um vírus muito especial. Costumo dizer que é um vírus que nos faz sentir bem, em vez de nos fazer sentir mal. Além disso, é incurável. De modo que continuei com o vírus no organismo pelo resto da vida. Hoje a biblioteca tem 75 anos de formação, tendo dado prazer a vida inteira, tanto que procuro realmente inocular esse vírus no maior número possível de pessoas. E tenho conseguido um bom resultado.

Mas vamos voltar um pouco à faculdade. Como disse, era uma fonte de grandes discussões entre integralistas e simpatizantes de esquerda.

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Por que o senhor resolveu fazer o curso de Direito, especificamente? O senhor sentiu alguma vocação, o senhor sentiu algum pendor para o exercício da advocacia?

O SR. JOSÉ MINDLIN - Eu falava muito. Então, havia aquela ideia de que o bom advogado era o orador. Então, aquilo me foi inoculado desde criança. Achavam que eu tinha vocação. Realmente, acho que é uma bobagem, mas isso ficou marcante. Então, eu entrei na faculdade de Direito, apesar de que, quando voltei dos Estados Unidos, em 1931, me deu vontade de seguir medicina. Eu mexi um pouco com isso, comecei a ler os livros para me preparar para o vestibular, mas aí prevaleceu a advocacia.

Agora, para esta pergunta, por que resolvi uma coisa ou resolvi outra, curiosamente, não tenho muita resposta. Na minha vida, o acaso teve um papel extremamente importante. Quase tudo o que me aconteceu de importância na vida foi por acaso. Aliás, a coisa mais importante que me aconteceu na faculdade foi eu ter conhecido a Guita, que entrou no primeiro ano da faculdade quando eu estava entrando no quinto ano. E foi uma coisa curiosa!

Eu cheguei lá e vi no pátio uma moça loura, cercada de rapazes, cabalando para entrar nos partidos de estudantes: “Entre no Partido Liberal!” “Entre no Partido Acadêmico!” Havia uma série de partidos. Eu olhei para ela, tive o impulso de autorrisco e disse: “Olha, tudo isso é bobagem. Se você quer um bom partido, está aqui. Esqueça esses”. E ela me pegou pela palavra, me tomou a sério. Isso foi em 1936. Em 1938, nós casamos. Vamos festejar este ano 65 anos de casados e de um bom casamento. Não é um casamento aguentado, é um casamento bem curtido. A faculdade, para mim, teve esse papel puro por um acaso.

Trabalhei um pouco durante a faculdade com um cunhado, Walfrido Prado Guimarães, que era casado com minha irmã. Mas papai era amigo do Dr. Antônio Augusto Covello, que era um grande advogado, um grande tribuno também na parte de justiça criminal, que me disse: “Quando se formar, você vai trabalhar comigo”. Eu fui e tive uma boa escola de advocacia. A faculdade mesmo não me ensinou muito. Aprendi mais lendo as preleções em casa e lendo livros de direito do que nas próprias aulas.

Mas é claro que sempre fica alguma coisa de útil e importante obtida através das aulas. Tive alguns grandes professores, como o José Augusto Cesar, professor de Direito Civil. Era tuberculoso, coitado! Acho que morava em Sorocaba e vinha de manhã para São Paulo. Dava aula logo depois do almoço, às 13h, e a essas aulas eu assistia com muito interesse. Mário Masagão foi um grande professor, assim como o Almeida Júnior, de medicina legal, que tinha sido professor no Rio Branco, também foi um ótimo professor. Mas os que liam preleções realmente não me interessavam.

Deixe-me agora lembrar uma coisa ainda do período ginasial. Quando eu estava fazendo um estudo de matérias isoladas no Rio Branco, o Dr. Antonio Sampaio Dória, que era um dos diretores da escola e formou a Associação Escolar Rio Branco, que era uma miniatura da República. Tinha um Presidente, Deputados e secretários, que eram os Ministros eleitos pelas classes. Acho que foi a partir daí que surgiu o meu interesse por política, não política partidária, mas a política em si foi uma coisa que sempre me atraiu e, nas matérias de Direito, uma das que mais me interessaram foi o Direito Constitucional. Também me serviu para o resto da vida, para análise das peripécias da política brasileira, né!

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - O senhor nunca se filiou a nenhum partido político?

O SR. JOSÉ MINDLIN - Não. Não, por causa da ideia de partido, eu achava que disciplina partidária era uma coisa essencial e disciplina para mim era uma coisa muito antipática. De modo que nunca entrei em partido nenhum, mas acompanhei muito a política. Nessa Associação Escolar Rio Branco, fui Secretário de Cultura com 14 anos. Foi uma coisa curiosa, porque parece que havia um interesse real, quase de vocação. A cultura é uma coisa que vem me acompanhando pela vida afora.

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Quando o senhor se formou na faculdade?

O SR. JOSÉ MINDLIN - Em 1936, e advoguei quase 15 anos, quando, por acaso, clientes meus resolveram formar a Metal Leve, e eu redigi para eles uma opção de um fabricante alemão que iria fornecer assistência técnica, em um prazo de um ano. No final do ano, eles me procuraram dizendo que iriam desistir do projeto porque não tinham conseguido o capital necessário para começar a empresa.

Eu era muito amigo do Luís Camilo de Oliveira Neto, um mineiro, grande intelectual que dirigia a biblioteca e o serviço de comunicação do Itamaraty. Ele tinha sido um dos redatores do Manifesto dos Mineiros, em 1943, propondo a democratização do País, que provocou uma reação violenta do Estado Novo. Todos os signatários foram demitidos, fossem do serviço público ou de empresas particulares, por pressão do Governo. Diretores de bancos que tinham assinado foram demitidos. E o Luis Camilo entrou na rua da amargura com a demissão do cargo. Nós continuamos sempre muito amigos, porque ele tinha paixão por livros, foi um dos meus grandes interlocutores. Sonhávamos com um trabalho empresarial em que trabalhássemos, mas que não dependesse exclusivamente do trabalho pessoal, como era o caso da advocacia.

No tempo da advocacia, eu não podia tirar férias, por exemplo, e ele também procurava alguma coisa que permitisse viver. Sonhávamos com isso, mas não era fácil de encontrar. Acontece que, na redemocratização, o Milton Campos foi eleito Governador de Minas e o Luís Camilo foi nomeado Presidente do Banco de Crédito Real de Minas Gerais. Saiu daquela posição de grandes angústias financeiras, que, aliás, provocaram nele um problema cardíaco muito sério, a ponto de ter que fazer uma operação muito penosa nos Estados Unidos, morrendo em 1953.

Mas quando meus clientes disseram que iriam desistir do projeto, eu disse: “Mas vocês estão desistindo só porque não conseguiram o capital ou porque o projeto não era bom?” Eles disseram: “Não, o projeto é muito bom, mas nós não conseguimos”. Eu disse: “Olha, eu acho que eu talvez consiga esse capital. Liguei para o Luís Camilo e disse: “Olha, acho que aquele nosso sonho está com jeito de poder se realizar. Uns clientes meus estão com um projeto, e nós precisamos de mil contos de réis”.

Naturalmente, o Luís Camilo não podia financiar isso pelo Banco de Crédito Real, mas, pelas relações que ele tinha no mundo financeiro, ele conseguiu emprestado esses mil contos de réis e, por acaso, então, eu virei empresário.

Nós ficamos em uma situação curiosa, porque eu era fiador do Luís Camilo para os meus clientes e fiador... A Metal Leve começou num bom momento, porque havia uma grande crise cambial. Tivemos dificuldade, no início, para convencer que um pistão, uma peça fundamental do motor, que era sempre importada, podia ser nacional. E a empresa cresceu com a indústria automobilística que se instalou uns anos depois. No início, era só mercado de reposição, mas esses meus clientes tinham uma oficina de recondicionamento de motor, de modo que conheciam bem o campo, e a ideia foi fazer um produto realmente de qualidade.

Formamos um grupo que gostava de fazer coisas difíceis, porque coisa fácil qualquer um pode fazer, coisa difícil exige um conhecimento e um esforço especial.

Com o tempo conseguimos adquirir a reputação de possuirmos boa tecnologia. A confiança no produto brasileiro foi-se fortalecendo e a Metal Leve cresceu com o Brasil, porque cresceu muito mais do que se previa inicialmente. Creio que ajudou o Brasil a crescer, juntamente com uma série de outras empresas, que, no momento da substituição de importações pela grave crise cambial, permitiram um desenvolvimento fora do comum.

Começamos com 50 pessoas entre funcionários de escritório e operários. Conseguimos abastecer o mercado brasileiro no campo de reposição e depois fornecemos para  a indústria automobilística.

Então, realmente tínhamos uma preocupação com a qualidade que era até criticada por amigos: “Por que vocês precisam de tanto esforço para ter qualidade?” E nós respondíamos: “Porque quando acontece uma coisa com uma peça importada é um acidente; quando acontece com uma nacional é porque o produto nacional não presta”. Existia esse preconceito, que acabou desaparecendo e acho que nós contribuímos para eliminá-lo.

A Metal Leve durou conosco do começo ao fim de uma era. Em 1950, em plena crise cambial; e uma substituição de importações que implicava em um mercado fechado, até os anos 90, quando o mercado foi aberto violentamente, sem que houvesse uma preparação da indústria para enfrentar a grande concorrência internacional e a globalização. Conosco ela durou 46 anos. Não tínhamos escala para sermos fornecedores mundiais, não tínhamos recursos para os investimentos necessários e aí tivemos de ceder o controle da empresa.

Foi uma situação muito difícil de se resolver do ponto de vista emocional, mas tinha que ser feito no plano racional. Se não tivéssemos transferido o controle para uma firma estrangeira, que nos tinha dado assistência no início, corríamos o risco de virar pó.

Tenho na vida, quando acontecem coisas que me contrariam, a capacidade de virar a página e seguir em frente. Eu tinha muitos outros interesses, participações culturais, participações em entidades científicas, porque com a empresa comecei a conhecer os problemas de tecnologia e de ciência. Tornei-me um dos sonhadores de um Brasil que tivesse capacidade própria de desenvolvimento científico e tecnológico. Também sonhava com um Brasil exportador de produtos de qualidade e não somente importador, de modo que tive muito trabalho na FIESP, onde dirigi inicialmente o Departamento de Comércio Exterior e depois o Departamento de Tecnologia, que incorporou o esforço de desenvolvimento de um design brasileiro.

Essa é uma outra faceta das minhas atividades, mas que me gratificaram muito, porque aquilo com que eu sonhava pode se transformar em realidade no curso desta segunda metade do século XX.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O senhor conheceu pessoalmente o Presidente Juscelino Kubitschek?

O SR. JOSÉ MINDLIN - Conheci pessoalmente. Aliás, é uma coisa curiosa, porque eu só votei duas vezes na vida em candidato que ganhou. Uma vez foi no Juscelino e a outra foi no Fernando Henrique Cardoso. Não votei no Ademar, não votei no Maluf, não votei no Jânio, não votei no Collor. Enfim, sempre perdi. Perdi formalmente em meu voto, mas, no fundo, saí ganhando, porque mantive uma coerência com o que eu achava indispensável num administrador, além de competência, seriedade e honestidade. Essa satisfação de não ter votado neles todos foi uma coisa boa.

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Qual a impressão que o senhor teve do Presidente Juscelino?

O SR. JOSÉ MINDLIN - Juscelino era um grande sonhador, que conseguiu realizar uma boa parte dos sonhos e mudou o Brasil. Creio que houve um desencontro histórico entre o Brasil e os Estados Unidos, porque quando Juscelino assumiu, o Presidente dos Estados Unidos era o Eisenhower; e quando o Kennedy assumiu, o Juscelino estava cassado. Se o mandato do Juscelino houvesse coincidido com o de Kennedy talvez o destino do Brasil tivesse sido outro.

Mas eu admirava muito o Juscelino. Eu era entusiasta da ideia de Brasília, apesar da maior parte dos meus amigos ser muito crítica. E eu acho que a questão de corrupção do Juscelino é muito discutível. Que houve corrupção naquela época, acho que houve, mas não pessoalmente do Juscelino. Encontrei o Juscelino quando ele estava exilado em Nova Iorque e em Paris, e sempre vivendo em hotéis muito modestos, sem nenhuma ostentação ou manifestação de facilidade que ele teria se tivesse se aproveitado da Presidência para enriquecer. Realmente ele não enriqueceu. Acho que o Juscelino ainda vai ter o seu papel na história devidamente apreciado.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O senhor foi até a década de 50, quando começou essa aventura empresarial que deu certo, foi um empreendimento bem sucedido no Brasil, acompanhando a política de substituição de importações. Como o senhor, com essa experiência rica que tem, vê o Brasil do ponto de vista da viabilidade do País? Um País que está hoje cheio de dificuldades...

O SR. JOSÉ MINDLIN - Classifico as dificuldades que o Brasil enfrenta simplesmente como acidentes de percurso. Eu gostaria muito de ser talvez 20 ou 30 anos mais moço para poder ver o que o Brasil vai ser daqui a 20 ou 30 anos, ou até mais cedo.

Tenho uma confiança absoluta no desenvolvimento brasileiro. Acho que um país não pode ser julgado pelas dificuldades que apresenta em determinado momento de sua história. É preciso ver o que foi feito nos 50 anos, de 1950 ao ano 2000, em que o Brasil se transformou em um outro país, realmente industrializado; que conseguiu ser exportador e não só importador; conseguiu desenvolver capacidade tecnológica, porque a científica já tinha desenvolvido antes.

Temos instituições centenárias de grande valor e de grande capacidade. A Fundação do... Meu Deus! Eu estou numa deterioração mais ou menos rápida de memória.

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - O senhor está ótimo. Está lembrando coisas fantásticas!

O SR. JOSÉ MINDLIN - O Butantan, por exemplo.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Manguinhos.

O SR. JOSÉ MINDLIN – Manguinhos, pois é! A Fundação do Oswaldo Cruz. Há muitos trabalhos científicos que são importantes. O que o Navarro de Andrade fez com o café, no Instituto Biológico, o que realizou, quer dizer, a parte científica... Agora, há 2 anos atrás, com o genoma que deu um passo importantíssimo na ciência mundial.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - E tem a EMBRAPA, não é?

O SR. JOSÉ MINDLIN -  Tem a EMBRAPA! Eu, inclusive, fui do conselho da EMBRAPA por um tempo. EMBRAPA é uma empresa respeitável.

Este capítulo de conselhos é outra coisa que, se der tempo, podemos falar um pouco.

Sou um otimista incorrigível, mas não um otimista panglossiano. Vejo os problemas, dou-me conta das dificuldades, mas acho que temos que acreditar no País, temos que pensar a longo prazo; não podemos pensar em resultados rápidos, a curto prazo, porque, em geral, eles não são duradouros. Sempre tive isso em meu trabalho de advocacia. Eu achava que os honorários são os subprodutos de um trabalho bem feito. O profissional tem que pensar no bom exercício da profissão e não pensar em honorários como grande prioridade.

É claro que isso para nós, na vida particular, apresentou, muitas vezes, problemas sérios, aquela expectativa de que honorários a receber formavam uma lista grande, e essa lista se repetia mensalmente, passava de um mês para outro. Mas íamos vivendo, porque o dinheiro é importante, mas não é a coisa mais importante. O dinheiro é um instrumento e deve ser mantido como um instrumento apenas, não como um objetivo de vida. A vida tem outros valores.

Conseguimos receber — tanto Guita como eu — de nossos pais um sentido de valores que achamos que é muito melhor do que aquele que se preocupa com riqueza material; conseguimos transmitir isso aos nossos filhos, que, por sua vez, transmitiram aos netos.

O que o Brasil passou nesta loucura de mercado financeiro, de enriquecimento e de empobrecimento da noite para o dia, desaparecem os valores morais, desaparece o próprio sentido do que está acontecendo. Acho que o mercado financeiro é um mercado importante, mas, outra vez, como instrumento de desenvolvimento social, e não como objetivo, em si mesmo, de puro enriquecimento.

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Dr. Mindlin, nós fizemos um salto enorme na história. Eu queria que o senhor conversasse com a gente a respeito do período da ditadura militar. A partir do Golpe de 64, como é que o senhor, um democrata, uma pessoa preocupada com justiça social, viu e recebeu o Golpe de 64?

O SR. JOSÉ MINDLIN - Vamos ver. Isso tem vários aspectos. Eu achava que o Jango tinha perdido o rumo, e que isso tinha sido uma pena, porque se o Jango tivesse chegado ao fim do mandato, provavelmente seria substituído por um outro sem o regime militar. Mas isso é pura especulação teórica, porque o regime militar vinha-se preparando para o 31 de março, e o grande responsável por isso foi o Jânio. Eu não votei no Jânio, mas ele parecia ter todas as condições de levar o País para frente. Mas ele não tinha envergadura para isso, e creio que não tinha a seriedade.

Eu sempre fui simpatizante do Parlamentarismo. Conheci o Raul Pila, que eu admirava muito, que era o paladino do Parlamentarismo no Brasil. Mas a gente tinha que reconhecer que Parlamentarismo sem uma boa organização de partidos é uma coisa inviável. Esse, digamos, é o fundamento histórico da coisa.

Eu acreditava no Congresso, achava que um Congresso, mesmo pouco satisfatório, era melhor do que nenhum Congresso. Eu recebi o regime militar com muita decepção e muito pessimismo.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O senhor sabe que hoje já não há dúvidas de que o Jânio planejava um golpe de Estado!

O SR. JOSÉ MINDLIN - Ah, claro! A renúncia dele, ele não imaginou que fosse aceita. Ele voltaria como o salvador da pátria, não é! Jânio foi um triste acidente de percurso na vida brasileira.

Mas, enfim, havia situações a corrigir. O Castelo Branco, se tivesse continuado no Governo e não tivesse sido um fanático do cumprimento de regras, poderia ter dado um curso diferente ao regime militar. O que aconteceu com o golpe militar é que, inicialmente, ele era um tratamento cirúrgico para males que existiam. Mas se transformou em tratamento crônico. E isso desvirtuou completamente o pensamento dos que estavam bem intencionados no início.

Foi uma completa deturpação do pensamento brasileiro, da natureza do povo, um regime que, se fizesse um plebiscito — eu me lembro da história do plebiscito do Artur Azevedo, uma lei romana que querem aplicar no Brasil — livre, não se manteria. Houve uma centralização de toda a administração, uma preocupação com o crescimento econômico e houve, obviamente, muita corrupção.

Eu era abertamente contra o regime militar, mas eu criticava as ideias, não criticava as pessoas; de modo que me manifestei publicamente muitas vezes contra o regime. Nunca tínhamos pedido nenhum favor ao Governo, fugíamos de financiamentos oficiais, a gente só tinha no relacionamento com o Governo a utilização daquilo que fosse legalmente admissível, e não uma concessão de uma das autoridades. Então, eu consegui manter uma total independência durante o regime.

Quando fui convidado para Secretário de Cultura, Ciência e Tecnologia pelo Paulo Egydio, minha primeira reação foi negativa, porque eu não queria participar de um governo nomeado, e não eleito. Mas o Paulo Egydio, que era meu amigo, insistiu muito. Consultei vários amigos. A família foi contra eu aceitar a Secretaria. Mas Antonio Cândido, Paulo Emílio, Décio de Almeida Prado, Renina e Celso Lafer, um círculo que eu consultei e que me disse, especialmente Antonio Cândido: “Você deve aceitar, porque se quem quer a abertura recusa os cargos, os cargos vão ser ocupados por quem não quer a abertura. E eu tenho certeza de que se você aceitar, você também deixará o cargo no momento em que achar que não dá para continuar”. Aí, então, eu resolvi aceitar e disse ao Paulo Egydio que aceitaria com uma condição: se não houvesse abertura, eu sairia. E o Paulo Egydio, cuja grande fraqueza foi o desejo de estar bem com todo mundo — e naquele regime não dava para estar bem com todos, tinha que estar ou a favor ou contra, não dava para ficar em cima do muro —, disse: “Ah, bom! Aí eu também saio, saímos juntos.” Mas, na realidade, ele não saiu junto.

Então, para responder à sua pergunta, existem aspectos positivos no Governo nesse período. Ajudou a mudar o Brasil, mas simplesmente concentrando os esforços no crescimento econômico, sem se preocupar com os problemas sociais que se agravaram com o aumento do desnível entre pobreza e riqueza. Os pobres ficaram mais pobres e os ricos ficaram mais ricos. A classe média sofreu muito. Eu acho que desapareceu pelo menos uma geração política, talvez até mais do que uma geração, porque uma delas foi suprimida no começo, e com uma duração de 20 anos; não se permitiu o surgimento de novos valores no quadro político.

Então, tivemos política de menos no regime militar e um público despreparado, que formou um excesso de política depois da abertura, com muitos oportunistas, com muita gente despreparada. Realmente, levou muito tempo para o Brasil se refazer do regime militar.

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - O senhor ficou na Secretaria...

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Deixe-o só tomar um golinho d’água. O senhor quer tomar um golinho d’água?

(Pausa.)

Dr. Mindlin, queria só que o senhor contasse como finalizou esse episódio da sua participação no Governo do Paulo Egydio.

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Quando saiu da Secretaria, não é?

(Pausa.)

O SR. JOSÉ MINDLIN - Antes disso, quando o Geisel foi “eleito”, entre aspas, pelo Congresso, um amigo comum meu e do Golbery, me disse que o Golbery queria muito me conhecer. Eu disse: “Olha, eu também gostaria muito de conhecer o Golbery, mas me parece que este não é o momento adequado”. Isso era dezembro de 1973, quando o Golbery estava formando o Ministério no Largo da Carioca. “De modo que acho que a gente deve deixar isso para mais tarde”. Ele insistiu e eu disse: “Olha, diga ao Golbery que se ele estiver de acordo que do nosso encontro não resulte convites de espécie alguma, estarei à disposição para conversar. Se ele não quiser assumir esse compromisso, então vamos deixar para depois de março.” Quer dizer, claramente não queria ser Ministro. Claramente, se ele naquela hora queria me conhecer é porque estava querendo ver se eu seria um Ministro possível.  Mas ele aceitou o compromisso e tivemos uma conversa interessantíssima durante quase 3 horas. Ele veio a São Paulo e no escritório desse amigo comum tivemos a conversa.

Ele me perguntou se eu, que tinha tanto contato com os meios intelectuais e com a universidade, não achava que os estudantes estariam recebendo melhor o regime militar. Disse: “General, o senhor quer uma resposta franca ou uma resposta diplomática?” Ele disse: “Não, eu quero saber o que o senhor pensa”. Disse: “Então, o senhor não tenha a menor ilusão. Enquanto delegados do DOPS estiverem assistindo a aulas na universidade, os estudantes não vão aceitar a revolução”.

Ele sabia ouvir. Então, ficou assim... Aí me falou de uma greve de estudantes em Brasília, 100 estudantes haviam sido presos por uma greve anunciada em Brasília. E ele tinha mandado soltar. Eu disse: “O senhor teve uma posição liberal”. Ele disse: “Não. Liberal coisa nenhuma!” Ele achava que um secretário de segurança que precisava prender 100 estudantes para saber quem era responsável pela greve era incompetente.

A conversa foi nesse tom. Eu dizia que não era possível, com a delação, com tudo o que estava acontecendo, a tortura e tudo aquilo, o povo não poderia aceitar o regime.

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Dr. Mindlin, no auge do período militar, em 1970, no Governo Médici, foi criada a Operação Bandeirantes, em que um grupo de empresários paulistas financiava a repressão e a tortura, que a gente sabe que ocorreu de forma seriíssima, e muito aqui em São Paulo, e o senhor teria sido uma das pessoas que se recusou a participar.

O SR. JOSÉ MINDLIN  - Estive numa dessas reuniões, quando eles pediram apoio para a compra de equipamentos técnicos, como sendo de importância para investigação etc. Mas já se sabia do que se tratava e eu disse claramente que não entraria nisso. Financiar tortura, em hipótese nenhuma. E isso ficou mesmo marcado. Mas eu não tinha medo de falar uma coisa dessas, porque eu acho que era um imperativo moral. Não poderíamos transigir nesse ponto.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Essa conversa do senhor com o Golbery ficou só nisso?

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Ainda sobre esse assunto citado pela Ana, o senhor sofreu algum tipo de represália, algum tipo de constrangimento por ter tomado essa posição em relação à criação da Operação Bandeirantes?

O SR. JOSÉ MINDLIN  - Não, não tive. Sempre tínhamos medo por causa dos filhos. Os filhos universitários, por definição, eram considerados suspeitos de esquerdismo. Então, quando eu estava na Secretaria o grupo radical me considerava um agente comunista. Os primeiros 6 meses de Secretaria foram ótimos, consegui fazer uma porção de coisas — estruturar a carreira de pesquisador, apoiar a parte cultural. Foi um trabalho interessantíssimo. Aí a Secretaria começou a se tornar mais conhecida, com publicidade para o que estava fazendo. E começou uma perseguição surda, mas não a mim. Por causa da Operação Bandeirantes não houve nenhuma reação.

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Nem dos colegas empresários?

O SR. JOSÉ MINDLIN  - Os colegas empresários me olhavam um pouco como ovelha negra, mas não todos. Lembro-me que em uma ocasião o Hélio Beltrão, que era amigo meu, foi fazer uma palestra na FIESP e o Ribeiro do Vale o interpelou: “Mas o senhor está falando dessa melhora do Brasil e tudo, mas como o senhor concordou com a cassação de fulano, sicrano, beltrano, dos grandes valores?”

O Beltrão não tinha resposta para isso. Ele disse o seguinte: “Olha, eu não cassei pessoalmente, mas estava fazendo um trabalho importante para o País e isso estava fora da minha alçada”. Não havia resposta, não tinha como dar uma resposta. Ele fazia parte de um governo que torturava e cassava.

Quando acabou de falar, todos foram falar com ele e o Ribeiro do Vale ficou isolado, sozinho. Aí, fui cumprimentar o Ribeiro do Vale pelo que havia falado.

Então, o pessoal estranhava essas posições, mas todos sabiam também que eu não tinha nenhum interesse pessoal em fazer o que estava fazendo; pelo contrário, se houvesse alguma influência, seria provavelmente negativa. Vantagem eu só poderia levar se eu elogiasse, não se eu criticasse.

Então, eu não tive realmente nenhuma pressão. O pessoal respeitava. E olhe que havia outros companheiros que tinham também uma posição mais aberta. Cláudio Bardella, por exemplo. O Geisel dizia: “Bardellinha, não fale tanto”. Mas nunca falou isso comigo. Eu encontrava o Geisel várias vezes, sempre em missão empresarial, não individualmente.

            Apesar de ser muito amigo do Fernando Henrique, eu o procurei muito pouco durante essa administração. Ele me recebia, mas porque eu entrei numa comissão de desenvolvimento tecnológico. Então, eu tinha contato com ele através disso. Mas, procurá-lo como amigo, eu nunca procurei. Esperava-o deixar a Presidência.

            Bom, na Secretaria, a coisa começou a apertar com o caso Herzog. Eu estou tentando escrever uma descrição desse episódio, de modo que eu posso indicar em linhas muito gerais o que houve, mas eu quero me reservar para fazer esse texto. Eu, contudo, já tenho falado sobre isso.

            O caso Herzog surgiu porque se precisava de um diretor de jornalismo na TV Cultura. Quando eu aceitei o convite para a Secretaria, a TV Cultura estava subordinada à Casa Civil do Governador. E o Paulo Egydio quis que ela passasse para a Secretaria. Eu não quis, mas ele insistiu muito. Eu disse “Bom, vamos ver o que acontece”. Então, a TV Cultura ficou subordinada à Secretaria, e precisava de um diretor jornalístico. Havia muita gente querendo ser, mas que eu via como gente muito ligada ao regime.

            Recebi o currículo do Herzog, que eu não conhecia pessoalmente. Era um currículo excelente, e eu o recomendei ao Paulo Egydio. Eu precisava, na ocasião, do acordo do SNI. Liguei para o chefe do SNI, dizendo: “Olha, estou querendo indicar o Sr. Vladimir Herzog para o jornalismo. O senhor tem alguma objeção?” Ele disse: “Eu lhe telefono daqui a meia hora”. Telefonou e disse: “Olha, não. Pode indicar. Ele teve na mocidade algumas veleidades, assim, de esquerdismo, mas nada de sério. Não tenho objeção”. Eu disse: “Ótimo”.

            Eu o indiquei, e assim mesmo o Paulo Egydio demorou quase 1 mês para nomear o Herzog, porque havia pressão de gente que queria entrar no assunto.

            Nessa ocasião, o Rui Nogueira Martins, que tinha sido meu companheiro de redação no Estado, era muito meu amigo, e eu o havia convidado para ser Presidente da Fundação Anchieta. Estava na Europa, numa missão qualquer. Então, eu é que tinha que resolver a nomeação do Herzog. Afinal, ele foi nomeado.

            Eu fui para um seminário na Universidade do Texas. Ah, não, antes disso... Houve 2 viagens que eu tinha feito — aliás, por minha conta, eu nunca fiz viagem por conta da Secretaria. Eu tinha ido aos Estados Unidos para um outro seminário. Quando voltei, o Paulo Egydio me diz: “Olhe, parece que está havendo problema aí com o Herzog. Você veja isso porque não quero problema nessa área”.

Então, telefonei para o chefe do SNI, dizendo que o Paulo Egydio me tinha dito isso. Eu queria saber o que estava acontecendo e sugeri que ele viesse ao Palácio daí a 2 dias, que eu ia ter despacho com o Paulo Egydio, e então nós conversaríamos.

Ele veio, e eu disse: “Eu queria saber o que há de problema”. Ele disse: “Acho que ele está muito mal orientado, porque, imagine, no dia em que assumiu, ele pôs no ar um programa sobre o Ho Chi Minh. E ele faz comentários. Quando morre um terrorista, ele dá uma ênfase; quando morre um policial, ele passa por cima, sem dar grande importância”. Eu digo: “Olhe, é claro que o programa sobre o Ho Chi Minh já tinha sido feito pelo antecessor. Ele não podia, no dia em que assumiu, fazer esse programa. Agora, o senhor diz que ele está mal orientado. Eu tenho que lhe dizer que ele não está sendo orientado. Ele é um profissional competente, e não vejo nenhuma razão para afastá-lo. O senhor mesmo concordou com a nomeação dele, e não vejo fato superveniente nenhum”. Aí ele disse: “Bom, não estou pedindo que ele seja afastado. Isso depende do grau de risco que o senhor queira assumir”. Eu disse: “Não tenho medo de assumir risco, mas, no caso do Herzog, ele está trabalhando num órgão de administração indireta. Por acaso, eu o indiquei, mas não sou responsável pelo que ele faz lá. Mas acho que seria uma injustiça demiti-lo. E ninguém se fortalece com uma injustiça”. Foi um diálogo todo duro nesse ponto.

Aí eu disse: “Mas, enfim, ele não está sendo orientado. O senhor gostaria que tivéssemos um DIP?” Ele respondeu: “Não, eu não gostaria, não. Mas o General talvez até gostasse” — o Ednardo. Eu disse: “Vamos fazer o seguinte: o senhor converse com o Herzog e dê a ele a orientação que o senhor acha que ele deve ter. Se ele aceitar, e depois não cumprir, aí a situação é outra. Aí eu até estaria de acordo em afastá-lo. O senhor dá a orientação, e vamos ver o que acontece. Mas, então, é preciso que a gente acompanhe. Vamos ver”.

Aí ele me disse: “Não, mas o senhor diz que não é responsabilidade sua. O responsável é sempre o chefe, não é?” Aí fui com ele ao Paulo, dizendo: “Olhe, nós conversamos, ele vai dar a orientação”. O Paulo disse: “Mas, afinal de contas, ele é um profissional que é responsável pelo que faz”. Eu disse: “Aí não! Aí você está enganado, porque o Coronel me disse que o responsável é o chefe, de modo que quem é responsável, na realidade, pelo que ele faz é você até. Não sou eu”. O Paulo falou: “Então o responsável está em Brasília”. Ficou assim, meio na brincadeira.

Ele conversou com o Herzog e me telefonou, dizendo que estava tudo acertado. Passam uns dias, e ele me telefona, dizendo que achava o programa muito chocho. Eu falei: “Mas era o que o senhor queria, não é? Que ele se limitasse a dar a informação sem qualquer comentário”.

            No fim, a gente teve nova conversa, e ficou combinado que a gente observaria por mais um tempo. Porque a questão de estar chocho... Se ele achava que ele não devia comentar, dizer o que pensa, tem que ser chocho, não tem por onde. Mas aí ficou combinado que não tomariam nenhuma medida contra ele sem falar comigo e com o Paulo Egydio.

            Fui a um outro seminário no Texas. Chegamos lá no domingo. E no domingo eu tive notícia da morte do Herzog, na véspera. Voltamos imediatamente. Telefonei para o Paulo, dizendo que eu tinha que conversar com ele — só consegui passagem na terça-feira —, que na quarta-feira eu queria conversar com ele.

Eu disse: “Olhe, Paulo, está aqui, eu não vou poder continuar, não é!” Ele disse: “Bom, dentro do que nós combinamos, você está liberado. Mas, se você sair agora, você vai enfraquecer a resistência que tem que ser feita à ala radical dos militares. De modo que você resolve. Se você sai, você enfraquece a resistência. Se você fica, eu não posso garantir nada, porque amanhã podemos estar todos presos ou derrubados”. Nessa circunstância, eu disse: “Bom, então eu fico”, porque não dava para sair diante disso. Muita gente não compreendeu como é que eu fiquei naquela ocasião. Mas, intimamente, eu já estava resolvido a sair na primeira oportunidade.

E o Paulo dizia que acreditava no suicídio. Nós tivemos um jantar em casa da Maureen Bissiliat, e o Paulo disse mesmo: “Eu estou convencido de que foi suicídio”. Eu era amigo da Lila também, estava sentado ao lado dela, e disse: “Puxa, eu gostaria de ter essa certeza, mas a certeza que eu tenho é muito diferente”.

Mas o Júlio Neto me tinha dito que o coronel que foi incumbido do inquérito e que concluiu pelo suicídio era um sujeito de primeira qualidade, o que me causou muita estranheza quando vi o relatório. Depois compreendi que o Geisel precisava remanejar os comandos porque, naquela ocasião, ele não tinha suficiente autoridade para reprimir, para demitir o Ednardo. Então, verifiquei que o tal coronel tinha feito 2 inquéritos: um concluindo pelo suicídio, e outro dizendo que não foi. Tanto que, quando morreu o Fiel Filho, nas mesmas circunstâncias, o Ednardo foi demitido naquela mesma noite, sem qualquer inquérito. Quer dizer, o inquérito do Herzog tinha valido para isso.

Aí ouço a notícia de que ele tinha resolvido transferir a TV Cultura para a Casa Civil, porque não tinha audiência, porque tinha muitos comunistas. Bom, quando eu soube disso, eu disse: “Olhe, eu não queria a TV Cultura. Você insistiu para por na Secretaria. Agora, com a retirada eu não posso concordar”. Ele me disse: “Não, mas isso é uma coisa que eu estou só pensando. Mas você não se preocupe....e tudo”.

Passam uns dias, e eu ouço no rádio que ele estava chegando do Rio e que a pressão militar para a transferência da Cultura para a Casa Civil era irresistível.

            Bom, aí fui lá conversar com ele e com a Guita, ficamos 2 horas, eu dizendo que tinha que sair, e ele dizendo: “Mas, olhe, nós vamos ter a abertura e tudo aí”. Eu estava com a carta de demissão e disse: “Olhe, você fique aí com a carta, e amanhã eu lhe dou uma decisão definitiva”. Aí fui para casa e pensei: “Se eu saio e vem a abertura, eu vou ficar com muita pena de ter saído, não é! Mas, se eu fico e não vem a abertura, eu fico com muita pena é de ter ficado. Aí não há mais alternativa, eu tenho que sair mesmo”. Então, fui lá, na segunda-feira, e disse: “Olhe, não tem jeito, não, eu sou um secretário incômodo e vou sair”. Eles: “Bom, é uma pena, e tudo. Quem é que você acha que pode substituir?” Eu disse: “Você tem o José Bonifácio aí, que já foi Presidente, é ótimo”.

Eram 8h, saímos juntos. Na saída, ele me diz: “Ah, uma coisa que eu me esqueci de dizer a você é que, antes de você chegar, dei uma entrevista coletiva, dizendo que eu estava adiando a transferência da TV Cultura para outra oportunidade”. Aí eu fiquei danado mesmo. Cheguei em casa, liguei para o assessor de imprensa e disse que eu tinha saído. No dia seguinte, saiu a notícia da minha saída, porque, senão, sairia no dia seguinte a notícia de que não haveria a transferência e eu ficaria sem uma boa razão para ter pedido a demissão. O episódio foi esse.

Eu saí e fui visitar o Dilermando Monteiro, o general que substituiu o Ednardo. Disse a ele: “Veja, General, eu deveria estar aqui lhe dando boas‑vindas, no entanto estou numa visita de despedida, não é!” Ele disse: “Bom, olhe, eu lamento muito a sua saída, posso lhe assegurar que não houve pressão militar nenhuma e queria lhe fazer uma proposta: vamos encerrar a visita protocolar e vamos conversar um pouco?” Eu disse: “Com o maior prazer”. Então, ele disse: “Eu queria a sua opinião franca sobre a questão da influência comunista na TV Cultura”. Eu disse: “General, o motivo alegado para a transferência é que ela não tinha a audiência, que tinha que ser reestruturada. O senhor acha que faz sentido infiltração comunista numa tevê que não tem influência? Infiltração comunista se faz na Globo, não é! Ele disse: “Bom, o senhor tem razão”. E ficou nisso.

Aí eu saí. Tive muito mais manifestações de apreço quando saí do que quando entrei. Mas, para mim, foi uma experiência muito válida. Achei que valeu a pena.

            Acho que é isso.

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) – Muito bem!

             O SR. JOSÉ MINDLIN - Você tem alguma outra pergunta sobre isso, ou isso esclareceu para você?

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) – Totalmente!

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Sim.

O senhor gostaria de falar mais alguma coisa sobre outro assunto?

            O SR. JOSÉ MINDLIN - Bom, há muita coisa do ponto de vista cultural, da relação com a universidade, das publicações, da minha atuação na Secretaria, mas agora não dá, a não ser que vocês almocem aqui com a gente, mas isso...

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Não, imagine, não vamos dar esse trabalho, não! O material que o senhor nos forneceu hoje já dá um belíssimo programa!

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) – Porque é impossível! São quase 90 anos de vida, é impossível a gente abarcar tudo isso!

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Esgotar não dá, não é?

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Mas o senhor fez um depoimento maravilhoso! O senhor fez um depoimento muito rico, sob todos os pontos de vista, não é!

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda)  - Quase 2 horas!

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Quase 2 horas! Mais de duas, não é!

            O SR. JOSÉ MINDLIN - Acho que eu deveria dizer que há muito mais coisas, mas, enfim, vocês não vão poder... E mesmo este, vocês vão ter que condensar para 1 hora, não é!

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Vamos, vamos!

            O SR. JOSÉ MINDLIN - Deixem-me ver uma coisa. (Pausa.) Por exemplo, um dia nós fomos ao teatro.

Agora você não está mais filmando, não é?

            O SR. ENTREVISTADOR(Ivan Santos) - Está.

            O SR. JOSÉ MINDLIN - Não, mas pode filmar!

Haveria muito mais coisas a dizer, mesmo dentro desse quadro da política, mas também sobre a parte do trabalho cultural que tenho feito na vida, sobre a parte de ciência e tecnologia. Muita gente pensa que sou engenheiro, quando sou apenas bacharel em Direito, mas bacharel em Direito era polivalente naquele tempo.

            Por exemplo, no Governo Collor, eu, uma noite, chego em casa com a Guita, nós tínhamos ido ao teatro. Havia um telefonema urgente do quartel-general, dando um nome. Eu digo: “Bom, amanhã cedo eu ligo”. Eu levantei — levanto cedo —, liguei, e eles disseram: “Olhe, o Ministro Passarinho está aqui, precisando conversar com o senhor. Ele pode ir aí agora?” Eu digo: “Olhe, me dê uma meia hora, e vamos ver então”. Ele veio e disse: “Olhe, é um assunto muito confidencial, mas que provavelmente amanhã se tornará público. A Ministra Zélia está deixando o Governo, e o Presidente Collor me incumbiu de consultá-lo se o senhor aceitaria o cargo”.

Nessas ocasiões, temos que pensar depressa em como dizer não. Não tinha nenhuma hesitação em dizer que não podia aceitar. Aí eu disse: “Olhe, muito obrigado, agradeço a lembrança, mas eu já passei da idade de assumir um cargo desses”. Ele disse: “Não, não diga isso, eu não sou muito mais moço que o senhor e estou aí trabalhando”. “É, mas o senhor tem uma resistência física que eu não tenho.” “Não, mas não diga isso.” “Além disso, eu tenho muitas responsabilidades empresariais aqui em São Paulo e tudo. Eu não posso, de um momento para outro, abandonar isso. Mas eu até que abandonaria isso e aceitaria o cargo se eu achasse que sou a pessoa indicada para o cargo, mas eu não sou.” Ele disse: “Não, isso é modéstia sua”. Eu disse: “Não é modéstia. Se eu aceitasse o cargo e o Presidente me perguntasse o que eu pretenderia fazer, eu não teria a resposta. Eu não saberia o que fazer. O cargo tem que ser ocupado por alguém que tenha programa para o cargo, eu não tenho”.

Aí ele se convenceu mesmo de que era negaça e me perguntou quem é que eu sugeriria para o cargo. Eu disse: “Olhe, uma primeira sugestão que eu faria, mas que não adiantaria provavelmente nada, seria o Walter Moreira Salles, mas duvido que ele aceite. Então, a segunda alternativa seria o Marcílio Marques Moreira”. Ele olhou assim e disse: “Marcílio? É um bom nome!” Eu disse: “É claro que é um bom nome. É Embaixador nos Estados Unidos, e o grande problema nosso agora é a dívida, ele é a pessoa para negociar a dívida e tudo”. Ele disse: “Ah, eu lhe agradeço muito. Lamento que o senhor não tenha aceito”. Ele voltou para Brasília, e, 3 horas depois, a rádio anunciou que o Marcílio seria o Ministro. Esse foi um episódio interessante!

            Outra parte da minha vida daria certamente uma outra entrevista longa. Mas há outro episódio interessante. Foi na ocasião da Abertura, quando Tancredo foi candidato. Eu tinha conhecido o Tancredo por intermédio de José Aparecido, que dizia: “Você tem que conhecer o Tancredo”. Então, telefonou para o Tancredo, que marcou um chá lá no Palácio das Mangabeiras. E ficamos amigos, naquela conversa. De modo que trabalhei muito para a eleição do Tancredo, apesar de ser eleição indireta. Mas era importante que ficasse claro que, se fosse eleição direta, ele também teria um grande apoio. Acompanhei o Tancredo, estivemos juntos em Ouro Preto, em Tiradentes. Até no dia da votação eu estava ao lado dele, quando ele foi proclamado eleito.

Aquele episódio foi interessante, e eu acho que o destino do País teria sido diferente. O Sarney não estava preparado para a Presidência. Afinal houve a festa de posse, e o Sarney andava pelo salão como uma alma penada, pouca gente o conhecia, dos que estavam lá. Fomos cumprimentá-lo, mas achando que era uma pena realmente o Tancredo ter ficado doente, não é!

            Enfim, são quase 90 anos de vida. Olhando para trás, percebo que tem muita coisa que não entrou nesta conversa. Mas espero que ela tenha servido pelo menos para mostrar uma visão possível do que é o Brasil, de como evoluiu e do meu otimismo em relação ao futuro do País.             Nós ainda vamos ser uma grande potência!

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) – Maravilha!

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Muito bom!