Texto

DEPARTAMENTO DE TAQUIGRAFIA, REVISÃO E REDAÇÃO

 

NÚCLEO DE REDAÇÃO FINAL EM COMISSÕES

 

TEXTO COM REDAÇÃO FINAL

 

 PROGRAMA MEMÓRIA POLÍTICA - TV CÂMARA

EVENTO: Entrevista                   

N°: ESP005/03

DATA: 13/05/2003

INÍCIO:

TÉRMINO:

DURAÇÃO: 01h18min

TEMPO DE GRAVAÇÃO: 01h18min

PÁGINAS: 34

QUARTOS: 16

 

 

DEPOENTE/CONVIDADO - QUALIFICAÇÃO

 

HÉLIO JAGUARIBE – Cientista Político.

 

 

SUMÁRIO: Entrevista com o Sr. Hélio Jaguaribe.

 

 

OBSERVAÇÕES

 

Há palavras ininteligíveis.

A entrevista não se encerrou formalmente.

Conferência da fidelidade de conteúdo – NHIST 23/02/2010

             O SR. HELIO JAGUARIBE - Eu começo dizendo que é um prazer, para mim, participar do Programa da Memória Nacional, da TV Câmara, que me parece ser muito importante. Não sei se me cabe pertencer a essa memória nacional, mas, já que a gentileza dos organizadores consideraram que é cabido, aceito modestamente essa qualificação.

Fui solicitado para fazer um resumo da minha atividade intelectual, sobretudo no que se refere à orientação para a coisa pública. Creio que poderia, então, começar dizendo que fui estudante secundário do Colégio Santo Inácio, que, naquele tempo, era extremamente severo, mas preparava muito seriamente as pessoas. Em seguida, prestei concurso e entrei para a Faculdade de Direito da PUC, que estava iniciando as suas atividades no Rio de Janeiro. Ali fiz um excelente Curso de Direito, estudei com certa seriedade e fiz um bom trabalho como estudante.

Terminada essa fase, deparei-me com a seguinte situação: o que fazer na minha vida profissional. Eu tinha uma grande vontade, desde a minha juventude, de me dedicar exclusivamente, ou quase exclusivamente, à atividade intelectual. Por isso, imaginei que uma das coisas a fazer seria me candidatar a uma cadeira em alguma das universidades brasileiras.

Mas, ao me dar conta da lamentável e modesta remuneração universitária, disse: “Que diabo! Começar a vida já na qualidade de mendicante? Não é exatamente um grande futuro”. Então, fiz uma opção da qual atualmente me regozijo. Comecei a minha fase inicial de profissional trabalhando ativamente como advogado, tentando formar um pecúlio que me permitisse, tão cedo quanto possível, dedicar-me à vida intelectual sem depender dos miseráveis salários universitários. Abro um parêntese para protestar contra essa forma indigna pela qual está sendo remunerada a classe universitária brasileira, o que evidentemente não está permitindo atrair pessoas brilhantes pela absoluta falta de relação entre as qualificações requeridas para a universidade e a remuneração universitária. Fecho o parêntese.

Dediquei-me à atividade advocatícia. A primeira coisa que fiz foi fazer um aprendizado de advocacia naquilo que me parecia o melhor escritório do Brasil, que era o escritório de Francisco Clementino San Tiago Dantas, figura extraordinária, homem supertalentoso, luminoso, brilhante, uma coisa fabulosa. San Tiago tinha sido meu professor de Direito Romano, quando eu era estudante. Devo confessar que, ao me aproximar desse curso, pensei que eu ia enfrentar uma coisa cacetice como o Direito Romano, mas não tinha jeito, fazia parte do currículo e me sujeitei a isso.

Ao começar a aula de San Tiago foi um deslumbramento. E, no lugar daquela caceteação que eu imaginava, San Tiago, um homem luminoso, brilhante, começava explicando o que era a romanitas, o que significava a cultura e civilização romana, para mostrar que o Direito Romano era apenas a vertebração institucional de uma civilização, de uma cultura, de uma maneira de ver a vida e lidar com as outras sociedades. Uma coisa absolutamente fascinante. A aula de Direito Romano de San Tiago, na PUC, atraía pessoas que não tinham nada a ver com aquilo, porque era simplesmente um espetáculo de lucidez, inteligência e entendimento do mundo.

A partir desse momento, na relação inicialmente de discípulo para mestre, formou-se uma grande amizade que depois se consolidaria durante a minha vida entre San Tiago e eu. Por isso, a minha primeira idéia, ao pensar em fazer um estágio inicial para ganhar um pouco de dinheiro, para poder, em seguida, dedicar-me, sem maiores preocupações, à vida intelectual, foi esse estágio no escritório de San Tiago Dantas que foi extremamente proveitoso.

O seu escritório era genial. Para San Tiago, uma das coisas fundamentais num escritório de advocacia é a secretaria, a manutenção permanente com o cliente para saber o que está acontecendo com ele. Os escritórios ignoram o cliente — ganhou ou perdeu a causa. O escritório dele fazia observações periódicas sobre o andamento das causas. Os clientes ficavam evidentemente atraídos. E a defesa de San Tiago era simplesmente inigualável.

Depois de ter passado por essa extraordinária maestria, durante 2 anos no escritório de San Tiago, resolvi abrir o meu próprio escritório com um brilhante colega de turma, Reinaldo Reis. Juntos alugamos uma boa área na Rua do Ouvidor, 50, da qual até hoje me lembro, e lá estabelecemos o nosso escritório que teve êxito superior ao nosso mérito. Aquela coisa, fortuna audaces iuvat, “a fortuna ajuda os audaciosos”, e nós, audaciosamente, conseguimos o bafejo da fortuna. Aí, fiz um patrimoniozinho razoável, uma experiência extremamente importante, que me permitiu, então... Juntando, em seguida, a circunstância em que a minha senhora recebeu também uma herançazinha razoável do pai, o patrimônio dela com o meu permitiu constituirmos um pequeno fundo, em virtude do qual eu pude me dedicar sem maiores preocupações, mas vivendo, evidentemente, um nível de vida modesto, mas autossuficiente para a vida intelectual.

            A minha vida intelectual se marcou precisamente porque eu fugi da universidade, inicialmente em virtude da modicidade das suas remunerações, e, depois, com mais experiência das coisas, em virtude do enorme burocratismo que assola a vida universitária. Um professor, na universidade, que queira fazer alguma coisa distinta do simples curso, tem que passar por uma série infinita de reuniões, de decisões... É uma coisa infernal. Então, decidi, em vez de voltar à universidade — já, agora, com menos preocupação pelo salário —, estabelecer uma linha de instituições livres, de cultura e de divulgação de ideias que não dependessem da burocracia universitária. Aí se segue uma série de instituições que tive a oportunidade de formar.

            Eu creio que poderia começar dizendo que, em torno dos anos 50, o meu amigo e grande poeta Augusto Frederico Schmidt abriu as portas do Jornal do Commercio, proporcionando a um pequeno grupo de pessoas a oportunidade de todas as sextas-feiras ocuparmos a quinta página do jornal com ensaios, artigos, enfim, uma produção intelectual bastante grande. E, aí, passamos vários meses, quase um ano, com essa assídua colaboração para o Jornal do Commercio.

            Devo esclarecer aos ouvintes que o Jornal do Commercio, sobretudo naquele tempo, era uma coisa gigantesca. Preencher uma folha do Jornal do Commercio representava apenas 40 laudas datilografadas em espaço duplo. Era um gigantesco ensaio por semana.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O Diretor era o San Tiago Dantas?

            O SR. HELIO JAGUARIBE - Não, ainda não. Ainda foi no tempo do Cardim, Elmano Cardim. E, depois, o San Tiago é que comprou o jornal. Aí, eu já não estava mais lá. Ele já estava começando a sua...

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O senhor fez parte de um grupo importante, um grupo que começou a estudar e a conceber um plano de desenvolvimento...

            O SR. HELIO JAGUARIBE - Sim, claro. Isso é o ISEB.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Ainda não era o ISEB.

            O SR. HELIO JAGUARIBE - Era isso o que eu ia dizer. A minha primeira tentativa de formar um grupo de pensamento brasileiro foi o grupo de quinta página do Jornal do Commercio. Depois, então, nós passamos daquilo para a fundação de um instituto chamado IBESP — Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Política. E esse instituto editava uma revista que teve uma boa repercussão, tanto no Brasil quanto na América Latina, chamada Cadernos de Nosso Tempo. A sigla da Cadernos de Nosso Tempo era uma ideia muito simpática e continua sendo um moto que acho muito adequado: “O Brasil, na perspectiva do nosso tempo e o nosso tempo na perspectiva do Brasil”. Acho que continua válido. Essa revista teve muito êxito e circulou bem. Mas acontece que, para sustentá-la — essas revistas, o senhor sabe, não são autossustentáveis —, eu tinha que retirar dos meus proventos de advogado uma soma crescente, para sustentar a revista, com crescente protesto da minha mulher: “Não pode.“ O senhor imagina como são essas coisas. Então, diante dessa dificuldade de sustentar a revista às minhas custas, resolvemos, o grupo da revista, tentar fazer com que o instituto se tornasse um instituto público.

            Naquele tempo, Anísio Teixeira, figura extraordinária da educação brasileira, homem da maior qualidade, por quem tenho admiração e foi muito meu amigo, proporcionou-nos o acesso ao Ministério da Educação: “Vocês são um grupo excelente. Vamos organizar aqui no Ministério da Educação uma linha de atuação para vocês”. Através do Anísio... e depois houve o suicídio de Vargas, o intervalo gerado por essa crise... Mas, afinal de contas, Cândido Mota Filho aceitou continuar a ideia de Anísio, e se criou, então, sob o nome de Instituto Superior de Estudos Brasileiros, uma coisa que não podia ser instituto, porque era feita por decreto. Institutos, para terem personalidade jurídica, precisavam ser feitos por lei. Aí, era muito difícil. Então, o Mota Filho disse: “Vamos fazer um instituto por decreto, dá-se o nome de instituto, mas ele é definido, do ponto de vista burocrático, como um serviço do Ministério da Educação”. Com isso, criou-se o Instituto Superior de Estudos Brasileiros — ISEB.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Foi o Café Filho, né?

            O SR. HELIO JAGUARIBE - Foi no Governo Café Filho, mas não por iniciativa dele. Ele não tem nada a ver com isso. Ele nem era favorável a isso. Não era, não. Ele era um Governo reacionário, e o nosso instituto não tinha nada a ver com isso. O nosso instituto era uma continuação, uma visão que continuava o segundo Governo Vargas, uma visão muito diferente. Mas o Cândido Mota Filho aceitou, menos pelo lado ideológico, mais pela confiança que tinha na seriedade intelectual do grupo. Então, criou-se, como eu estava dizendo, por decreto, o Instituto Superior de Estudos Brasileiros.

            Nesse momento, uma pessoa muito interessante, um homem intelectual, que continua felizmente vivo, Roland Corbusier, que era redator do O Estado de S. Paulo, teve um conflito com o jornal e saiu de lá. Saiu do jornal, ficando disponível para ser convidado por nós para dirigir o ISEB. O ISEB tinha uma verba modesta dada pelo Ministério da Educação que permitia um salário razoável para o seu diretor, que, evidentemente, era um full time, pequenas verbas para uma secretária, enfim, pequenas coisas de administração, com a condição de que os intelectuais trabalhassem de graça. Então, o grupo de professores que formaram o ISEB trabalhava de graça, e o pouco dinheiro que havia dava para alugar uma casa muito bonita na Rua das Palmeiras, o salário do Roland e uma pequena verba para as despesas de secretaria e essas coisas.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Quem era o grupo?

            O SR. HELIO JAGUARIBE - Esse grupo era o seguinte: Guerreiro Ramos, dirigindo o Departamento de Sociologia; Cândido Mendes, dirigindo o Departamento de História; Ewaldo Correia Lima, dirigindo o Departamento de Economia; eu, dirigindo o Departamento de Ciência Política. Mais tarde, entrou o Álvaro Vieira Pinto, dirigindo o Departamento de Filosofia.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Era um filósofo.

            O SR. HELIO JAGUARIBE - Era filósofo. E, mais tarde ainda, Nelson Werneck Sodré, que se ocupou, também, de assuntos brasileiros.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) – Todos faziam parte.

             O SR. HELIO JAGUARIBE - O ISEB foi organizado da seguinte maneira: havia o Conselho Consultivo, do qual Campos, Anísio Teixeira e outras pessoas faziam parte, e havia o corpo docente, que formava o Conselho Docente, composto pelas pessoas que acabei de mencionar. Campos estava bastante em desacordo com a orientação do ISEB, que era uma orientação nacional e desenvolvimentista. E Campos, já naquele tempo, tinha aderido a uma posição que hoje chamaríamos de neoliberal. Mas Campos era um homem muito generoso e, atendendo ao meu apelo... Eu disse: “Campos, é indispensável que o nosso grupo tenha pessoas que sejam contra essas ideias. Se não, fica uma unanimidade perigosa. A sua crítica, a sua oposição a nossas ideias é absolutamente preciosa. Eu lhe peço o sacrifício de ser um antagonista amável das nossas ideias e se manter no Conselho”. Ele, muito generosamente, aceitou essa proposta e lá permaneceu durante todo o tempo em que eu próprio permaneci.

            O ISEB teve uma obra bonita. Eu acho que nós realmente tivemos uma contribuição relevante para a formação de uma visão industrializante do Brasil. A ideia básica do ISEB era a seguinte: o Brasil, desde a sua independência até aquele momento, estava controlado por um conluio entre o latifúndio e a burguesia mercantil. A burguesia mercantil exportava os produtos da lavoura tropical e importava os produtos acabados, nos quais se abastecia a demanda doméstica. E o latifúndio sustentava, através, primeiro, do trabalho escravo e, depois, do trabalho subremunerado do homem do campo, uma produção da fazenda tropical — o cacau, a soja, o café. Naquele tempo, o café ainda era o principal produto da lavoura tropical. Então, a nossa ideia era a de inverter essa coisa. Esse Brasil latifundio-mercantilista não tem futuro.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Foi aí que começou a se conceber a política substitutiva de importações?

            O SR. HELIO JAGUARIBE - Exatamente. Aí, surgiu a ideia do nacional-desenvolvimentismo, a ideia de fazermos um desenvolvimento industrial, nacional, articulado, em uma aliança entre a burguesia industrial, o proletariado urbano e a classe média técnica. Esse era o tripé: classe média técnica versus classe média clientelista; burguesia industrial versus burguesia mercantil; proletariado industrial versus campesinato domesticado pelo latifúndio. E essas forças contribuíram realmente e poderosamente para modificar o Brasil.

            É interessante que essa ideia nossa de articular...

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O Lula é fruto dela!

             O SR. HELIO JAGUARIBE – Pois não?

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) – O Lula!

            O SR. HELIO JAGUARIBE - É evidente. Todo o Brasil posterior aos anos 50 é fruto disso. É interessante que essas ideias nossas, que tiveram realmente a repercussão que as circunstâncias permitem avaliar, não se fizeram sob a forma, digamos, de uma articulação. Eu tinha um vago contato com... Eu tinha muito contato com o Roberto Simonsen, no tempo em que ele foi... depois, um contato um pouco remoto com o Euvaldo Lodi, quando ele era o Presidente da Confederação, e realmente pouca coisa mais. Ou seja, nós não atuávamos como um grupo de agitação através de contatos. Atuávamos como um grupo intelectual através de ideias. E essas ideias foram fecundas. Elas permitiram a mobilização de uma mentalidade nova. Elas contribuíram de uma maneira que eu diria significativa na formação do Programa de Metas de Juscelino Kubitscheck.

Aí, gostaria de entrar com um pequeno detalhe. Às vezes, atribui-se ao ISEB a autoria, ou pelo menos uma importante responsabilidade, na elaboração  do Programa de Metas. Vistas as coisas com precisão não é bem assim. O ISEB contribuiu, e aí certamente, com a ideia que levaria ao Programa de Metas, o conjunto de propostas que estão publicadas no número 5 de Cadernos de Nosso Tempo. Quem ler o número 5 de Cadernos de Nosso Tempo verá que ali está realmente a essência da proposta que seria objeto do detalhamento do Programa de Metas.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) – O ISEB inspirou, não é?

O SR. HELIO JAGUARIBE - O ISEB inspirou! e mais que isso ele formulou as linhas mestras da ideia! Agora, o Programa de Metas é obra de Lucas Lopes. Foi uma grande figura, um engenheiro muito competente, que passou a ter uma visão muito mais ampla dos problemas com os quais ele lidava, transcendendo o lado meramente engineering para uma visão global. Ele elaborou, naturalmente com a participação de Juscelino e de algumas outras pessoas, essa coisa extremamente importante que foi o Programa de Metas.

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida)- Então, foi no governo do Juscelino?

O SR. HÉLIO JAGUARIBE – Governo de Juscelino. Graças ao Programa de Metas, o Brasil deixou de ser uma sociedade agrária e se tornou uma sociedade industrial. Aquela coisa de 50 anos em 5 é verdade mesmo! É verdade mesmo!

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Agora, não poderia ter existido Juscelino se não tivesse existido Getúlio.

O SR. HÉLIO JAGUARIBE - Ah, claramente. Muito bem. Palmas. Palmas. Total concordância. Por isso, o nosso grupo era ativamente colaborador do Segundo Governo Vargas. Foi um grande Governo de Vargas torpedeado por essa lamentável figura que foi Carlos Lacerda. Que foi, por acaso, um bom Governador do Rio de Janeiro — reconheçamos isso —, mas lamentável na sua presença federal.

Tinha muito contato com Lourival Fontes. O Getúlio era um homem muito ausente, não ia conversar com pirralhos, como naquele tempo eu era. O Lourival, que era um homem muito inteligente e era o ouvido do Getúlio, conversava muito conosco. Tínhamos uma certa penetração no Governo Vargas. Rômulo Almeida, membro do nosso grupo, era o homem mais importante do gabinete presidencial do nível do Catete, onde ainda estava o Governo. Rômulo, como já tive ocasião de dizer, foi o autor intelectual das grande medidas adotadas pelo Governo Vargas — Plano do Carvão Nacional, PETROBRAS, ELETROBRÁS.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda)- O Josias Soares Pereira participou de tudo isso.

O SR. HÉLIO JAGUARIBE - Josias Soares Pereira participando de tudo isso. Ele, Othomir Thraus, várias outras pessoas. Soares Pereira era um dos mais importantes desse grupo, mas a articulação mesmo, o dínamo era Rômulo Almeida. Rômulo Almeida foi o homem fundamental. Por outro lado, um homem muito modesto, ocultava-se, não aparecia, não dava entrevistas, pouca gente sabia que ele existia. Tudo que se fazia partia da assessoria dirigida por Rômulo Almeida.

Então, foi um período extraordinário, que salvou o Brasil da miséria e da desgraça do subdesenvolvimento, mas não teve a continuidade que era de se esperar. Confesso ao senhor que naquele momento eu estava eufórico, achando que o Brasil havia deslanchado de vez. Ele deslanchou, mas não de vez. Deslanchou muito. Gerou uma plataforma que torna possível o desenvolvimento brasileiro, mas circunstâncias várias não....

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - a desigualdade social é porque é um grande drama do Brasil moderno. É uma lembrança escravagista.

O SR. HÉLIO JAGUARIBE - É verdade. Aí, gostaria de fazer um pouco de justiça mais uma vez a Juscelino. Juscelino diversamente do que se possa pensar tinha uma grande preocupação social, mas, por outro lado, mineiro muito prudente, ele se dava conta que foi a preocupação social que levou à derrubada de Vargas. O Segundo Governo Vargas foi derrubado porque ele queria modificar o perfil social brasileiro. Além da ideia do desenvolvimento, Vargas tinha uma ideia que seria exatamente a de Lula. A ideia de acabar com o subdesenvolvimento social, acabar com as desigualdades gigantescas. Isso levou à derrubada de Vargas pela classe média militar. “Gato escaldado tem medo de água fria”. O nosso JK, muito prudente, disse: “Não vou mexer na coisa social, porque eles me derrubam, mas eu vou criar uma plataforma econômica de tal ordem que o social necessariamente vem depois”. Infelizmente, essa presunção não se realizou, mas ele pensava assim.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Ele contribuiu para a consolidação da classe média que estava nascendo.

O SR. HÉLIO JAGUARIBE - Claro. Claro. Mais ainda. Ele criou as bases de sustentação de um desenvolvimento que podia ter alcance social se os seus continuadores tivessem tido essa orientação. Infelizmente, o período subsequente não foi feliz. Veio todo o Governo militar, que foi positivo do ponto de vista da infraestrutura, mas altamente negativo do ponto de vista da visão social, cultural, educacional. Aí, foi uma lástima.

            E, então, chegamos onde estamos, com um atraso gigantesco em relação ao que o Brasil poderia ter sido se a linha do programa de metas de JK tivesse tido continuidade.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Como é que o senhor, hoje, distante, porque a distância nos dá mais...

            O SR. HELIO JAGUARIBE - Visão.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) -... visão, mais clareza. Como é que o senhor, hoje, vê... Eu vive, como repórter, aqueles acontecimentos que culminaram com o Golpe de 1964. Eu vi muita coisa.

            O SR. HELIO JAGUARIBE - Perfeito.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Então, eu digo: como é que o senhor hoje analisa as causas da derrubada de Jango? Porque o Jango, na verdade, era um sujeito fraco, fraco. Era um homem bom.

            O SR. HELIO JAGUARIBE - Um homem bom.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Um homem bom, mas fraco e despreparado.

            O SR. HELIO JAGUARIBE - Despreparado.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - E não tinha o gosto do poder.

            O SR. HELIO JAGUARIBE - Bom, aí não sei. Acho que tinha. Não visibilizava o gosto do poder, mas tinha. Mas as suas outras observações são corretas.

            Então, aconteceram 2 coisas: uma, de profundidade e outra, de circunstância. De profundidade é o fato de que um certo setor da classe média brasileira, e particularmente o seu setor militar, sempre, desde o tempo do primeiro, do segundo Governo Vargas, considerava e vem considerando, agora já não, mas foram considerando, melhor dizendo, com muita apreensão, com muito receio, tudo aquilo que conduzisse o Brasil a se converter do que então era uma democracia de classe média ao que veio a ser uma democracia de massa.

            Era a classe média querendo defender as suas prerrogativas e, portanto, a massa no seu lugar. A massa obedece, nós mandamos. Nada de Deputado de massa, não. A massa obedece.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Veio a Guerra Fria também.

            O SR. HELIO JAGUARIBE - A Guerra Fria, a ideologia anticomunista, tudo isso.

            Muito bem, Goulart acentuou, com a ideia da reforma de base, a ideia exatamente de reduzir as desigualdades brasileiras, o que causou apreensão na classe média.

            Por outro lado, Goulart cometeu um grave erro, que foi o de dispensar a possibilidade de ter San Tiago Dantas como Primeiro Ministro. Como Goulart queria recuperar os poderes presidenciais e sabia que se San Tiago fosse Primeiro Ministro dispararia num parlamentarismo eficiente, que teria dado resultados positivos para o Brasil, ele ao mesmo tempo em que encaminhava oficialmente a candidatura de San Tiago para ser o Primeiro Ministro, por telefone, solicitou aos amigos que votassem contra. Ele autotorpediou a candidatura de San Tiago. Mais tarde ele incorporou San Tiago como Ministro, mas, aí, San Tiago já não tinha mais a capacidade de decidir que ele queria se tivesse sido eleito primeiro ministro.

            O Brasil teria sido diferente. San Tiago teria tido ainda tempo de vida para consolidar um parlamentarismo moderno de orientação social. Aquela ideia de San Tiago faria a diferença entre a esquerda negativa, que era aquela que demandava sem condições, e a esquerda positiva, que é aquela que postula as condições, por meio das quais as demandas podem ser atendidas. Aquela lucidez santiaguiana que era...

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O golpe e também a frustração da indicação de San Tiago devem ter contribuído para a morte dele.

            O SR. HELIO JAGUARIBE - Ah, sim, eu acredito.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O câncer, o câncer é... emocional.

            O SR. HELIO JAGUARIBE - Essa coisa... o câncer, às vezes, é uma... Eu acho também. O senhor tem razão. Eu estou convencido de que o câncer é um estado de inconformidade das células, não é verdade? É uma traição das células. E quem não gosta da vinheta da vida de... Para mim, felizmente, elas estão altas e o câncer pode atrasar, porque as minhas células, por enquanto, estão muito fiéis.

            Bom, mas voltando, então, ao Jango, havia 2 dimensões: a dimensão profunda, que era essa preocupação do setor militar em vários outros setores civis da classe média de evitar a emergência das massas e, por outro lado, a total imprudência do Jango ao se colocar em disputa retórica com Brizola.

            Brizola fazia declarações de esquerda e Jango, para mostrar quem era, fazia declarações mais à esquerda. Um jogo infantil em que ele foi levado por Brizola, que foi, na verdade, quem, do ponto de vista, digamos, de causa eficiente, derrubou Jango, por provocá-lo a posições de esquerdismo retórico, completamente incompatíveis com as possibilidades reais do País. E isso alarmou, aliás, não sem razão, vamos reconhecer, a classe média e a classe militar.

            As classes média e militar, que já estavam contra Jango por razões de profundidade, foram levadas a derrubá-lo pela sua incontinência verbal de fazer um esquerdismo retórico completamente irresponsável.

            E aí, infelizmente, abre-se o longo período negro militar, que teve apenas um lado positivo. De um modo geral, os militares tiveram consciência da necessidade de fortalecer a infraestrutura brasileira. E a contribuição deles, por esse lado, foi positiva, sobretudo Geisel, que foi um Governo militar muito positivo. Acabou com a tortura, acabou com o predomínio da famosa comunidade de informação, que era uma gente altamente nefasta, um grupo nazifascista da pior qualidade. E o Geisel, embora fosse um alemão de direita, era um alemão honesto, um alemão bismarckiano, e não hitleriano. E com isso ele deu uma orientação muito positiva ao País.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - E a revolta armada? Esse fato dos jovens, dos garotos, se envolverem na luta armada?

O SR. HÉLIO JAGUARIBE - Essa coisa é o idealismo da juventude, é o exemplo de Fidel Castro e de Che Guevara que tiveram um impacto enorme na juventude romântica e deram a impressão de que através da guerrilha poder-se-ia derrubar o governo organizado. Foi uma grande ilusão que levou pessoas idealistas a fazerem toda a sorte de loucuras. Evidentemente, era impossível que ela tivesse qualquer êxito.

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Embora o senhor, evidentemente, não tenha tido uma militância nesses partidos clandestinos, o senhor apoiou posições progressistas, o senhor deu embasamento científico e teórico, fez proposições, quer dizer, atuou junto a Governos como os de Getúlio Vargas e de Juscelino, que não eram bem da simpatia do Governo militar.

O SR. HÉLIO JAGUARIBE - Não, não. Nada, nada.

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Como ficou a sua situação depois do golpe?

O SR. HÉLIO JAGUARIBE - Eu fui uma pessoa perseguida de uma forma, digamos, branda. Eu não fui objeto da perseguição dura, mas fui objeto da perseguição branda. A perseguição branda consistia em declarar que um determinado indivíduo, no meu caso, não existia. Não podia exercer nenhum cargo público, era uma pessoa não existente. Não fui preso, não fui torturado, mas fui declarado inexistente. Então, eu sentia que ia ser objeto de retaliações. Quando houve o golpe militar, eu estava naquele momento dirigindo uma grande empresa siderúrgica, uma das minhas preocupações no período do Segundo Governo Vargas e no Governo Kubitschek foi a de tentar dar uma contribuição, não apenas intelectual, mas também física. Então, eu tive a oportunidade de fazer uma tentativa  empresarial que se saiu muito bem sucedida, qual seja a de fazer uma grande siderurgia em Vitória, a Companhia Ferro e Aço de Vitória, a partir de um altoforno pequenininho.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Era empresa da família, não era?

O SR. HÉLIO JAGUARIBE - Os meus tios paternos eram donos de um pequeno altoforno em Vitória, por dizer 40 toneladas de gusa, uma coisa assim, que estava sempre cai não cai, porque tinha muitas dívidas. Eu disse: “Esse negócio de vocês vai acabar mal; ou fazemos disso uma grande siderurgia ou fechamos. Porque isso vai à falência, se ficar como está”. Então, as circunstâncias favoráveis me permitiram mobilizar um grande grupo alemão de apoio à iniciativa. E com a Ferrostaal AG, que naquele tempo era dirigida por pessoas muito interessantes que se tornaram amigos pessoais, nós pudemos, combinando capital alemão com o apoio do BNDES, fazer uma grande siderurgia em Vitória. Eu tive a felicidade e a oportunidade de inaugurar essa siderurgia ainda com João Goulart, produzindo 500 mil toneladas de aço por ano. Uma coisa muito bonita, que está aí ainda e tal e funcionou muito bem. E foi uma experiência muito interessante, porque eu queria me testar no sentido de ser capaz não apenas de produzir idéias e palavras, mas também produzir aço, coisas concretas. Deu-me um grande prazer essa iniciativa.

Voltando à coisa mais pessoal, depois do Golpe Militar, eu então resolvi sair do País. Abandonei a Ferro e Aço, entreguei-a ao meu Vice-Presidente — eu era Presidente da Companhia —, e aceitei um convite da Universidade de Harvard para ser professor visitante nos Estados Unidos. Os Estados Unidos não eram o de Bush de hoje. Eram os Estados Unidos liberais, do Kennedy, amáveis, abertos, inteligentes, uma sociedade extremamente interessante. Infelizmente, o Governo Bush estragou aquilo de uma maneira que, espero, não seja irrecuperável. Mas o clima dos Estados Unidos nos anos 1960 era uma coisa completamente diferente. Então, eu tive muito prazer e fiquei alguns anos lá. Fui professor durante 2 anos da Universidade de Harvard; depois aceitei um convite do outro lado do continente, no Pacífico, para ser professor na Universidade de Stanford, que é uma excelente universidade na Califórnia. Passei um excelente ano naquele clima adorável. A Universidade de Stanford é extremamente simpática. E voltei, de novo, para Cambridge, para ser professor do Massachusetts Institute of Technology (MIT). E aí aconteceu uma coisa engraçada. Eu estava pensando em prolongar a minha condição de professor visitante, enquanto durasse a ditadura militar. Evidentemente, eu não imaginava que ela fosse durar tanto quanto durou. Mas ocorreu que na ocasião, depois de 1 ano de MIT, fui convidado pelo pessoal de lá a me converter em professor permanente, que é uma coisa muito simpática. Pela primeira vez na minha vida eu podia viver de honorários de professor; ganhava suficiente para manter uma vida de classe média, muito razoável. O professor americano pode viver do seu salário; o brasileiro recebe esmola; o americano recebe salário. Então, o meu salário dava para eu viver num modesto conforto. E depois era MIT, aquela superuniversidade, aquelas bibliotecas! Eu fiquei evidentemente muito tentado, mas depois conversando com minha mulher, eu disse: “Olha, Maria Lúcia, se eu aceitar essa coisa, vou ficar o resto da vida aqui neste lugar. E eu estou profundamente preocupado com o meu País. Não aceito a ideia de o Brasil continuar indefinidamente sob regime militar, regime de direita, estagnado. Eu não vou aceitar. Prefiro arriscar voltar ao Brasil no Governo Médici, que é um Governo pelo qual tenho o maior antagonismo, a aceitar ficar de maneira permanente aqui. Porque, se eu aceitar, eu sei que não volto mais”.

            Então, aleguei ao pessoal que, infelizmente, razões diversas me obrigavam a voltar. Com esse argumento não podia pleitear a renovação do meu contrato de professor-visitante, porque para sair da situação de professor permanente aleguei a necessidade de retorno ao País, e retornei. E aí, chegando aqui, fiquei uma espécie de prisioneiro na minha casa. Não tinha possibilidade de nenhum emprego, de nenhuma atividade, e vivia trancado na minha casa como aquele filme “Fini contise”, me sentia um pouco assim.

            Agora, nesta oportunidade, o quem vem ao meu encontro, de maneira extremamente generosa e corajosa, foi Cândido Mendes, que me convidou a ser professor da sua universidade, dando-me um salário correspondente. Naquele tempo, os militares não chegavam a intervir muito nas universidades privadas, controlavam as públicas, mas para com as privadas eles tinham uma certa tolerância. Então, o Cândido me deu a responsabilidade de ser Diretor de Assuntos Internacionais da Universidade. Eu dava cursos de Relações Internacionais e me ocupava dos contatos internacionais da universidade, que eram muitos. O Cândido tinha uma atividade internacional muito grande. De modo que foi um período muito interessante; passei lá algum tempo.

            A partir de um certo momento, entretanto, eu comecei a sentir a conveniência e a necessidade de voltar à minha obsessão de ter um instituto que pudesse funcionar como os outros anteriores, IBESC e tal, tinham funcionado. E consegui reunir um grupo de amigos que nos levou a criar, na segunda metade do ano de 1979, o Instituto de Estudos Políticos e Sociais, o IEPS, em que estamos agora. Esse IEPS conseguiu, por cotização dos sócios, um dinheirinho, tudo de gente, assim, modesta.

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Quem eram os sócios?

            O SR. HÉLIO JAGUARIBE - Um grupo grande de pessoas que eu não.... Mas eu queria dizer que naquele tempo estava essa excelente economista portuguesa, Maria da Conceição Tavares, que era uma entusiasta, e várias pessoas formaram...um grupo de umas 50 pessoas; somente pegando a lista eu me recordaria de todos os membros.

            Com esse grupo, com pequenas contribuições de cada um, fundamos o IEPS, e alugamos essa linda casa, que pertencia à Sra. Ruth Londres. E aqui instalamos o nosso instituto, em 1º de janeiro de 1980. E de 1º de janeiro de 1980 até esta data em que tenho o prazer de conversar com vocês, aqui estou, diariamente, trabalhando incessantemente com a vantagem para o Instituto, que tem uma verba modestíssima, de eu trabalhar de graça. Se não, o Instituto.... aquela minha prudência de acumular um patrimoniozinho me permite viver modestamente de rendimentos que esse patrimônio gera, porque esse instituto tem uma verba insignificante, decorre da contribuição dos amigos, não dá para pagar coisa nenhuma; dá para pagar o aluguel e os funcionários da casa.

            Agora, devo dizer que o instituto foi possível porque uma instituição extremamente importante para a pesquisa brasileira, a FINEP, tem dado apoio a todas as pesquisas que fizemos. O Instituto trabalha com muita seriedade, muito bom nível acadêmico, técnico, científico, absoluta seriedade de contas, de modo que nosso cartaz na FINEP é altíssimo. Então, a FINEP nos tem favorecido com o financiamento de todas as nossas pesquisas, que são inumeráveis.

            Infelizmente, por disposição legal, a FINEP não permite, como acontece em outros países, que se insira nos orçamentos de pesquisa uma pequena taxa para as despesas gerais da instituição. Então, como uma instituição que não tem finalidade lucrativa vai viver se não pode tirar um pouquinho de dinheiro da pesquisa. Esse é o nosso problema, como é que se paga o telefone, o aluguel da casa. A gente tem vivido nessa angústia, a partir de coleta de dinheiro entre os nossos sócios que não têm nenhuma vantagem material, é apenas por dedicação à idéia do ISEB que contribuem para sustentar esta casa.

            A SRA ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Só uma coisa. Acabado o Regime Militar, teve no Brasil eleições diretas, no Governo Sarney, e, depois, o primeiro Presidente eleito, Presidente Collor, depois desse período todo de ditadura.

            O SR. HÉLIO JAGUARIBE - Exato.

            A SRA ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - O senhor ocupou um cargo no Ministério do Governo Collor. Gostaria que o senhor contasse sobre essa experiência, como foi o convite.

            O SR. HÉLIO JAGUARIBE - Pois não. Vou explicar. Primeiro deixe-me dizer 2 coisas a respeito do Presidente Sarney. Tive muito contato com o Presidente Sarney, que foi um apoiador entusiástico do projeto do ISEB e do IEPS. Ele contribuiu para que financiássemos projetos sem nenhum tostão. Fizemos então o Brasil Reforma ou Caos, muito proporcionado pelo Presidente Sarney.

            No caso do Collor, aconteceu uma coisa muito interessante. Fui membro fundador do Partido da Social Democracia Brasileira, com Fernando Henrique, José Richa, Montoro, pessoas da minha amizade, estima e apreço até hoje. Participei ativamente do diretório nacional do partido. Por outro lado, evidentemente, como membro do partido, fiz a campanha e votei em Covas, que era uma pessoa da melhor qualidade moral, uma grande pessoa humana. Infelizmente faleceu um pouco cedo. Fui contra, obviamente, o Governo Collor. Tive a oportunidade de fazer críticas muitos sérias a Collor, artigos publicados no Jornal do Brasil indicando os vários aspectos negativos do Governo Collor.

            Nisso, o Presidente Collor me chamou para conversar. Queria saber o que eu achava que estava errado no seu Governo. Dei-lhe uma lista das coisas que achava que estavam erradas. Fiz uma lista muito séria, mostrando tudo aquilo que achava que estava errado no Governo dele. Curiosamente, Collor começou a executar as medidas que tinha recomendado a ele. E eu comentava:  que coisa curiosa essa coincidência! O Collor está fazendo coisas que correspondem à lista de providências que dei a ele. Deve ser coincidência e tal, e passou. Em certo momento, voltou a me chamar e disse: “Professor, o senhor não pode ter deixado de ver que cumpri rigorosamente toda a lista de exigências que havia me dado”. Eu disse: É verdade, Presidente! Eu estava surpreso quando vi que realmente estava seguindo esta lista. “Não foi por acaso, não; eu fiz de propósito. Achei que o senhor tinha razão. Cumpri a lista e agora o senhor tem a obrigação de aceitar o convite que vou lhe fazer de participar do meu Governo, porque o senhor foi responsável por essa reorientação que imprimi ao meu Governo, disse o Presidente”. Disse-lhe que realmente me sentia constrangido em dizer não. Sugeri, então, que me desse a Pasta de Planejamento, porque seria exatamente aquilo que poderia fazer para continuar naquela linha de ideias que havia lhe dado. Naquele tempo nem se falava em PC Farias. Essas coisas estavam na surdina. Não tinham visibilidade. Havia rumores, mas era tudo muito na surdina.

            Disse-me o Presidente que criar uma Pasta nova seria muito difícil e me ofereceu a Pasta de Ciência e Tecnologia, que certamente eu daria conta, porque eu era um excelente cientista social. A Ciência não é apenas a ciência física, mas também a ciência social. Disse-me que tinha certeza de que eu seria um bom administrador da Pasta e mandou-me utilizar das facilidades do Governo para fazer um projeto de Governo e que estava preparado para cumpri-lo. Deu-me, então, a idéia de organizar um projeto de Governo com o Eliezer Batista e o Marcílio Dias Moreira, Ministros da Fazenda e de Assuntos Estratégicos. Naquele tempo chamava Secretário de Governo de Ciência e Tecnologia. Fizemos um excelente trabalho, modéstia à parte, mas quando o trabalho ficou pronto, já havia surgido toda aquela coisa de PC Farias. Então, tanto o Eliezer quanto eu resolvemos não apresentar o trabalho porque o Governo estava mortalmente ferido. Disse que o Governo acabaria renunciando ou haveria o impeachment, e o trabalho sério de programação do País ficaria afetado por essa coloração negativa do Governo. Então, resolvemos engavetar.

            Por outro lado, nessa crise que foram os 3 últimos meses da minha presença no Governo Collor, marcado pela Comissão de Inquérito e tudo o que ia saindo, devo dizer que, em primeiro lugar, isso me causou a maior surpresa, porque tanto eu quanto todos os meus colegas de gabinete, ao despacharmos com Collor, encontrávamos um homem inteligente, sério, que tomava somente medidas de alto interesse nacional. Não tive um só momento de meu despacho como Ministro dele que os assuntos de interesse nacional não fossem imediatamente adotados.

            Como esse homem, que é tão adequado como Presidente, homem inteligente, capaz, uma coisa surpreendente, de boa qualidade, tem esse lado soturno, esse lado sinistro? Durante algum tempo até achei que isso era capaz de ser intriga. Não era não. Ele era um homem de dupla personalidade. Na verdade, ele é um louco, um esquizofrênico. Como aquele conto inglês do Mister Hyde, ele tem o personagem noturno e o personagem diurno. Na Presidência, 100%; por outro lado, um homem lamentável nas suas maquinações secretas, com PC Farias e tal.

            A verdade, depois de tudo isso, refletindo sobre o assunto, perguntei-me o que havia levado aquele homem a fazer essa coisa lamentável? Estou convencido de que não era uma idéia de roubo patrimonial para apropriação pessoal, porque ele era um homem rico e não tinha esse problema. Ele estava estimulado por rumores que se dizia que Quércia tinha acumulado 1 bilhão de dólares, em São Paulo, para disputar a Presidência da República, e ele achou que para poder disputar uma segunda vez, depois de um intervalo... Ele estava pensando em sair do Governo e não pensava em reeleição; pensava em sair do Governo e disputar a sucessão do sucessor e queria ter uma caixinha de 1 bilhão de dólares para poder financiar sua futura campanha. Essa é minha interpretação. Tenho impressão que as manobras financeiras do Collor, todas ilícitas, não eram tanto para apropriação pessoal, mas para formar o instrumento político de recuperação do Governo numa segunda fase.

            As coisas não saíram assim, os assuntos, graças àquela denúncia do irmão dele, foram desvendados pela Comissão de Inquérito e ele terminou no impeachment.

            Nesta ocasião, Marcílio, que era Ministro da Fazenda, homem da melhor qualidade, sério, competente, reuniu o grupo e disse: “Escutem, todos queremos pedir demissão numa situação dessas. Mas chamo a atenção de vocês. Que tipo de gente vai entrar para o Ministério quando o Governo está acusado de alta corrupção? Vai ser um grupo de ratos, para se apropriar do bem público. Se nós sairmos, homens sérios não aceitam a nossa sucessão. A nossa sucessão será disputada por bandidos querendo saquear o Estado. Eu creio que temos a obrigação de sustentar o nome do Ministério para que, pelo menos no nível dos Ministros, não haja corrupção. Se o Presidente praticava, é outra coisa. O Ministério é sério e garante que o interesse público é mantido no nível do Ministério.”

            Achei que ele tinha razão e concordei. Todo mundo achou. “Muito bem, vamos fazer o sacrifício e permanecer numa situação extremamente impopular, sustentando nossa posição, para evitar que a probabilidade de que a nossa sucessão fosse feita por pessoas aproveitadoras, porque, infelizmente, gente de bem não ia querer aceitar o Ministério do Presidente que estava em vias de ser objeto de impeachment, seria gente golpista.” Então, continuamos e foi possível manter a seriedade no nível dos Ministros até o final do impeachment. Quando ele saiu, todo mundo pediu demissão e eu voltei à minha atividade acadêmica.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Professor, depois de uns 40, 50 anos estudando o Brasil, qual é a análise, a avaliação que o senhor faz do papel do Brasil no mundo de hoje, das possibilidades do País num futuro não distante, não remoto? O senhor acha que o País ainda tem condições de sair da condição de subdesenvolvido?

            O SR. HÉLIO JAGUARIBE - Muito boa questão. A questão é, para mim, obsessiva. Toda minha vida tem sido exatamente o esforço de responder essa questão. Essa questão tem 2 dimensões, uma dimensão doméstica e uma dimensão de relações internacionais. O Brasil não poderá ser um importante protagonista do mundo no curso deste século que está começando se não conseguir, com absoluta celeridade, superar o remanescente de seu subdesenvolvimento, que é sobretudo de caráter social, e se instalar no horizonte de 2020, por aí, um pouco antes, um pouco depois, num patamar que tenha uma condição social correspondente à da Espanha de hoje e um situação econômica e tecnológica correspondente à da Itália de hoje. Se o Brasil adotar seriamente, durante os próximos 20 anos, um programa consistente e competente de desenvolvimento social e econômico, disporá efetivamente de condições para se situar num patamar autossustentável.

            Se o Brasil chegar em 2020 como a Espanha de hoje ou como a Itália de hoje, ele será o protagonista do século XXI; se não chegar, ele vai se converter num segmento indiferenciado no mercado internacional, domesticamente dirigido por multinacionais estrangeiras e externamente dirigido por Washington, como província do império americano.

Contudo, há uma outra dimensão além dessa doméstica — esta depende de nós. Há uma dimensão internacional. Essa dimensão internacional apresenta, a meu ver, dois principais requisitos: a curto prazo, recusarmos o projeto ALCA, que é o projeto de nossa definitiva e formal soterização. Por outro lado, para recusarmos o Projeto ALCA, precisamos montar condições que possibilitem essa recusa, ou seja, uma forte e irreversível consolidação do MERCOSUL. Esse é o ponto número um.

            Ponto número dois: a formação, dentro da América do Sul, de um sistema de cooperação e livre mercado, em que o MERCOSUL seja um núcleo duro e os países da comunidade andina tenham, com o MERCOSUL, uma relação de livre mercado; e, finalmente, estreitar a nossa relação com países semicontinentais que têm problemas internacionais semelhantes ao nosso: China, Índia e Rússia.

            Ponto número três: é preciso fortalecer a nossa relação com a Europa e, finalmente, manter com os Estados Unidos uma relação de cooperação equilibrada, mas não dependente; uma cooperação autônoma, independente e, por outro lado, equilibrada de relações de troca.

            Ora, neste momento a coisa mais importante que o Brasil tem que fazer é o Projeto ALCA. Então, eu digo o seguinte: o Brasil tem dois grandes prazos. Um de médio prazo que é conseguir superar o seu subdesenvolvimento e atingir um tal patamar de autossustentabilidade até mais ou menos 2020. Para isso é preciso um grande esforço. Dois: a curto prazo, de agora até 2005, recusar-se a entrar na ALCA.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Mas será que nós teremos condições de enfrentar o poderio americano, recusando-nos a participar da ALCA?

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Pelo que o senhor está falando, também, é muito o projeto do Governo Lula.

            O SR. HÉLIO JAGUARIBE - É claro que é! claro que é! claro que é! Eu vou já entrar nisso.

            Vamos, então, falar primeiro sobre a ALCA. Por que nós devemos recusar a ALCA? Devemos recusar a ALCA por duas razões: primeiro, porque a ALCA, tal como está sendo dada, é absolutamente inconveniente para os interesses brasileiros; segundo, porque, mesmo se teoricamente — o que é puramente teórico — imaginássemos que todas essas cláusulas contrárias ao interesse nacional fossem renunciadas pelos Estados Unidos, assim mesmo uma ALCA ideal, desenhada por mim, não seria desejável porque implicaria a supressão de todas as tarifas, o que significa suprimir a tarifa externa, que é a condição de sobrevivência de MERCOSUL. Compreendeu o senhor?

            Vou detalhar ligeiramente quais são as disposições altamente negativas contidas no projeto americano de ALCA. Em primeiro lugar, aquelas que estabelecem a supressão geral de todas as tarifas, mas não a supressão das barreiras não tarifárias. Ora, os Estados Unidos têm barreiras não tarifárias para a proteção de todas as atividades em que eles são menos competitivos, inclusive essa lamentável modalidade que consiste na decretação unilateral de dumping. O que é dumping? Dumping é qualquer produto mais barato para o americano. Se é mais barato, é dumping, porque os Estados Unidos são um país perfeito. (Risos.) Tudo que eles fazem é melhor do que o dos outros e mais barato. Se alguma coisa é mais barata do que as coisas do americano, isso é dumping. O aço brasileiro é dumping, e tudo mais que é barato!

Ora, quanto a abolir as tarifas. O Brasil só tem defesa externa na sua disposição tarifária. Não há disposições, barreiras não tarifárias da proteção do nosso mercado. O nosso mercado é protegidos tarifariamente. E são tarifas até moderadas, mais ou menos 14% em média.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - E eles protegem com a tarifa do  dumping....

            O SR. HÉLIO JAGUARIBE - Eles têm uma tarifa básica mínima de 13%, porque a verdadeira proteção não é tarifária, é a proteção não tarifária. Então, senhores, querem que eliminem as proteções não tarifárias. Aí, não! Por quê? Por que eles não podem? Porque as proteções não tarifárias resultam de poderosíssimos lobbies que controlam o Congresso americano de cuja aprovação depende a reeleição do presidente, a reeleição de deputados e senadores. Portanto, essa gente dispõe de poder de bloqueio absolutamente insuperável. Essa é a primeira dimensão.

            A segunda dimensão da conta negativa da ALCA, tal como nos é apresentada pelos Estados Unidos, é o que eu chamo de falaciosas formulações multilaterais. Quais são essas falaciosas formulações multilaterais? A seguinte: “Todos os países membros da ALCA poderão vender, sem nenhum privilégio para os nacionais, aos respectivos países; a livre compra por parte dos Governos dos países membros da ALCA de ofertas provenientes de empresas de qualquer um dos países.” Quando é que uma empresa brasileira vai ter capacidade de vender alguma coisa ao Governo de Washington? Evidentemente nunca! Quando é que as empresas americanas vão ter capacidade de vender alguma coisa ao Governo brasileiro? Permanentemente sempre! Na hora em que se abrir a liberdade de compra governamental, a empresa brasileira só vai comprar made in USA.

O segundo ponto é a disposição de não regulamentação, pelos governos, das inversões estrangeiras. “Quem regula a inversão estrangeira é o mercado, o governo não pode regular.” Ora, que inversão estrangeira o Brasil vai fazer nos Estados Unidos? Nenhuma! Que inversão estrangeira fará os Estados Unidos? Todas! E nós não podemos regular! O Governo brasileiro perde o poder regulatório das inversões estrangeiras que se fazem em nosso País. Portanto, é um suicídio!

Quando as pessoas dizem: “É necessário negociar.” Eu digo: “Meu caro, negociar o quê?” A negociação possível em matéria de ALCA não é a de um pobre representante brasileiro junto ao outro governo, é a do presidente americano, com o seu Congresso, eliminando todas essas. “O senhor acha que elas vão fazer? Não vão!

Portanto, é inviável entrar na ALCA, porque as cláusulas altamente nocivas para o interesse nacional são irremovíveis, na prática.

Contudo, só para argumentar, suponhamos que houvesse uma revolução intelectual e possível com pessoas inclusive capacitadas intelectualmente, não particularmente notáveis, que levasse à supressão de todas essas barreiras. Ainda assim a ALCA não nos conviria, porque implicaria a supressão de todas as tarifas.

Ora, o MERCOSUL, que é o nosso principal instrumento de inserção no mundo, implica uma tarifa externa comum precisamente para proteger as indústrias argentina, brasileira, paraguaia e uruguaia da supercompetitividade estrangeira e permitir que cresçam com ambiente propício para que, num prazo que esperamos que não seja longo, algo em torno de 10 a 15 anos, alguns setores das nossas indústrias adquiram competitividade internacional. Mas, se não houver essa proteção, são assassinadas na infância. Desse modo, não têm condição de prosperar, porque morrem antes.

Portanto, a tarifa externa comum é indispensável para permitir a emergência, dentro dessa área protegida por essa tarifa, de algumas atividades econômicas — de serviço ou industriais — de competitividade internacional satisfatória. Mas é preciso dar tempo para que isso apareça, senão morre na infância.

Então, considero a ALCA uma coisa fatal, ainda que fosse realmente destituída de todas as disposições negativas que atualmente tem.

Ora, como o senhor já formulou, como é que vamos dizer não à ALCA? Assim, sem mais nem menos, não podemos fazê-lo. Podemos ser objeto de retaliações econômicas muito perigosas.

Existe possibilidade de o Brasil se negar a entrar na ALCA? Existe. Quais são? Em primeiro lugar, se consolidar o MERCOSUL, que não é apenas o grande mercado sub-regional. MERCOSUL é o instrumento de negociação internacional que nós temos. Costumo dizer que o MERCOSUL é o nosso passaporte para a história. Com o MERCOSUL, temos acesso ao mundo internacional, que é muito maior do que o Brasil isoladamente — então, nem se fale de Argentina, Paraguai e Uruguai, pois isoladamente não teriam nem audiência. Nós teríamos uma audiência fraca. Com o MERCOSUL, temos uma audiência forte.

Entretanto, para que o MERCOSUL se consolide é necessário que se saia dessa modalidade mais recente adotada pelo sistema, por influência da ideologia neoliberal, e se volte às ideias iniciais do MERCOSUL do tempo de Sarney com Alfonsín. Quais eram essas ideias? O MERCOSUL é um sistema de otimização econômica para os participantes. E para que o MERCOSUL seja um sistema de otimização econômica para os participantes é necessário que o Brasil organize, com os outros parceiros, uma política industrial comum; e que o Brasil, como maior país, assegure a compra de produtos que tenham sido designados como de preferência desses países. Compra da Argentina, compra do Uruguai, compra do Paraguai.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - E políticas macroeconômicas comuns...

O SR. HÉLIO JAGUARIBE - E políticas macroeconômicas comuns.

Ora, isso é possível fazer. E se — com os dedos cruzados — o Sr. Kirchner for reeleito agora no próximo domingo — como eu tenho a impressão de que isso vai acontecer —, as declarações de Kirchner junto ao nosso Presidente foram taxativas: primeiro, prioridade total ao MERCOSUL; segundo, formação de um grande sistema sul-americano; terceiro, a ALCA, sem prioridade, não prioridade. A ALCA está fora de prioridade! é perfeito! perfeito isso!

Devo dizer que estive recentemente na Argentina e almocei com o Ministro Lavagna, que, como tudo indica, será o futuro Ministro da Economia do futuro Presidente Kirchner. Tive a melhor impressão de Lavagna. O que eu estou dizendo Lavagna subscreveria. Lavagna acha a ALCA fatal para a Argentina —  e obviamente para o Brasil —, e acha que há necessidade de se fortalecer o MERCOSUL. Para isso, é preciso que ocorra o que o senhor acabou de dizer: compatibilização macroeconômica, por um lado, e política industrial comum, por outro lado.

As condições aparentemente dadas agora para que MERCOSUL se fortaleça nunca foram tão boas. Creio que o Governo Lula e o futuro Governo Kirchner vão poder consolidar irreversivelmente o MERCOSUL. Se fizermos isso e dermos o passo seguinte, que é a cooperação com o grupo andino, teremos condições de dizer: “Senhores, muito obrigado”.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Quais são as suas esperanças no Governo Lula?

O SR. HÉLIO JAGUARIBE - Muito grandes! muito grandes..... ercado s

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) – Só um segundo...antes do senhor responder. O senhor já está falando há uma hora...

O SR. HÉLIO JAGUARIBE – Muito Obrigado!

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - ….Sem interrupção. Vocês querem também (água)?

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) – Não, obrigado!

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) – Não, obrigado!

O SR. HÉLIO JAGUARIBE - Impressionante, já se passou uma hora é?

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) – Uma hora!

O SR. HÉLIO JAGUARIBE - Eu estava querendo falar em 15 minutos!

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) – Não é!? (risos)

O SR. HÉLIO JAGUARIBE - É que essa gente está puxando assunto....

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) – Está ótimo!

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) – Acho que a gente depois podia voltar à filiação ao PSDB, como é que fica a inserção do PSDB....

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) – Ah! Sim.

O SR. HÉLIO JAGUARIBE - Vejam bem, tenho esperanças grandes no Governo Lula, que não era objeto da minha simpatia nos seus períodos anteriores, porque ele ainda estava naquela fase do radicalismo insensato. Vou até um parêntese: todos os governos de origem obreira no mundo ocidental começaram muito radicais. Nada era mais radical do que o Labour Party inglês, no começo do século XX, do socialismo francês....

O SR. ENTREVISTADOR  (Tarcísio Holanda) - Da social democracia alemã...

O SR. HÉLIO JAGUARIBE - da social democracia alemã, com Rosa de Luxemburgo, Liebknecht, etc..... Espartaco!

O SR. ENTREVISTADOR  (Tarcísio Holanda) - Kaustsky.

O SR. HÉLIO JAGUARIBE – Kaustsky! Essa gente, na medida em que aceitaram o jogo democrático, a ideia de aspirarem ao poder não por revolução ou golpe, mas por eleição, foram sendo obrigados a constatar a existência de outros interesses: de uma classe média que precisava de ter acolhida, de um empresariado que não podia ser ignorado. Em suma, o radicalismo se converteu em social democracia. Isso foi definitivo no caso da socialdemocracia alemã, depois da influência de Bernstein e depois de uma decisão tomada, se não me engano, em 1957, quando definitivamente se consolidaram as ideias de Bernstein como a ideia de uma economia social de mercado.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Ninguém mais discute a propriedade dos meios de produção.

O SR. HÉLIO JAGUARIBE - Não, não! É economia social do mercado. Todo mundo discute o seguinte: o mercado não é autônomo, o mercado não é livre, o mercado não supera o Estado; o Estado supera o mercado, o Estado vigia e intervém no mercado quando necessário. Trata-se de economia social do mercado, e não economia de mercado, e o Estado que se dane, que é o neoliberalismo! De maneira alguma, é o oposto disso!

Bem, voltando ao tema. Na medida em que Lula, pessoalmente, e a fração do PT que ele controla aderiram a essa posição, eu diria que hoje considero o PT mais social-democrata do que o PSDB. A verdadeira socialdemocracia brasileira está hoje no PT de Lula, evidentemente. Contudo, há aqueles radicais, mas isso é natural.

Qual é o grande problema do Governo Lula, que tem uma popularidade extraordinária, quase 80% de apoio depois de quatro meses? Uma coisa extraordinária! Consiste em conseguir encontrar modos adequados de transitar do atual modelo para o novo modelo.

Eu acho que a equipe econômica que está trabalhando no Governo Lula operou extremamente bem até agora. O Palocci e seu grupo estão fazendo exatamente o que precisava ser feito: restauraram a confiança. Saíram daquela ideia de que o governo é um governo de lobisomens, que vai devorar crianças. Não há nada disso! Há tranquilidade. O mercado está domesticado, o mercado externo está apaziguado,  há confiança, o risco Brasil está desaparecendo, o dólar está caindo. O resultado é espetacularmente favorável. Restabeleceu-se a confiança que, por demagogia e naturalmente intrigas internacionais, apresentavam o Governo Lula como uma catástrofe. Isso está feito.

Contudo, continuar assim até o fim? Não! Se for assim, deixem o Sr. Pedro Malan continuar no Ministério da Fazenda, porque, data venia, ele é mais competente que o Sr. Palocci! (Risos.)

O que é preciso fazer agora? Esse é que é o problema.

Acho que neste momento o Governo Lula, começando pelo próprio Presidente Lula, dever estar muito lúcido e muito consciente de que há necessidade de fazer a diferença entre a equipe de frente e a equipe de retaguarda. A equipe de frente — o Sr. Palocci, etc. — deve continuar fazendo exatamente o que está fazendo. Durante todo este ano de 2003, deve continuar administrando a economia brasileira com prudência, com cautela. Perfeito! Parabéns a eles! Mas na retaguarda, no Ministério do Planejamento, no Ministério de Ciência e Tecnologia,  precisa haver um grupo de elaboração do modelo alternativo e da estratégia de transição apropriada, tranquila, racional, equitativa, do modelo atual para o modelo futuro.

Até agora o modelo alternativo é qualitativo. Todos estão de acordo com os discursos de Lula. Vamos converter esse modelo qualitativo num modelo econométrico. Quais são os requisitos técnicos desse modelo? Vamos desenhar esse modelo! Ninguém está fazendo isso.

Ponto dois: como passar do modelo atual para o modelo dinâmico? Ninguém está fazendo isso. Se não o fizerem, o Governo Lula será uma dramática oportunidade perdida — e talvez a última oportunidade — de o Brasil sair do buraco!

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Só para reforçar o que o senhor disse, o Delfim acha que está faltando exatamente isto: atrás do Governo, um grupo, um núcleo para pensar estrategicamente.

O SR. HÉLIO JAGUARIBE – Exatamente! Exatamente! Quais são as características do novo modelo que queremos, dentro de princípios de exequibilidade, não utopicamente, características absolutamente revestidas de exequibilidade econômica e política? Vamos desenhar esse modelo no detalhe, e não apenas na formulação retórica.

Ponto dois: como partir do modelo atual para esse modelo? Qual é a estratégia de transição? Isso tem que ser estudado agora, ou melhor, ontem! E esse trabalho tem que ser concluído ainda no curso de 2003, para que se comece a aplicar a estratégia de transição no curso de 2004 e se tenha o pleno modelo montado em 2005.

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Professor, fomos até o futuro agora. Vou propor um pequeno recuo.....

O SR. HÉLIO JAGUARIBE – Pois não!

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - ….a 1994. Fernando Henrique Cardoso, príncipe da sociologia brasileira, um homem com trabalhos teóricos brilhantes...

O SR. HÉLIO JAGUARIBE - Excelente. Uma figura admirável!

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) – Não é verdade? Foi eleito em 1994 cercado de muita esperança!

O SR. HÉLIO JAGUARIBE - É verdade!

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) – Com uma votação extraordinária,  não é verdade?

O SR. HÉLIO JAGUARIBE - É verdade! Incluindo o meu voto.

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) – Exato. Oito anos depois, não existe uma unanimidade em torno da atuação dele. Há muita crítica.

O SR. HÉLIO JAGUARIBE - É verdade. É verdade.

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Como o senhor avalia esses oito anos? Foram oito anos perdidos? O que se fez foi muito menos do que o senhor esperava? Onde ele falhou? Qual foi a grande contribuição que ele deu?

O SR. HÉLIO JAGUARIBE – Está ótimo! Grande pergunta, não é?!

Começo dizendo que acho que Fernando Henrique foi o mais qualificado Presidente da história da República e, possivelmente, no seu tempo, se não foi o mais qualificado, era um dos dois ou três mais qualificados no mundo. Era apenas isto: da maior excelência. Homem superinteligente, supercompetente, com todas as qualidades. Talvez faltasse a ele um pouquinho de vocação de mando. Ele tinha tendência à sedução, à persuasão. Na hora do mando, ele ficava um pouco soft. Mas é um defeito secundário, tendo em vista a excelência desse homem.

Por que esse homem, que é a maior figura que chegou à Presidência da República até hoje, não fez aquele supergoverno que todos esperávamos? Tenho a impressão de que se haveria de considerar duas coisas. Em primeiro lugar, evidentemente há sempre o intervalo, sobretudo em regimes democráticos, entre um superpresidente e o governo que ele pode exercer, pela inevitabilidade de compromissos de todo tipo que o governo tem que fazer, para acertar a base política, acertar requisitos regionais, etc. Ou seja, nas condições de um país como o Brasil, nenhum presidente pode ter o ministério da sua própria desejabilidade pessoal. Ele faz o ministério possível. Em alguns postos-chave, ele põe pessoas que ele deseja, mas nos outros ele tem que transigir. Então, isso deve ser aplicado, evidentemente, ao Governo Fernando Henrique.

O segundo aspecto é mais grave e consiste no seguinte: Fernando Henrique é um excelente sociólogo, intelectual da melhor qualidade. É um sujeito pelo qual tenho grande estima e admiração. Ele tinha uma profunda preocupação com o equilíbrio econômico do País, porque ele estava convencido — não sem razão, aliás — que, se a execução prematura dos grandes projetos de desenvolvimento econômico e social que ele queria fazer desequilibrasse a economia, o País entraria de novo na rota da inflação, da qual ele foi o salvador. Como Ministro da Fazenda do Governo anterior e depois como Presidente, ele garantiu a estabilidade monetária, financeira e cambial. Ele tinha a obsessão da estabilidade econômica como condição a partir da qual se poderia, em seguida, empreender um grande projeto socioeconômico.

Acontece que, nas condições de um país subdesenvolvido como o Brasil e num sistema internacional que não é muito favorável, com a estabilidade se paga o preço da estagnação. Disso ele não se deu conta. Ele passou a primeira fase do Governo dele pensando: “Bom, nos meus dois primeiros anos, vou assegurar a estabilidade; nos dois últimos, executo as minhas...” Não, todo o primeiro mandato foi consumido pelo esforço da estabilidade. “Bom, no segundo, faço um começo de estabilidade...” O afã da estabilização consumiu a totalidade dos oito anos, sem que surgisse aquele patamar de tranquilidade a partir do qual ele pensava que se podia iniciar um grande esforço de desenvolvimento social e econômico.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O grande erro dele não foi a sobrevalorização cambial, que durou demasiadamente, por quatro anos?

O SR. HÉLIO JAGUARIBE – Perfeitamente! Ótimo! O senhor interrompeu o que eu ia dizer.

Isso, não obstante, dentro dessa visão de estabilidade que ele tinha, ele pecou por dar à estabilidade cambial uma importância desmesurada relativamente ao seu custo. A partir de um certo momento, quando se observa que a relação do câmbio começa a ser artificial, que se mantém uma paridade à custa de uma perda de competitividade, de capacidade de exportação, em suma, que a deterioração doméstica da moeda não é compatível com a paridade cambial que se lhe atribui, o câmbio fixo ou quase fixo, como era o caso, passou a ser fatal.

Quando houve o estouro cambial, no começo do segundo mandado de Fernando Henrique, segundo alguns, a defasagem do câmbio brasileiro era, na melhor das hipóteses, 30% — e talvez já fosse 50%. Na época em que o Governo, por causa da lamentável política adotada por Gustavo Franco durante o período em que foi Presidente do Banco Central, adotou uma política de quase estabilidade, uma flutuação muito baixa, o mercado explodiu o câmbio. Quem fez a desvalorização brasileira não foi o Governo, foi a pressão do mercado. Ele não resistiu mais à pressão do mercado. Todas as nossas divisas, as nossas reservas iriam embora, se ele não fizesse a desvalorização. Ele já havia perdido mais da metade. Então, para salvar um pouco a pele, ele fez a desvalorização.

Mas essa desvalorização imposta pelo mercado é explosiva. Em vez de ser de 30%, foi de mais de 100%. Isso gerou uma situação gigantesca de dívidas externa e interna, e o Governo ficou engessado.

            Fernando Henrique, apesar de suas grandes qualidades - e eu abro um parêntese para dizer que ele fez muita coisa -  talvez a mais importante delas tenha sido a consolidação da democracia brasileira, um exemplo de tolerância, de aceitação de crítica, aquela elegância extraordinária! Inclusive a forma admirável como ele presidiu a transição, chamando os seus adversários para participar do processo de transição uma atitude de príncipe — não só da economia mas do Governo. Mas ele pagou um preço altíssimo na dimensão macroeconômica: deixou o País parado durante oito anos, por causa da permanente ideia de que somente depois da estabilidade consolidada se poderia fazer o desenvolvimento. Isso, num país subdesenvolvido ou em desenvolvimento, não existe.

Como tem sido muito apropriadamente salientado pelo economista João Paulo de Almeida Magalhães que diz que é o desenvolvimento que traz a estabilidade; a estabilidade não leva ao desenvolvimento. É preciso começar corajosamente o desenvolvimento e acreditar que a dinâmica do desenvolvimento, ainda que a partir de um aparente desequilíbrio inicial, gera em seu processo uma estabilidade consolidada, porque ela é sustentada pelo desenvolvimento. Mas não foi isso que se fez.

            O ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Professor, nós tivemos a República Velha, que era uma “meia ditadura”; depois tivemos a Revolução de 30 e tivemos o Estado Novo. Depois do Estado Novo, um breve interregno de liberalismo...

            O SR. HÉLIO JAGUARIBE - Sim.

            O ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - De 1946 a 1964, foram dezoito anos. Então tivemos um golpe, que foi a mais profunda intervenção dos militares...

            O SR. HÉLIO JAGUARIBE - É verdade, vinte anos de militar.

            O ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Vinte anos!

            O senhor acha que está afastada a hipótese, a possibilidade de um novo golpe no Brasil, que detenha a nossa marcha democrática, a nossa convivência democrática? Porque temos esse problema social gravíssimo. Aqui no Rio de Janeiro é explosivo.

            O SR. HÉLIO JAGUARIBE - É explosivo! É uma Colômbia municipal.

            O ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - É Medellín, não é!?

             O SR. HÉLIO JAGUARIBE - Sim, é Medellín.

            O ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) – Então, o senhor acha que está afastado o risco da ameaça de um novo golpe militar?

             O SR. HÉLIO JAGUARIBE - A sua pergunta é muito pertinente. Eu tenho impressão de que ela exige uma resposta qualificada.

            Está afastado, de uma maneira que eu diria profunda, o risco de intervenções militares por razões ideológicas: para estabelecer o autoritarismo, para evitar a democracia, para evitar a democracia social, para evitar a democracia de massas, estas coisas estão afastadas. As Forças Armadas, hoje, estão conscientes da necessidade de atuarem como defensoras das instituições, da democracia. Portanto, o compromisso democrático das Forças Armadas brasileiras é extremamente sério e, a meu ver, permanente.

Contudo, o que não está afastado é o seguinte: se não conseguirmos, ainda no Governo Lula — olhem bem, a partir de agora —, iniciar o processo de desenvolvimento acelerado para aquela tal marcha que leve o Brasil, até o ano de 2020, a chegar a níveis semelhantes à Espanha e à Itália, as distorções sociais existentes no Brasil se tornarão incontroláveis. Este País terá uma tal explosão social, que ele ou entra no caos, ou entra numa intervenção militar meramente de contenção do caos, não por ideologia mas por policiamento do País, que perdeu a capacidade de autogoverno. O Brasil perderá a capacidade de autogovernabilidade, se não começar seriamente um programa de desenvolvimento social e econômico.

             O ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Para completar, eu queria que o senhor falasse, resumidamente, da sua origem. O senhor começou falando que já está fazendo curso de advocacia. Como o senhor encaminhou essa sua formação? De onde é que surgiu essa pessoa multicultural, esse cientista social?

            O SR. HÉLIO JAGUARIBE – Perfeito! Muito bem! Com muito prazer! É uma coisa que não interessa ao público (risos), mas já que o senhor me pergunta, não é motivo de vergonha para mim. (Risos.)

Sou produto de uma família que tem uma mãe portuguesa e um pai cearense. A minha mãe é uma senhora que veio para o Brasil muito menina, com 5 anos de idade. Ela era filha de grandes exportadores de vinho do Porto, a Casa Oliveira Santos. O meu avô materno, exportador de vinho do Porto, tinha no Brasil o seu principal mercado. E várias circunstâncias, que não vêm agora ao caso, o levaram a achar que era melhor trabalhar a partir do Brasil do que a partir de Portugal, e ele trouxe a família dele. Minha mãe, com 5 anos, para cá veio. Bom, esse é o lado materno.

O lado paterno. Meu pai descende de uma velha família cearense, os Alencar, que, segundo me contaram, chegaram ao Brasil em 1601, portanto, no começo do século XVII, e tem toda uma linha que se prolonga. A descendência mais imediata é o meu bisavô, o Visconde de Jaguaribe, que era avô de meu pai, que, enfim, deu o nome Jaguaribe à família e uma orientação na linha da coisa pública, do interesse público.

Meu pai foi militar, morreu general do Exército, e era geógrafo e cartógrafo. Foi, durante toda a vida profissional dele, membro da Comissão Rondon, por quem ele tinha profunda admiração. A relação entre meu pai e Rondon era fraternal. Os 2 se davam extraordinariamente bem. O Rondon fazia aquelas explorações extraordinárias e trazia dados geográficos, que meu pai anotava, criando um acervo geocartográfico gigantesco.

Aí aconteceu uma coisa muito interessante. A certa altura, o marechal, que naquele tempo ainda era general, achou que tinha concluído as suas tarefas e não havia como imprimir a carta geográfica que incorporava todas as descobertas de Rondon, porque o Brasil, naquele tempo, não tinha uma capacidade impressora grande. Então, mandou meu pai para... Fez um contrato com o serviço geográfico francês e mandou meu pai imprimir a carta em Paris. Isso foi no começo dos anos 20. Então, fui para Paris com 1 ano de idade. Eu nasci em 1923 e em 1924 estava em Paris com meu pai.

Meu pai começou a tratar da impressão da carta com o serviço geográfico. Muito bem. Mas acontece que o Rondon, em vez de parar, continuou com as explorações e mandava constantemente elementos novos. Então, meu pai, como aquela história da Penélope, da tela, não podia imprimir porque tinha de reincorporar dados do Rondon. Enfim, ele ficou nessa brincadeira durante anos.

Quando sobreveio a Revolução de 30, o Rondon foi posto à máscara, considerado militar dos carcomidos, e meu pai era “esse militar brasileiro que há 7 anos está gozando a vida em Paris”. (Risos.) Meu pai não gozava a vida em Paris. Ele trabalhava feito um mouro, coitado. Não tinha férias. Era um homem da maior seriedade. Mas mandaram que ele voltasse para cá. Então, interrompeu tudo. Meu pai trouxe a bagagem dele, com a carta, e foi colocado aí numa dessas forças militares do Rio Grande do Sul. Enfim, deram a ele uma função puramente militar.

Bom, quando veio o Governo Dutra, que era mato-grossense, meu pai chegou e disse: “Presidente, tenho aqui a maior carta de Mato Grosso, em potencial, que essa gente não deixa fazer. O senhor não gostaria que se fizesse um grande trabalho?” Ele respondeu: “Mas é claro!” Criou o Serviço de Conclusão da Carta de Mato Grosso e chamou meu pai. Meu pai, então, pôde terminar — Rondon não estava mais ativo, não tinha mais pesquisas nem explorações novas — terminou a obra colossal da Carta de Mato Grosso, que foi inaugurada pelo Presidente. Ele ganhou uma grande medalha militar e, enfim, conseguiu fazer o ideal da vida dele.

Então, eu tinha do lado do meu pai, uma formação de um homem para quem o patriotismo, o serviço ao País, era a regra número 1. Foi educado sob o maior civismo, sentido público, e isso me impregnou. Eu sou, por influência benéfica do meu pai, um homem com profundo compromisso com o interesse nacional, com o serviço público, com o bem geral do povo brasileiro.

Por outro lado, possivelmente herdei da minha mãe, pela linha materna, um pouquinho de vocação empresarial, o que me levou a fazer a Companhia Siderúrgica de Vitória.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - E essa empresa sobreviveu?

O SR. HÉLIO JAGUARIBE - Bem, essa empresa sobreviveu brilhantemente enquanto foi empresa pública. Mas depois, com essa coisa das privatizações insensatas, foi vendida a um grupo incompetente, que acabou não sabendo sustentá-la.

Mas enquanto ela estava sob a minha administração e de meus sucessores... Todas as torres da ELETROBRÁS são feitas com perfilados da Ferro e Aço, até recentemente.

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Mas o senhor foi alfabetizado em francês, não é?

            O SR. HÉLIO JAGUARIBE - Perdão?

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Foi alfabetizado em francês?

            O SR. HÉLIO JAGUARIBE - Ah, bom, pois é. Na minha casa só se falava português, não é? Mas, evidentemente, eu fui alfabetizado em francês, e isso me deu essa coisa. Eu aprendi francês quando menino, e meus...

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O que é bom?

            O SR. HÉLIO JAGUARIBE – Oh! é só como menino que nós pegamos o acento, não é? E meus pais tiveram a prudência, quando eles voltaram para o Brasil, durante certo tempo, até eu ficar autônomo, nos domingos, só se falava francês em casa, para manter o meu francês. Quando comecei a ler em francês, aí, pronto, deslanchei. Foi muito bom.

            É muito engraçado o seguinte... Um episódio da minha infância.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Ainda hoje o seu francês é muito bom!

            O SR. HÉLIO JAGUARIBE - Quando eu cheguei à França, ainda menino, ia brincar no parque, eu sentia as crianças falarem uma língua diferente. Então, eu não tinha ideia da diferença de idiomas, devia ter 3 anos. Então, eu disse: esses garotos estão querendo brincar comigo. Eu vou também inventar uma língua. Então, eu chegava e falava: “Parapacá, dadatácacá.” (Risos.) E falava uma língua inventada. Até que eu me dei conta de que não era língua inventada, era francês mesmo. (Risos.)

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Muito bom, professor. Não é?

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Foi um ótimo depoimento, conciso.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) – Brilhante! Brilhante!

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Foi o depoente mais (ininteligível).

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Tocou em tudo aí.

            O SR. HÉLIO JAGUARIBE - Muito bem.

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Em política, economia, sociologia, planejamento...

            O SR. HÉLIO JAGUARIBE – Muito bem. Minha preocupação é com o Governo Lula, sabe? Porque se este Governo...

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Você tem razão. O Lula e o PT têm mais condições de serem social democratas do que o PSDB.

            O SR. HÉLIO JAGUARIBE – Ah! Claro! O PT tem outros setores.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Eles têm raízes sociais!

            O SR. HÉLIO JAGUARIBE - Claro, claro. E depois, o seguinte...

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Os partidos socialistas europeus e sociais-democratas não têm raízes.

            O SR. HÉLIO JAGUARIBE - É claro, claro. Não, no PSDB tem uma quantidade de gente que não é social-democrata. Hoje a maioria não é.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - É 70%.

            O SR. HÉLIO JAGUARIBE - A maioria é clientelista.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - De 60% a 70%.

            O SR. HÉLIO JAGUARIBE - Agora, tem um núcleo sério. Não é?