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DEPARTAMENTO DE TAQUIGRAFIA, REVISÃO E REDAÇÃO
NÚCLEO DE REDAÇÃO FINAL EM COMISSÕES
TEXTO COM REDAÇÃO FINAL
PROGRAMA MEMÓRIA POLÍTICA - ENTREVISTA COM HÉLIO BICUDO |
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EVENTO: Entrevista |
N°: ESP003/03 |
DATA: 06/05/2003 |
INÍCIO: 09h00min |
TÉRMINO: 10h46min |
DURAÇÃO: 01h46min |
TEMPO DE GRAVAÇÃO: 01h46min |
PÁGINAS: 39 |
QUARTOS: 22 |
DEPOENTE/CONVIDADO - QUALIFICAÇÃO |
HÉLIO BICUDO – Chefe da Casa Civil de Carvalho Pinto, ex-Governador do Estado de São Paulo. |
SUMÁRIO: Entrevista do Sr. Hélio Bicudo para o Programa Memória Política.
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OBSERVAÇÕES |
Há falhas na gravação. Houve intervenções simultâneas ininteligíveis. Há palavra ininteligível. |
Meu pai era funcionário dos Correios e Telégrafos. Ele foi agente dos Correios em Mogi das Cruzes, depois veio para São Paulo e aqui viveu o resto da sua vida. Foi empregado dos Correios por mais de 30 anos. Aposentou-se como funcionário. Eu pertencia, vamos dizer, à pequena burguesia, embora a minha família fosse de origem bastante tradicional no Estado de São Paulo, muito ligada, já naquele tempo, à Igreja. Eu tive vários tios que foram padres, primos e irmãos que foram padres. Um dos últimos curas da Sé era meu tio-avô, era tio de meu pai. E o meu avô paterno foi sacristão da Sé. Então, há essa ligação de nós todos da família com a Igreja Católica.
Pois bem. Eu nasci em Mogi das Cruzes, mas me eduquei em São Paulo. Iniciei meus primeiros passos na escola no Jardim de Infância da Praça da República. Naquele tempo, a Praça da República era muito diferente do que é hoje. A Escola Normal da Praça, a mesma que existia naquele tempo, ficava no centro de um grande jardim, que abrangia aquelas ruas que hoje estão ocupadas por prédios de apartamentos, de escritórios. E o Jardim de Infância ficava num desses jardins da Escola Modelo Caetano de Campos.
As minhas irmãs freqüentaram a escola, e os meus irmãos também. Depois do Jardim de Infância, fiz o primário na Caetano de Campos; e depois fui fazer o exame de admissão para o Ginásio do Estado. Naquele tempo havia 3 Ginásios do Estado em São Paulo: um na Capital, um em Campinas e outro em Ribeirão Preto. Todos eles com a melhor qualidade de ensino possível. Os professores eram selecionados por meio de concurso público. Eu ingressei no Ginásio do Estado, fiz o exame que chamavam de admissão. Era muito interessante, porque a garotada de 11, 12 anos fazia uma prova escrita e depois uma prova oral perante uma banca. Eu tive sorte, consegui entrar no Ginásio do Estado. Naquele tempo eram 5 anos de ginásio. Fiz os 5 anos. A minha formação de base foi-me dada durante o tempo em que estive no Ginásio do Estado. E naquele tempo havia o pré das universidades: pré-jurídico, pré-médico, pré-politécnico, pré-veterinário, pré-odontológico. Foi uma reforma do Capanema. Ela era interessante, porque aproximava o aluno do curso superior sem ser o curso superior. Fazia-se o exame de seleção para o pré, que tinha duração de 2 anos e já era cursado na própria faculdade onde a pessoa ia disputar uma vaga no exame de habilitação, depois desses 2 anos. Eu fiz os 2 anos do pré-jurídico, depois os 5 anos da Faculdade de Direito.
Na verdade, é engraçado como optamos por uma profissão. Hoje, o número de profissões é tão grande que a gama de escolha até atrapalha os garotos e as garotas, para se dirigirem a este ou àquele setor, não é? No meu tempo, basicamente, havia Direito, Medicina, Politécnica, Odontologia, Farmácia, Veterinária, a carreira religiosa e a carreira militar.
Eu não sei bem, buscando na minha memória, por que entrei na Faculdade de Direito. Às vezes eu me pergunto qual foi a razão. Lembro-me de um episódio: quando eu tinha 5 ou 6 anos, meu pai entrou em nossa casa com 2 pacotinhos de papel de seda, contendo 2 aneizinhos. Então, ele disse: “Esse anel com pedra vermelha é para você, porque você vai ser advogado”. O outro anel tinha pedra verde, e ele o deu para uma das minhas irmãs, dizendo que ela iria ser professora — e de fato o foi.
Eu terminei o ginásio quando começou a Segunda Guerra, em 1939. E o Brasil estava no período ditatorial de Getúlio Vargas. Francamente em período ditatorial. E a Faculdade de Direito era um centro de resistência à ditadura, um centro de resistência contra, vamos dizer assim, as idéias fascistas que estavam surgindo, a exemplo do integralismo, que poderiam conduzir o Brasil para um outro lado que não fosse o das forças democráticas que se opunham aos países totalitários.
Acho que foi por aí, quer dizer, vendo a atuação dos professores e alunos da Faculdade de Direito nessa luta contra a ditadura, que fiz essa opção.
Lembro-me de um episódio muito interessante com um aluno — nem era colega nosso, pois já estava bem mais adiantado. Refiro-me a Germinal Feijó, que teve, inclusive, atuação política depois. Ele saía da faculdade com um balde contendo piche e escreveu nas pedras da frente da faculdade, diante da polícia: “Abaixo a ditadura”.
Então, essas coisas foram me marcando, e acabei entrando na Faculdade de Direito. Fiz o pré-jurídico; depois, o curso normal da Faculdade de Direito. Casei-me antes de terminar a faculdade, porque naquele tempo obtínhamos no quarto ano a carteira de solicitador acadêmico, o que nos dava um grande espectro, do ponto de vista do exercício da profissão.
Quando entrei na Faculdade de Direito, também ingressei em um escritório de advocacia. Quando cheguei ao quarto ano da Faculdade de Direito, eu tinha uma quase autonomia econômica. E aí eu pude me casar. Casei-me no último ano da Faculdade de Direito. Mas também verifiquei que, na advocacia, no escritório de advocacia, os advogados com quem eu trabalhava eram jovens ainda. Quer dizer, até chegar no ponto em que eles já se encontravam, muitos anos iam correr. Então, pensei e optei por fazer concurso para o Ministério Público.
A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Então, o senhor não exerceu a advocacia?
O SR. HÉLIO BICUDO - Exerci durante esse tempo em que fui solicitador acadêmico e alguns meses depois que saí da faculdade.
Eu terminei a faculdade no fim de 1946 — quer dizer, sou da turma de 1946 — e colei grau em 1947. Em abril de 1947 fiz concurso para o Ministério Público, onde ingressei, e fui exercer a profissão no interior do Estado.
Naquele tempo, tanto eu como a Adélia, que é a minha mulher, pensávamos que iríamos ficar no interior de 15 a 20 anos, que era o normal. Mas isso não aconteceu, porque nós fomos para o interior e, em um determinado momento, a carreira, que estava afunilada, alargou-se, exatamente pelo rápido crescimento, em poucos anos, do Estado de São Paulo. Em vez de fazer a carreira no interior em 15 anos, eu a fiz em 6 anos.
Estive em algumas comarcas, como a de Igarapava, no norte do Estado, nas barrancas do Rio Grande, perto de Uberaba. Uberaba é a primeira cidade de Minas Gerais; depois vem Igarapava, que é a última cidade do Estado de São Paulo.
Naquele tempo, para ir daqui a Igarapava, a única possibilidade era o trem, que demorava 13 horas. Era muito longe. Para você se comunicar por telefone, era uma dificuldade, porque não havia telefone. Na época, era aquele telefone magnético — precisávamos girar a manivela e tal. Era uma complicação.
Lembro-me que, quando nasceu minha primeira filha, a Maria do Carmo, a Adélia, pela precariedade médica do interior, veio dar à luz em São Paulo. Meu pai telefonou-me e disse que eu viesse. Mas, até chegar a ligação telefônica, até eu conseguir chegar em Uberaba e tomar um avião para São Paulo... Quando eu cheguei, a Maria do Carmo já havia nascido.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O senhor falou sobre o tempo da ditadura do Getúlio. Como o senhor viu a redemocratização, com a derrubada, em 1946, daquela frente...
O SR. HÉLIO BICUDO - Pois é. Na verdade, nós participamos dessa aventura da redemocratização. Veja bem, eu estava concluindo o CPOR aqui em São Paulo. O Brigadeiro Eduardo Gomes era o candidato da UDN, contra Eurico Dutra, que era o candidato da Situação, do Getúlio e do PTB. E nós fizemos, dentro do CPOR, uma luta muito grande para ter o Eduardo Gomes como paraninfo, porque você sabe como são os militares: complicados, fechados e tal. Mas a turma impôs a candidatura do Brigadeiro Eduardo Gomes exatamente como uma homenagem à abertura democrática. Acreditávamos muito mais que ela acontecesse com ele do que com Dutra — e também aconteceu. E ele foi o nosso paraninfo. Ainda me lembro da solenidade da entrega das espadas aqui no Paulistano, em São Paulo. Ele compareceu, e foi aquela festa.
Eu me lembro de um comício no Pacaembu — comício do lenço branco. Só as arquibancadas estavam ocupadas, e o povo fora. E isso levou à derrota do Eduardo Gomes.
A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Tinha um terceiro candidato, que era o Iedo Fiúza, não é?
O SR. HÉLIO BICUDO - Exatamente. Mas esse não contou naquela ocasião.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Do PCB.
O SR. HÉLIO BICUDO - É. Mas foi uma demonstração da juventude mesmo, porque naquela ocasião a UDN representava a volta à democracia. E foi por aí que nós... As passeatas da Faculdade de Direito foram todas nesse sentido. Toda a reação... Eu assisti a toda essa repressão policial no Governo de Getúlio Vargas. A Faculdade de Direito sofreu muito com isso, porque era aqui em São Paulo, vamos dizer assim, o ponto de partida para uma reação contra a ditadura. Toda reação contra a ditadura Vargas ocorreu a partir dos esforços dos professores e estudantes da Faculdade de Direito.
A Faculdade de Direito chegou a ser invadida pela Polícia Especial de Getúlio Vargas, os boinas vermelhas. O Centro Acadêmico XI de agosto, que se localizava nos baixos da Faculdade de Direito, também foi invadido. Arrebentaram tudo, quebraram tudo, um monte de estudantes foi preso e tal. Quer dizer, foi uma época difícil.
O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - O senhor chegou a se filiar à UDN? O senhor era simpatizante... A UDN foi o primeiro partido com cujas teses o senhor concordou? Como foi essa sua relação com o partido?
O SR. HÉLIO BICUDO - Sim. Eu não tive propriamente relação com partido político, até o momento em que me filiei ao PT. Muitos amigos meus que estavam na UDN, depois, passaram para o PDC, Partido Democrata Cristão: o Montoro, que é nosso filho, e tantos outros; o Luiz... (ininteligível) e uma quantidade grande de companheiros; o Arruda Sampaio — o pai, depois o filho, que é o Plínio Arruda Sampaio. Mas eu nunca participei de um partido político, porque nessa ocasião não havia necessidade, para participar politicamente, de se filiar a um partido político. Tanto é que as candidaturas... Cito, por exemplo, a candidatura do Carvalho Pinto ao Governo de São Paulo. Ele não pertencia a partido nenhum. Foi apoiado pelo Jânio Quadros e pelo Partido Democrata Cristão, onde ele tinha muitos amigos: o Queiroz, o velho Arruda Sampaio, o Plínio etc. Mas ele não era filiado a nenhum partido. Eu também não me filiei a nenhum partido, embora, na ocasião, fosse simpatizante da UDN. Depois, eu tinha muitos amigos também no PDC. Mas nunca me filiei realmente a um partido político.
Voltando de Igarapava, fui para Franca, onde fiquei por 2 anos; depois, fui para Jaboticabal, onde fiquei quase 1 ano; depois, fui para Araçatuba, no outro extremo do Estado, onde fiquei cerca de 1 ano; depois, vim para Sorocaba; de Sorocaba, vim para São Paulo.
Em São Paulo, logo de início, puseram-me em uns processos que, talvez, tenham sido importante do ponto de vista da minha carreira no Ministério Público, mas já foi um desgaste muito grande: os processos contra Ademar de Barros. Fui eu que intervi nos inquéritos que, depois, deram causa às ações penais contra Ademar de Barros. Atuei nos inquéritos dos caminhões da Força Pública, dos chevrolets da Força Pública; depois no da urna marajoara; depois no dos ferry boats do Guarujá. Por exemplo, na acusação formal do Ministério Público de São Paulo contra Ademar de Barros, perante o Tribunal de Justiça, a acusação foi levada a efeito, naquela ocasião, pelo Procurador-Geral da Justiça, Mário de Moura Albuquerque. Eu era o assessor imediato dele. Então, na sessão de julgamento, eu figurei ao lado do Mário Moura. E foi a única condenação que o Ademar de Barros sofreu aqui em São Paulo, porque ele recebeu uma propina de trezentos e poucos cruzeiros — a moeda daquele tempo — do Serviço de Fundos da Força Pública, para a compra de caminhões. E esse dinheiro — não sei como acontece uma coisa dessas — foi depositado na conta do Ademar de Barros. O cheque era do Serviço de Fundos da Força Pública. Quer dizer, provadíssimo. Ele foi condenado por peculato em São Paulo e depois foi absolvido. Ou melhor, esse processo foi anulado no Supremo Tribunal Federal por uma questão de interpretação processual. Quer dizer, os processos estão aí para quem quiser ver. Está inteiramente provado o peculato praticado por Ademar de Barros. Tanto é que, depois de condenado, ele fugiu para a Bolívia. Depois, com o habeas corpus obtido no Supremo Tribunal Federal — fala-se muito mal desse episódio do habeas corpus que o absolveu, que anulou o processo aqui em São Paulo —, ele voltou e nada mais aconteceu com ele.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O senhor assessorou o Jânio Quadros ou só o Carvalho Pinto?
O SR. HÉLIO BICUDO - Só o Carvalho Pinto.
Você sabe que essa questão com o Jânio, por exemplo... Eu nunca acreditei no Jânio. Nunca. Sempre achei o Jânio um carreirista político. Lembro-me de que, quando o Carvalho Pinto me convidou para participar da equipe de governo dele, eu disse: “Olha, o senhor foi eleito com o apoio do Jânio. E eu não sou janista. Tenho restrições políticas com relação à atuação dele. De modo que, se o senhor achar que eu posso participar da sua equipe com o que eu lhe estou dizendo, tudo bem. Se não achar, estamos conversados”. Ele disse: "Não, não. Você vai aqui apenas me ajudar na parte administrativa". Como se fosse possível fazer parte de um governo e não participar dele politicamente, o que depois se evidenciou.
Quando Jânio foi candidato a Presidente da República, eu não votei nele. E o meu pai me perguntou por que eu não votaria nele. Disse-me que eu tinha que votar no Jânio. Eu lhe disse que não votaria por vários motivos.
Depois da eleição do Jânio... Naquela ocasião, eu chefiava a Casa Civil do Carvalho Pinto. Mas eu não fiz campanha. O Carvalho Pinto fez campanha para o Jânio, mas eu não. Eu acompanhei o Carvalho Pinto, mas nunca me manifestei a favor ou contra externamente, embora, depois de eleito, o Jânio tenha andado querendo pegar umas cabeças do Governo de São Paulo, inclusive a minha.
E eu até escrevi uma carta para o Carvalho Pinto, dizendo que não queria criar nenhuma dificuldade relativamente a ele e ao Governo Federal — porque o Jânio estava pressionando o Carvalho Pinto — e que, se isso custasse a minha saída do Governo, para mim não teria a menor importância. E o Carvalho Pinto... Eu me lembro até de uma carta manuscrita. Dizia eu nessa carta que eu não acreditava no Jânio; que eu achava que ele poderia levar o Brasil a uma ditadura tipo nasserista; e que, então, eu punha o meu cargo à disposição. O Carvalho Pinto não tomou conhecimento. Alguns dias eu o encontrei e falei com ele, que me respondeu: "Não, deixa estar. Esquece isso. Para mim, não tem sentido nenhum".
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O senhor, depois, acompanhou‑o ao Ministério da Fazenda, quando ele foi nomeado pelo João Goulart.
O SR. HÉLIO BICUDO - Exatamente.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Como o senhor viu aquele episódio de João Goulart? O Jânio Quadros renunciou, e todo mundo sabe que era uma tentativa de golpe de estado.
O SR. HÉLIO BICUDO - Exatamente, exatamente, exatamente.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Quer dizer, ele não queria nem se comprometer com os militares, porque ele achava que o povo o recolocaria no poder e ele fecharia o Congresso.
O SR. HÉLIO BICUDO - Exatamente. É.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Como o senhor interpretou todos esses episódios: a renúncia do Jânio; depois, a posse do João Goulart; e as turbulências que o Brasil viveu num governo fraco, que era o Governo do Jango?
O SR. HÉLIO BICUDO - Olha, com relação à renúncia do Jânio, você sabe que ele renunciou com pouco mais de 6 meses de governo. Foi em 25 de agosto de 1961. Quando o Jânio renunciou, eu estava no meu gabinete, e quem me deu a notícia foi o velho Sebastião Camargo, que era o dono da Camargo Corrêa. Ele me telefonou e perguntou: "Você sabe o que está havendo?" "Não." "O Jânio acabou de renunciar." "Não diga!"
Aí eu desci. Naquele tempo, o palácio do Governo era nos Campos Elísios. Havia o edifício da administração do Governo e a residência, que é o palácio mesmo, que foi o palácio do Chaves, que o construiu. Aliás, era e ainda é muito bonito. Eu desci, e Carvalho Pinto estava recebendo o Castro Neves, que era o Ministro do Trabalho, e, se não me falha a memória, o Governador de Minas Gerais naquele tempo...
O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Magalhães Pinto.
O SR. HÉLIO BICUDO - Magalhães Pinto. O Carvalho Pinto já sabia da renúncia e estava telefonando para o Ministro da Justiça, que era o...
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Oscar Pedroso Horta.
O SR. HÉLIO BICUDO - Oscar Pedroso Horta. Estava pedindo a ele que segurasse a renúncia. Ele disse: "Não é a primeira, não é a segunda, não vai ser a última. Vamos segurar mais essa". Mas o Pedroso Horta não quis segurar. Ele disse: "Não. Eu estou cumprindo uma determinação do meu Presidente e vou entregar o pedido de renúncia à Câmara Federal".
Aí é que mostra bem que não era uma renúncia; era uma coisa trabalhada no sentido de se eliminar o Parlamento, porque, na medida em que se lê a renúncia e ela é concedida, se a pessoa volta e fecha o Parlamento, a conseqüência é um governo unitário. Eu acho que por aí ficou clara a intenção do Jânio de voltar, que depois se confirmou num episódio do qual daqui a pouco eu falo e que ocorreu durante essa turbulência do reconhecimento do Jango como Vice-Presidente e como Presidente eleito, na falta do Presidente.
O Carvalho Pinto, nessa ocasião, disse assim: "Bom, vamos então até Cumbica ver o que está acontecendo. Você vai comigo".
Eu fui com ele.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - É verdade que o Jânio agrediu o Carvalho Pinto?
O SR. HÉLIO BICUDO - Pois é. Eu sou a única testemunha viva de um episódio que não houve.
Quando nós íamos chegando a Cumbica, a rádio já estava comunicando que havia sido lida a renúncia pelo Presidente do Congresso, que era o Auro Soares de Moura Andrade, que correu para ler, para consumar.
Eu disse para o Carvalho Pinto: "O senhor tem interesse ainda de ir até o Jânio? Já está consumada. Não há mais nada a fazer. Ele não vai mais poder reconsiderar a renúncia. Já está lida, já está consumada". Ele disse: "Já estamos aqui. Vamos até lá".
Chegamos a Cumbica, à Base Aérea, e fomos à casa do Coronel Faria Lima, irmão do Brigadeiro Faria Lima, que, naquela ocasião, era Presidente do BNDE. O Coronel recebeu o Carvalho Pinto na porta, nós entramos numa sala na casa do Faria Lima, que era o Comandante, e daqui a pouco chegou o Jânio. D. Eloá veio logo em seguida, com o rádio de pilhas na mão, comunicando a leitura da renúncia.
Olha, a conversa entre o Carvalho Pinto e o Jânio não deve ter demorado mais do que 10 minutos, de pé os dois. Eles ficaram no fundo da sala, eu fiquei no início dela. Entrei e fiquei parado. Eles ficaram no fundo da sala. D. Eloá chegou, e conversaram. Não houve absolutamente nenhum gesto agressivo por parte do Jânio, porque nem teria cabimento.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - E qual foi o diálogo?
O SR. HÉLIO BICUDO - Depois o Carvalho Pinto me disse que perguntou ao Jânio: "Mas por que a renúncia?" O Jânio disse: "Não. O País, da maneira como está estruturado, é ingovernável. Eu saio e volto para a vida privada". O que ele realmente não fez.
Esse foi o episódio da renúncia do Jânio.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) Não houve agressão?
O SR. HÉLIO BICUDO - Não houve agressão. Por que há essa versão da agressão? Porque aconteceu o seguinte: uns 2 ou 3 dias antes da renúncia do Jânio, o Carvalho Pinto estava recebendo um grupo de sindicalistas — naquele tempo, eram pelegos, nem sei que sindicalistas eram — no gabinete dele.
Antes de receber essas pessoas, ele tinha despachado alguns processos. E o Carvalho Pinto tinha uma maneira peculiar de despachar: ele ia despachando e ia jogando os processos no chão. E, quando ele se levantou para cumprimentar os sindicalistas e se despedir deles, ele tropeçou no processo e bateu com a costela na quina da mesa. E fraturou a costela.
Isso não circulou, a não ser depois da renúncia. Porque ele teve que se recolher, teve que ir para a cama, teve que ser enfaixado. Aí todo mundo ficou sabendo, e se atribuiu isso a uma agressão do Jânio, que absolutamente não ocorreu.
Sabe de um fato importante dessa ocasião, do qual eu participei? O Carvalho Pinto, em seguida à volta de Cumbica, foi para a cama — estava acamado, por causa da fratura. Estávamos ele; o Portugal Gouvea, que reassumiu a Casa Civil naquela ocasião; o Virgílio Lopes da Silva, que era o Secretário de Segurança; um Deputado que era muito amigo deles — eu agora não me lembro do nome dele; e eu. Então, eu apontei a necessidade de o Governador fazer uma nota para os jornais a respeito da renúncia do Jânio, dizendo qual era a sua posição em relação àquela questão do Jango, à renúncia e tal. Ele disse: "Então, você redige".
Então, eu fui lá, rabisquei meia página e voltei. Aí começamos a discutir: "Não, isso não pode. Isso põe. Tira isso, tira aquilo". E havia uma frase que eu havia colocado, que era a seguinte: "O Governo do Estado respeita e quer que sejam respeitados o espírito e a letra da Constituição no que diz respeito à renúncia do Jânio". Então, quando foram cortar essa frase, eu disse: "Então, pode pegar esse comunicado e jogar no lixo, porque a única coisa que é importante nesse comunicado é essa frase que fala da manutenção da Constituição, no seu espírito e na sua letra".
E no dia seguinte... Vocês são jornalistas e sabem como são os jornalistas. Eles pinçaram essa frase e puseram na manchete. E eu me lembro que o Portugal Gouvea veio me interpelar: "Escuta, como é que essa frase passa? Isso é uma loucura!" "Ô, Portugal, é a única frase importante desse comunicado. O resto pode jogar fora". Os jornalistas, é lógico, têm esse sentimento e a colocaram na manchete.
Nesse episódio, eu fui com o Carvalho Pinto e com o Queiroz Filho ao Rio de Janeiro para uma reunião no Ministério da Guerra. O Ministro... Como era o nome dele?
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Odílio Denis.
O SR. HÉLIO BICUDO - Odílio Denis. Nós estávamos todos lá — eu estava presente, embora não... Havia alguns Governadores, e se discutia o que se faria com a questão da renúncia do Jânio e a questão do Jango, porque os militares não queriam o Jango para Presidente. Estavam conversando para ver se encontravam uma solução de compromisso, para não ter um problema maior — mas já estava tendo, porque o Brizola já estava “metendo a boca” lá no Rio Grande do Sul.
Nessa ocasião, o Faria Lima ligou para o Odílio Denis e disse — isso, depois, o Odílio Denis contou, e eu o ouvi dizer isso: "Olha, a única maneira de sanarmos essa crise é mandarmos um navio da esquadra buscar o Jânio no meio do oceano e trazê-lo de volta". Trazendo de volta o Jânio, o Congresso desaparecia, e então... O Odílio Denis pegou o telefone e “pá”, bateu! Não quis saber de história. Essa conversa não entra. Porque os militares se sentiam traídos pelo Jânio.
E aí as conversações foram, e tal, e se chegou a essa solução, que eu acho que foi de compromisso, de se implantar o parlamentarismo e o Jango ser o Presidente, dentro do regime parlamentar.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Dr. Bicudo, para haver esse rumor, no meio político, de que o Jânio agrediu o Carvalho Pinto, houve pelo menos uma conversa ríspida entre ele e o Carvalho Pinto, não houve, não?
O SR. HÉLIO BICUDO - Não houve. Não houve. Eu não senti isso, e depois eu perguntei ao Carvalho Pinto, e ele me disse apenas isso: "Olha, ele acha que o Brasil é ingovernável, e, sendo ingovernável, ele não vai manter‑se como Presidente da República, porque ele não vai poder governar o País". E os gestos... A D. Eloá estava presente. Por mais que o Jânio... O Jânio não era agressivo, assim, fisicamente. Nunca foi. Nunca vi o Jânio tomar uma atitude agressiva. Ele gritava, falava e tal. E nem isso eu ouvi, e a sala não era muito grande. Eu fiquei praticamente perto da porta, e o Carvalho Pinto e o Jânio foram para a janela, do outro lado. Conversaram ali, em pé.
Eu sinto que não houve. Absolutamente. Eu acho que foi por causa da questão da fratura no encontro com os chamados sindicalistas daquele tempo, em que ele realmente caiu e bateu com o tórax na ponta da mesa, e pelo fato de ele ter que se resguardar um pouco. Isso aí, então, surgiu como se fosse uma agressão, que absolutamente não aconteceu.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - E como o senhor viu essa turbulência toda no tempo do Jango?
A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - O senhor ficou com o Carvalho Pinto o tempo todo?
O SR. HÉLIO BICUDO - Fiquei com ele o tempo todo.
O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Eu só queria fazer uma intervenção, a título de continuidade. Eu queria que o senhor nos dissesse como o senhor conheceu o Carvalho Pinto e como aconteceu esse convite para que o senhor fosse trabalhar com ele. Como foi esse contato que o senhor fez e como...
O SR. HÉLIO BICUDO - Eu explico. É fácil de explicar. Eu não conhecia o Carvalho Pinto antes da eleição dele. Votei nele. Eu tinha alguns amigos. Por exemplo, o Prof. Beraldo Filho era muito amigo meu e era muito ligado ao Carvalho Pinto, e acho que foi o Queiroz Filho que me empurrou nessas questões, nos inquéritos contra o Adhemar de Barros. Ele me conhecia e achava que eu podia fazer, e realmente foi ele que me empurrou nesse... Porque era um abacaxi naquele tempo. Ele foi Secretário de Educação do Jânio... Não, ele foi Secretário de Justiça do Jânio, no final do Jânio...
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Da Fazenda, não é?
O SR. HÉLIO BICUDO - Não, o Queiroz Filho não. O Carvalho Pinto foi Secretário da Fazenda do Jânio, e o Queiroz foi Secretário de Justiça do Jânio. Eu me lembro porque no tempo em que o Queiroz Filho foi Secretário de Justiça, ele me chamou para trabalhar com ele na Secretaria de Justiça do Estado. Então, eu não tinha relação direta com o Carvalho Pinto, mas muitos amigos meus eram ligados, muito ligados ao Carvalho Pinto. Eu acho que foi recomendação do Queiroz o fato de o Carvalho Pinto ter‑me chamado para participar do Governo dele, do qual eu participei durante todo o tempo, e, depois, nós estivemos juntos no episódio da renúncia do Jânio. Depois, quando o Carvalho Pinto saiu do Governo, o Jango...
A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Ele saiu quando?
O SR. HÉLIO BICUDO - Ele saiu em 1961, no final de 1961. Ou de 1959, 1960, 1961. No final de 1962, no final de 1962. É, no final de 1962, ele deixou o Governo, porque ele perdeu a eleição para o Adhemar de Barros, e o candidato dele, que era o Coutinho Nogueira, não foi eleito...
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O Bonifácio...
O SR. HÉLIO BICUDO - Bonifácio Coutinho Nogueira. Ele não foi eleito. Foi eleito o Adhemar de Barros, e aí o Carvalho Pinto ficou fora algum tempo, e, em maio, mais ou menos em maio, ele recebeu o convite do Jango para ser o Ministro da Fazenda
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) – ele foi senador?
O SR. HÉLIO BICUDO - Depois.
A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - O senhor foi junto com ele?
O SR. HÉLIO BICUDO - Fui. Aí ele me chamou primeiro. Ele queria ser convencido a ser Ministro. Então, eu e mais algumas pessoas que trabalharam durante o Governo dele, o Diogo Gaspar, mais alguns outros, conversamos com ele. Achávamos que ele devia assumir, que era um desafio o Ministério da Fazenda. O antecessor... Como era o nome dele? San Tiago Dantas. O San Tiago Dantas foi o antecessor que entregou a Pasta para o Carvalho Pinto, e eu me lembro de que nós fomos para Brasília num DC-3, um avião horrível, militar. O Jango fez o convite, e o Carvalho Pinto aceitou. E aí ele me convidou para ser o Chefe de Gabinete dele —naquele tempo, Chefe de Gabinete equivalia a Secretário‑Geral do Ministério.
A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - O senhor chegou a assumir a Pasta...
O SR. HÉLIO BICUDO - Cheguei. Quando o Carvalho Pinto foi para os Estados Unidos numa dessas entrevistas com o FMI, com o Banco Mundial... Foi mais ou menos no mês de setembro de 1963 que eu assumi o Ministério da Fazenda.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - E como é que o senhor analisa...
A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - No auge da turbulência.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Como é que o senhor analisa tudo aquilo? O senhor acha que houve razão para o golpe de 1964? Que o Jango, aquela divisão interna do País...
O SR. HÉLIO BICUDO - Olha, eu... Aquilo... Sabe que o Jango... Eu acho que ele não era um homem que realmente queria assumir o Governo. Ele nunca quis assumir o Governo. Ele sempre... Essa questão, por exemplo, do golpe... Hoje o Elio Gaspari dá uma versão que não me parecia a versão de quem estava, vamos dizer assim — naquela ocasião já estava fora do Governo —, a versão da falta de preparação do golpe. Quer dizer, o golpe aconteceu...
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Mas houve uma preparação...
O SR. HÉLIO BICUDO - Houve, mas no momento ele aconteceu. Aconteceu pela incapacidade do Governo. Eu me lembro de que uma vez, quando o Carvalho Pinto estava fora, houve uma reunião no Ministério. Eu fui convocado para essa reunião e me lembro de que o Jango perguntou ao Jair, que era o Ministro da Guerra...
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Jair Dantas Ribeiro.
O SR. HÉLIO BICUDO - ... Dantas Ribeiro, Jair Dantas Ribeiro “Como é que está o Castelo?” - porque o Castello era o Chefe do Estado‑Maior do Exército. Ele disse: “Ah! O Castelo não comanda nem ordenança”. Foi a resposta. Porque, naquela ocasião, o Carlos Lacerda estava atacando muito fortemente o Governo, e havia pelo menos a intenção de se declarar o estado de sítio, e era esse o tom dessa reunião do Ministério. Aí, começaram a pedir a opinião dos vários Ministros. Pediram a minha. Eu disse: “Olha, eu acho que isso vai agravar, de uma maneira que nem se pode imaginar, a inflação. Não sei se nós temos dinheiro físico para acudir a essa demanda”. Aí, conversou-se e tal. “Bom, vamos deixar para uma segunda discussão o estado de sítio.”
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - A esquerda foi contra.
O SR. HÉLIO BICUDO - Depois, depois. Aconteceu o seguinte: eu estava no apartamento do Carvalho Pinto, que estava em Washington. Às 5h da manhã me aparece um capitão do Exército que fazia parte do Gabinete do Ministro da Fazenda e me disse: “Olha, doutor, aconteceu que vão pedir o estado de sítio. O Jango vai pedir o estado de sítio”. Resolveram fazer, fizeram uma nova reunião do Ministério. Não me convocaram (risos), eu acho que bem a propósito. Aí, eu telefonei para o Carvalho Pinto, em Washington. E disse: “Olha, professor, o senhor ainda tem alguma coisa aí importante?” Ele disse: “Não, só tem umas reuniões que não são mais reuniões de trabalho, são reuniões mais sociais”. Eu disse: “Então, o senhor venha embora, porque está acontecendo isso aqui. Quem sabe o senhor segura isso aqui”. E ele veio. No dia seguinte o Carvalho Pinto estava aqui e ele foi falar com o Jango. O Jango disse: “Não, isso é um problema dos militares. Os militares é que querem”, porque o Jango já tinha pedido o estado de sítio. O Carvalho Pinto foi falar com os militares, e eu fui junto. Olha, dava até pena. Os 3 Ministros: “Não...” Encolhidos. Porque o Carvalho Pinto dizia: “Isso é um desastre. Precisa retirar esse pedido”. E que a esquerda toda estava contra também, porque a esquerda temia que fosse uma coisa que derivasse numa situação de, vamos dizer assim, confronto. Acho que no momento a esquerda não queria isso.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Não. Eles tinham medo também que atingisse o Arraes, em Pernambuco.
O SR. HÉLIO BICUDO - Exatamente, que era uma figura que estava marcada. Bom, aí, retirou-se o pedido. Acho que foi retirado, não é? Foi retirado ou perdeu?
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Retirou, sim.
O SR. HÉLIO BICUDO - Retirou, porque, senão, ia perder. Acho que retirou o pedido, E aí as coisas começaram a se deteriorar também: negócio das ligas camponesas; depois, os militares; o comício da Central do Brasil; o problema dos sargentos lá em Brasília...
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Automóvel Clube.
O SR. HÉLIO BICUDO - Uma série de coisas. E o Carvalho Pinto estava achando que havia um movimento para tirá-lo, inclusive o Brizola. Estavam querendo tirar o Carvalho Pinto porque eles achavam o Carvalho Pinto um conservador, que não podia continuar no Ministério. Até falava-se na divisão do Ministério. Então, o Carvalho Pinto... Isso foi em dezembro. Havia uma inauguração, eu me lembro, de um alto-forno aqui da COSIPA, a que o Presidente ia estar presente. O Jango ia estar presente. O Carvalho Pinto foi convidado, ele era daqui, de São Paulo. Então, ele me disse: “Olha, você me prepara uma carta saindo do Ministério, porque se o Presidente não me der uma satisfação pública desautorizando esses boatos de divisão, de saída, eu não permaneço mais no Ministério. Você faz a carta; quando eu voltar, eu volto hoje mesmo, a gente vê qual é o encaminhamento”. Eu peguei e fiz a carta não pedindo exoneração, mas saindo. Uma carta solicitando... Uma carta dizendo que saía. O Carvalho Pinto chegou e disse: “Olha, vamos embora, não vamos ficar”. Isso foi no dia 19 de dezembro. Aí: “Então, você leva a carta. O Presidente está lá, em Laranjeiras. Você leva a carta a ele, ao Presidente”. Então, fui lá. Quem me recebeu foi o Darcy Ribeiro. Eu conhecia o Darcy de longa data
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - 19 de dezembro de que ano?
A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - 63, não é?
O SR. HÉLIO BICUDO - 63.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Aí, foi o San Tiago Dantas que veio, não é?
O SR. HÉLIO BICUDO - Não, não. O San Tiago Dantas saiu antes.
A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - É. Foi no ano anterior.
O SR. HÉLIO BICUDO - É. Depois foi um Presidente do Banco do Brasil, não me lembro o nome dele, ligado ao Jango. Foi uma coisa assim, depois deteriorou.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Nei.
O SR. HÉLIO BICUDO - Nei Galvão.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Nei Galvão.
O SR. HÉLIO BICUDO - Isso mesmo.
A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Ficou até o golpe.
O SR. HÉLIO BICUDO - Acho que ficou até o golpe. Bom, aí eu fui levar a carta. Então, eu me encontrei com o Darcy. E o Darcy: “Olha, o Presidente não está, não sei o quê...” Eu disse: “Bom, então eu espero, porque eu estou com essa carta aqui.” . E ele: “Ah, mas o Presidente não vai tomar nem conhecimento disso.” – “Mas não é que ele não vai tomar conhecimento, ele tem que tomar conhecimento disso.” E, daqui a pouco, chegou um bedel, um contínuo, e disse: “Olha, professor, o Presidente está chamando senhor.” E eu disse: “Então, ele já chegou. Você me leva lá, porque eu tenho que entregar esta carta”. (Risos.) Aí ele me levou, eu entreguei a carta ao Presidente, e mais nada. Não comentei, nem o Presidente fez qualquer comentário.
Aí o Presidente disse ao Darcy: “Darcy, vai ao Ministério, vê se você segura o professor”. O Darcy foi até comigo ao Ministério, e, na minha volta, eu disse: ”Olha, é bobagem você querer segurar, porque a carta não é pedido de demissão. E eu acho que, neste momento, o Carvalho Pinto já reuniu a imprensa e já comunicou que ele saiu do Ministério”. E foi o que realmente aconteceu. Quando nós chegamos no Ministério, o Carvalho Pinto já tinha falado para os jornalistas, e o professor ficou sem ter o que falar. (Risos.) “É uma pena que você vai sair e tal.”
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - E como é que o senhor avalia o golpe de 64?
O SR. HÉLIO BICUDO - Bom, isso foi... Foi uma... Eu não... Como é que se diz... Avalio que foi um retrocesso. O retrocesso foi um golpe da direita, golpe inclusive com a participação, embora o Embaixador... Como era o nome dele?
O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Lincoln Gordon.
O SR. HÉLIO BICUDO - ... Lincoln Gordon diga o contrário, foi um golpe que os Estados Unidos apoiaram, como apoiaram os outros golpes na América Latina. Uma das coisas interessantes é que o Jango tinha condições de segurar o golpe, eu acho que tinha condições. O 1º Exército, por exemplo, que era a Vila Militar, estava com ele. Mas ninguém acionou a Vila Militar para segurar o pessoal que vinha de Minas, que não era de nada. Quer dizer, era só segurar, e pronto. Eu acho que ele não queria assumir a Presidência da República, e depois ele atuou, eu acho, sem vontade política de ser realmente o Presidente da República. Eu acho que ele deixou acontecer.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Mas que houve uma preparação...
O SR. HÉLIO BICUDO - Ah, bom. Eu acho, sem dúvida, que houve. Eu acho que mesmo o Castello... a conspiração estava na cara de todo mundo. (Risos.)
O SR. ENTREVISTADOR ( Ivan Santos) - Dr. Bicudo, e a partir do golpe, o senhor foi para a iniciativa privada?
O SR. HÉLIO BICUDO - Não, eu voltei para o Ministério Público. Eu voltei para o Ministério Público, e aí me puseram... Sempre me deram bons “abacaxis” no Ministério Público, que foi a questão do Esquadrão da Morte, as investigação sobre as atividades do Esquadrão da Morte aqui em São Paulo. E, veja bem, esse pessoal atuou até um certo momento. E depois, por volta de 64, 65, ou 66, por aí afora... Não, a partir de 70. O Esquadrão da Morte funcionou 66, 67, 68, 69. Esse pessoal que atuou no Esquadrão da Morte passou a atuar na repressão política. Então, eles se tornaram realmente intocáveis. Eu me lembro que uma vez, quando eu estava fazendo essas investigações do Esquadrão da Morte, eu fui chamado pelo Coronel Faustini, que era do SNI aqui de São Paulo, porque eu tinha conseguido a prisão preventiva do Fleury, que era o homem símbolo da repressão política. E aí o Coronel me chamou: “Mas como é que o senhor está fazendo isso? Esse é o nosso homem símbolo e tal.” Eu disse: “Ué, mas como é que vocês vão escolher o seu homem símbolo um bandido da pior espécie?”, que era o Delegado Fleury. “Como é que vocês escolhem isso? O problema é de vocês, não é meu. Eu estou cumprindo as minhas funções eu vou continuar cumprindo.” Mas ele ficou pouco tempo preso, porque veio a chamada Lei Fleury, que permitia que os réus primários — e ele não era nem um réu primário, porque tinha pelo menos 16 processos nas costas — permanecessem soltos. Aí ele foi solto e continuou as atividades dele.
A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Só assim mais para esclarecer. O Esquadrão da Morte, eles começaram matando bandidos, não é?
O SR. HÉLIO BICUDO - Bandidos, é.
A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - E depois passaram a atuar na repressão política.
O SR. HÉLIO BICUDO - Na repressão política.
A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - O senhor começou a investigar dentro de uma comissão legal...
O SR. HÉLIO BICUDO - Não, não. Eu fui designado pelo Procurador-Geral da Justiça para fazer as investigações. Quer dizer, era uma coisa pessoal. Eu tinha o concurso de 2 promotores públicos. Um era o Dirceu de Mello, que foi Presidente do Tribunal de Justiça depois, muito tempo depois, e hoje é o Diretor da Faculdade de Direito da PUC; e um outro cujo nome agora eu não recordo. Eles me auxiliaram nas investigações. Porque você, como membro do Ministério Público, tem um poder que as pessoas às vezes não realizam o que seja esse poder. Você pode entrar em qualquer repartição, você pode requisitar o documento que quiser requisitar que não pode ser negado. Então, eu usei dessa força que tem o Ministério Público. Eu consegui fazer, se não me falha a memória, 16 processos. Na maioria deles o Fleury figura como o chefe do esquadrão, ele que comandava o esquadrão.
A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Mas isso foi conhecido a partir da sua investigação?
O SR. HÉLIO BICUDO - É, pois é, porque estava acontecendo negócio de morto aparecer com cartaz com crânio e 2 fêmures, esquadrão da morte e tal, e eu fiz uma representação ao Procurador-Geral, dizendo: escuta, isso precisa ser apurado; o que está acontecendo aqui em São Paulo que não se apura? Então, eu acho que foi até uma represália: “Então, você vai apurar”. Porque eu não estava pedindo para que eu apurasse. Acabei assumindo essas investigações e fiquei 1 ano fazendo esse tipo de investigação.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Agora, o curioso é que esse Esquadrão da Morte não era só em São Paulo, não.
O SR. HÉLIO BICUDO - Não, não.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O Rio de Janeiro tinha..
O SR. HÉLIO BICUDO - Tinha a Escuderia Le Cocq no Rio de Janeiro e no Espírito do Santo, a mesma coisa. Aqui, em São Paulo, nós desarticulamos o esquadrão, porque conseguimos processar os policiais que faziam parte dessa equipe e o próprio Fleury.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O que aconteceu com o Fleury? Ele foi assassinado?
O SR. HÉLIO BICUDO - Olha, eu acho que foi queima de arquivo.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O próprio regime militar eliminou o Fleury?
O SR. HÉLIO BICUDO - É, eliminou o Fleury.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Porque quando ele mergulhou, ele deve ter sido assassinado embaixo d’água.
O SR. HÉLIO BICUDO - Ou antes... Ou mergulhou já morto.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda)- Com veneno...
O SR. HÉLIO BICUDO - É... Ou um tiro de longe.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Não foi feito corpo de delito?
O SR. HÉLIO BICUDO - Não foi.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O caixão foi aberto?
O SR. HÉLIO BICUDO - Não foi. O cadáver dele foi entregue à família num caixão fechado.
O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Eu só queria fazer uma sugestão: que a gente deixasse ele completar.
A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Quanto a esse episódio do Fleury, não é?
O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Está certo? Porque senão fica muito picadinho.
O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Da investigação. O senhor estava falando que ficou 1 ano...
A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Teve indícios de...
O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - ...investigando.
O SR. HÉLIO BICUDO - Não. Eu consegui provas. Você sabe que houve uma execução de um marginal que chamavam de Nego Sete aqui, em Guarulhos, que um padre canadense, que estava dentro da igreja na praça que serviu de palco para atividades do esquadrão, e ele fotografou as pessoas. Então, tem o Fleury, tem o Fininho, tem o Campão, todos eles estavam ali e ele fotografou, e eles eliminaram esse marginal naquela ocasião. Esse foi um dos processos, mas tem outros processos em que as provas são claras contra o Fleury, tanto que ele foi pronunciado em muitos processos. Ele não foi a júri porque ele morreu antes ou foi morto antes do júri. Ele não foi a júri por isso. E quando esses processos se completaram, ele já não estava mais nas graças do poder, porque já estava naquela fase da distensão. Ele voltou para a Polícia de São Paulo e aqui começou a dar um pouco com a língua nos dentes, exibiu uma fortuna que ele não podia exibir. Ele tinha uma lancha de alto mar, tinha carro, tinha casa no Guarujá, casa aqui em São Paulo. Ele bebia, começou a falar alguma coisa que talvez fosse inconveniente para o sistema e aí desapareceu. Eu acho o seguinte: por que entregaram à família o corpo num caixão fechado? Não foi submetido a exame de corpo de delito, nada, nada. Então, quer dizer, a presunção é de que houve realmente uma queima de arquivo, porque ele sabia de muita coisa, de muitas pessoas que intervieram na repressão, que participaram da repressão .
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O senhor tem conhecimento de como se montou essa máquina terrível de tortura, de assassinato durante o regime militar?
O SR. HÉLIO BICUDO - Olha, aqui, em São Paulo, quem comandou a montagem dessa máquina foi o Abreu Sodré, que era o Governador de São Paulo, ele e o Secretário de Segurança, que era o Hely Lopes Meirelles. Eles é que ajudaram a montar a Operação Bandeirantes, com dinheiro de empresários.
A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Vamos voltar à Operação Bandeirantes, mas eu só queria concluir essa questão do Esquadrão da Morte. O senhor sofreu ameaças...
O SR. HÉLIO BICUDO - Sim, sim.
A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - ...a partir dessas investigações?
O SR. HÉLIO BICUDO - Sim, sim.
A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Porque eu imagino que o senhor estava...
O SR. HÉLIO BICUDO - Sim, sim, telefones, ameaças que vinham por intermédio de amigos, você compreendeu ? “Olha, toma cuidado, você está se expondo.” Isso é um tipo de ameaça que você faz circular. E aqui em casa, telefonema para minhas filhas, meus filhos, minha mulher: “Olha, vai acontecer isso, vai acontecer aquilo e tal”. E isso sem dúvida nenhuma. Agora, esse tipo de ameaça aconteceu com muito mais força depois que eu fui exonerado das investigações, que eu fiquei 1 ano. Como eu estava apurando apenas, vamos dizer assim, os executores, eu comecei a mexer nos autores intelectuais, e ia bater no Governador do Estado. E, nessa ocasião, eles resolveram me tirar das investigações.
A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - E o senhor escreveu um livro...
O SR. HÉLIO BICUDO - Está aí atrás de você. É um preto aí atrás de você.
A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - E esse livro aqui foi censurado?
O SR. HÉLIO BICUDO - Não, não foi censurado. Esse livro... Houve uma tentativa de apreensão, porque eu tentei editar esse livro, percorri várias editoras, inclusive a Vozes, porque o Dom Paulo disse assim: “Olha, procure a Vozes”. E, num belo dia, o Diretor da Vozes, que era o Frei Ludovico, me procurou aqui em São Paulo, ali perto da Faculdade de Direito, não lembro muito o nome daquela rua, onde a Vozes tinha uma loja, e me disse: “Olha, seu livro foi aprovado pelo Conselho Editorial da Vozes, mas nós somos uma empresa comercial e, como empresa comercial, nós só vamos publicar seu livro se o senhor concordar em submetê-lo à Polícia Federal”. Eu disse: “Bom, então, o senhor me dá de volta os originais, porque se eu for submetê-lo não vou publicar nunca esse livro”. (Risos.) Aí ele me devolveu.
Eu trabalhava no Estado de S. Paulo nessa ocasião também — eu trabalhei 27 anos no Estadão. E o Júlio Neto era muito meu amigo, colega de turma. Eu falei com o Júlio, que me disse: “Procura o Carlos Lacerda”, editora do... Como é que chama?
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Nova Fronteira.
O SR. HÉLIO BICUDO - Nova Fronteira. “Procura o Carlos Lacerda.” E ele marcou uma entrevista com o Carlos Lacerda. E eu estive com o Carlos Lacerda aqui no antigo Hotel Jaraguá, que ficava ao lado do Estado de S. Paulo. O Estado de S. Paulo funcionava no mesmo edifício. Eu fui falar com o Carlos Lacerda, mostrei para ele as coisas, e ele disse: “Pode deixar. Nós vamos publicar o seu livro. Dê-me aqui os originais; eu vou ler e depois eu me comunico com você”. Aí ele me mandou uma carta dizendo que não publicava porque eu fazia acusações a amigos dele — Abreu Sodré — e que ele só publicaria o livro se eu desse o direito de defesa ao Abreu Sodré. Livro não tem direito de defesa. A gente que depois fale, antes não pode. Aí eu falei para o Júlio Neto, que me disse: “Eu já esperava isso dele”.
Aí eu falei com Dom Paulo: “D. Paulo, publico ou não publico isto aqui, e como?” Dom Paulo me disse: “Publique. Quem vai fazer a edição desse livro é a Justiça e Paz de São Paulo. Você consiga uma gráfica para fazer, mas a responsabilidade é da Comissão de Justiça e Paz”.
Eu consegui na Revista dos Tribunais. A primeira edição foi impressa — esta é a 10ª edição — eu consegui que fosse impressa pela Revista dos Tribunais. E, quando a primeira edição estava pronta — saíram 3 mil exemplares —, Dom Paulo disse: “Você pega esses livros e traz aqui para a Cúria, não deixa lá, e nós vamos distribuir gratuitamente o que for possível, antes de você lançar o livro”.
E foi o que nós fizemos. Ele mandou para toda a padralhada, mandou para o Governo, mandou para Ministro, para Governador de Estado, Secretário, Deputado, mandou para todo mundo.
Aí eu recebi uma intimação para ir à Polícia Federal. O Dalmo Dallari era o Presidente da Comissão Justiça e Paz, que era a editora do livro. Fomos nós 2 lá falar com o Chefe da Polícia Federal. Ele disse: “Não, porque o seu livro...” e tal, dando a idéia de que iria segurar a edição. Eu disse: “Olha, eu acho que o senhor vai perder o seu tempo, porque o livro já está na rua. O senhor vai proibir o quê?”– “Ah, então eu vou pensar.”
Não aconteceu nada, e o livro teve, naquela ocasião, 9 edições. Depois saiu uma edição em francês, uma edição em alemão — quem traduziu para o alemão foi Dom Adriano Hipólito, que era o Bispo de Nova Iguaçu —, uma em italiano e uma em espanhol. No ano passado eu reeditei o livro, pela Martins Fontes, mostrando o que aconteceu com as pessoas que foram processadas como membros do Esquadrão da Morte. Quase nada.
A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Agora voltemos à pergunta do Tarcísio, que eu cortei.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - A montagem dessa máquina de tortura, de assassinato. O senhor falou no Governador Abreu Sodré, no caso da OBAN, da Operação Bandeirante. Mas não foi só o Abreu Sodré.
O SR. HÉLIO BICUDO - Não, não....
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Teve um grupo de empresários...Quais eram esses empresários? Inclusive de multinacionais...
O SR. HÉLIO BICUDO - Eu não vou dizer os nomes porque não sei. Sabe, eu nunca procurei saber essa questão da máquina montada para a tortura. Eu tinha conhecimento da tortura. Você viu ali aquela pirografia — é pirografia que se chama, não é? — dos presos do Tiradentes, que foram torturados. A gente tinha conhecimento disso, mas não conseguia entrar. O caso do Herzog, por exemplo. Eu me lembro da missa do Herzog, da atuação de Dom Paulo chamando para uma solenidade ecumênica na catedral. As pessoas que entravam na catedral poderiam não sair mais dali, porque a Polícia fechou. A gente sabe desses episódios todos. Eu sei que o Abreu Sodré estava metido nisso, sei que empresários de São Paulo também estavam, mas quais empresários eu não sei dizer. Acho que todos, ou quase todos.
A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - O Merlin não.
O SR. HÉLIO BICUDO - Ah não, isso é outra coisa, essa é outra história.
O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Dr. Bicudo, só uma curiosidade. O senhor alguma vez esteve frente a frente com o Sérgio Fleury?
O SR. HÉLIO BICUDO - Ah sim, várias vezes, nos interrogatórios. Nós montamos, na ocasião dessas investigações, dentro da Corregedoria da Polícia, que é um órgão do Poder Judiciário, com o Juiz Corregedor, uma maneira para ouvir as pessoas. O Fleury foi ouvido várias vezes. E depois, nos processos, nos interrogatórios, ele foi ouvido. Então, eu estive várias vezes vis-à-vis com o Fleury.
O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Só para terminar, qual foi o seu sentimento quando o senhor percebeu que essa banda podre da Polícia estava sendo recrutada para fazer esse trabalho a que o Tarcísio se referiu, esse trabalho de seqüestro? O que o senhor fez? O que o senhor pensou?
O SR. HÉLIO BICUDO - Como eu disse, eu fui chamado pelo Coronel Faustini, do SNI daquele tempo; ele achava que eu estava partindo para uma atitude incompatível com o que a ditadura pensava no que diz respeito à repressão política. Porque o homem símbolo era o Fleury, e eu estava querendo botar o Fleury na cadeia. Isso desmoralizaria o esquema de repressão política.
Mas eu acho que eles pegaram essas pessoas porque elas eram pessoas afeitas à tortura. O Fleury, por exemplo. Casos de tortura de presos comuns eram um hábito dele e de outros companheiros dele. Eu acho que nesses procedimentos que nós fizemos ficava clara a atuação deles. Eu acho que a ditadura aproveitou o know-how desses policiais para prosseguir de uma forma violenta contra as pessoas que estavam engajadas na — eu nunca falo em subversão — pessoas que estavam engajadas na luta pela redemocratização do País.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Mas o senhor não tem dúvida de que esse hábito a que o senhor se refere, o hábito da violência dentro da Polícia, o hábito da tortura, continua não é?.
O SR. HÉLIO BICUDO - Ah, continua até hoje, sem dúvida.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Só com gente pobre.
O SR. HÉLIO BICUDO - E o pior é que se encontra o apoio de Governos, como é o caso agora do Governo do Estado de São Paulo, que traz para uma posição de relevo na Secretaria de Segurança Pública um torturador, que é o Delegado Calandra, conhecido como Capitão Ubirajara. Coisas desse tipo. O nome dele aparece no Tortura Nunca Mais. Testemunhas que foram submetidas por ele a tortura estão aí vivas, dando seu depoimento, e ele é mantido na Secretaria de Segurança. Isto, para mim, é um incentivo à tortura. Não adianta termos uma lei antitortura, mas isso é um incentivo à tortura. Mesmo porque essa questão de se dizer que a Lei de Anistia é uma lei de 2 mãos, porque ela favorece as vítimas e os algozes, isso, do ponto de vista jurídico, é uma interpretação esdrúxula da lei, porque, conceitualmente, anistia é para atender aqueles que foram atingidos pela violência do Governo e não aqueles que praticaram a violência do Governo. Quando a Lei de Anistia começou a ser discutida e, depois, foi promulgada, se adotou essa interpretação, que eu acho que foi uma interpretação de compromisso, na medida em que se partia para uma distensão política. Se se quisesse apurar os crimes praticados pelos militares e por aqueles que acompanharam os militares na ditadura, isto é, aqueles que torturaram e eliminaram, podia-se criar um clima antidemocrático, e voltaríamos para uma situação de maior endurecimento do sistema político.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Foi uma forma de compromisso, até porque foram os militares que comandaram o processo?
O SR. HÉLIO BICUDO - Pois é, exatamente. E, veja bem, aqui no Brasil normalmente se desconhece até mesmo aquilo que está na legislação brasileira. Por exemplo, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos já naquele tempo diziam que conceitualmente era impossível contemplar com uma lei de anistia as pessoas que haviam cometido violência em determinado período. A própria Lei de Anistia deixou de fora os terroristas. Só os oponentes políticos é que estão contemplados pela Lei de Anistia. Ora, os torturadores não eram oponentes políticos, eles estavam a serviço do Governo e deveriam, na verdade, ser investigados, processados e julgados. Isso não aconteceu, nem vai mais poder acontecer. Mas o que não pode acontecer é que eles sejam, vamos dizer assim, brindados com altos postos no Governo. O Presidente Fernando Henrique Cardoso, por exemplo, depois de ter nomeado um chefe da Polícia Federal que era um dos torturadores, na medida em que ele soube, essa pessoa não ficou 3 dias no cargo.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Campelo. Ele está sendo processado...
O SR. HÉLIO BICUDO - Exatamente.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - ...por tortura.
O SR. HÉLIO BICUDO - Exatamente. E foi destituído. Aqui em São Paulo, o Governador sai a campo para defender um torturador dos mais bárbaros, porque, segundo se diz, ele não só torturava como participou da execução do Herzog e do Fiel Filho. Então, quer dizer, isso, em qualquer Governo, não pode se sustentar com um tipo de atitude como essa.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Agora, Dr. Bicudo, a fundação do PT... O senhor se envolveu na fundação do PT?
O SR. HÉLIO BICUDO - Não, eu fui depois.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Quer dizer, a fundação do PT está ligada ao processo de redemocratização, porque foi o movimento operário em torno do líder sindical, que representava uma coisa nova no Brasil, que foi o Lula. Porque o que nós conhecemos durante o tempo do Jango era isso que o senhor disse: os sindicalistas, que eram pelegos, ou os sindicalistas do Partido Comunista. Era essa dicotomia: os pelegos contra o PC, o PCB.
O SR. HÉLIO BICUDO - Exatamente.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Com o Lula aconteceu um fato novo. Até pessoas ligadas à ditadura, como Delfim Netto, dizem que o General Golbery estimulou muito o nascimento dessa liderança, porque ele tinha interesse em combater o PTB do Brizola, que ele negou ao Brizola até a legenda do PTB, entregando à Ivete, que agora é outra facção.
O SR. HÉLIO BICUDO - Exatamente.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Então, o Lula representava uma coisa nova que eles estimularam. Mas essa coisa nova deve ter fugido do controle deles, não é?
O SR. HÉLIO BICUDO - Ah, sim! Olha, eu não participei da criação do PT. Eu me engajei no PT em 1980, logo depois da fundação do PT. Eu me lembro que foi um ato até na Assembléia Legislativa aqui de São Paulo. Eu e o Plínio entramos...
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Plínio de Arruda Sampaio.
O SR. HÉLIO BICUDO - É. E depois eu participei da primeira campanha eleitoral do... Antes da primeira campanha eleitoral brasileira, antes ainda do PT, quando se disputou a eleição proporcional, e o Franco Montoro disputou o Senado, acho que foi em...
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Em 1978.
O SR. HÉLIO BICUDO - Em 1978, e tinha sublegenda e tal. E o Fernando Henrique...
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Era o suplente.
O SR. HÉLIO BICUDO - Era... Não, sublegenda. Era sublegenda do MDB. Ele disputou o Senado numa sublegenda do MDB.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - E transformou-se em suplente com a vitória do Montoro.
O SR. HÉLIO BICUDO - Com a vitória do Montoro. E eu participei dessa luta em prol do Fernando Henrique, porque nós estávamos, nessa ocasião... Algumas pessoas — Chico de Oliveira, eu, Covas, Serra, Fernando Henrique e tal — participávamos de um grupo que estava querendo criar um partido socialista. Isso foi antes do PT. E a maneira de sabermos o cacife que tínhamos foi a de termos um candidato, e o nosso candidato foi o Fernando Henrique nessa sublegenda do MDB. E o Fernando Henrique se elegeu com 1/2 milhão de votos e foi o suplente do Montoro. E o Montoro, depois, elegeu-se ao Governo do Estado, e o Fernando Henrique exerceu os 4 anos do restante do mandato do Montoro.
Você sabe que houve um episódio engraçado nessa ocasião? Fui sempre muito amigo do Montoro, tínhamos ligação de amizade que vinha de muito tempo. E o Montoro, quando se candidatou ao Senado, chamou-me: “Hélio, eu quero que você seja o meu suplente”. Veja como a vida é complicada. “Eu quero que você seja meu suplente”. Eu disse: “Eu não posso”. “Como que você não pode?” E eu disse: “Eu não posso, porque estou comprometido com a candidatura do Fernando Henrique. Como é que eu vou ser seu suplente?”. Aí, não fui. Ele disse: “Você é burro, porque se você for o meu suplente, você vai ser Senador, porque daqui a 4 anos eu vou ser Governador de São Paulo, e você assumirá o meu lugar no Senado”. Para o Fernando Henrique foi muito bom, ótimo. E, depois, aconteceu que esse grupo se desfez depois dessa eleição, porque o Fernando Henrique ficou no MDB, e o Serra, que já tinha optado pelo MDB, continuou no MDB. E foi por aí.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Se o senhor tivesse aceitado, teria mudado a história...
O SR. HÉLIO BICUDO - Não sei, não sei. (Risos.) Mas é uma coisa interessante.
(corte no áudio)
O SR. HÉLIO BICUDO - ... era designado pelo Governador do Estado, era um cargo de confiança do Governador do Estado. E, em decorrência da publicação desse livro, eu sofri uma punição, uma censura do Procurador-Geral da Justiça, porque ele achava que eu havia exorbitado na minha atuação, que eu não podia dar publicidade àquilo que eu estava tornando público — e que eu tornava público para garantir a minha vida.
Muito bem. Ele determinou essa punição, e eu recorri ao Tribunal de Justiça, com mandado de segurança, contra a punição. O Tribunal de Justiça revogou a punição dada pelo Procurador-Geral da Justiça, dando razão à minha atuação. Esse foi um episódio importante, porque mostra que o Ministério Público não estava realmente engajado na luta contra o Esquadrão da Morte.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - E o senhor está certo de que o livro contribuiu para garantir a sua vida?
O SR. HÉLIO BICUDO - Ah, sem dúvida!
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - ... a sua integridade física?
O SR. HÉLIO BICUDO - Porque, denunciando, se lhe acontece alguma coisa, você sabe de onde vem; se você não denuncia, fica quieto, você morre e ponto, foi um acidente. E eu permaneci no Ministério Público mais algum tempo. Eu me aposentei com 36 anos de serviço no Ministério Público. Cheguei a ser indicado para o Tribunal, no quinto do Ministério Público, mas, evidentemente, não fui nomeado. (Risos.)
E eu me lembro de que o Secretário de Justiça era o Manoel Pedro Pimentel. Eu fui indicado pelo Conselho. Hoje é diferente o sistema, mas, naquele tempo, a indicação era do Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo. Eu fui indicado numa lista tríplice para ser nomeado juiz do Tribunal de Alçada Criminal, que é o passo inicial para se chegar a desembargador. Não fui nomeado. Depois eu até escrevi uma carta ao Presidente do Tribunal, agradecendo a honra. Para mim, a honra era a indicação, a nomeação era uma coisa secundária.
E eu me encontrei depois com o Secretário de Justiça, que era o Manoel Pedro Pimentel, que havia sido meu colega de turma. Nós nos encontramos numa reunião social, depois de o meu nome já ter sido vetado pelo Governo. Ele era o Secretário de Justiça e me disse: “Olha, você sabe que nós fizemos uma besteira ao não nomear você, porque assim você estaria arquivado no Tribunal e não ficaria mais chateando a gente”. (Risos.) E assim se encerrou esse episódio do Esquadrão.
Depois, eu fui candidato com o Lula. Eu conheci o Lula na campanha de 1982 para o Governo do Estado. Ele foi candidato a Governador do Estado, e me empurraram para ser candidato a Vice, para contrabalançar um pouco: o operário e o burguês, vamos dizer assim. (Risos.) Olha, para mim, foi uma experiência muito rica, porque eu conheci o Lula mais de perto. Eu o acho uma inteligência brilhante, uma intuição política rara. Ele estava fadado a chegar ao ponto que chegou.
Foi uma campanha muito bonita. Uma campanha sem dinheiro, vocês imaginem. A gente dormia embaixo de balcão de bar, comia aquilo que o pessoal do PT do interior de São Paulo nos oferecia. Acho que os melhores comícios da campanha de 1982 foram feitos pelo Lula. Ele reuniu em São Paulo, naquele tempo, 100 mil pessoas no comício de encerramento. E perdeu as eleições, é lógico. Ganhou o Montoro, em segundo lugar foi o Jânio, em terceiro lugar o Lula. Acho que ele teve, naquela ocasião, 9% do eleitorado, uma coisa assim. Depois ele foi subindo.
Depois eu fui candidato ao Senado. Fui o terceiro colocado. Os primeiros foram o Covas e o Fernando Henrique, depois, eu, com uma votação de quase 3 milhões de votos. Do meu ponto de vista, com o PT, muito boa. E, depois, fui Secretário de Negócios Jurídicos da Prefeitura da Luiza Erundina, durante 1 ano e meio mais ou menos. Eu me candidatei a Deputado Federal, fui eleito e fiz 2 mandatos. E eu já falei a vocês que não faria o outro mandato, porque eu acho que não se deve profissionalizar a função parlamentar. Esse é um ponto de vista meu. Posso estar errado, mas é o meu ponto de vista.
Bom. Eu acho que também foi uma experiência muito boa na Câmara. Porque nós temos a idéia de que se é do Partido dos Trabalhadores, não pode ter uma atuação mais ampla dentro da Câmara — e o Partido dos Trabalhadores era muito pequeno nesta ocasião. Mas, olha, eu me senti muito à vontade, e, muitas vezes, com o apoio da extrema Direita, do PFL. Alguns projetos meus tiveram o apoio do Luis Eduardo Magalhães, do...
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Do Inocêncio Oliveira.
O SR. HÉLIO BICUDO - ... do Inocêncio Oliveira. O Inocêncio Oliveira me convidou várias vezes para assumir algumas posições e inquéritos contra pessoas da Casa, o que eu fiz.
A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - O senhor participou da Comissão de Orçamento, não foi?
O SR. HÉLIO BICUDO - Eu participei da Comissão de Orçamento. E você sabe que tem uma coisa? O Passarinho é que foi o Presidente. Pois é, o Passarinho convidou a mim para ser o Relator da Comissão de Orçamento. Mas eu precisaria ser indicado pelo partido para participar da Comissão de Orçamento. E, aí, não fui, porque... Era o Eduardo Jorge o Líder da bancada. Eu fui falar com ele, e ele disse: “É, mas agora eu já estou comprometido”, não sei o quê. Quer dizer, o partido largou a Relatoria de uma CPI da maior importância para manter 2 pessoas. Eu fui suplente na Comissão de Orçamento.
A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Mas antes disso, houve uma Comissão Mista no Congresso de que o senhor participou, não é? Do Orçamento. Foi quando se descobriram indícios de participação nesse esquema todo de corrupção do Fiúza e do Ibsen.
O SR. HÉLIO BICUDO - Não, foi depois. Do Fiúza, foi depois.
A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Ah, foi posterior a esse evento?
O SR. HÉLIO BICUDO - Foi posterior. É. Eu que fui o Relator do caso do Fiúza na Comissão de Justiça. E ali foi uma briga, porque todo o situacionismo — PMDB, PFL — estava contra a minha posição. Eu perdi na Comissão de Justiça, porque eu propunha a cassação do Ricardo Fiúza. E perdi. Eu me lembro de que foi uma sessão de 2 dias na Comissão de Constituição e Justiça. Foram 2 dias de sessão. Eu perdi, acho que eram 8... Eu tive 12 ou 13 votos, uma coisa assim, e ele teve a maioria. E o José Luiz Clerot foi designado para relatar em Plenário. O Inocêncio Oliveira era o Presidente da Câmara, e eu cheguei ao Inocêncio Oliveira e disse: “Inocêncio, eu acho que eu tenho de falar”. Porque não era regimental: eu já não era mais nada, não era mais Relator, fui Relator na Comissão de Justiça. Eu disse: “Eu preciso falar, porque não tem cabimento isso. Quer dizer, vai se fazer apenas a defesa do Fiúza?”. Porque o Clerot ia fazer a defesa do Fiúza. E ele quebrou o protocolo da Câmara, e eu falei por 15 minutos, para obter a cassação do Fiúza. Agora, o Fiúza não foi cassado, mas ele foi condenado, porque, no Plenário, os votos pela cassação foram superiores aos votos pela absolvição. Só que os votos da cassação não chegaram ao quorum necessário para obter a cassação. Depois, parece que houve um acordo dentro do PFL, e o Fiúza se retirou, tanto que ele não se candidatou para o mandato seguinte.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Como é que o senhor analisa a fundação do PT? Como é que o senhor avalia a importância do PT e do Lula?
A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Antes disso, eu queria saber, nesse mesmo assunto, sobre a questão do Ibsen Pinheiro.
O SR. HÉLIO BICUDO - Ah, pois é. Eu acho que realmente ficou demonstrado que o Ibsen cometeu um ato de corrupção — uma coisa pequena, mas era. E eu acho que aí, na questão do Ibsen, valeu muito a posição dele com relação à cassação do Collor. Quer dizer, eu acho que politicamente a cassação do Collor fez com que a balança pendesse contra ele no problema da sua própria cassação. Eu me lembro que, quando o Ibsen foi fazer a defesa dele no Plenário da Câmara — e o Inocêncio era o Presidente da Câmara —, a Câmara estava vazia, não tinha ninguém. Ninguém! Eu pedi a palavra para o Inocêncio e disse: “Olha, eu acho que não é possível que se ouça a defesa do Deputado Ibsen Pinheiro com a Casa vazia. Eu acho que enquanto não tivermos os Deputados aqui presentes não tem o menor sentido. Isso é negar o direito de defesa ao Deputado Ibsen Pinheiro”. E ele fez isto: chamou o pessoal, e o Ibsen falou com a Casa cheia. Bom, a cassação dele estava decretada.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Mas muita gente disse que ele foi cassado mais pelas virtudes do que pelos defeitos.
O SR. HÉLIO BICUDO - Pois é. Mas é exatamente isso. É por isso que eu digo: a cassação dele se deveu muito à posição que assumiu no processo de cassação do Collor. Ele tomou uma posição de peito aberto contra o Collor, e eu acho que isso influiu dentro da Direita da Câmara no sentido de se obter a cassação dele. Por isso que eu digo — você tem razão — foi muito mais pelas virtudes do que pelos pontos negativos da atuação dele.
O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - E o senhor teve uma participação importante também no processo de cassação do Collor. E até antes disso o senhor questionou a eleição dele.
O SR. HÉLIO BICUDO - Ah, sim. Isso é verdade. O primeiro pedido de impeachment do Collor foi feito por mim e pelo Lula. Nós fizemos o pedido, entregamos ao Paes de Andrade, e, depois disso, ficou engavetado. Engraçado que quando houve o pedido pelo Lavenère e pelo Barbosa Lima Sobrinho, nosso pedido tinha de ser apensado e não foi. Foi absolutamente desconhecido. E, aí, esse pedido realmente teve o volume necessário e o apoio da mídia para se obter a cassação do Collor.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Mas o senhor entrou com uma ação na Justiça...
O SR. HÉLIO BICUDO - Ah, entrei.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - ...sustentando que o Collor tinha cometido crime eleitoral...
O SR. HÉLIO BICUDO - Exatamente.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - ... fraude,...
O SR. HÉLIO BICUDO - Isso, isso.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - ... no caso daquela moça que acusou o Lula.
O SR. HÉLIO BICUDO - É, exatamente.
A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - A Míriam Cordeiro.
O SR. HÉLIO BICUDO - Pois é, entrei com esse pedido perante a Justiça Eleitoral. E o que fez a Justiça Eleitoral? Segurou o processo até o Collor ser Presidente. Como ele era Presidente, a competência passava para o Supremo Tribunal Federal. Então, o Tribunal Eleitoral mandou para o Supremo Tribunal Federal. O que fez o Supremo Tribunal Federal? Pegou um artigo da Constituição que diz que o Presidente não pode ser punido no exercício do mandato por crime anterior a esse exercício. Eles interpretaram nessa linha. Então, eu apenas perguntei: “Digam-me uma coisa: e se o Presidente mata a mulher antes da posse? Como fica? Ele assume? Não pode ser processado?”. (Risos.) Foi, evidentemente, um arranjo do Supremo para não punir o Collor. Porque a eleição dele, no meu ponto de vista, foi fraudada, claramente fraudada. E o Supremo não quis entrar no mérito e ficou na preliminar de que o Presidente da República não poderia ser processado durante o mandato por crime cometido antes do mandato.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Eu acho que ele deve fazer uma análise desse papel do PT. O PT é o maior fenômeno de massa da América Latina. Foi o primeiro partido na América Latina criado de baixo para cima. Aqui há uma tradição de partidos que são termos de compromisso de uma elite e que não têm nenhuma representatividade. O único partido formado de baixo para cima foi o PT.
O SR. HÉLIO BICUDO - Olha, eu acho que disso não há dúvida nenhuma. Eu acho o PT teve um papel importantíssimo, embora sua bancada fosse ainda pequena, desde a implantação do sistema democrático, durante as discussões para a Constituição de 1988; depois, durante os mandatos sucessivos, a questão do Collor, dos embates.
A verdade é esta: o primeiro pedido de impeachment contra o Collor foi feito pelo PT. Fomos eu e o Lula apresentar ao Paes de Andrade o pedido de impeachment contra o Collor. Essas ações movidas perante o Supremo Tribunal Federal, perante o Tribunal Eleitoral contra a eleição do Collor são do Partido dos Trabalhadores. Eu era na ocasião membro do Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores.
E, depois, a atuação do partido durante todo esse transcurso... Eu acho que o único partido que fez oposição — e, talvez, muito daquilo do que se poderia ter feito no sentido da construção de uma sociedade mais desigual não se fez por causa da atuação do PT. Quer dizer, há hoje uma distância muito grande entre aqueles que tudo podem e aqueles que não têm nada, mas essa distância podia ser maior ainda se não fosse a atuação do PT durante estes 20 anos em que ele tem atuado no cenário nacional.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Que julgamento o senhor faz do Governo Lula em face desses compromissos históricos do PT? Que julgamento o senhor faz em relação ao comportamento do Governo, às reformas propostas, à diretriz traçada em relação aos dissidentes?
O SR. HÉLIO BICUDO - Olha, eu acho o seguinte: quanto ao PT e ao Governo, eu suspenderia o juízo a respeito da atuação do Governo atual, porque do ponto de vista econômico e social não se pode fazer o que se faz na leitura de um livro: dobrar a página. São coisas que se tem de ir perseguindo, vamos dizer assim, as finalidades, na medida do possível. Quer dizer, o Lula não poderia chegar agora e decretar uma guerra contra o mercado. Ele tem de aplainar pelo menos o caminho para poder chegar a uma atuação que não se caracterize pelo neoliberalismo, que, na verdade, está caracterizando os primeiros passos do Governo.
Com relação à questão daqueles que estão se batendo para que o partido tenha talvez mais velocidade para alcançar suas metas, que não são as metas apenas eleitorais, são as metas de todo o ideário do partido, eu não os chamaria jamais de radicais. Eu acho que são pessoas que merecem o respeito do partido. Na verdade, não se pode confundir Governo com Parlamento. Os Parlamentares têm de ter a sua autonomia, a sua liberdade, a maneira de se expressar deles próprios e não atrelados ao Governo Federal. Senão, chegamos ao velho encilhamento de que o Brasil já foi palco, na primeira república e no final do segundo império.
O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Uma última pergunta: o senhor teve uma convivência que podemos chamar de muito próxima com o atual Presidente e com o ex-Presidente Fernando Henrique. Como o senhor avalia? Dizem que a experiência do poder é uma experiência que muda, que altera as pessoas, que até obriga as pessoas a se adequarem. Como o senhor faz uma avaliação desse período do seu amigo Fernando Henrique e do seu amigo Lula? Como o senhor vê?
O SR. HÉLIO BICUDO - Olha, eu acho que, por exemplo, no campo em que eu atuo, o Fernando Henrique possibilitou um avanço muito grande, que é no campo dos direitos humanos. Ele permitiu um avanço muito grande. Quer dizer, ele reconheceu a jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos, ele criou a Secretaria Nacional de Direitos Humanos. Ele fez o primeiro e o segundo Plano Nacional de Direitos Humanos. Quer dizer, ele várias vezes se manifestou no sentido de que o fundamento do Estado Democrático são os direitos humanos. Então, quer dizer ele deu um status político aos direitos humanos que nenhum Governo anterior deu e que o Governo atual não avançou além daquilo que ele já fez. O Governo atual, provavelmente, continua — e acredito que deva continuar — se inspirando naquilo que foi feito pelo Fernando Henrique em matéria de direitos humanos e avançando mais. É o que eu o penso e no que eu acredito.
Agora, do ponto de vista da administração em geral, acho que temos de dar um tempo, exatamente por isso. Não se pode passar de um sistema para outro em 24 horas, é preciso ter um pouco de paciência.
Agora, quanto aos militantes do PT que têm mais pressa, acho até legítimo que tenham mais pressa, mas eles têm de se adaptar às conjunturas a que o atual Governo está sendo submetido.
A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Eu tenho 2 coisinhas, mas eu quero voltar um pouquinho ao passado, bem rapidinho.
Primeiro, a questão do Coronel Erasmo Dias, que era Secretário de Segurança. Como foi esse episódio?
O SR. HÉLIO BICUDO - Bom, o Erasmo Dias teve um episódio muito negativo em São Paulo que foi a invasão da PUC, em que algumas pessoas, até 2 moças, ficaram gravemente feridas com queimaduras de terceiro grau e tal. Isso marcou muito a administração dele. Na verdade, durante a administração do Erasmo Dias, isso se repetiu depois. A Polícia continua matando pessoas às escancaras e em números cada vez maiores, sob o pretexto de que houve um encontro de policiais e bandidos e tal. Quando se pega as estatísticas, verifica-se uma curva ascendente no número de pessoas mortas pela Polícia, e a maioria delas até mesmo sem qualquer passado criminal.
Uma vez, no Paraná, eu estava fazendo uma palestra e eu disse que o Esquadrão da Morte não tinha desaparecido de São Paulo, pelo contrário. Isso foi na gestão do Erasmo Dias. Naquele tempo, eram 15, 20 ou 30 pessoas, e mais tarde, eram 70 mil pessoas, que eram a Polícia Militar e a Polícia Civil. (Risos.)
E ele se irritou com isso e andou dizendo alguns elogios, digamos, à minha pessoa. E eu entrei com uma queixa-crime no Tribunal de Justiça, porque, na verdade, o que ele havia dito se configurava uma injúria. Mas, no Tribunal de Justiça — nós estávamos no regime militar —, eu perdi. Obtive apenas um voto favorável à minha denúncia. Todos os outros foram favoráveis ao Coronel Erasmo Dias.
A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - A outra questão, também voltando ao passado, é a do massacre de Eldorado dos Carajás. O senhor estava nessa época exercendo um cargo.
O SR. HÉLIO BICUDO - Eu era o Presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara. Exatamente. E nós fizemos até um tribunal simbólico para julgar os casos de Carajás e de Corumbiara. Acho que foi um ato muito importante, que foi feito na própria Câmara Federal, onde se demonstrou claramente a responsabilidade do Governo do Pará no que diz respeito ao caso de Eldorado dos Carajás.
Eu me lembro que nós projetamos até um vídeo em que se mostrava a maneira pela qual as pessoas estavam sendo eliminadas. E o legista Nelson Massini, que é uma pessoa de alta capacidade, de alto nível aqui no Brasil, mostrou que não houve realmente um confronto, mas, sim, uma eliminação pura e simples. Eu acho que alguma coisa do que se fez nesse julgamento deve ter influenciado nas decisões dos júris que estão ainda acontecendo no Pará a respeito desse caso.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Agora, só uma coisa: o senhor que teve papel de verdadeiro Dom Quixote em tudo isso, porque numa hora de aperto de regime militar, de ditadura, soube defender essas posições em defesa dos direitos humanos, acha que o Brasil e a América Latina estão livres de um novo golpe, de uma nova intervenção militar por muito tempo?
O SR. HÉLIO BICUDO - Gostaria de dizer que sim, mas não me parece muito claro isso não, sabe? Porque esse empobrecimento geral da maioria do povo, a exclusão que existe na América Latina pode levar a uma atitude que se poderia dizer defensiva das classes dominantes no sentido de impedir realmente aquilo que o Partido dos Trabalhadores quer, que eu acho que Lula também quer, no sentido de que haja inclusão desses excluídos. Isso pode levar a alguns problemas na América Latina.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Muito obrigado.