Texto

DEPARTAMENTO DE TAQUIGRAFIA, REVISÃO E REDAÇÃO

 

NÚCLEO DE REDAÇÃO FINAL EM COMISSÕES

 

TEXTO COM REDAÇÃO FINAL

 

PROGRAMA MEMÓRIA POLÍTICA

EVENTO: Entrevista                   

N°: ESP001/00

DATA: 23/8/2007

INÍCIO:

TÉRMINO:

DURAÇÃO: 2h35min

TEMPO DE GRAVAÇÃO: 2h36min

PÁGINAS: 45

QUARTOS: 32

 

 

DEPOENTE/CONVIDADO - QUALIFICAÇÃO

 

JOSAPHAT MARINHO - ex-Senador da República.

 

 

SUMÁRIO: Entrevista com o Sr. Josaphat Marinho, exibida no Programa  Memória Política, da TV Câmara, em 21/09/2000.

 

ENTREVISTADORES: Ana Maria Lopes de Almeida, Tarcísio Holanda, Ivan Santos.

 

 

OBSERVAÇÕES

 

Há expressões ininteligíveis.

Há falhas na gravação.

Conferência de fidelidade do Conteúdo – NHIST


O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Dr. Josaphat Marinho, como foi o início de sua vida? Qual é sua origem social, sua terra, seus amigos? Conte alguma coisa do ambiente em que o senhor se criou.

O SR. JOSAPHAT MARINHO - Eu sou filho de uma pequena cidade do interior da Bahia que se chamava Areia, hoje Ubaíra. Sou filho de modestos agricultores e fiz o curso primário na cidade de Jaguaquara, onde encontrei — devo salientar por justiça — uma professora leiga de excepcional competência. Costumo até dizer que o pouco que sei falar em público devo a essa professora primária.

Ao sair de Jaguaquara, vim fazer o curso de admissão na Capital e ingressei no Instituto Baiano de Ensino, onde fiz todo o curso secundário. Desse curso, passei à Faculdade de Direito em 1934 e me diplomei em 1938.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O senhor atravessou a Revolução de 1935, o Golpe de 1937. Como o senhor recebeu esses acontecimentos? Como esses acontecimentos chegaram até o senhor, 1935 e depois 1937?

O SR. JOSAPHAT MARINHO - Estava às vésperas da diplomação, que ocorreu em 1938, quando se verificou o golpe de 1937. Estávamos, naquela época, os estudantes muito divididos politicamente. A Faculdade de Direito era um centro de agitação política onde havia governistas, poucos; autonomistas, que formavam o grupo de oposição, em aliança com a Concentração Autonomista, chefiada pelo Dr. Octávio Mangabeira; integralistas; comunistas; e indiferentes também. Houve até muitas prisões, e daí se desdobrou o clima de eclipse da legalidade até 1945.

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - O senhor participou do movimento estudantil?

O SR. JOSAPHAT MARINHO - Participei do movimento estudantil primeiro dentro da faculdade, no centro Acadêmico Rui Barbosa, de que fui até presidente, e para o mundo externo, integrando a chamada Ação Acadêmica Autonomista, aliada à Concentração Autonomista, chefiada por Octávio Mangabeira, João Mangabeira, Seabra, Pedro Lago, Aloísio de Carvalho Filho, Nestor Duarte e outros.

Integrado na Ação Acadêmica Autonomista, tive minha primeira participação num ato propriamente político, um belo ato, que foi a chegada do Dr. Octávio Mangabeira do exílio, onde ficara 4 anos, na cidade de Salvador. Foi um belo espetáculo de movimentação popular e foi o primeiro instante em que eu participei de um ato propriamente político.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O senhor foi testemunha de violências do Estado Novo. Quais são os fatos de que o senhor se lembra, atos praticados pelo Estado Novo que lhe doeram na consciência, fatos que são de conhecimento mesmo?

O SR. JOSAPHAT MARINHO - Mesmo na Bahia ocorreram. E há até um fato que não tem sentido nacional, mas tem sentido local e é muito peculiar à nossa vida acadêmica. Era eu presidente do diretório acadêmico, e foi preso um colega meu de turma, mas que era integralista. E eu, participando de outra atividade política, em nome da organização acadêmica, fui visitá-lo na Guarda Civil. Depois disso, eclipsou‑se a vida política. Os políticos foram todos exilados, ou ficaram sem capacidade de ação aberta, porque os partidos foram declarados extintos. Até o próprio integralismo, que havia ajudado o Presidente Vargas a fazer a Carta de 1937, foi posto na ilegalidade.

Já a esse tempo havia uma imensidão de políticos, militares, jornalistas e intelectuais presos. João Mangabeira ficou 14 meses na prisão. Luís Carlos Prestes, como vocês hão de estar lembrados, sofreu tais atos de violência na prisão que o seu advogado, o velho Sobral Pinto, num dado momento pediu ao Tribunal de Segurança que se ao seu cliente não se aplicavam as leis de proteção aos homens, que lhe aplicassem pelo menos as leis de proteção aos animais.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Em 1937 — e a História hoje já sabe —, o Dr. Getúlio Vargas utilizou as candidaturas à Presidência da República do Dr. José Américo de Almeida e do Armando de Sales Oliveira, que era o representante da plutocracia paulista — os dois. Quando houve a retirada da candidatura de José Américo, que pressentiu as nuvens do golpe, da polaca do Estado Novo, pouco antes o velho Octávio Mangabeira, no Palácio Piratini, em Porto Alegre, disse a Armando de Sales Oliveira: “Não comemore, porque a renúncia do José Américo é contra você”.

O senhor se lembra desse fato?

O SR. JOSAPHAT MARINHO - Eu não sei se houve propriamente a renúncia. Houve a idéia, essa sim, de afastamento das duas candidaturas, para que surgisse uma só, sem contraste, assim vedando os passos do golpe. Mas essa idéia demorou a tomar corpo. E eu lhe posso informar que, nas vésperas de 10 de novembro de 1937, o Dr. Mangabeira procurou o Brigadeiro Eduardo Gomes e lhe disse: “O Sr. Getúlio Vargas está com o golpe pronto”. E o Brigadeiro disse: “Não há clima nas Forças Armadas para o golpe”. No dia 10 de novembro, estavam fechados o Senado e a Câmara.

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Dr. Josaphat, particularizando um pouco nossa conversa, eu queria saber uma coisa. Que fatos, que exemplos, que situações conduziram o senhor à opção pelo curso de Direito? O senhor é essencialmente um jurista.

O SR. JOSAPHAT MARINHO - Foi uma inclinação natural. Ninguém influiu, não fiz nenhum teste de orientação vocacional, inclinei‑me naturalmente ao curso de Direito.

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Outra coisa: nesse tempo a que se estava referindo, havia polarização muito grande no processo político: os comunistas, os integralistas, a ditadura. E, pelo que o senhor está nos contando, o senhor se filiou a uma corrente que não estava... Que influências... Como é que o senhor... O que o levou a tomar esse caminho, essa inclinação política, praticamente a primeira? O que o conduziu a isso?

O SR. JOSAPHAT MARINHO - Eu era filho do interior, e havia vários colegas de minha cidade e de cidades vizinhas, também estudantes. E, quando se deu a chegada do Dr. Octávio Mangabeira em agosto de 1934 e o início propriamente da campanha política, nós nos articulamos. De modo geral, os estudantes eram contra o General Juracy Magalhães, tenente interventor. Nós nos articulamos com os políticos, alguns dos quais eram eminentes professores da Faculdade de Direito, como Aloísio de Carvalho Filho, Nestor Duarte, Jaime Junqueira Ayres. Nós nos solidarizamos com eles, inclusive diante das violências que haviam ocorrido na Bahia.

Do ponto de vista, portanto, do pensamento político‑partidário, essas circunstâncias é que influíram na minha definição. Mas eu não entrei em nenhum outro grupo, porque eles se dividiam exatamente assim: havia o grupo do Partido Comunista na ilegalidade; havia o integralismo funcionando a céu aberto; havia o grupo do Partido Social Democrático, que apoiava o Governo. Então, eu não ingressei em partido político nenhum propriamente dito. Mas ocorria ainda que, a esse tempo, eu já sofria influência do pensamento propriamente filosófico originário dos trabalhos de João Mangabeira.

            Sobretudo um documento daquele tempo gerou em mim uma admiração muito grande e, ao mesmo tempo, uma tendência de caráter sociológico e filosófico. Era o parecer que João Mangabeira havia dado no Senado, em 1930, em favor da viúva de um guarda civil. E estava no seu livro, que circulou exatamente em 1934, em torno da Constituição. Esse parecer, que só pode ser referido resumidamente, é a primeira manifestação política de caráter socialista de João Mangabeira.

            A viúva do guarda civil perdeu o prazo para pedir a pensão. Solicitou depois, orientada certamente por alguém, que o Senado lhe relevasse a prescrição, para que ela pudesse receber a pensão. O Relator do processo reconheceu que o guarda morreu por doença adquirida no serviço. E, quando devia voltar à segunda inspeção, já era cadáver. Não obstante isso, o Relator no Senado disse que todos os fatos eram reais. Porém, a Constituição dizia que todos eram iguais perante a lei, e relevar a prescrição seria conceder um privilégio à viúva do guarda civil.

            João Mangabeira pediu vista do processo e, 48 horas depois, deu o seu voto, que é luminoso e atual hoje. Isso é singular. Ele observou que não havia dúvida nenhuma sobre os fatos. O guarda morrera por doença adquirida no serviço. Não havia dúvida nenhuma de que aquela mulher era a sua viúva. “Mas por quê, se ela perdeu o prazo para pedir a pensão?” “Perdeu o prazo porque era ignorante. E era ignorante porque o Estado não lhe deu a educação que lhe devia.”

Dentro dessa orientação, ele parte para sustentar. “Nem o princípio da igualdade de todos perante a lei é o que o nobre Relator do processo considerou. A igualdade de todos perante a lei é caldo de sangria, é caldo para os anêmicos, é sangria para os pletóricos. Ora, no caso, a pobre proletária não tinha condições de conhecer o Direito, de conhecer as regras da lei, os prazos da lei. Se, por essas circunstâncias, perdeu a oportunidade de pedir a pensão, é extremamente justo que se lhe dê o relevamento da prescrição. No Brasil se fez até hoje a justiça dos ricos, o Direito dos ricos, a política dos ricos. É hora de fazer o Direito, a política e a justiça dos pobres.”

            Esse parecer influiu enormemente, confesso, no meu juízo. E, a partir daí, eu passei a ser leitor assíduo de todos os trabalhos de João Mangabeira. E posso dizer: foi ele que me introduziu no desenvolvimento do pensamento socialista.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Quando o senhor entrou na política como militante, com mandato?

O SR. JOSAPHAT MARINHO - Tive essa vinculação sumária quando estudante. Veio o golpe de 1937, e não havia vida política. Quando se reabriu a atividade política, em 1945, eu ingressei na UDN.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - No grupo da esquerda democrática.

O SR. JOSAPHAT MARINHO - É. Então, o grupo da esquerda democrática participou. Todos participamos disso, porque não era possível a esquerda democrática constituir-se em partido naquele momento. Isso poderia até enfraquecer a campanha do Brigadeiro. Então, todos ingressamos na UDN, ainda que alguns fazendo ressalva da sua liberdade num outro partido oportunamente, como fizeram vários para o Partido Socialista.

Dali em diante, minha atividade política foi constante. Em 1947, fui eleito Deputado na Assembléia Constituinte do Estado. Depois fui ainda uma vez Deputado Estadual. Estava Deputado Estadual quando se elegeu Governador o General Juracy Magalhães. O grupo autonomista havia sido o adversário marcado do Governo Juracy Magalhães, originário da Revolução de 1930. Claro que eu não tinha incompatibilidade, porque naquele tempo era um jovem estudante, mas participei daquele movimento.

Em 1958, entretanto, diante das circunstâncias da política geral e de peculiaridades da política local, apoiamos o General Juracy Magalhães, já que estávamos todos na UDN. Eleito ele Governador, fui convidado para Secretário do Interior de Justiça, cargo que ocupei por vários meses até que Aliomar Baleeiro, que ocupava o cargo de Secretário da Fazenda, pediu demissão, porque vinha para a Guanabara disputar uma cadeira de Deputado à Assembléia Constituinte Estadual.

Nesse momento, o Governador Juracy Magalhães me comunicou, de acordo com o que havia discutido com Aliomar Baleeiro — e eu vou repetir o que ele disse, ainda que possa parecer um pouco de exagero —, que o interesse público recomendava que eu passasse a ocupar a Secretaria da Fazenda. Assim, fui para a Secretaria da Fazenda. Estava na Secretaria da Fazenda quando Jânio Quadros se elegeu.

Eu conheci o Presidente Jânio Quadros quando candidato, e ocorreu, então, uma particularidade. Tive oportunidade de presidir o debate dele na Faculdade de Direito. Foi um debate difícil. Havia elementos de todas as forças políticas. Havia muita gente favorável à candidatura do General Lott, mas, com a condição de professor da faculdade, com a experiência com os estudantes, consegui conduzir o debate a bom termo.

E o candidato Jânio Quadros saiu desse debate, chegou ao palácio e disse ao Governador Juracy Magalhães: “Sr. Governador, eu devo o êxito do meu debate ao seu secretário. O Professor Josaphat Marinho conduziu o debate com muita prudência e muita autoridade”. – Estou  referindo o fato porque é um dado histórico que é o que vocês querem –.  E , incontinenti, disse ao General Juracy: “Se eu for Presidente da República, o Professor Josaphat não ficará na Bahia”.

Veio o restante da campanha, e ele se elegeu. Eu não vim à posse, passei‑lhe apenas um telegrama. Mas, no momento em que o General Juracy Magalhães se despedia dele, depois da posse, recebeu uma comunicação: “Como lhe disse naquela oportunidade, o Professor Josaphat Marinho não ficará na Bahia. Preciso dele para Presidente do Conselho Nacional do Petróleo”.

Assim foi essa parte.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Como foi a sua Presidência no Conselho Nacional do Petróleo? Porque, naquela ocasião, a campanha O Petróleo é Nosso chegou a um ponto crítico.

O SR. JOSAPHAT MARINHO - A pergunta é absolutamente apropriada, porque me permite dar um esclarecimento: eu recusei a Presidência do Conselho Nacional do Petróleo. Era um órgão sem grande força, sem recursos financeiros, enfraquecido diante da PETROBRAS. Eu ocupava o cargo de Secretário da Fazenda na Bahia. Passei um telegrama delicado ao Presidente, resignando ao convite. E ele me pediu que viesse a Brasília. Vim, e conversamos durante 55 minutos: eu lhe dizendo que não podia aceitar, e ele retrucando que não aceitava a recusa. E, com muita inteligência — e ele era perigosamente inteligente —, para encerrar o debate, ele disse: “Confia em mim, meu amigo?” Eu disse: “Confio”. “Então, deixe a mim a solução do caso”. Eu vi que estava derrotado. Mas, no curso da conversa, ele me disse: “Aceite a Presidência do Conselho, porque, no meu Governo, a política do petróleo será traçada pelo Conselho. A PETROBRAS é apenas o órgão de execução. E eu lhe darei, em prazo curto, verba extra‑orçamentária para a condução dos trabalhos”. Porque eu havia alegado isso, inclusive. Eu não tinha dinheiro para mandar fazer uma fiscalização na PETROBRAS ou na Refinaria União. O engenheiro que o Conselho de Petróleo mandasse acabava tendo automóvel pago por uma das empresas e hospedagem. Perdia as condições. Ele disse: “Eu lhe darei recursos”. E deu.

Houve um fato, naquele momento, de muito relevo. Eu vim para tomar posse. No dia em que cheguei ao Rio de Janeiro, recebi solicitação do Presidente de que viesse a Brasília com o Presidente da PETROBRAS no dia seguinte. Apesar das dificuldades — naquele tempo, um avião levava 4 horas do Rio de Janeiro a Brasília —, vim com o Presidente da PETROBRAS, mas em avião militar. É também um sintoma do que era o funcionamento do Governo Jânio. Como eu alegara a dificuldade, quando voltei ao hotel depois do jantar, havia um comunicado do Brigadeiro que representava o Ministro da Aeronáutica no Rio de Janeiro: “De ordem do Sr. Presidente da República, um avião militar estará à sua espera, às 4h da manhã, na ponta do calabouço”. Eu até tive dúvida se ia ser Presidente do Conselho ou fazer uma operação de guerra. Mas, afinal, viemos num avião militar.

Ele queria — isso é importante — um decreto naquele dia que determinasse que o preço dos derivados do petróleo que estivessem em poder dos revendedores não seria o resultante da Instrução nº 204, do seu Governo, mas os preços correspondentes ao momento em que o produto fora adquirido. Era uma medida corajosa. Eu lhe perguntei: “Presidente, onde está o fundamento legal dessa medida?” Disse-me: “Deixe a mim, Dr. Josaphat, a responsabilidade da resposta sobre as indagações que forem feitas”. Mas o decreto produziu efeito tão favorável que não houve protesto sequer na Câmara dos Deputados. Toda a esquerda ficou a favor. Toda a esquerda.

Esse decreto, em boa parte, naquele momento, salvou a PETROBRAS, que estava em graves dificuldades financeiras. Porque o Presidente determinou que a diferença de preços entre o preço de aquisição e o de venda, que não podia ser o da Instrução nº 204, fosse recolhida ao Banco do Brasil, pelo Conselho Nacional do Petróleo, e destinada à PETROBRAS, à Comissão de Pesquisas Científicas, ao Departamento Nacional de Estradas de Rodagem e a outro órgão. Era uma verba livre, extra‑orçamentária. Era uma arrecadação que o Governo estava fazendo por efeito de decreto do Executivo. Pois bem, eu não havia ainda feito nenhuma reclamação. Mas era o Conselho que fazia o recolhimento ao Banco do Brasil.

Quando entrou importância ponderável — e em petróleo tudo é grandioso, toda parcela é grandiosa —, ele me passou um fax dizendo: “Ordenei ao Presidente da PETROBRAS que ponha a importância tal à disposição do Conselho Nacional do Petróleo”. O Jânio era, portanto, um homem com quem se podia transigir num dado momento, confiando na solução por ele proposta. Ele podia ter desvios na ação política, mas na ação administrativa era impecável.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - A que o senhor atribui a renúncia, O senhor, que viveu, assim, com certa intimidade com o poder então exercido?

O SR. JOSAPHAT MARINHO - É muito difícil. É muito difícil explicar a renúncia. Eu vou dar meu ponto de vista do que observei no Governo: Jânio não tinha equipe. Ele chegou ao poder, digamos assim, antes da hora. As pessoas que trabalhavam em torno dele eram seus amigos pessoais e grandemente dependentes dele. Eu extraí muito essa conseqüência de uma conversa no primeiro dia de despacho que tive com ele. Porque também ele fez isto: o Conselho já estava subordinado ao Ministério de Minas e Energia, de que era titular o Ministro João Agripino, mas ele marcou o dia para que eu despachasse com ele. Eu vim ao Ministro e expliquei que eu estava subordinado ao Ministério e não devia despachar com o Presidente. João Agripino, porém, político e meu amigo, disse: “Vá. Discuta com o Presidente, resolva os problemas, depois me dê conhecimento. Na verdade, o Jânio, em matéria de petróleo, só quer tratar com o Presidente do Conselho”. E eu fui.

No primeiro despacho, quando terminei meu expediente, fui ao Presidente Jânio Quadros: “Pronto, Presidente” Ele disse: “Não. Vamos agora conversar um pouco sobre política”. E fez esta observação: “Diga-me o que referem de mal do Governo no Rio de Janeiro, porque para dizer de bem esta Casa está cheia”. Isso me deu a exata noção de que ele não estava seguramente informado do que se passava. Todos temiam perder o cargo, e todos só lhe davam notícias boas. E ele repetiu esse gesto em todos os despachos. Teve a bondade — quero considerar a bondade — de conversar comigo sobre mudanças no Governo. E mudanças que me atingiriam, para que eu passasse a ocupar outro posto.

Diante da intimidade que me deu, eu lhe falei sempre com franqueza. E lhe dava notícia da má repercussão de um ou de outro ato, mas eu sentia que ele não estava amplamente informado. Quando sobreveio a renúncia, eu a recebi de surpresa, como toda a Nação. Pedi demissão incontinenti, mas o Ministro de Minas e Energia, Dr. Gabriel Passos, em vez de me dar a demissão, passou a despachar no Rio de Janeiro, onde não tinha gabinete de Ministro, lá no Conselho do Petróleo, e me declarou que não cogitaria da minha substituição e que eu, por favor, não insistisse. Eu lhe ponderei até o fato de saber que ele era muito mais simpático à PETROBRAS do que ao Conselho, que ele havia considerado num dado momento um órgão entreguista. E ele me retrucou e disse: “Mas hoje é diferente”.

            Então, fiquei a refletir sobre a renúncia lendo os jornais. Quando Jânio Quadros voltou, meses depois da viagem ao estrangeiro, pediu-me que fosse a São Paulo. Numa conversa que tivemos, ele me disse: “Você ainda não opinou sobre a minha renúncia”. Eu disse: “Não tomaria a iniciativa, não”. Disse: “Por quê?” “Porque eu não aprovei a renúncia, Presidente.” Ele disse: “O senhor não aprovou?” Eu disse: “Não. O senhor me permita a franqueza. O senhor não conseguiu justificar a renúncia perante a Nação. A Nação não aceita. O senhor deu pretextos”. E ele aí me disse: “E o que você faria?” Eu disse: “Não posso interferir nesse problema, porque eu não era Ministro”. “E se fosse Ministro?“ Eu disse: “Eu não entregaria ao Presidente do Congresso a sua carta de renúncia. Acho que esse foi um erro fatal”. “E o que faria?” “Eu pediria, como Ministro da Justiça, a presença de todos os outros Ministros no Palácio. Se fosse preciso” — disse para ele sorrindo — “pediria ao próprio Ministro da Aeronáutica que não pusesse avião à sua disposição.” “O senhor praticaria um ato de desobediência ao Presidente da República?” Disse: “Praticaria, a bem da Nação.”

            De maneira que eu acho que na renúncia em si o que faltou foi assessoria política.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Muita gente acha que a renúncia era parte de um golpe.

O SR. JOSAPHAT MARINHO - Se era ou não parte de um golpe eu não posso julgar, porque Jânio era um homem extremamente inteligente, e não me cabe admitir que ele pudesse imaginar que ia dirigir uma revolta popular de Cumbica, recolhido por um avião. Nunca! Não me parece possível.

Foi um erro a renúncia? Foi. E ela em grande parte se deu por falta de boa assessoria política.

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Senador Josaphat, acho que aí nós exageramos. Não falamos do Octávio Mangabeira praticamente, pessoa, pelas informações que temos, muito importante para sua formação. Eu queria que o senhor contasse para nós como se deu esse contato, como foi essa convivência e qual foi a importância que ela teve na sua trajetória.

O SR. JOSAPHAT MARINHO - Como lhes disse já no curso dessas declarações, antes de conhecer Octávio Mangabeira eu li os Documentos de Octávio Mangabeira, que foram documentos notáveis, do momento em que ele deixou o Ministério em 1930 até o seu primeiro exílio, de novembro de 1930 a agosto de 1934. As cartas que ele dirigiu ao Presidente Vargas, ao Dr. Assis Brasil, sobretudo são cartas notáveis, em que ele não pediu nenhuma condescendência. Ele acentuava a brutalidade do que se estava praticando contra ele e outros, presos sem nenhum crime e mandados para o estrangeiro, como se as outras nações fossem postos de degredo e sem que se lhes perguntassem se dispunham de recursos para morar no exterior.

Em uma das cartas dele ao Presidente Vargas, há uma frase que só vou mencionar e não quero comentá-la. Na hora em que recebeu a ordem de embarcar para o estrangeiro — e só podia ser para a Europa, não podia ser para nenhum país da América —, ele escreveu uma carta ao chefe do governo provisório Vargas e lhe disse: “Ninguém pode tudo. Sobretudo, ninguém pode sempre. A justiça dos homens é falível. A outra não falta nunca”. Quem analisar depois essa frase, tendo em vista o destino dos dois, vê que ela é de terrível pré-ciência.

Meu contato pessoal com o Dr. Octávio Mangabeira se deu em 1934, quando ele voltou. Mas cumpre assinalar um documento do Dr. Octávio Mangabeira, do exílio. Eu uma vez lhe disse: “Dr. Mangabeira, este é o maior documento de sua vida política. É o menor, tem 10 ou 12 linhas, mas é o maior documento político de sua vida”. Ele estava no exílio em Biarritz quando recebeu uma correspondência da Comissão de Sindicância, que dizia apurar fatos irregulares no Ministério das Relações Exteriores, então ocupado pelo Dr. Afrânio de Melo Franco, e pedia esclarecimentos sobre os fatos. Ele responde — farei um resumo – mais ou menos nesses termos: “Acabo de receber há precisamente 15 minutos a correspondência de V.Sas. Relevem que não lhes preste informação alguma. Não levem à conta de descortesia. É um problema de consciência. Proceda a ditadura como quiser, vasculhe os arquivos do Ministério das Relações Exteriores. Por tudo quanto nele se praticou enquanto fui Ministro, sou o único responsável. Desprezo a tolerância, mas contas só as prestarei à Nação, quando ela for restituída a um governo de si mesma.”

Para um homem que está no exílio, chamado a contas, dar essa resposta é porque tem plena consciência da sua correção. Tanto assim que nada foi apurado no Ministério das Relações Exteriores.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Outra pessoa que teve influência na sua vida, embora não influência intelectual, mas influência política — aliás, teve influência na Bahia sobre figuras de todo o espectro ideológico —, foi o Sr. Juracy Magalhães. O Sr. Juracy Magalhães o convidou para Secretário de Estado. O Sr. Juracy Magalhães tinha gente de quadros de esquerda e de quadros de direita entre seus auxiliares preferidos. Como é que o senhor define o Sr. Juracy Magalhães na história da política contemporânea da Bahia e do Brasil?

O SR. JOSAPHAT MARINHO - Eu mantive, a partir de Secretário, excelentes relações com o Governador Juracy Magalhães. Como havia sido antes integrante de um grupo político dele adversário, quando estava prestes a assumir a Secretaria, ele me disse no bom estilo do político, mas que também é militar: “Nós precisamos criar a cordialidade para o exercício do governo”. Eu disse: “Exato”. E ele me perguntou:  Que sugestão você dá?” “Governador, eu sugeriria o seguinte: Eu nunca lhe direi ‘não’, podendo dizer ‘sim’. Mas nunca lhe direi ‘sim’, pensando ‘não’. Ele disse: “Ótimo, eu venho do meio militar e, embora hoje político, mantenho aquele clima de franqueza. Com isso nós vamos nos entender”.

Eu não posso dizer, não seria correto nem para ele nem para mim, que ele influiu na minha ação política, no curso da minha vida política. Nós convivemos bem durante o tempo em que fui Secretário, mas as pessoas que influíram no curso da minha vida profissional e política, sobretudo no curso da minha vida política, foram: de um lado, Nestor Duarte, de quem fui aluno e depois me tornei companheiro de escritório e companheiro político até ele morrer; fora daí, pela liberdade de pensamento que expunham e sustentavam, inclusive com sacrifício, João e Octávio Mangabeira.

Convivi muito mais com o Dr. Octávio Mangabeira, porque o Dr. Octávio Mangabeira era mais político do que João Mangabeira. João Mangabeira era um ideólogo. Ele presidia o Partido Socialista menos como político praticante e mais como portador daquelas idéias que ele vivia com intensidade admirável. Curiosamente, convivi bem mais com o Dr. Octávio Mangabeira, fiquei muito mais íntimo dele, mas meu pensamento socialista vinculou-se às idéias de João Mangabeira.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - É curioso. Com relação ao Dr. João Mangabeira, um progressista, um trabalhista, todo mundo estranhou que, após o golpe de 1964, ele tenha dito do Castello: “É o novo Floriano Peixoto. É o homem que vai garantir a unidade nacional”. Muita gente atribuiu essa declaração ao interesse do Dr. João Mangabeira de preservar o filho Chico Mangabeira, Francisco Mangabeira, que também era do PSB, era socialista e era Presidente da PETROBRAS do Governo deposto. Como o senhor explica essa declaração, que, de qualquer maneira, era uma declaração controvertida para um homem com o passado de João Mangabeira e para as circunstâncias que o pai vivia — companheiros dele eram perseguidos pelo regime militar.

            O SR. JOSAPHAT MARINHO - Ficou uma declaração controvertida e que levou o Senador Aurélio Vianna a um voto que o martirizou. Às vésperas da escolha indireta do Presidente Castello Branco — eu fui muito amigo de Aurélio Vianna, não entrei no Partido Socialista, mas fazíamos ação conjunta no Senado —, ele primeiro me disse: “Recebi instruções do Dr. João Mangabeira para votar em Castello Branco e estou atordoado, mas Dr. João é um homem que de má‑fé não orienta ninguém, e ele não me orientaria assim”. Acredito que o pensamento de João Mangabeira foi por acreditar na capacidade política e no espírito democrático do Presidente Castello Branco. E, na verdade, se o Presidente Castello Branco não foi um homem de pensamento nitidamente autoritário, era fraco na sustentação das idéias, fraco nas ações governamentais e acabou envolvido pelos radicais da revolução, com eles praticando todos os excessos que conhecemos.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O senhor acha que, depois da renúncia, da deposição do Jango, o Sr. João Goulart tornou-se uma fatalidade porque não tinha preparo de comandar o País?

            O SR. JOSAPHAT MARINHO - É curioso o problema João Goulart. Só conversei com João Goulart uma vez, no Uruguai. Enquanto ele foi Presidente, vários Senadores, sobretudo o Senador Nogueira da Gama, insistiram em que eu fosse a um encontro com o Presidente, diante da minha posição no Senado. Eu estava sem legenda, então não tinha compromisso com nenhum dos lados. Por várias vezes votei contra a UDN e contra o PTB. Tomava a posição que me parecia correta. Eu era favorável às reformas, mas não admitia aquele exagero das reformas de base que envolveram o Governo de Jango e o derrubaram.

E tinha a impressão de incapacidade do Sr. João Goulart. Indo numa representação parlamentar ao Uruguai, julguei do meu dever, embora não tendo relação pessoal nem política com nenhum dos dois, visitá-lo e ao Sr. Leonel Brizola. A conversa foi agradável. Conversei mais tempo com o Presidente João Goulart, e confesso que a impressão que me ficou era diferente. Ele era um homem de conversa sensata, muito bem-informado da política do continente americano, opinando com tranqüilidade sobre o problema brasileiro. Tanto que fez questão de conversar muito comigo, que não era do PTB, em companhia do Senador Arthur Virgílio. Quer dizer, além de uma visita coletiva que os Senadores fizeram a ele em sua residência, ele nos convidou os dois para um almoço, e nesse almoço é que conversamos longamente, e a impressão que dele me ficou foi boa.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O senhor também participou ativamente daquelas articulações que tiveram o Sr. Carlos Lacerda como o grande peão, que foi a Frente Ampla. As articulações destinadas a um acordo político envolvendo os ex-Presidentes Juscelino Kubitschek e João Goulart com o ex-Governador da Guanabara, Carlos Lacerda, que era inimigo pessoal deles.

O SR. JOSAPHAT MARINHO - É verdade. Naquele momento eu estava no Senado, sem legenda, quando recebi uma carta do Presidente Juscelino Kubitschek com quem não tinha qualquer relação. Nunca o havia cumprimentado. Dele recebi uma carta muito elogiosa me convocando para participar da Frente Ampla. Conversei com alguns amigos, como João Borges e Nestor Duarte. A minha inclinação era favorável e contei com o apoio dos dois. O meu entendimento era o seguinte: se estamos todos contra a Revolução, devemos nos situar no mesmo campo de luta. Não há porque ficarmos divididos, estragando forças, perdendo possibilidade de ação válida.

Fui ao encontro da Frente Ampla. O convívio com Carlos Lacerda era admirável. Ele era de uma conversa cativante. No primeiro dia ele insistiu para que eu assumisse a Presidência da Frente Ampla. Houve um jornal, pelo menos, que chegou a noticiar. Eu disse ao Governador: o Presidente da Frente Ampla é o senhor. Eu não gosto de simular papel. Qualquer de nós que seja escolhido Presidente da Frente Ampla, vai ser apenas a imagem, porque o Presidente efetivo é o senhor. O senhor é que teve a idéia do movimento, o senhor é que trouxe o Presidente Juscelino e o Presidente Jango para essa ação política. Vamos trabalhar em conjunto, mas sem pensar nisso.

E assim ficamos. A verdade é que a Frente Ampla ficou sem Presidente. O Secretário era Renato Archer, uma admirável figura de pensamento político e de trato cordial. E merecia a confiança de todos. Mas na verdade, o Governador Lacerda queria ter o comando da Frente Ampla; ele não desejava partilhar decisões e ele não gostava que se dissesse numa reunião e ainda menos num comício – como dissemos no ABC, onde fizemos um comício – que estávamos na Frente Ampla, mas não éramos partidários nem do Sr. Lacerda nem do Sr. Juscelino Kubitschek. Eu pelo menos assim o declarei. Martins Rodrigues manifestava sua condição de pecedista; Oswaldo Lima Filho, a sua condição de petebista e sem compromissos partidários com o Sr. Carlos Lacerda ou com o Sr. Juscelino Kubitschek. Lacerda não gostava, ele queria ser o condutor aceito por todos como tal, sem qualificação de posições, o que não era possível. Mas isso não perturbou. A Frente Ampla ia crescendo, tanto que chegamos a fazer um comício naquela cidade do ABC, não me recordo qual. E estava crescendo. Mesmo pessoas que não tinham estima ou simpatia pelo Carlos Lacerda, ou pelo Presidente Juscelino Kubitschek estavam ingressando. Eu influí um pouco para isso, porque eu dizia: eu também não tenho ligação nenhuma, mas eu acho que se temos uma trincheira de luta e um adversário comum, nosso dever é estar na mesma trincheira. Mas sobretudo o que não me agradou foi, como se diz, o final da Frente Ampla. O Ministro Gama Filho baixou uma portaria extinguindo a Frente Ampla numa sexta-feira que antecedia a Semana Santa. E a partir daí, tivemos dificuldades para conversar com Carlos Lacerda, sendo que pouco depois ele embarcou para a Europa.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O Congresso, a Câmara dos Deputados constituiu duas comissões. Uma comissão investiga as circunstâncias da morte por acidente na via Dutra, acidente automobilístico, do Presidente Juscelino Kubitschek; uma outra comissão examina as circunstâncias da morte, circunstâncias obscuras também, da morte do Presidente João Goulart na Argentina, na cidade de Mercedes, e há suspeita de assassinato. Houve uma reunião em Caracas, em que várias lideranças de esquerda denunciaram o plano das ditaduras militares da América Latina de matar, de eliminar fisicamente, lideranças sociais democratas importantes na região. E tudo parecia marchar nesse sentido, na Operação Condor, como se chama — condor é uma ave de rapina —, quando morreu em Washington, num violento atentado a bomba o Embaixador Letellier, do Chile. E até está preso no Chile o General Contreras, que era o chefe da DINA, Serviço Secreto Militar do Chile.

O senhor acredita, aliás, nas mortes que se sucederam em setembro, de Juscelino na via Dutra, a do João Goulart, apenas 6 meses depois, dezembro, e em 1976, morreu o Sr. Carlos Lacerda, também em circunstâncias bastante misteriosas, embora a família não queira mexer no assunto... O Sr. Hélio Fernandes disse que ele foi assassinado.

Por que tem essa lista de mortos num prazo menor do que um ano, curiosamente, coincidentemente, um atrás do outro? Por que o Sr. Jânio Quadros não se incluiu entre os mortos? O senhor acredita que Juscelino, depois Jango e depois Carlos Lacerda tenham sido assassinados? O que é possível... E também o senhor dê sua opinião por que da lista se excluiu o Sr. Jânio Quadros, que sempre teve uma atitude que parecia simpática aos militares – então donos do poder – de não se integrar na Frente Ampla com o entusiasmo com que se integraram Jango e Juscelino.

            O SR. JOSAPHAT MARINHO - As circunstâncias que envolveram as mortes de todos esses homens foram meio obscuras. Eu não tenho elementos para fazer um julgamento de que houve crime. Não sei se, no caso de Lacerda, houve um crime ou um erro médico, porque, afinal de contas, o médico que o tratava era ou não de sua confiança?

Quando Juscelino morreu, as circunstâncias todas que vieram aos jornais foram de um acidente. Eu confesso que não atentei, naquele momento, para nenhuma circunstância indicativa de crime.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Há uma testemunha do acidente, na Via Dutra, que ouviu uma explosão antes do choque dos veículos. No processo tem essa...

O SR. JOSAPHAT MARINHO - Eu não tenho, sinceramente.

E quanto a Jânio, acho que não há nenhuma suspeita. Jânio permaneceu em São Paulo, sofreu aquela violência de ser mandato para Corumbá, preso, onde fui visitá-lo, no hotel em que estava com a polícia no corredor. Quando saía para o almoço, saia aquele conjunto de policiais o acompanhando, o que era extremamente ridículo, porque qual o perigo que podia haver de o Jânio sair do hotel para o restaurante a 2 passos, em Corumbá? Era ridículo.

            Eu o visitei várias vezes e posso até dar um testemunho. Quando estava ao fim da sua administração na Prefeitura, como na Bahia sabiam que eu era amigo dele, ficavam a me perguntar se Jânio era ou não candidato à Presidência da República.

            Quando estava prestes a deixar a Prefeitura, eu fui a São Paulo e pedi-lhe uma audiência. Ele me recebeu, veio tomar-me na antessala e eu andando disse: “Presidente, fico a me perguntar se o senhor é ou não é candidato à Presidência da República?” Ele fez referência aberta à sua situação de saúde. “Eu sou um homem trôpego. Posso enfrentar uma campanha? E tenho o problema grave de saúde da minha mulher.”  Sobreviveu sem que houvesse nenhuma dúvida a esse respeito. De maneira que não acho como possam querer incluir o Jânio na suspeita de morte provocada.

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Eu gostaria de voltar à sua atuação no Senado. O senhor foi eleito em 62. Foi Líder da Maioria no Senado quando o Congresso recebeu a notícia do Golpe. Queria que o senhor contasse sobre isso.

            O SR. JOSAPHAT MARINHO - Eu não fui propriamente líder. Estamos aqui para falar a verdade.

Ocorreu que me situei, logo no princípio, contra o movimento militar. Creio,  modéstia à parte, que, no Senado, foi o primeiro discurso contra o regime militar, logo após o Ato Institucional nº 1. Mas a liderança propriamente, eu nunca tive. Ao contrário, ela acabou destinada ao Aurélio Viana, como Líder do PSB. Eu, sem legenda, me mantive na Oposição e critiquei todos os atos da resolução.

Vou me referir a um fato rapidamente que a imprensa nunca noticiou. Eu estava em franca oposição quando, numa manhã de segunda-feira, às 9 horas, o telefone toca em minha casa e me perguntam: “É da residência do Senador Josaphat Marinho?” Digo: “É ele.” Diz: “O Presidente Castello Branco vai lhe falar.”

Eu repeli a idéia, admitindo que era um trote. Por isso, conversei, na verdade, com o Presidente da República com a maior frieza, respondendo apenas ao que eu julgava que devia responder. Ele me perguntou se eu era o Relator da reforma do Congresso. Eu disse: “Sou”. “O Presidente Auro Moura Andrade disse que eu poderia conversar com o senhor.” “É natural que pode”. Eu estava supondo que era um trote. 

Num dado momento, ele me disse: “Eu lhe asseguro que só conversarei sobre as relações entre o Poder Executivo e o Poder Legislativo.” Eu digo: “Normalmente deve ser assim.” Eu não dei ao Presidente da República o tratamento devido e a ele expliquei depois, porque acabei indo ao seu encontro.

No fim, ele disse: “O senhor viaja esta semana?” Eu respondi que amanhã deveria ir ao Rio de Janeiro. Disse: “Então a conversa poderia ser hoje”. E eu tinha que dar uma resposta e perguntei a que horas. “Pode ser às 16 ou 17h.” Eu, não por indelicadeza premeditada, mas ainda na persuasão de que era um trote, disse: “As cinco seria melhor.” E ele disse: “Então, fica marcada para as cinco.”

Mas a verdade, quero ser justo, é que fui ao encontro dele e conversamos 1 hora e 25 minutos, de 5 às 6h25min. Ele se revelou um homem de razoável cultura, conhecendo as linhas da política internacional; conhecendo a constituição americana, a constituição francesa, a constituição italiana; sabendo o que era delegação legislativa...

Num dado momento, ele me disse: “Senador, tenho notado que o senhor é muito contra as soluções de conjuntura.” Eu disse: “Sim, Presidente, tenho votado bastante contra mensagens suas. Mas devo lhe explicar que votei também contra mensagens do Sr. João Goulart. E hoje o que me preocupa, para não votar por motivo de ordem pessoal, é que o senhor, que eu considero meu adversário, mas é um homem contido. E não sei quem vem depois.”

Já se falava abertamente na candidatura do General Costa e Silva, mas ele também não adiantou a conversa. Mas conversou tranqüilamente. Eu lhe expliquei as razões da minha frieza, que foram aceitas por ele. Ao sair, fiz o que me parecia de bom senso e correção: “Eu estou aqui a seu convite. A conversa é sua. O senhor dará a publicidade que quiser.” Ele não deu nada. Eu também não.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Agora, sobre o Golpe de 64...

O SR. JOSAPHAT MARINHO - Só veio sair notícia dessa conversa num livro de um americanista que acredito ter sido dada a pauta pelo Navarro de Britto, que soube da conversa.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Sobre o Golpe de 64, numa análise crítica que o senhor tem condições de fazer, só lembrando que o Sr. Tancredo Neves costumava dizer, na intimidade, que o Golpe de 64 tinha decorrido do esgotamento das instituições de 1946, que essa seria a causa principal. Qual a sua opinião?

(Interferências/pausa)

O SR. JOSAPHAT MARINHO - Eu não concordo.

O que me parece ter ocorrido é que os partidos políticos estavam, de 63 para 64, extremamente frágeis, como estão agora, de tal maneira que as lideranças estavam se sentindo desarticuladas e não havia um homem de grande visão política que conversasse no meio militar para impedir o golpe.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O contrário, uma parte da UDN conspirava nos quartéis...

O SR. JOSAPHAT MARINHO - Diante da fraqueza, a UDN havia sido obrigada a apoiar Jânio Quadros. Obrigada! A verdade é que o Presidente não lhe deu nenhuma importância. Como não deu aos outros partidos. Os partidos é que tinham que o acompanhar e não ele aos partidos. E aquilo enfraqueceu enormemente os partidos políticos.

(Interferência/ininteligível)

Ele renunciou, mas o que sobreveio foi uma transição tumultuada e incerta, insegura. O Presidente João Goulart, conquanto houvesse concordado com a instituição do regime parlamentar, desde que sentou na cadeira presidencial, trabalhou para voltar ao Presidencialismo. Não houve alguém lucidamente capaz de dizer-lhe: você sobrevive muito melhor neste regime parlamentar – manco, mas coletivo – do que no regime presidencial de caráter personalista. Ele, por sua vez, permitiu aquele movimento dos sindicatos, sobretudo dos sindicatos da PETROBRAS, que davam a impressão de mandar no Governo, impugnavam Ministros, tratavam nomes... respeitáveis até. E o Governo foi perdendo autoridade, dando a impressão de que se diluía o poder de comando do Presidente da República. Abriu caminho à ação dos militares – com os civis –, que, à vista de outras derrotas, preferiu mudar o curso dos acontecimentos.

Só que não imaginaram que o desdobramento seria muito mais grave e que, no momento em que a quebra da legalidade se operasse, eles não teriam voz, e foi o que aconteceu. Não quero citar nomes, mas houve nomes ilustres, nomes que depois se recuperaram, que acreditaram e até concorreram para a elaboração de texto e de ato institucional. Em seguida, verificaram o alçapão em que entraram. Estavam todos prisioneiros da ditadura militar. Foi isso que aconteceu. É essa a minha impressão.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - A Constituição de 67 foi autoritária.

O SR. JOSAPHAT MARINHO - Extremamente autoritária.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O senhor participou da elaboração da Constituição.

O SR. JOSAPHAT MARINHO - Participei.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Por quê?

O SR. JOSAPHAT MARINHO - Porque o partido resolveu participar e já era o movimento, o MDB. O MDB resolveu participar como uma forma de atenuar o caráter autoritário da Constituição, e se atenuou muito.

O projeto originário do Governo Castello Branco, no capítulo Dos Direitos e Garantias Individuais, por exemplo, dizia em tudo: na forma da lei: É assegurada a liberdade de imprensa, na forma da lei. É assegurada a liberdade de expressão, de pensamento e de comunicação, na forma da lei.

 Quer dizer, não havia direitos fundamentais. A lei é que ia dizer tudo. Faço justiça a um dos líderes da revolução, o Senador Daniel Krieguer, que procedeu com a maior correção, não apenas defendendo colegas ameaçados de cassação, algumas personalidades ilustres, como no correr da Constituição, amparando as idéias liberais, a partir da própria modificação do capítulo Dos Direitos e Garantias Individuais.

            Eu elaborei o parecer do MDB, fazendo modificações substanciais no projeto da Constituição e contrariamente ao pensamento militar.

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Queria saber — volto um pouquinho mais —, houve essa reorganização compulsória do quadro partidário com a extinção dos partidos antigos e com a criação da ARENA e do MDB. O MDB era visto inicialmente como alguma coisa só para compor o quadro, uma oposição para compor o quadro. Como é que o senhor analisa o processo de criação do MDB? Como é que o senhor se inseriu? E a trajetória desse partido e a importância que teve para a redemocratização do País.

            O SR. JOSAPHAT MARINHO - O que aconteceu é que o Presidente Castello Branco cometeu o grave erro de extinguir os partidos políticos. Ele havia proposto a elaboração de uma lei de reorganização dos partidos que iria produzir bons efeitos. A lei proporcionava a eliminação de vários partidos. Todos estávamos — eu que não tinha legenda estava em conversa com Aurélio Viana, com Franco Montoro, que era do PDC, com Lima de Matos, que era do PST, se não me engano — unidos para formação de um partido único de caráter socialista. Quando se estava no desdobramento dessas conversações, o Governo extinguiu os partidos. Foi um erro tremendo. Eu disse isso ao General Juracy Magalhães, que era Ministro da Justiça. O senhor concorreu para um ato contrário à própria revolução, porque esta lei produzia bom efeito. Aí, no ato de extinção dos partidos, o Governo estabeleceu que só se podia criar duas organizações.

Então, só fiz perguntar: Onde fica a Oposição? Porque do lado do Governo eu não poderia. Entrei no MDB. Eu vi – com estes olhos – a insegurança de várias posições, de várias personalidades. Eu vi a situação de pessoas que saíam de Brasília nos pedindo... e a mim um pediu: “Reservem um lugar para mim no MDB, porque eu não posso entrar no partido do Governo”. E chegou lá, entrou no partido do Governo e nunca mais pediu a vaga. Houve outros que foram para entrar no partido do Governo e não conseguiram. Entraram no MDB...

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - À força.

            O SR. JOSAPHAT MARINHO  - ... à força, e do lado do MDB por uma generosa concessão, porque se sabia que ele não era oposição.

            Havia pessoas que no Senado que para dizer que o Presidente da República errou primeiro faziam um laudatório ao Presidente Castelo Branco. Quando o discurso, presumidamente de oposição, se desdobrava, não tinha mais sentido. Não tinha mais sentido.

            Quando se formou o MDB, não sei se conhecem essa inclinação da Câmara, era para que eu fosse o Presidente do partido. Quando essa notícia veio da Câmara, houve, no Senado, Senadores que se estavam comprometendo a entrar no MDB que declararam: “Se o Josaphat for o Presidente, eu não entro. Josaphat é uma linha auxiliar da Esquerda no Senado.”

Então, vê-se por aí como... Eu digo: “Não faço questão de ser presidente de partido. Eu quero, agora, é que se forme o partido”. Estava uma dificuldade para arranjar os dezenove.

Esses entraram, mas entraram não para ser oposição ao Governo militar. Tiveram cerimônia de entrar na ARENA, porque eram provindos em grande parte do PTB .

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Até se disse na época que o Juracy emprestava o passe de alguns Senadores para formar o PMDB.

O SR. JOSAPHAT MARINHO - Se isso se deu, eu não sei. Eu não duvido, não duvido, porque uns lá nunca foram.

Vou lhes dar um fato — como eu estou fazendo um pouco a história da minha participação política –: depois dos 10 meses de recesso, eu comuniquei ao meu amigo Aurélio Viana, que era o Líder da Oposição, que eu estava escrevendo um discurso que leria 2 ou 3 dias após a reabertura do Congresso. Eu iria fazer uma análise completa, resumida – naturalmente – da política brasileira, para justificar o que nós estávamos passando. E escrevi um discurso que começou com a Coluna Prestes. Examinei aqueles fatos das rebeliões militares. Cheguei aos dias então presentes. Analisei os atos do poder revolucionário durante os 10 meses. Inclusive, critiquei as primeiras manifestações do Presidente Médici, uns discursos gongóricos que, evidentemente, não partiam dele, que era um homem pessoalmente composto, mas que não tendo experiência política se expôs lendo uns discursos poéticos, gongóricos, que ele “tinha visto um minuano subindo na praça, subindo e rodopiando...”. Não era do espírito do Presidente Médici. No seu temperamento, ele era um homem contido.

Pois bem. Quando se anunciou a abertura, eu disse: “Dois ou três dias depois, eu vou ler o discurso”. Quase toda a bancada me pedia para não fazer o discurso, mas isso não era o mais grave. O mais grave é que eu fiz o discurso e não recebi aparte de um membro da Oposição. A certa altura, o Senador Eurico Resende, sentindo que eu estava só, fez, no estilo que era dele, de muita provocação: “Desejo a V.Exa. a injustiça que está fazendo com o movimento revolucionário. V.Exa. é escoteiro nesta tribuna. O seu partido não o apoia”. Nem assim eu recebi uma palavra de solidariedade da bancada.

Aí, claro, passei a agir individualmente, dizendo: “V.Exa. está enganado. Eu não sou Líder do MDB, e para fazer este discurso eu não preciso nem da solidariedade dos meus colegas, nem da tolerância de V.Exa”. Teria que ser, como cumpria-me, naquela hora, suficientemente firme para justificar minha posição. Era isso o partido.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Como o senhor analisa todos os golpes que houve dentro do regime militar e por que o regime militar durou tanto? O senhor acredita que os Estados Unidos patrocinaram esse regime militar? Aliás, todo mundo acredita nisso.

O SR. JOSAPHAT MARINHO - Que deram sustentação...

(Interferência)

O SR. JOSAPHAT MARINHO - Que deram sustentação? Eu não tenho dúvida nenhuma!

(Interferência)

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - O PMDB já nasceu fisiológico, assim? Eu acreditava que o PMDB tivesse nascido ideológico. Mas o senhor está falando que tem um braço aí fisiológico.

O SR. JOSAPHAT MARINHO - Há sim. A sua observação final é que é correta. Havia no MDB um braço fisiológico. Havia gente do PMDB que freqüentava o palácio, pedia favores. O outro lado era a parte resistente. Eu fui ao palácio, porque fui convidado pelo Presidente da República. Fora daí não teria nunca ido lá durante o regime militar. E também a visita não alterou em nada o meu comportamento.

Essa situação de insegurança, de confusão, concorreu bastante para essa dispersão dos partidos que aí está. As pessoas se comprometeram com determinados partidos e, depois, começaram a sentir dificuldade em sair. Eu mesmo saí do MDB quando o Governo fez aquela segunda extinção dos partidos, quando nasceu, então, o PMDB. Havia diretrizes dos que dirigiam o partido na Bahia que não me agradavam. E eu e outros decidimos não participar.

Essa situação persiste até hoje, tanto que eu acho que a melhor solução para a reforma política, a que poderia dar legitimidade aos partidos seria, a essa altura, a extinção de todos, pura e simples, respeitados os mandatos atuais. Os partidos que pudessem recompor-se, o fariam. Mas nós sabemos, pela experiência, pelo que a vida estava nos mostrando, que vários partidos não se reconstituiriam, não tinham condições de se reconstituir. Isso propiciaria a formação de novas agremiações, mais filiadas às idéias atuais e sem os comprometimentos do passado.

            Infelizmente, não se está cuidando dessa medida com seriedade. Então, nós vemos isso, agora, por exemplo, na campanha municipal. Eu estive na Bahia, fui ao interior, participei agora de dois comícios, vou para um último.

            Pois bem. As propagandas são: “Fulano de tal, candidato a Vereador, número tal.” Não há legenda! Parece que os candidatos têm vergonha da legenda a que pertencem, salvo, com segurança, ao PT. Os candidatos do PT consignam a legenda. Esse fenômeno precisa mudar. Os partidos, os chefes... Até porque se eles não operarem a transformação, ela poderá vir em condições pouco agradáveis para as atuais lideranças políticas.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Caberia uma boa pergunta. Ontem, no Globo, Márcio Moreira Alves citou...

(Interferência)

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Ontem, Senador, o Márcio Moreira Alves referiu-se a uma reunião secreta que o Governo francês realiza todos os anos. Porque a França perdeu a condição de grande potência colonial, mas ainda é o quarto produto interno bruto do mundo, quarto PIB do mundo, e é um país que tem uma grande elite intelectual, uma grande inteligência, e pode se dar ao luxo de examinar o estado do mundo, com as informações, com a análise que essas cabeças premiadas da inteligência francesa são capazes de fazer. Cito até um dos formuladores principais dessa estratégia francesa, que é filho de um ex-Ministro da Defesa do Governo francês, um intelectual respeitável, casado com uma colombiana. Está lá o nome dele, ontem, no Globo. Eu acho que o senhor devia ler, é uma coluna importante. O Márcio faz muita coluna chata, sobre negócio de assistência social, mas quando ele parte para a política, ele sempre produz, porque ele tem uma boa formação intelectual e é um bom jornalista. Ele sempre produz bons comentários. Eu já disse até isso a ele.

            Então, ele, ao se referir a essa reunião da inteligência francesa com os serviços estratégicos do Governo francês, embaixadores, disse que esse rapaz — está lá o nome — casado com uma colombiana, que é o homem que formula a política americana dentro do Governo francês, disse que o Plano Colômbia é um plano que vai levar, fatalmente, a uma crescente interferência militar americana no norte da América do Sul, e que, fatalmente, vai envolver países importantes como o Brasil, que tem uma faixa de fronteira de 1.700 quilômetros, quase seca, com a Colômbia. Haverá refugiados, haverá lutas. Ele diz mais. Esse envolvimento americano vai exigir eficácia no combate ao narcotráfico. Do mesmo jeito que se exigiu nas décadas de 60 e 70 eficácia no combate à subversão comunista, agora é eficácia contra o narcotráfico, o tráfico de drogas, que é um dos grandes problemas de hoje da sociedade americana, é o consumo (falha na gravação)...

            Então, isso é a maior ameaça à democracia (falha na gravação)...

            A Sra. Madeleine Albert. Não é?

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - A Sra. Madeleine Albert disse que (falha na gravação)...

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - ... E não se elegeu?

            O SR. JOSAPHAT MARINHO - Em 1970, eu fui o candidato. Eu era Senador e a ...

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Pode voltar a formular de novo.

            O SR. JOSAPHAT MARINHO - Eu era Senador em 1970. Terminaria o meu mandato em princípio de 1971. Eu julguei que era do meu dever, com expectativa ou não de eleição, ser o candidato ao Senado. Não era correto chamar um outro companheiro naquela hora. Eu iria a uma eleição de Deputado Federal fácil, com a atitude que havia assumido durante todo o tempo de combate ao regime militar. Mas eu achei que deveria ser candidato ao Senado e fui candidato. Recebi até sugestão qualificada para não disputar, porque o poder militar iria desdobrar todos os esforços para eleger os 2 Senadores. Fui candidato. E é uma eleição de que guardo agradáveis lembranças. Agradáveis e honrosas lembranças.

            Apesar de toda reação do poder estadual e municipal na Bahia, em 1970, eu ganhei a eleição em todos os grandes centros do Estado. Ganhei na Capital, ganhei em Feira de Santana, ganhei em Jequié, ganhei em Conquista, ganhei em Ilhéus, ganhei em Itabuna, ganhei em Juazeiro para um dos candidatos e em cidades médias como Alagoinhas e outras. Tanto que eu levei vários dias à frente dos resultados eleitorais. Eu sabia que estava derrotado. Eles diziam: “Quando a água do monte chegar...”. E eu sabia que ia chegar a água do monte, porque os dirigentes do poder revolucionário na Bahia chamaram os chefes políticos para adverti-los.  Eles sentiam que havia uma tendência... Eu tinha boa convivência no meio municipal com todos os partidos. Havia uma tendência de os chefes de diferentes municípios darem um voto ao Senador do governo e o outro a mim. Se isto ocorresse, eu estava eleito com a diferença que eu trazia da Capital e dos grandes centros. Eles os intimaram: “Se o Senador Josaphat Marinho ganhar a eleição no seu município, o senhor não participa mais das decisões governamentais. Não será considerado, mesmo que o outro candidato do governo tenha maioria; se ele vencer num dos lugares, os chefes municipais não serão mais considerados participantes do poder”. E aí não havia como. Eu sabia, as pessoas até me explicaram.

Mas foi uma eleição que enfrentei tranqüilamente, sobretudo pelo resultado dela. Eu era um candidato de oposição, sem recurso, sem recurso! — Tinha mais essa! — E na Capital a diferença se amontoava dia-a-dia, até o final da apuração. Mas era o regime!

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - O País estava passando um momento horroroso.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Para continuar didático, valeria a pena... Até 1968, o regime militar transigiu com a elite política da UDN, Krieger e outros, mas depois do Ato 5 houve a ruptura, e o regime mostrou sua face por completo.

O SR. JOSAPHAT MARINHO - O Senador Daniel Krieger perdeu o prestígio a partir do momento em que ele não aprovou a cassação do mandato do Deputado, o jornalista Márcio Moreira Alves. A partir dali, o Senador Daniel Krieger decaiu das graças do poder. Quando sobreveio o AI-5, ele já era um homem ao ar.

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Em 1978 o senhor voltou à política, não foi?

O SR. JOSAPHAT MARINHO - Sim, eu fiquei fora de ação política. Foi quando houve a recomposição de PMDB e dos outros partidos, e eu não ingressei. Naquele momento, nós tentamos, na Bahia, a formação de um novo partido, que seria o PTB com Brizola. Mas eu havia dito ao Dr. Leonel Brizola, em conversa e até dentro do próprio grupo, que se devia fazer uma composição com a Deputada Ivete Vargas. Ela não tinha representatividade trabalhista, mas era natural que se lhe desse uma determinada posição, uma parcela de representantes na Guanabara, em São Paulo e no Rio Grande do Sul. Mas os companheiros de então acharam que não. Eu disse: “Vamos cometer um grave erro, porque nós vamos perder a legenda”.

Lembro-me bem dessa discussão, de que também participou Darci Ribeiro. Todos ficaram contra mim. Eu disse: “Ela entrou primeiro no Tribunal Eleitoral pedindo o registro do PTB. Isto está acorde com a lei”. O Dr. Brizola entrou depois. Mas Dr. Brizola argüía que ele tinha a representatividade do pensamento trabalhista. “Não discuto isso fora, de dúvida. Mas essa é uma tese teórica que se vai sustentar na Justiça Eleitoral sem uma base na lei, a tendência será a derrota.” Eles insistiram e perdeu-se.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Como o senhor analisa a redemocratização conduzida por um General extremamente autoritário — o General Ernesto Geisel — com mão de ferro, depois dos acontecimentos lamentáveis que foram a morte do operário Manoel Fiel Filho, nas masmorras do regime militar, e do jornalista Wladimir Herzog, enforcado — disseram que tinha sido suicídio, mas todo mundo sabia que não era suicídio. Depois daquilo, o General Geisel resolveu partir para a ofensiva, naquela distensão lenta, gradual e segura, demitindo o Comandante do II Exército e partindo para cima do Ministro do Exército, General Sílvio Frota....

O SR. JOSAPHAT MARINHO - A minha impressão é a de que o pensamento político do General Geisel era muito reflexo do pensamento político do Marechal Castello Branco, a quem ele serviu. E, quando ele chegou ao poder, verificou que as raízes do regime militar se estavam fracionando e diluindo, que era falta de inteligência, de lucidez perseverar e manter o regime, sobretudo porque havia determinados grupos que só sabiam exercer o poder praticando a violência. Ele aí achou que o que salvaria a parte do seu Governo e de quem sobreviesse seria uma abertura política. Essa abertura política, o que eles não imaginavam é que ela conduzisse, necessariamente, à morte do movimento militar e ao restabelecimento da ordem democrática.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Sim, porque o pensamento do General Geisel é de que o Brasil não tinha essa educação...

O SR. JOSAPHAT MARINHO - Era uma transformação lenta. Lenta e gradual. Ele não queria o movimento pró eleição direta.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Queria uma democracia relativa...

O SR. JOSAPHAT MARINHO - Eles não queriam a idéia de uma nova Constituição. Eles queriam fazer da Constituição de 67 um instrumento que assegurasse a sobrevivência do que eles chamavam “revolução” e que não era revolução. Foi apenas um movimento militar.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) – Golpe.

A SRA. O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O Geisel fez um projeto de reforma constitucional, não é? Aliás, o senhor criticou alguns pontos dessa reforma. O senhor poderia relatar assim que ponto...

O SR. JOSAPHAT MARINHO - Mas de que reforma?

A O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Da reforma constitucional do Geisel. Ele tentou fazer uma reforma constitucional em 79.

O SR. JOSAPHAT MARINHO - Ah, sim. Combati muito; vários pontos. Não tenho agora assim de memória ...

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - 79, não. 77. Abril. Foi o pacote de abril.

O SR. JOSAPHAT MARINHO - Ele queria...

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Foi a criação do Senador biônico...

O SR. JOSAPHAT MARINHO - Ele flexibilizava, para tentar prolongar o movimento militar com outros critérios, mas nisso havia uma grave deformação da democracia: sublegenda...

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Voto vinculado...

O SR. JOSAPHAT MARINHO - ... voto vinculado, Senador biônico...

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Agora, o que se disse — isso aí nós temos que, realisticamente, admitir — é que ele estava lutando contra o grupo chamado “duro”, da linha dura. Ele tinha que tranqüilizar os militares quanto à abertura, porque os militares tinham medo do pescoço deles. Ele tinha que fazer o retrocesso para ganhar a autoridade para poder marchar para frente. E isso é, em suma, o que o Golbery dizia.

O SR. JOSAPHAT MARINHO - É.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Era um lance — na linguagem militar — um lance tático de recuo para poder avançar.

O SR. JOSAPHAT MARINHO - Era o que ele chamava “o processo gradual” para alcançar a democracia relativa.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - É isso mesmo.

O SR. JOSAPHAT MARINHO - A democracia relativa.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - E eles perderam o controle a partir de certo momento...

O SR. JOSAPHAT MARINHO - A partir de certo momento...

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - com aquelas grandes mobilizações...

O SR. JOSAPHAT MARINHO - ... populares. Eles não imaginaram...

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) -...que coincidiram com a mudança do Departamento de Estado Americano em relação aos regimes militares.

O SR. JOSAPHAT MARINHO - Eles não imaginaram que o movimento ...

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Não é verdade?

O SR. JOSAPHAT MARINHO - ... pró-diretas levasse aquelas multidões. Quando as multidões foram aos comícios do Tancredo, não foram, propriamente, em razão da candidatura do Tancredo, mas do movimento pelas eleições diretas. Isso foi o que se verificou.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) -  Qual o testemunho que o senhor pode dar a respeito desse processo de abertura, sobretudo a partir da sua intensificação na Lei de Anistia, no Governo do General Figueiredo? A escolha do General Figueiredo pelo Geisel, como o senhor a viu? Ele não era um homem preparado para exercer a Presidência da República.

O SR. JOSAPHAT MARINHO - Foi inteiramente surpreendente, no meu modo de ver, a escolha do candidato Figueiredo para a Presidência da República.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Mas não queria o Geisel eliminar a reação...

O SR. JOSAPHAT MARINHO - Não parecia o homem indicado a compatibilizar-se com o pensamento do Geisel.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Mas ele aí não quis eliminar a resistência dos órgãos de repressão?

O SR. JOSAPHAT MARINHO - Sim. É possível! Porque o Presidente Figueiredo havia sido participante disso, havia sido Chefe do SNI. Só que eles não contaram — e aí era a inexperiência política ou a falta de agudeza política — que, na política, os acontecimentos só são comandados até um dado momento. Há um dado ponto a partir do qual são os fatos que comandam os homens. Essa é a realidade. Foi o que aconteceu a partir dali. A derrota da eleição direta no Congresso deu uma sustentação ao Governo, mas o enfraqueceu ainda mais na opinião popular. Ficou a idéia de que eles não queriam sair daquele quadro de arbítrio, eles não queriam eleição como expressão da vontade popular autêntica. E aí o General Figueiredo não tinha mais condições de conter. Por sua vez, o seu temperamento não o ajudava. Ele fazia declarações que agravavam o quadro político, agravavam a resistência da opinião popular ao poder militar.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Agora, havia um entendimento...

O SR. JOSAPHAT MARINHO - Suscitou mesmo aquele conjunto de divergências dentro do próprio partido do regime militar.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Havia um entendimento no Governo de que, aqui no Brasil como na Espanha, o próprio regime militar devia conduzir a transição. Até na Oposição se aceitava isso. Pensava-se num candidato assim tipo Aureliano Chaves, que era o sonho do Geisel, mas o Figueiredo não marchava com ele, porque ele tinha uma divergência de caráter até pessoal com ele. Então, ao contrário da Espanha, onde o homem que conduziu a abertura era um homem de confiança do Generalíssimo Franco, no Brasil não houve isso, porque o General Figueiredo se recusou a apoiar um nome viável como o Andreaza, como o Aureliano ou como o Passarinho.

O SR. JOSAPHAT MARINHO - Aqui, as forças políticas de oposição nunca tiveram um entendimento comum, amplo, contínuo, constante, como se deu na Espanha com o Pacto de Moncloa. Eles viram que, para sair daquele regime, era preciso uma unidade inicial deles e, então, se identificaram em pontos fundamentais. Nós não tivemos essa sorte. Vejam que, quando se abriu a Constituinte, as explosões de divergências eram manifestas de todos os lados.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Nunca houve entendimento sobre a política econômica, sobre o salário...

O SR. JOSAPHAT MARINHO - Sobre coisas fundamentais! Mesmo quando chegamos à candidatura Tancredo, não chegamos por um processo correto, porque chegamos liquidando Ulysses Guimarães, que foi a força de resistência durante aquele período. Sejam quais forem as restrições que se possa fazer a Ulysses Guimarães pelo seu espírito pessedista, ele foi o líder da resistência

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Sem dúvida.

O SR. JOSAPHAT MARINHO - Ele foi o homem que comandou a Assembléia Constituinte para chegar a termo o seu trabalho; senão, aquilo se prolongaria indefinidamente.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Conte aí o seu testemunho sobre a viabilização da candidatura Tancredo Neves.

O SR. JOSAPHAT MARINHO - Eu não participei da intimidade. Esse desdobramento se fez mais entre Minas e São Paulo. Concorreu muito para firmar a candidatura de Tancredo a visita do Franco Montoro a ele e o apoio dado, porque estrangulou o caminho de Ulysses Guimarães. Essa é que é a verdade.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Montoro era o Governador de São Paulo.

O SR. JOSAPHAT MARINHO - Pois é. Estrangulou. Ulysses era o nome de que se cogitava. Ulysses tinha sido o combatente aberto. Chefiou o MDB, depois o PMDB....

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Mas havia a conversa de que os militares não queriam Ulysses.

O SR. JOSAPHAT MARINHO - Sim. Mas, exatamente por isso, ter-se-ia que conduzir com muito cuidado até chegar à candidatura de Ulysses, porque se se chegasse também a ela, àquela altura, eles não tinham condições de reagir. Porque, no fundo, eles não queriam Tancredo. Eles aceitaram Tancredo porque pareceu uma forma de derrota de Ulysses Guimarães, mas tanto eles não estavam aceitando que o Presidente Figueiredo, a todo momento, dava declarações desconexas a respeito da sucessão, sobretudo depois do rompimento do Senador Sarney. Ele aproveitava para manifestar suas desconfianças sobre o que poderia acontecer no País.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Como se viabilizou a candidatura do Tancredo no Colégio Eleitoral?

O SR. JOSAPHAT MARINHO - Bem, a candidatura do Tancredo viabilizou-se no Colégio Eleitoral no momento em que o Tribunal Superior Eleitoral declarou que não havia fidelidade no Colégio Eleitoral.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Mas, antes disso, conte as tratativas. O senhor participou disso de uma certa forma?

O SR. JOSAPHAT MARINHO - Deve ter havido. Eu não participei dessa parte.

O SR. ENTREVISTADOR - Ulysses o procurou...

O SR. JOSAPHAT MARINHO - Conversas em áreas estranhas à política deve ter havido. Delas eu não participei. Eu levei o pensamento da Justiça Eleitoral, pelos precedentes, pelo conjunto da legislação. Mas o que se há de notar....

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Mas o Ulysses Guimarães o procurou.

O SR. JOSAPHAT MARINHO - A mim?

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Sim.

O SR. JOSAPHAT MARINHO - Ah, procurou. Ulysses e Tancredo me pediram o documento que pudesse justificar a não-aplicação da fidelidade partidária no Colégio Eleitoral. E nós conseguimos colocar isso em termos legais. A própria legislação militar não exigia a fidelidade partidária no Colégio Eleitoral, e esse era o grande fato de que precisava Tancredo para libertar do medo os Deputados e Senadores que tinham receio da cassação imediata se votassem contra o candidato do movimento militar.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O senhor elaborou o parecer. Faça um relato disso.

O SR. JOSAPHAT MARINHO - Aí, eu elaborei esse documento, trouxe da Bahia, levei a uma reunião em casa do Dr. Tancredo, já presentes não apenas os elementos do MDB, mas os dissidentes ...

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Da ARENA, não é?

O SR. JOSAPHAT MARINHO - PDS. Já era PDS. Já aí apareciam os dissidentes: José Sarney, Aureliano Chaves... Aureliano, aliás, não comparecia pelo pudor de ser o Vice-Presidente da República, mas ajudava. Ele ajudava porque sabia que estava sendo já destroçado pelo meio militar, pelas sugestões do Presidente Figueiredo. Ele já sabia disso. Mas, os dissidentes começaram a comparecer. Tanto que o documento, aceito – assinamos  Ulysses Guimarães e eu –, fomos entregar a cada Ministro. A reunião se operava à noite...

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Reunião secreta.

O SR. JOSAPHAT MARINHO - Aí nós fomos informados de que a reunião do Tribunal Superior Eleitoral seria em forma de conselho administrativo, o que a mim pareceu uma atitude muito hábil do Tribunal de não se expor às iras do regime militar, tanto que de lá saiu oficialmente uma decisão, unânime, reconhecendo que não havia fidelidade partidária no Colégio Eleitoral.

E houve um outro fato. Não obstante isso, dias depois o Dr. Paulo Maluf convocou o Diretório do PDS a título de fechar a questão para o Colégio Eleitoral. Procedemos a uma nova reunião, discutimos o que fazer, e me recordo de que dei a seguinte idéia: quem tem legitimidade legal para protestar é o MDB. Os membros do PDS são dissidentes, não podem requerer...

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Aí já era o PMDB.

            O SR. JOSAPHAT MARINHO – PMDB. Mas nós podemos encontrar uma fórmula para esses dissidentes se manifestarem. Então, o Presidente Ulysses Guimarães dirigiu uma petição ao Tribunal Eleitoral denunciando o desrespeito à sua decisão em curso pelo PDS, por convocação do Dr. Paulo Maluf. Se o Tribunal já havia decidido que não havia fidelidade partidária, nenhum partido poderia mais fechar questão sobre esse assunto. E Ulysses alegava que protestava por ser o seu partido titular de um candidato à Presidência da República, que era o Dr. Tancredo Neves. Ao mesmo tempo, os dissidentes do PDS formularam um pedido ao Tribunal Eleitoral: “Fulano, fulano, fulano, fulano, Senadores e Deputados, dissidentes do PDS por motivos que não cabem aqui ser examinados, vêm manifestar o seu protesto contra a tentativa de fechar questão no PDS para o efeito da eleição do Presidente da República.” Aí todos assinaram.

Ao mesmo tempo, mandaram um grupo de resistência à reunião do Diretório do PDS para protestar contra a realização; protestar e pedir que o protesto constasse de ata, para desmoralizar a decisão que porventura fosse tomada. Ainda, nessa apreciação, decidiu-se alguns desses pedidos ao mais que ocorrera além da decisão; além do protesto. E foram alguns e fizeram esse protesto. O protesto teve que acompanhar a ata, e, quando chegou à Justiça Eleitoral, o problema estava morto, porque já estava também o protesto do PMDB, em caráter oficial.

Não é porque eu tenha concorrido, mas creio que todos concordarão. Politicamente, foi esse o fato: foi essa decisão que assegurou a eleição do Presidente Tancredo Neves.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O senhor recebeu um telefonema do Presidente Tancredo Neves logo depois.

            O SR. JOSAPHAT MARINHO - Recebi, no dia seguinte, um telefonema muito conciso e muito cordial. No dia seguinte, pela manhã, o Dr. Tancredo me telefonou e disse: “Josaphat, Deus lhe pague”. E nada mais disse. (Risos.) Depois foi que eu soube que ele era um homem que falava muito pouco em telefone.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - E como é que se chegou à conclusão de que o Sr. José Sarney, que era o Presidente do PDS, dissidente – na dissidência para o Partido da Frente Liberal –, devia se filiar, por cautela, ao PMDB para ser candidato à Vice-Presidente da República junto com Tancredo?

            O SR. JOSAPHAT MARINHO - Eles verificaram que era preciso ele ter uma legenda para ser o candidato a Vice. Fora do PMDB, só havia o PDS. Então, o aconselhável era José Sarney filiar-se ao PMDB. Houve reação no PMDB, vocês sabem disso. Lembro-me de que o Deputado Ulysses Guimarães mandou um portador a Salvador me ouvir de maneira que, como advogado, eu lhe desse uma sugestão sobre o procedimento a adotar se houvesse impugnação. Convencionou-se esse procedimento, e ele conseguiu ultrapassar.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Eu acho que agora, já que nós chegamos aí — a redemocratização completou-se com a eleição de Tancredo —, o senhor queria falar a respeito da doença e morte? Foi uma tragédia grega aqui no Brasil. À brasileira, mas foi.

            O SR. JOSAPHAT MARINHO - Isso já está muito cogitado. O que eu hoje raciocino é que o que ocorreu em matéria de noticiário em torno da doença e da morte do Dr. Tancredo foi extremamente prejudicial à vida pública. Nós não temos o hábito da clareza com que procedem os americanos, por exemplo. Nos Estados Unidos, a doença do Presidente da República é imediatamente declarada e levada ao público. Até uma pequena cirurgia que o Presidente faça para tirar o que eles chamavam de câncer de pele foi dito oficialmente, exatamente para evitar exploração, e para não criar o clima de insegurança, de incerteza que se verificou naquele momento.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Fale também da sua segunda eleição para o Senado. Parte da esquerda na Bahia ficou magoada pelo fato de o senhor ter se aliado com o Sr. Antônio Carlos Magalhães para ser candidato ao Senado pelo PFL.

            O SR. JOSAPHAT MARINHO - Eu vou antes, eu vou ao período de candidato a Governador. Todos sabiam da minha posição. Quando deixei o MDB, não me inscrevi depois em outro partido, porque fracassara aquela idéia do PTB. E guardei a minha posição pessoal e política. Nunca fiz nenhuma manifestação de transigência com o regime militar. Em 86, recebi um convite, primeiro do Dr. João Durval, se eu admitiria ser candidato a Governador com o apoio do PFL. Eu lhe disse:             “Se o PFL admitir que eu esteja inscrito no PSB para fazer uma aliança, eu admito”. Depois, comigo conversou o Ministro Antônio Carlos Magalhães, admitindo o apoio, e eu procurei o MDB e todas as outras forças políticas, mas especialmente o PMDB. Eu disse: “Eu recebi esse convite. Eu não tenho compromissos ocultos nem com o Sr. João Durval, nem com o Sr. Antônio Carlos Magalhães. Se eu for Governador da Bahia, quero operar o equilíbrio das forças políticas baianas. Os que me apoiarem participarão do Governo. Creio que eu tenho condições disso”.

Mas não consegui convencer o PMDB, que tinha entre si várias divergências, várias tendências. Inclusive conversei com o Dr. Waldir Pires, que era Ministro, quando vi o problema em termos de unidade para que se estabelecesse na Bahia o equilíbrio das forças políticas. Eu não teria pretensão nenhuma para eleição imediata, mas não consegui; não consegui, mas várias forças políticas ainda estavam se unindo em torno da candidatura, e eu saí candidato, candidato do PSB.

Num dado momento, a Direção Nacional do PSB, contrariamente à direção local, que era autenticamente socialista, inclusive com um rapaz que dirigia o PSB e que vinha do tempo do João Mangabeira, Newton Macedo Campos, começou a sofrer pressão, e eu também, da Direção Nacional do PSB, que não era possível uma aliança do PSB com o PFL. Mas por que não disseram isso de início, quando eu entrei no partido e que marchamos para a aliança. A essa altura da campanha?

A verdade é que a direção do PSB sofreu determinadas influências. Como o partido era de caráter provisório, eles podiam destituir a Comissão na Bahia, e eu poderia entrar nessa situação equívoca e deprimente: um candidato ficar sem legenda e não poder ser mais candidato. Eu fui ao Rio de Janeiro para conversar com a Direção Nacional do partido. Na Direção Nacional do partido, encontrei um homem que se revelou lúcido na compreensão do fenômeno, que foi o advogado criminalista...

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Evandro Lins?

            O SR. JOSAPHAT MARINHO - ... Evandro Lins, que era da Direção. Evandro Lins disse: “Eu não entendo por que não possa haver essa aliança; os partidos não vivem com essa exigência. E, depois, nós admitimos a candidatura originariamente como agora”.

Mas eles, sem adotarem uma decisão, me deixaram claramente visto que iam destituir a Comissão Estadual , era tudo provisório. Eis por que eu entrei no PFL — as circunstâncias. Eu já não tinha como... A esquerda não me entendeu naquele momento, não imaginou que eu fosse capaz de governar com independência. E hoje tenho não a satisfação, mas eu tenho a tranqüilidade de ouvir de muitos deles que houve um erro naquele momento, porque, quando eu vim a ser candidato ao Senado, em aliança com o Senador Antônio Carlos Magalhães — eu nunca integrei o grupo dele, eu entrei como aliado —, eu pude proceder com inteira liberdade durante os 8 anos. Aí ficou à vista de toda a sociedade brasileira.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Por que o senhor não foi candidato à reeleição em 98?

            O SR. JOSAPHAT MARINHO - Bem, eu não fui candidato à reeleição porque o partido tinha como candidato à reeleição o Dr. Paulo Souto. Foi-me oferecida a candidatura de Deputado Federal, e eu achei que era mais correto para o partido e para mim eu não aceitar; era preferível ficar sem mandato, com liberdade de ação, para tomar a posição política que me conviesse no momento próprio.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O senhor se desligou do PFL?

            O SR. JOSAPHAT MARINHO - Posteriormente me desliguei do PFL.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) – Agora, eu acho que caberiam, para encerrar...

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Uma análise...

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) -... duas coisas: uma análise desse Consenso de Washington, que produziu governos liberais em toda a América Latina. Não é só o Fernando Henrique Cardoso. Foi o Menem, depois o La Rúa também, na mesma linha, o Fujimori, que está cheio de desacertos, também produziu uma orientação compatível com as idéias do Consenso de Washington, os ideais neoliberais. Houve o Chile, que se antecipou, a começar na ditadura Pinochet, a perfilar essas idéias, a produzir programas de políticas monetárias clássicas, ortodoxas e tal. O Chile é até entronizado como uma espécie de paradigma da América Latina.

Mas hoje é evidente que está havendo uma crise nesse modelo. Essa crise se produziu com a eleição de um líder bonapartista, cesarista, que é o Coronel Hugo Chávez, na Venezuela, numa crise moral e social profunda. Gastaram 400 bilhões de dólares a elite social democrática da Venezuela; um Presidente da República foi deposto lá institucionalmente — como aqui foi o Sr. Fernando Collor — o Carlos Andrés Pérez. E há um caso, uma conflagração intestina na Colômbia, com a guerrilha mais velha do continente, ou de subcontinente, que são as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, com grupos paramilitares que são o braço auxiliar do Exército da Colômbia, com o envolvimento dos Estados Unidos, com o Governo do Sr. Fernando Henrique Cardoso, que é um Governo muito engajado com os Estados Unidos. Tudo isso compõe esse caldo que o senhor poderia examinar. E, depois aquelas idéias, que eu lhe falei, a respeito dos riscos que corre a democracia hoje na América Latina pelo fato de os Estados Unidos terem elegido como prioridade o combate ao narcotráfico, os Estados Unidos com sua ideologia de utilização das Forças Armadas da América Latina como milícias na repressão aos narcotraficantes. Eles não querem arma pesada no quintal deles, como diz o Delfim; querem as milícias mesmo para combater esse tipo de coisa. Então, houve aquele artigo do Márcio Moreira Alves, a que eu me referi – que o senhor devia ler – ontem, no Globo, que é muito bom, sobre a análise do Estado e do mundo que faz o Governo francês, a inteligência francesa; a política americana de militarização do norte da América do Sul, que é uma escalada; os riscos que tem isso para a democracia; a declaração da Sra. Madeleine Albright, de que, infelizmente, a democracia na América Latina estava correndo riscos, a coincidência dessas coisas todas. Isso aí para encerrar.

            O SR. JOSAPHAT MARINHO - A meu ver, o que se verifica é que realmente a América Latina não tem independência política e econômica em relação aos Estados Unidos. É o primeiro fator. Por mais que proclamem, por mais que façam até críticas aparentes ao Governo americano, todos, afinal, se alinham nas decisões fundamentais.

Por outro lado, nós continuamos em toda a América Latina com o grave erro de não ter organização política, isto é, não ter partidos eficientes, definitivos, com programas capazes de orientar a opinião para defender os países da submissão econômica, sobretudo. O que se verifica é que ainda agora, com a formação do MERCOSUL, há muita conversa, muita palavra e pouca decisão consentânea com a realidade.

Veja-se que há poucos dias se realizou aqui uma reunião dos Presidentes do MERCOSUL.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Da América do Sul.

            O SR. JOSAPHAT MARINHO - Da América do Sul. Todos foram admitidos, todos falaram em democracia como se fossem democratas ou se dirigissem democracias. Todos falaram em manutenção da ordem democrática, inclusive o Presidente Fujimori...

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Do Peru.

O SR. JOSAPHAT MARINHO - ... cuja reeleição havia sido violentamente condenada por parcela acentuada da população do Peru, que apelou para o mundo civilizado, que apelou para as nações do continente que ajudassem a população do Peru a não dar legitimidade àquela reeleição. Houve muita palavra, mas não houve nenhuma ação efetivamente destinada a impedir a extensão do regime de arbítrio. Agora, o fenômeno se estampa inesperadamente.

Hoje cedo, eu refletia sobre isso num pequeno artigo. Pergunto: por que isso ocorreu? O anúncio de uma nova eleição no Peru é um ato de vontade do Presidente? Evidentemente que não. É a resultante da fraqueza de todos os governos arbitrários. Há um momento em que eles perdem o comando. Muitos dos chamados condestáveis do regime passam a praticar o golpe para substituí-los, o que ocorreu no Brasil em 1945. Por que Vargas foi deposto? Porque se deu a união entre o Brigadeiro Eduardo Gomes e o General Dutra, os 2 candidatos à Presidência da República –– o último detendo poderosas forças militares aliadas a seu nome –– e depuseram um ditador. Tudo, pelo que se está vendo nos jornais, indica que o Presidente Fujimori perdeu também o apoio de alguns desses condestáveis. E está ameaçado, apelando para as Forças Armadas. No momento em que ele apela para as Forças Armadas a fim de manter-se no poder, vai tornar-se prisioneiro delas. Ele já não é o Chefe do Governo. Ele vai ser, repito, o eco dessas vozes, não da sua própria voz.

Agora, o que interessa, no caso do Peru? No meu entender, interessa efetivamente a opinião internacional prestigiar o povo do Peru, que quer a eleição em termos lisos, lícitos, corretos. Porque essa realização de eleições é que dará uma solução definitiva à instabilidade. Acaba com a instabilidade do Governo no Peru, fenômeno que se está verificando na Colômbia e em outros países. Mesmo numa situação como a da Argentina, é de uma transição indefinida – pelo que nós estamos percebendo – e com tais características de gravidade que há uma divergência acentuada entre o Presidente e o Vice-Presidente da República, o que não é institucionalmente possível ou pelo menos aconselhável.

No fundo de tudo isso, falta a organização dos partidos políticos como órgãos de orientação e de direção da opinião pública. Esse é o grave erro também para nós. Há uma tolerância do povo aos erros. A comunidade suporta os sofrimentos até um dado momento, mas há um dado momento em que as consciências explodem.

Eu costumo invocar muito aquele conceito de Marx e Engels que, embora de pensadores marcadamente comunistas, vale, entretanto, para qualquer situação: há um momento na história de todos os povos em que uns já não querem e outros já não podem manter a ordem vigente. Esta é a hora da revolução.

            E ninguém pode medir qual é a hora da revolução. A revolução surge, muitas vezes, assim como a lava do vulcão, quando menos se espera. Quem esperava, no fim da semana finda, essa declaração do Presidente Fujimori? Talvez lá, no Peru, houvesse um conhecimento mais próximo do assunto. Mas todos nós fomos surpreendidos com a declaração.

            Esse é o mal de todos os regimes autoritários, dos regimes sem formação democrática, sobretudo sem estabilidade democrática. E não há estabilidade democrática se não há partidos devidamente organizados. Esse é um dos graves — senão o pior — males do Brasil.

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - No caso brasileiro, como é que o senhor analisa o momento, a situação política brasileira pela qual nós estamos passando? O Governo Fernando Henrique, com todos estes episódios: cassação de Luiz Estevão; o caso do TRT de São Paulo; o caso Eduardo Jorge, com toda essa efervescência; a questão do MST. Qual é a sua visão a respeito?

            O SR. JOSAPHAT MARINHO - Olhe, eu acho até que esses fatos não são os mais graves. Esses são os de mais repercussão na opinião pública. São os fatos que dizem respeito à ética, à conduta.

            O pior do Governo Fernando Henrique é não promover as soluções do interesse da coletividade nacional; é ter abdicado, o próprio Chefe do Governo, do seu pensamento, que se supunha socialista, ou socializante, para adotar um regime neoliberal — que ele nega, mas pratica.

            O que significa todo este conjunto de privatizações? O que significa todo este enfraquecimento institucional da PETROBRAS? Se a PETROBRAS pode, dentro de 2 ou 3 anos, chegar a assegurar o petróleo necessário ao País, por que não se ter mantido essa empresa na organização plena do Estado? Por que não ser ela um órgão do Estado promovendo o bem coletivo? Por que ceder poços a empresas privadas?

            Porque não há como negar — a lição é do mundo — que empresas privadas não se preocupam com o interesse coletivo. As empresas privadas querem o lucro. Há, sim, empresários mais e menos lúcidos. Há empresários que tornam os seus funcionários participantes dos lucros da empresa, e então sobrevivem sem graves problemas. Mas a maioria vive para amealhar os seus lucros, sem preocupação com o interesse coletivo, com o interesse público, com a sorte da população.

            Não adianta no Brasil dizer-se que o regime não é neoliberal. Como não é neoliberal, se seguidamente o Governo baixa atos, inclusive por medidas provisórias, para transferir poderes a empresas privadas, para limitar a ação do Estado?

            A situação só não é mais desabalada porque tudo indica que o neoliberalismo já entrou em crise. Porque nós perguntamos: quais foram os países da Europa, os que estavam e estão mais próximos do antigo Muro de Berlim, dos regimes comunistas, um e outros, que derruíram? E esses países não modificaram o seu sistema de governo. Vejam: a França não mudou a sua constituição; a Itália não mudou; a Espanha e Portugal, que têm constituições mais recentes, não mudaram, não tornaram suas constituições neoliberais.

            O Brasil, entretanto, numa imensa distância, entra num processo de alteração da Constituição que a desfigurou. Hoje, a Constituição brasileira é um conjunto de princípios liberais e de princípios socialistas. De princípios que fortalecem o Estado e de princípios que o enfraquecem. Pergunta-se: por que essas mudanças se operaram? Por que o Governo não consegue dar uma explicação clara à população sobre o aumento da dívida externa? Já não pode negar que a dívida cresceu, irrecusavelmente, do último Governo anterior ao Fernando Henrique até os dias atuais. Mas nem ao menos se dá uma explicação do porquê não pode reduzir.

            Ora, não há nada pior para o governo no regime democrático do que ele não poder enfrentar a publicidade. O governo democrático é, sobretudo, o governo da publicidade, ou seja, o governo das idéias e posições claras, nítidas, cristalinas, porque essa atitude evita a dúvida, a suspeita. Porque o Governo não procede assim, nós estamos aí neste quadro em que esses fatos de ordem individual se engastam para mais enfraquecê-lo.

            Por outro lado — e venho sustentando um pensamento que tenho exposto em algumas palestras, e vou timbrá-lo —, em nome de combater a corrução, a falta de ética, o Governo está desprezando as normas jurídicas. E o Congresso tem ingressado nesse caminho.

            Ora, para combater a corrução, para combater os erros do Governo, não é preciso nem é conveniente a invocação de princípios éticos. Porque esses princípios também são muito volúveis. Eles não têm nitidez nem continuidade; falta-lhes certeza. Se se começa a adotar esses princípios, mas variando com as circunstâncias, que é o que se tem verificado, haverá um momento em que a própria ordem jurídica terá perdido o seu sentido. As regras jurídicas estão sendo postas à margem para que prevaleçam regras éticas que não têm cristalinidade nem continuidade.

            Porque a ética tem que ser correspondente a um procedimento coletivo; não a um procedimento de pessoas ou de grupos. Vale defender o princípio ético quando ele corresponde a um sentimento coletivo. Aí, sim, muitas vezes se atenua o rigor de um dispositivo legal para prevalecer aquela aspiração ética da sociedade. Mas quando é uma moralidade de circunstância, ocasional, limitada a determinados fatos, não pode ter valia suficiente para diminuir a autoridade das normas legais. Essas é que dão segurança, essas é que constituem o fundamento dos direitos dos cidadãos.

            É nisso que eu venho me batendo, e preocupado, porque, se nós, hoje, condenamos “a”, “b” ou “c” por uma simples dúvida, por uma simples suspeita — ou, ainda que se tenha uma certeza razoável de que é culpado, mas nós não deixamos que chegue ao fim da apuração para considerá-lo condenado —, nós estamos trabalhando contra a garantia dos direitos de todos.

            É fenômeno em que a sociedade brasileira, a meu ver, precisa repousar a atenção, para que amanhã não estejamos no clima da indeterminação dos princípios. E são esses princípios fundamentais da ordem jurídica que constituem a garantia dos cidadãos.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Agora, faltou uma coisa: o Tancredo mandou o Ulysses Guimarães convidá-lo para Procurador-Geral da República e Ministro do Supremo Tribunal Federal. Esse é um episódio interessante, não é?

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - É claro!

            O SR. JOSAPHAT MARINHO - (Riso.) Como é que o senhor teve notícia disso?

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Porque o senhor falou, nos contou em particular. Agora precisa contar para o espectador.

            O SR. JOSAPHAT MARINHO - É verdade. É verdade. Um dia, o Deputado Ulysses Guimarães me chamou e me declarou que tinha um convite a me transmitir do Presidente Tancredo Neves. Disse: "O Presidente lhe manda fazer o seguinte convite: para que seja Procurador ou Consultor da República, como preferir. Com a antecipada segurança dele de fazê-lo Ministro Supremo Tribunal Federal na primeira vaga”. E a primeira vaga se daria em meses, pouquíssimos meses.

            Eu não vou declarar que me causou surpresa o convite. Não! Como eu havia prestado serviços jurídicos à campanha do Presidente Tancredo — eu havia elaborado os principais documentos jurídicos para os efeitos políticos de sua vitória —, era natural que pudesse admitir ser convocado.

            Mas, diante do convite, eu disse ao Dr. Ulysses Guimarães que eu, num dado momento, aspirei a ser Ministro do Supremo Tribunal Federal; que era um cargo a que, pela experiência que eu tinha de advogado, de professor e de político, eu achava que lhe podia emprestar algum relevo ou lhe transmitir alguma inovação no exercício das funções. Mas, infelizmente, naquele momento, eu não podia aceitar.

            E Ulysses — vamos aqui fazer a apreciação que é natural —, que parecia bem mais velho do que eu, tinha 1 ano menos do que eu. Naquele ano, eu faria 70 anos, e o Ulysses faria 69 anos. E eu, então, lhe disse: “Eu não posso aceitar o convite em respeito a quem me convida, em respeito à Nação e por pudor. Eu farei, no fim do ano, 70 anos. E não me parece correto aceitar um cargo vitalício para, dentro de poucos meses, entrar na aposentadoria compulsória e me tornar pensionista vitalício da Nação. E, quanto a Procurador e Consultor da República, são cargos que não me atraem. De maneira que eu agradeço o convite, mas, como o destino era ser Ministro do Supremo, eu, lamentavelmente, não posso aceitar.”

            Essa notícia quase não circulou, porque eu não dei notícia, o Ulysses também não deu, seguramente o Presidente Tancredo também não. Houve quem soubesse; houve quem soubesse — nesta República, há quem saiba de tudo —, houve quem soubesse! E, um dia, a coluna do Jornal do Brasil publicou uma nota referindo-se a esse fato. Aqui, agora, eu dou conhecimento ao público em pormenor, por sua provocação. (Riso.)

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Está ótimo.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Acho que foi muito bom, Dr. Josaphat, o seu depoimento.

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - A gente precisava fazer a imagem, não é?

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Um belo depoimento.

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Foi muito bom. Vai ficar um belo programa.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Acho que cumprimos o nosso dever.

            O SR. JOSAPHAT MARINHO - Não ocultamos a verdade.