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DEPARTAMENTO DE TAQUIGRAFIA, REVISÃO E REDAÇÃO
NÚCLEO DE REDAÇÃO FINAL EM COMISSÕES
TEXTO COM REDAÇÃO FINAL
PROGRAMA MEMÓRIA POLÍTICA |
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EVENTO: Entrevista |
N°: ESP002/02 |
DATA: 23/8/2007 |
INÍCIO: |
TÉRMINO: |
DURAÇÃO: 1h33min |
TEMPO DE GRAVAÇÃO: 1h33min |
PÁGINAS: 27 |
QUARTOS: 19 |
DEPOENTE/CONVIDADO - QUALIFICAÇÃO |
PAULO EVARISTO ARNS - Ex-Arcebispo do Estado de São Paulo. |
SUMÁRIO: Entrevista com D. Paulo Evaristo Arns, exibida no Programa Memória Política, da TV Câmara, em 8/05/2002.
ENTREVISTADORES: Ana Maria Lopes de Almeida, Tarcísio Holanda e Ivan Santos |
OBSERVAÇÕES |
Há termo ininteligível. |
Conferência de fidelidade do Conteúdo – NHIST
A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Onde o senhor nasceu, D. Paulo? A sua origem.
O SR. PAULO EVARISTO ARNS - Eu nasci em um lugar que vocês todos deveriam conhecer. Chama-se Forquilhinha. Imagine! É porque ali se encontram 2 rios e formam uma forquilhinha. É próximo a Criciúma. Hoje é município independente de Criciúma. Está bem no sul de Santa Catarina.
Nasci em 1921, no dia 14 de setembro. Já no dia 17 de setembro eu fui batizado, embora passasse por ali só um padre, uma vez por ano. Mas aconteceu que ele passava. Contam, então, a história de que o rio estava cheio e papai me levou de canoa junto com a madrinha. E ela, comigo nos braços, atravessou com muita coragem o Rio Mãe Luzia e foi sair a 2 quilômetros lá embaixo, tanta era a correnteza. Mas me levou para o outro lado. Eu fui batizado com o nome de Paulo, e pronto. E aqui estou para lhe dizer tudo o que você quiser ouvir.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - E como foram os primeiros tempos, os estudos, os primeiros estudos?
O SR. PAULO EVARISTO ARNS - O que mais me impressiona naquela colônia é o seguinte: em primeiro lugar, fundaram logo uma escola. Mas isso era um pouco o costume dos imigrantes alemães. E papai era neto de um casal alemão que imigrou da Mosela, um lugar entre a França e a Alemanha, para o Brasil. Então, ele também conseguiu — papai mesmo, forçando —, dos 30 ou 40 colonos que moravam lá, que construíssem uma igreja e ao lado dela uma escola e enviassem 2 rapazes para estudar em Blumenau, onde existia uma escola para professores. Esses 2 se formaram muito bem e ensinaram, em nossa terra, durante todo o tempo possível.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - E como começaram os seus primeiros estudos?
A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Como o senhor despertou para a Teologia?
O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Essa vocação eclesiástica é desde criança?
O SR. PAULO EVARISTO ARNS - Vocês podem fazer a pergunta que quiserem. Eu vou elaborando...
O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - A sua vocação despertou quando o senhor era criança ou despertou mais tarde? O senhor foi uma criança que não pensava em...
O SR. PAULO EVARISTO ARNS - É uma resposta que eu próprio não sei dar. Parece-me que eu nasci padre e me desenvolvi de tal maneira que no dia em que papai tinha o dinheiro suficiente para me manter no seminário eu já tinha feito 2 anos suplementares do primário, porque ele não podia pagar. Então, quando ele me permitiu partir, eu parti. Mas eu já parti com o coração de padre: eu quero ser padre na minha vida. E acabou. Nunca mais eu desisti disso. Três vezes tentaram... Até, uma vez, um padre foi ao seminário para me dizer: “Olha, o seu pai já tem 2 filhos no seminário”. Um acaba de falecer agora. Chamava-se Frei João Crisóstomo. E o outro foi, por 12 anos, reitor da Universidade Católica do Paraná. E eles já estavam no seminário. Papai disse: “Três é demais, não é? Um fica aqui para tomar conta das coisas que estamos construindo devagar”. Porque foi ele que derrubou a primeira árvore de Forquilhinha. Portanto, era mata virgem. E ele só levou mamãe para lá depois de se casar com ela, de ter arrumado o rancho, de ter arrumado um lugarzinho para nós morarmos. Foi lá que eu nasci, entre 30 ou 40 famílias. E todas elas, depois, tornaram-se numerosas. E todas elas pertencem à religião católica.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Onde foi que o senhor se formou como padre?
O SR. PAULO EVARISTO ARNS - Eu me formei como padre porque os franciscanos tinham batizado minha mãe, tinham crismado minha mãe, tinham dado a primeira comunhão à minha mãe, tinham presidido o casamento de minha mãe. Afinal, tinham feito tudo. Mamãe tinha uma saudade enorme desses padres, que eram tão bondosos, e falava sempre deles. E os 2 professores se formaram no Colégio Franciscano Santo Antônio, em Blumenau. Trouxeram entusiasmo por São Francisco, que nem podemos imaginar. Quando crianças, eles nos contavam todas as histórias de São Francisco e nos deixavam entusiasmados. Quando, então, apareceu o primeiro franciscano, eu queria ir com ele. Mas papai disse: “Não, eu não tenho dinheiro para pagar para 3. Você vai ficar mais 2 anos na escola primária”. Assim, eu fiz 6 anos de escola primária, em vez de 4. Não só por burrice, mas também por conveniência. Eu não tinha dinheiro para ir adiante. Aí, esse padre disse: “Não, questão de dinheiro não existe — era franciscano —, você vai comigo”. E fui junto com o colega para o Seminário São Luiz de Tolosa, em Rio Negro — aliás, agora transformado num lugar belíssimo e sede da Prefeitura de Rio Negro. Eu fui lá outro dia e celebrei a Santa Missa. Benzi aquele lugar para ele se tornar de novo um centro de peregrinação e também um centro de memória daqueles que lá estudaram e tiveram uma vida maravilhosa, no meio daquele mato, naquele morro e naquelas águas, podendo participar de tudo na natureza e tendo os franciscanos como educadores — muito liberais e muito amigos e também muito sérios na indicação do caminho para a vida.
Lá eu fiquei 6 anos. Entrei no primeiro ano ginasial e fui até o último ano ginasial. Naquele tempo, eram 5 anos no Brasil. Mas nós, lá, tínhamos 6. Então, nós fizemos 6 anos para estudar o francês, estudar o alemão, estudar o grego, estudar o latim, além de ter, todos os dias, aula de português.
Então, o senhor sabe que principalmente a língua, a história, a mentalidade do povo eram apresentados pelos franciscanos com entusiasmo, com alegria, sempre divertindo e sabendo dividir os dias, sabendo dividir o tempo e sabendo nos entreter de tal maneira que, quando eu cheguei aos 18 anos, me perguntaram: “Você quer ser franciscano mesmo? Quer receber o hábito?” Como eles diziam naquele tempo: “Quer receber o hábito?” Eu disse: “Será a maior graça da minha vida”. E até hoje eu considero a maior graça da minha vida ter sido franciscano e ter trabalhado para os mais pobres deste mundo. Ontem mesmo eu passei toda a tarde no Amparo Maternal, que é o lugar onde nascem as crianças mais pobres da América Latina, e talvez do mundo. Nascem, a cada dia, 35 a 40. E num feriado nasceram 51, porque as outras maternidades fecharam.
Então, vocês sabem daquele entusiasmo para fazer com que o pobre também se alegre, sinta-se feliz e saiba lutar conosco. Foi o ideal de vida que eles implantaram dentro de nós. De tal maneira que, indo para a França, também sempre íamos para a periferia de Paris, para celebrar as Santas Missas e também para consolar o povo, falar com o povo, encontrar as crianças, encontrar a juventude e animar todo mundo.
Então, os meus primeiros 6 anos foram em Rio Negro. Depois, passei 3 anos estudando Filosofia em Curitiba. Lá a coisa era muito séria. Acho que foram os anos mais sérios e mais tristes da minha vida, durante os estudos. Depois, fui para Petrópolis, onde parece que se abriu o céu. Lá os professores todos eram especializados. Para cada matéria havia 2 professores. E todos os 2 tinham doutorado em países diferentes. E eles me transmitiram a alegria de estudar a Bíblia com gosto sempre novo, de estudar a evolução da Igreja durante 2 mil anos, como historiador. Ensinaram-me, sobretudo, a conduta moral que devemos assumir para nós mesmos e transmitir para os outros. Mas me fizeram, sobretudo, ter uma idéia bem característica do que seja um estudo de Teologia bem conduzido. Talvez o mais bem conduzido, já naquele tempo, em todo o Brasil. De lá eu fui mandado para a França. Isso foi em 1947, logo depois da guerra. Foi a primeira vez que eu pisei num avião. E nós levamos apenas 48 horas para ir do Rio até Paris. Eu fiquei lá 5 anos, cursando tudo, como um francês. Em primeiro lugar, fiz o estudo preparatório; depois fiz a licença; em seguida, fiz a preparação para o doutorado nos altos estudos; depois fiz o doutorado. Defendi a tese numa sala cheia de franciscanos, mas também de brasileiros, sobretudo do Consulado.
A defesa da tese foi, de fato, um dia em que me parecia que eu havia concluído todo um curso. Mas sem esquecer uma palavra que meu pai me disse quando fui embora: “Lembre-se sempre de que você foi pobre, filho de colono. Nunca pense em esbanjar as coisas. Mesmo com seu talento, seu jeito, leve tudo para o povo, para que o povo se levante e tenha um coração sempre novo para recomeçar os dias e recomeçar também a grande tarefa em favor do Brasil”.
Ele era político e chegou a ser Presidente da Câmara Municipal. Fez política até o fim da vida. Ele estava se arrumando, quando teve um enfarte e morreu. Ele estava se arrumando para uma campanha política em favor de um candidato — naturalmente não era ele, porque já tinha 75 anos de idade, mas sim um grande amigo dele —, para que ele pudesse também trabalhar pelo povinho, ou pelo povão, ou, como ele dizia, “por nossos amigos”.
Acho que essa foi a vocação franciscana de viver com o mínimo possível e dar aos outros o máximo que se pode dar.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Quando começou o seu apostolado? Quando o senhor se formou, veio para o Brasil e começou o seu apostolado?
O SR. PAULO EVARISTO ARNS - Bom, eu tive 2 fases, logo no início. Na primeira fase, fiquei 3 anos como formador de ginasianos e colegiais. Esses colegiais viviam em Bauru, em Agudos. E ao mesmo tempo eu ia para a universidade que estava sendo fundada — hoje é a Universidade do Sagrado Coração de Jesus. Fui o iniciador do ensino de Francês e de Literatura Francesa. Posso dizer que transmiti todo o entusiasmo que eu trazia da França para os meus alunos. Mas só me deixaram lá 3 anos. Depois me mandaram para Petrópolis. E na primeira manhã, num Domingo, eles me mandaram para uma capela. Havia 7 morros em torno dela, como os morros do Rio. Aliás, não podíamos chamar o pessoal de favelado. Devíamos dizer: o pessoal dos morros. Morro tal, morro tal, morro tal. São 7 morros. Aí eu comecei a subir os morros. Eu ia 3 vezes por semana visitar os morros. Saía de casa às 5h30min da manhã. Depois, ia celebrar lá com as irmãs que cuidavam das crianças, dos trabalhadores etc. E subia o morro para visitar uma escola, ver se a professora estava lá, ver se faltavam os alunos. E os alunos, muitas vezes, me levavam, então, para a casa deles, dizendo: “Mamãe está doente. Ela disse que só fica boa se o Frei Evaristo" — porque me chamavam de Frei Evaristo. Agora eles me chamam de Paulo Evaristo — "der uma bênção". "Aí, sim, eu vou ficar boa”. Eu ia lá, e, de fato, ficavam boas. De fato, se reanimavam.
Aquele povo tinha uma fé! A maioria era de mineiros ou nordestinos ou gente que vinha de fora e estava passando necessidade. Mas, ao mesmo tempo, tinha uma confiança em Deus, uma alegria de viver e uma comunicação que, quando o Bispo chegou lá, ele disse: “D. Paulo, eu quero uma vez me encontrar com as crianças”. Eu disse a ele: “Sr. Bispo, não tem lugar para reunir as crianças dentro da igreja, porque a igreja é grandezinha, mas há tantas crianças de 7 morros! Você imagina!” Então, ele foi. Ele foi e, aí, então, as crianças vieram dos morros, foram descendo e, quando viram o Bispo naquele traje episcopal e com aquela cruz e com o solidéu e com os gestos elegantíssimos de D. Manuel – que foi Reitor do nosso seminário, em São Paulo; – quando ele apareceu, as crianças ficaram encantadas e fizeram barulho como se fossem 50 convidados para animar uma festa. Entraram todos juntos na igreja, sentavam em cima do altar, em torno do Bispo etc. e puxavam a batina dele de um lado e de outro.
Aí o Bispo disse: “Mas, D. Paulo, eu quero falar com essas crianças, e elas estão gritando como se estivessem no morro!” Eu disse: “É o jeito delas.” “E como é que o senhor faz?” Eu disse: “Sr. Bispo, o senhor me dá licença?” Ele disse: “Por favor, o senhor fale primeiro. Depois eu falo”. Aí, eu disse: “É muito simples. O senhor escute: queremos Deus, homens ingratos” (cantando).
Quando comecei aquilo, todas as 2.200 crianças que estavam lá irromperam num canto e, quando terminou o canto, mas terminou, eu disse: “Agora, silêncio, porque eu vou contar uma história”. E contei uma história da Bíblia, tirei a conclusão da história da Bíblia e, depois disse: “Agora, todo o mundo pensa em Deus e todo mundo pensa que vai receber uma ajuda especial, porque o Sr. Bispo está presente e daqui a pouco ele vai falar”. Aí, todo o mundo quieto, o Bispo olhou para mim e disse: “Era melhor o senhor continuar, porque, para mim, eu falar para todas as crianças...” Eu disse: “Não, Sr. Bispo, o senhor vai falar”. E entoamos um canto a Nosso Senhor: “Louvando Maria, o povo fiel” (cantando). Oh! As crianças sentiram a Mãe chegar, a Mãe do Céu! Quando terminou a primeira estrofe, eu disse: “Sr. Bispo, agora as crianças vão ficar quietas e o senhor vai contar uma história”. E ele contou uma história e saiu de lá tão satisfeito, tão contente!
Ele morreu faz alguns meses, com quase 100 anos. Ele deve estar lá no céu, ainda, se lembrando das alegrias que ele teve com as crianças dos 7 morros, onde nunca houve um crime durante 10 anos e meio em que eu subia toda semana, 3 vezes, os morros para visitar as famílias e verificar como é que estavam indo as coisas. Mas sempre levando comigo apenas o coração, a palavra e a amizade, a grande amizade ao povo. E o povo sentiu isso. Ele vibrava com isso! Quando eu entrava dentro de casa, eles contavam isso durante meio ano: “Ó, o Frei Evaristo esteve aqui e deu uma grande bênção. Oh! Aí, tudo deu certo. Meu marido até deixou de beber”. Imagine! Imagine!
Eu cheguei um dia, era tarde, jogo de Flamengo e Fluminense, Fla-Flu, como se dizia. Naquele tempo, era briga, era luta entre os 2 grupos. Mas lá nos morros tudo era Flamengo, não é? Então, cada vez que o Flamengo fazia um gol, eles engoliam 2 goles e, quando o Fluminense fazia, era 1 só. Mas ficavam lá. E, quando eles estavam um pouco tontos, eu disse ao dono do barzinho: “Vamos fechar. Vamos fechar e vamos levar essa gente para casa, porque eles podem festejar em casa com seus amigos, etc., porque já beberam bastante e o senhor também.” Ele estava também meio torto.
Então, todo o mundo desceu junto e eu fui levar aquele que estava menos firme das pernas até sua casa e entregar para a esposa. A esposa chorou muito e disse: “É, ele me dá trabalho só quando bebe. Quando não bebe, é o melhor homem do mundo.” Então, eu disse: “Bom, daqui para frente, então, ele vai ser o melhor homem do mundo” E eu acho que foi, porque sempre foi meu amigo, até a despedida para São Paulo, para ser Bispo Auxiliar de São Paulo.
Essa foi a última fase de minha vida, como Bispo de São Paulo.
A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Só dá trabalho, quando bebe, não é? (Risos.)
D. Paulo, o senhor teve uma experiência como redator da revista Vozes, que era editada pelos franciscanos. O senhor ficou muito tempo como jornalista?
O SR. PAULO EVARISTO ARNS - Nós começamos a trabalhar já quando criança. Eu me lembro que a primeira vez que o professor de Português me chamou e me disse: “Você escreve algumas composições bonitas e outras menos bonitas. Você vai escrever uma bem bonita sobre o colégio.” E eu escrevi. Depois, ela saiu toda corrigida dentro da revista.
Então, com 12 anos eu publiquei o primeiro artigo. Mas ele me disse: “A sua classe não tem jornal”. Era um internato. Então, eu disse: “Vamos reunir o pessoal?” E reunimos o primeiro e o segundo anos ginasiais e fizemos, então, uma votação e me escolheram como redator.
Então, eu fui o redator do primeiro jornal da União dos Estudantes para o Futuro. E foi o único número que saiu. Só saiu um número.
Entramos no segundo ano ginasial, e no segundo ginasial eu disse para o professor, que era muito amigo, um gaúcho, eu disse para ele, Frei Cipriano: “Você nos ajuda a fundar um jornal que agrade a todo o mundo?” Aí, ele disse: “Mas todo o mundo tem que escrever. Se todo o mundo participar, está bem. O único dispensado é aquele que faz a capa, aquele que desenha, que sabe desenhar.” “Ah, então está bom!” E começamos.
E esse jornal saía todos os domingos, um exemplar para o professor e um exemplar era colocado em exposição na vitrine do seminário. E ele durou 3 anos. E ele de fato formou — nós éramos uma dúzia e meia — no mínimo 11 jornalistas. Onze pessoas continuaram escrevendo durante toda a vida, como eu também escrevi. Sem ser jornalista, mas escrevi também durante toda a minha vida.
Bom, quando eu tive 18 anos, aí ele me chamou mais uma vez e me perguntou: “Você não quer aceitar o cargo de presidente de uma academia literária?” Eu disse: “Academia literária?! Aquilo só existe no Rio! E será que a gente pode fazer isso aqui?” Ele disse: “É aquela que existe, é a nossa, a Santo Antônio, a Academia Santo Antônio.” Aí eu disse: “Ah, se é com o senhor...”
E era um padre carioca, chamado Frei Alfredo Setaro. E ele tinha um linguajar extraordinariamente belo e também uma capacidade de cativar as pessoas como poucos têm. Como os cariocas têm, não é? E ele, então, nos entusiasmava, e a cada 15 dias nós tínhamos sessão. E eu fui dirigindo aquilo também durante o ano inteiro, e com um entusiasmo, com uma satisfação de ver os colegas declamarem poesias, de fazerem até discursos, e também de declamarem peças que impressionavam a todo o mundo. Até algumas que se passavam nas aulas, assim com um certo espírito de invenção, de criatividade, para que todo o mundo se entusiasmasse. E de fato foi um tempo de entusiasmo.
Na Filosofia, fiz a mesma coisa. Fui falar com o chefe, e o chefe disse: “Aqui nunca houve jornal, e vocês vão escrever coisas críticas quanto aos professores, porque um estudante de Filosofia é crítico. Vocês sabem, não é? A gente aprende a criticar tudo na vida. E vocês vão criticar tudo na vida.” Disse: “Não, eu garanto que nós vamos fazer só coisas que entusiasmem todo o mundo.”
E, sabe, todos os colegas concordaram. Nós éramos 3 classes de Filosofia — porque havia 3 anos de Filosofia e 3 classes — e todo o mundo concordava. E tivemos, então, a nossa Filosofia, e a Literatura junto com a Filosofia.
E pedimos até um professor da universidade que viesse nos dar aulas de Literatura bem moderna, para entrarmos dentro do espírito daquela luta que se fazia no Brasil. Isso foi pelos anos de 40, 42, 43.
Daí, de Curitiba, da Filosofia, nós passamos para a Teologia. A Teologia eram 4 anos naquele tempo. E então nós, lá, não fomos só convidados a trabalhar, mas o Frei Tomás Borgmeier, que foi um grande cientista, sobretudo um especialista em formigas, e dirigia 5 revistas, além das publicações todas da Editora Vozes, passava todos os livros para nós fazermos as correções, etc. E cada um de nós escrevia um artigozinho aqui, acolá, com nome falso, para ser aceito. Então, era publicado na Eco Seráfico, era publicado na Vozes, em Petrópolis. Às vezes até chegava a entrar na Revista Eclesiástica Brasileira, que ia para os Bispos e Cardeais do Brasil inteiro! Às vezes, a gente conseguia colocar alguma coisa lá dentro.
Mas eu sei que a literatura era feita por nós com aquele amor, com aquela alegria com que a mãe tem uma criança; o pai diz que essa propriedade aqui está produzindo tanta coisa. Assim, a gente sentia que dentro de si tinha muita coisa que devia sair, e devia sair de uma forma mais perfeita, mais nobre.
E também tínhamos uma biblioteca aberta, onde podíamos entrar quando queríamos e ler também os autores. E líamos os autores, além de termos todo aquele trabalho junto com a Vozes.
Isso foi até a ordenação, em 1945. Eu fui ordenado padre junto com mais 10 colegas — éramos 11, então. E, depois de ser ordenado, me mandaram ensinar no seminário, em Rio Negro. E eu fui ensinar o quê? Português, aquilo que eu sabia, porque nós tínhamos aprendido a literatura, tínhamos aprendido tudo isso, e sobretudo éramos muito rigorosos na observância das regras gramaticais, e assim por diante. E então fui ensinar Português.
Quando terminei, o Superior me chamou e disse: “Olha, Frei Evaristo, o senhor só tem uma escolha: ou vai para Oxford ou vai para Paris. Se for para Oxford ou Paris, estuda línguas antigas ou estuda Geografia e História. O senhor escolhe”.
Eu, na hora, respondi — porque era uma afeição — imediatamente, “Se é para escolher, eu vou para França, vou para Paris”. Ele disse: “Está feito. O senhor volta a Petrópolis e, daqui a 3 meses, o senhor ganha tudo o que precisa e também as licenças todas de Roma, as licenças de Paris, e o senhor vai morar no Marie Rose em Paris, um convento tão célebre. Vai morar com frades franceses."
E eu cheguei lá em outubro de 1947 e imediatamente, no dia seguinte, um canadense que também estudava lá me levou para a faculdade. Eu me inscrevi e comecei o trabalho. E assim fiquei 5 anos estudando letras — grego e latim — e, sobretudo, a mentalidade na Antigüidade cristã. Como é que da Bíblia, como é que do povo, como é que do povo, como é que da liturgia e como é que da caridade cristã surgiu a Igreja, e como é que a Igreja pôde se organizar até o século VI etc.
Essa matéria eu tinha estudado toda em Paris. Durante 5 anos eu fiz o estudo disso. E, quando foi para defender a tese, o professor me perguntou “Mas sobre o que o senhor vai falar? Sobre o que o senhor vai escrever a tese?” Eu respondi ao professor, que era tido como o mais severo da turma: “Eu gostaria de escrever sobre São Jerônimo, porque, quando eu saí do noviciado, meu irmão padre me disse que no Brasil não se estudam os primórdios da Igreja. Por isso, tem tanta coisa que aparece por aí, inventada por um novato qualquer, e não por Jesus Cristo, não pela primeira comunidade, não pelos apóstolos etc."
Ele me escreveu isso, o meu irmão que já era padre e que faleceu há poucos meses. Eu, imediatamente, comecei a estudar os padres da Igreja e nunca deixei de estudá-los até o dia de hoje. Quando tenho um tempinho, eu vou estudando como era a Antigüidade, desde Jesus Cristo até os séculos VI e VII. E eu, então, escolhi como tese "A Técnica do Livro Segundo São Jerônimo". Esse livro foi traduzido primorosamente para o português por uma senhora que estudou na França. Ela traduziu primorosamente!
A tese foi publicada há 51 anos. Em 1952, eu defendi a tese naquele salão cheio, que descrevi há pouco, mas também com aquele entusiasmo e aquela alegria de quem sabe o que vale estudar o passado para construir um novo presente e depois para prever um futuro mais digno para toda a Nação.
Isso tudo estava dentro de mim. E o professor, depois da defesa da tese, me chamou e disse “Tem um lugar na UNESCO para o senhor trabalhar sobre a Antigüidade, porque o senhor agora é um dos maiores conhecedores dos nomes da Antigüidade”. Eu disse: ”Não; eu não troco o Brasil por nada. Eu não troco o Brasil por nada! Eu volto para o Brasil e a juventude vai ser o meu alimento durante toda a existência”. E assim ela foi de fato.
A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Eu queria voltar só um pouquinho no tempo....
O SR. PAULO EVARISTO ARNS - Pode, pode.
(Interferência)
A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Eu só queria... É uma curiosidade.
O senhor foi redator, escreveu para esses jornais durante o período do Estado Novo. Havia alguma resistência da Ditadura de Vargas com relação aos artigos escritos? Ou não havia nenhuma censura? Como é que a Igreja, inclusive, se comportou com relação ao Estado Novo?
O SR. PAULO EVARISTO ARNS - A censura foi total para a Arquidiocese de São Paulo, sobretudo. Havia, até, durante um certo tempo, um estudante de medicina. E um dia citaram o nome de D. Hélder dentro de uma história qualquer, e ele disse: “Esse nome está proibido de figurar em qualquer publicação". E riscou. Depois, um dia, estava a palavra do Papa Paulo VI, e ele disse: "Esta palavra aqui é uma palavra muito exagerada. Vamos tirar fora”. Eu disse... Aliás, foi o redator que disse: “Mas o senhor está censurando o Papa Paulo VI?” “Ah! Não importa. Em nome da revolução, tudo o que não deve aparecer não aparece”.
Então, nós fomos, de fato, vítimas de uma pressão muito grande para não publicarmos nada que, de alguma maneira, pudesse suscitar ao povo o desejo de se exprimir ou de ter um pouco de liberdade.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O senhor falou no Estado Novo. Então, era...
A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - É. Esse fato é em 64; com o Golpe de 64, não é?
O SR. PAULO EVARISTO ARNS - De 64.
A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - De 64.
O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - D. Paulo, como é que o senhor começou a atuar nessa área da defesa dos direitos humanos? O que aconteceu que o senhor...
A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Não, não.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Aí você vai saltar tudo.
A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Você vai saltar tudo!
O SR. ENTREVISTADOR - Não, ele já veio para cá.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Era bom começar pelo primeiro posto eclesiástico que ele teve quando voltou ao Brasil.
A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - É lógico.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O senhor, quando veio para o Brasil, qual foi o primeiro posto eclesiástico?
O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Ele já disse isso.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O senhor disse: "Não, eu quero voltar para o Brasil". Não foi?
O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Ele já falou disso. Petrópolis.
O SR. PAULO EVARISTO ARNS - Já falei disso...
A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Já.
O SR. PAULO EVARISTO ARNS - ... e já falei de Petrópolis, daquela visita...
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - E depois o senhor foi Bispo Auxiliar em São Paulo, não é?
O SR. PAULO EVARISTO ARNS - É.
A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - O senhor está em 64, não é? No Golpe de 64. O senhor estava falando da censura.
Agora, a Igreja apoiou o Golpe de 64. Como é que o senhor explica esse apoiamento ao Golpe?
O SR. PAULO EVARISTO ARNS - Quanto ao Golpe de 64, de fato, nós achávamos que o Brasil estava indo para uma desordem política e econômica e talvez estivesse se perdendo por aí.
Então, quando veio aquela reação de Minas, e veio pelas estradas de Petrópolis, eu tinha medo que se encontrassem os 2 Exércitos. E pedi, então, ao meu superior que ele pegasse o Jipe e fôssemos ao encontro da tropa.
Eu fui até o encontro, perto do Rio, para ver e lá encontrei os mineiros. E perguntei aos mineiros: “Ah! Vocês vão atirar, vocês vão matar, vocês vão brigar mesmo?” Então, os mineiros disseram: “Não, nós estamos tomando uma cachacinha aqui e depois nós vamos descer e aquilo vai ser uma festa lá no Rio. Não, não vai ter nenhuma dificuldade”.
Quer dizer, nós estávamos a favor de uma ordem que fosse estabelecida, conforme queriam os melhores brasileiros. Mas, quando percebemos — aí veio o caso — que foi cassado o Juscelino Kubitschek! Ah! Isso nos deixou revoltados. Foi cassado o Jânio. Aí, a gente dizia: “Bom, mas também não está certo; não fizeram nenhum processo, não fizeram nada”. Aí foram cassados outros, até um padre e depois um padre que foi Senador, um padre que foi Deputado. E todo esse mundo cassado sem julgamento! Sem nada!
Nós éramos todos formados na Europa e éramos 1 dúzia de professores e que nos reuníamos todos os dias para discutir as notícias. E todos nós descobrimos quanto... Eu me dei conta imediatamente que a coisa estava descambando, que a coisa estava indo para uma direção onde o Brasil não iria se encontrar a si, mas iria encontrar a discussão e, quem sabe, até uma espécie de revolução negativa. E o Brasil não ia ser aquele País que diziam libertar para depois ser governado por gente capaz e gente bem formada para isso.
Mas, de fato, desanimamos da Revolução muito cedo, em Petrópolis, porque éramos um grupo bem grande de gente formada em todos os países do mundo e, conhecedores das democracias, conhecedores da história de todos os povos e assim por diante, de maneira que não aprovamos mais a Revolução.
E quando eu vim para São Paulo — a Revolução começou em 64 —, em 66, eu já estava totalmente a favor daqueles que combatiam a Revolução. Eu, por exemplo, achava que não podiam cassar sem mais nem menos o Adhemar de Barros. Apesar de tantas coisas que se contavam a respeito dele, eu achava que não: “Não, tem que fazer um processo regular etc.”
E assim eu fui escolhido logo para a Direção da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, no setor de educação. E, nesse setor, eu viajei pelo Brasil e, onde eu podia, eu deixava uma sementezinha de dúvida sobre o movimento que estava sendo feito sem observar a lei e sem observar também a correspondência do povo dentro desse movimento todo. Então, parece-me que aí começou a nascer e crescer, e foi sempre crescendo mais.
E quando, então, prenderam os religiosos, e os religiosos da minha região — porque eu cuidava da Região Norte como Bispo Auxiliar desde 66; portanto, 2 anos depois da Revolução. Em 66, eu cuidava da Região Norte, e eu ia visitar os presos, ia ver os presos.
E um dia prenderam um juiz que era parente do Lucas Garcez. E o Lucas Garcez veio falar comigo, dizendo: “D. Paulo, estão fazendo uma injustiça contra esse juiz. Será que o senhor não pode entrar?” Eu disse: “Ah, isso é uma questão de um Cardeal! Vai falar com o Cardeal Rossi, pelo amor de Deus! Deixa o Bispo Auxiliar, lá, na...” Disse o Lucas: “Todos estão viajando. O senhor tem que fazer alguma coisa, porque tem pressa”.
Eu fui lá e, aí, então, eles me disseram: “O senhor mesmo vai julgar. O senhor mesmo vai ser o juiz neste caso. Nós vamos chamá-lo para dizer como somos sinceros no julgamento”. Aí, eu, 1 dia, 2 dias depois que eu tinha falado ao Comandante do II Exército, ele me mandou chamar e presidir o Tribunal. Aí, entrou a primeira testemunha. Eu disse à primeira testemunha: "O senhor vê que eu tenho a cruz de Cristo. O senhor vê que sou um Bispo da Igreja Católica. O senhor vê que eu quero a verdade. O que o senhor falou foi a verdade contra aquele juiz, que era tão bom, ou foi uma invenção sua?” Aí ele começou a chorar, a tremer e a dizer: “Ah, sabe, eles fizeram isso comigo etc.!” E o Coronel logo o levou embora. Aí trouxeram a segunda testemunha. A segunda testemunha veio, olhou e disse: “Eu conheço o senhor. O senhor já celebrou a missa na cadeia para nós. O senhor é muito bom!” Eu disse: “Mas aquilo que você falou contra o juiz é certo ou está errado?” Ele começou a tremer e disse: “Desculpe, D. Paulo, mas eles obrigam a gente a falar”. E foi levado embora. Aí, o Coronel que presidia aquela cerimônia disse assim: “A sua voz grossa, o seu jeito de aparecer, aquilo dá medo em todo o mundo!"
Eu não sei se eu dou medo em todo o mundo. O espectador pode dizer. Mas eu penso que fiz tudo com um sorriso e fiz tudo com alegria, querendo ajudar os 2 a sairem de uma arapuca e não consegui, porque os 2 mesmos se traíram imediatamente, e o juiz, depois de longo tempo e depois de aplicarem também não sei quantas outras medidas proibidas, foi solto, mas até hoje sofre as conseqüências.
Aí eu comecei a sentir: “a coisa está envenenada! “A coisa está realmente diante de uma solução que vai prejudicar a todos que lutam pela liberdade, a todos que lutam para ter um Brasil realmente novo, mas formado de todas as pessoas, e não apenas de algumas.”
A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Eu queria que o senhor contasse a sua participação no caso dos padres Dominicanos que foram acusados de envolvimento com o Marighella. O senhor teve uma participação nisso, não teve?
O SR. PAULO EVARISTO ARNS - Eu não tive nada com o Marighella. Eu soube do caso pelos jornais e nunca falei com um Dominicano a esse respeito. Nada.
Mas, com os Dominicanos mesmos, eu tive muito. Eu fui visitá-los quando eles foram para a cadeia e separados de todos os outros. Eu fui visitar cada um deles, por ordem do Cardeal de São Paulo, e fui verificar que eles tinham sido torturados. E sobretudo o Frei Tito foi tão torturado que cortou as veias e se desesperou, pois pensou que fosse possesso pelo Fleury, pelo Delegado Fleury. Então, foi um choque muito grande!
Depois, então, eles os transferiram para Presidente Prudente, lá para dentro. Eles transferiram os Dominicanos. Aí, eu peguei o carro e 2 vezes eu fui visitá-los lá na cadeia para dizer que nós estávamos ao lado da verdade e na defesa deles, porque, de fato, eles agiram conforme a consciência deles – conforme eles me diziam.
Mas eu nunca participei do caso Marighella em nenhum instante da minha existência, a não ser tomando conhecimento pelos jornais.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O Dom Tito acabou se suicidando em Paris. Como é que o senhor vê esse caso, que é um caso tão humano? Os 2 bispos foram levados pelos policiais para armar uma cilada contra o Marighella.
O SR. PAULO EVARISTO ARNS - O senhor sabe, foi um momento dos mais tristes da minha existência. Eu não gosto de evocá-lo, mas o senhor tem razão: o povo precisa saber.
O Frei Tito ficou tão impressionado com a tortura, como tanta gente ficou perturbada pela tortura, que o Frei Tito pensava que o Delegado Fleury habitasse dentro dele e dava ordens para ele e exigia dele tais e tais coisas. Ele mesmo dizia: "É o delegado que me manda fazer isso". Então, ele vivia como que possuído pelo delegado que o tinha mandado torturar dessa maneira.
E eu acho que um dia o delegado mandou que ele se suicidasse e ele se suicidou. E veio para cá. Eu o recebi na Catedral e fiz todas as cerimônias como se faz para uma pessoa que morre mártir de uma causa e nem sabe que está morrendo mártir por uma causa porque tem uma pessoa dentro de si. É uma espécie de possessão diabólica. O delegado soube entrar dentro dele.
O Frei Tito, eu nunca... Eu só encontrei os parentes dele, em Pernambuco, mas eu nunca tive mais relacionamento com este caso. Eu apanhei este caso assim como ele veio às minhas mãos e o ofereci à Catedral e ofereci também a minha presença para abençoar aquele corpo e para dizer a todos os brasileiros: existem mártires que são considerados covardes, mas existem também mártires considerados covardes que foram grandes heróis e que resistiram até o fim. É o caso do Frei Tito de Alencar.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O senhor chegou a protestar junto ao Governo Médici por esse fato, por essa violência?
O SR. PAULO EVARISTO ARNS - Nós nunca chegamos a uma verdadeira conversa com o Presidente Médici. Por isso eu nunca pude falar disso claramente.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Com alguma autoridade?
O SR. PAULO EVARISTO ARNS - O que eu queria fazer era com os Generais do II Exército, bem no final, quando já o Presidente Geisel tinha começado a permitir alguma manifestação.
Eu contei esse caso diversas vezes. Eu não sei quantas vezes eu o contei também para o General, porque eu dizia as coisas como elas eram, e eles sabiam disso. Dizia as coisas como elas eram. E por isso eles me respeitavam.
A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - D. Paulo, na década de 70, que foi o auge da ditadura militar, houve muito caso de tortura e morte. Foi o caso do Vladimir Herzog e do Manuel Fiel Filho.
O senhor teve contato com as autoridades brasileiras, seja o Presidente, no caso, o Golbery, enfim, com alguma autoridade brasileira para que passassem a respeitar os direitos humanos e parassem com a tortura?
O SR. PAULO EVARISTO ARNS - Sim. No caso Herzog, que você nomeou primeiro, ele foi de fato preso e foi morto na tortura, sendo abafado. Ele sofria do coração e teve então uma parada cardíaca e não pôde ser reanimado. Ele morreu dentro da prisão, como vítima da tortura.
Na hora — na hora! — eu fui ao telefone e telefonei a Brasília para dizer ao Secretário do Geisel, que era o...
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Golbery.
O SR. PAULO EVARISTO ARNS - Hein?
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda)- Golbery.
O SR. PAULO EVARISTO ARNS - O Coronel Golbery.
E telefonei ao Coronel Golbery. Ele me atendeu na hora, num segundo. Apenas a secretária, de quem ele me tinha dado o telefone, ouviu que era Paulo Evaristo e ela imediatamente passou para ele. Ele já disse: "D. Paulo, o que aconteceu?" Eu disse: "Fizeram uma coisa tremenda: mataram, na tortura, um jornalista de grande importância para a nossa agremiação toda — porque eu também sou jornalista e o senhor é também jornalista e escritor". Aí o Golbery disse — assim, no telefone mesmo: "Foi uma traição!" E bateu em cima. Depois disse: "D. Paulo, me desculpe. O senhor não tem culpa nenhuma. Mas nós vamos ver esse caso".
Isso foi quanto ao Herzog, porque o Herzog deu muito pouco tempo para nós. Foi preso na quinta ou sexta-feira e no sábado já estava morto. No sábado à tarde ele estava morto. E eu telefonei. Mas telefonei na hora! Na hora em que eu soube da notícia certa. Eu soube através de jornalistas que vieram a minha casa, e lá estavam 5 ou 6 me ajudando, me esperando. Então, eu fui imediatamente ao telefone. Eu tinha o número particular dele, pessoal dele, e telefonei pessoalmente para ele.
Mas uma outra ocasião muito mais importante em si foi quando ele me disse: "O senhor traga para cá uns 40 parentes — esposas, filhas etc. — de pessoas que foram torturadas ou mortas. O senhor traga eles para Brasília". Nós fomos para lá e nos reunimos numa sala que hoje é da CNBB. E ele ficou toda a tarde ouvindo os relatórios. E, quando chegou uma certa senhora, ele me disse assim — eu estava sentado ao lado dele: "Esta é a esposa do maior amigo que tive na vida". E ele chorou. Eu vi o Golbery chorando.
E, quando ele se despediu — já estava escuro —, eu fui para perto dele, ao lado do motorista, e ele me disse: “D. Paulo, que isso aconteça no nosso tempo, isso me dói! Isso me dói! Ele era contra a tortura. Ele era realmente contra a tortura! Podem falar mal dele, podem falar o que quiserem, mas os atos que ele fez comigo, uma meia dúzia de coisas...
Eu posso contar, por exemplo, o que ele fez em favor dos índios, lá na Amazônia, porque nós tínhamos uma igreja irmã na Amazônia. Também foi um gesto extraordinariamente belo, que pode ser contado em favor do Fleury e deve ser lembrado um dia, para que...
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Em favor do General Golbery.
O SR. PAULO EVARISTO ARNS - O General Golbery. É. O General Golbery.
A gente teria que lembrar também as coisas boas daquelas pessoas que não eram benquistas por uma grande parte do Exército.
(Interferência)
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Difícil foi o período do Presidente Médici, que era considerado uma pessoa intransigente, uma pessoa de difícil trato. E nós sabemos que o senhor teve um encontro com ele, que é um encontro histórico. Nós gostaríamos de saber como é que se deu esse encontro, por que se deu e como foi com o Presidente Médici.
O SR. PAULO EVARISTO ARNS - Com o Presidente Médici de fato eu me encontrei diversas vezes, porque naquele tempo as autoridades sempre iam receber o Presidente da República quando ele vinha a São Paulo. Então, eu o cumprimentava. Ele me conhecia. E uma vez até andei de metrô junto com ele.
Então, um dia, eu precisava falar com ele, porque os Bispos do Estado de São Paulo em peso me pediram que eu transmitisse ao Médici o que estava acontecendo aqui em São Paulo e que eles estavam seguros que uma pessoa da responsabilidade dele jamais iria aprovar tortura, prisões arbitrárias, desaparecimento de pessoas, e assim por diante.
Então, eu não sabia como chegar lá, mas eu tinha uma edição muito linda da Rerum Novarum, de Leão XIII, quando começou a Renovação Cristã do Trabalho, etc. Em letras góticas, linda mesmo! Então, a pessoa que tinha confeccionado esse primoroso presente me pediu para entregá-lo ao Presidente da República. Ora, eu pensei: "Talvez seja uma possibilidade". Telefonei ao Arcebispo de Brasília e disse: “O senhor pode me arranjar uma entrevista com o Presidente Geisel, para entregar um presente de Roma?”
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Presidente Médici.
O SR. PAULO EVARISTO ARNS - Presidente Médici, digo. O Arcebispo respondeu: “É um pouco difícil, mas, se o senhor tiver paciência, eu arrumo isso para o senhor, porque o senhor é Cardeal, afinal. O senhor pode ir.”
Então, ele me telefonou: “Está marcado para tal hora e tal dia, e o senhor faça o favor de estar aí a tempo, etc.. Mas tem que vir sozinho”.
Então fui sozinho para Brasília, levando aquele presente, bonito mesmo. E fui falar com ele para dizer o que estava acontecendo em São Paulo, não é? Mas entrei e imediatamente o cumprimentei. Eu me assentei no lugar que ele me designou, junto à mesa, e depois eu disse: “Presidente Médici, o senhor aceitaria um presente que foi confeccionado para o senhor, com muito gosto? É sobre o valor do trabalho, e é do Papa Leão XIII, talvez o renovador da Igreja para o século XX. Ele escreveu essa encíclica Rerum Novarum, ou seja, as novas coisas que vão acontecer.” O Médici imediatamente disse: “não!” — mas com um tom tão forte que até me chocou. Parece que eu não me assusto facilmente, mas dessa vez me assustei. Aí eu disse: “Então, está bem. Desculpe, mas a pessoa que o confeccionou, confeccionou para o senhor. Seria um presente dado por Roma, através de um cardeal que o estima”. Então, ele disse: “Afinal, o que o senhor está fazendo em São Paulo é contra a Revolução. De maneira que eu acho que o senhor não tem direito nenhum a isso”. Eu disse: “Sr. Presidente, eu estou aqui como o Presidente de mais de 40 bispos em São Paulo. Eles me pediram, em comum. Eu vim dizer a V.Exa. aquilo que está acontecendo: são prisões arbitrárias, desaparecimentos de pessoas e também julgamentos que, de fato, não se baseiam na verdade e na justiça”. Quando eu disse isso, ele se enfureceu tanto que agitou a mesa; agitou a mesa, assim. Eu, graças a Deus, naquele momento, fiquei extremamente calmo e disse a ele: “Sr. Presidente, eu estou aqui, em nome dos bispos, numa viagem de paz, de amizade e de entendimento mútuo”. Ele disse: “O seu lugar é na sacristia, e não se meta em política, porque há gente que ameaça até os nossos Ministros para seqüestrá-los, e vocês estão atrás de tudo isso”. “Veja, Presidente Médici, é um grande equívoco. Nós todos somos a favor da paz e queremos que todo o mundo se entenda, e se entenda logo; e colabore com o senhor e com as autoridades constituídas”. Ele disse: “Isso nós sabemos fazer. Isso não é da conta do senhor. Muito obrigado por sua presença, mas eu estou informado de tudo o que preciso ser informado. Eu não preciso do seu conselho. Volte para a sua cidade. O seu antecessor era muito mais amigo meu do que o senhor”. Eu disse: “O meu antecessor era o Cardeal Rossi. Ele lutava também pela fidelidade e pela paz e solidariedade humana.” “Muito obrigado, até logo.”
Ele levantou-se e me deu a mão, eu dei a mão a ele e saí de lá. Não contei nada para os jornais, não contei nada para os jornalistas, que sabiam que eu estava por lá, e alguns deles sempre faziam passar alguma notícia assim, curiosa como essa. Só que eu tive que fazer uma conferência, à noite, num centro ecumênico, e ali eu disse: “Eu acho que todos nós temos que trabalhar para que o Brasil encontre o caminho da paz, da justiça, mas também da solidariedade, o que não vejo, neste momento, na Presidência da República, da qual estou voltando nesta hora”. Foi só. Isso terminou aí, eu nunca me queixei do assunto, nunca reclamei. Quando ele morreu, eu não publiquei. Só publiquei agora. Quando as jornalistas descobriram o caso e puseram no livro delas, então, eu também tive que colocar no meu.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - E quando o Geisel assumiu, vieram sinais para o senhor de que haveria um combate à tortura, aos torturadores?
(Interferência)
O SR. PAULO EVARISTO ARNS - Pode repetir?
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Quando o Geisel assumiu, o senhor foi informado de que a disposição dele era de combater a tortura e os torturadores?
O SR. PAULO EVARISTO ARNS – Sabe, eu não só fui informado; eu fui chamado ao Rio para ir à casa de um professor, dono de uma grande universidade no Rio, irmão do Bispo Auxiliar D. Luciano Mendes de Almeida. Então o senhor já pode adivinhar quem é.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O Prof. Cândido Mendes de Almeida.
O SR. PAULO EVARISTO ARNS - O Prof. Cândido Mendes de Almeida. Ele me chamou e perguntou: “O senhor não quer ter uma conversa com o General Golbery?”. Eu disse: “Com o maior prazer. Meu Deus, isso seria uma alegria!” E ele disse: “Sabe, ele aceita. Só que nós temos que almoçar juntos e ficar conversando”. Almoçamos juntos e ficamos até às 4 horas da tarde conversando, e ele me disse duas coisas muito importante: “O começo da Revolução era muito puro, não se queria tortura, não se queriam enganos e não se queria que, depois, o povo tivesse desilusões. Depois entrou o grupo das torturas e agora existem, em muitos lugares, grupos fechados que defendem a si mesmos e torturam”.
Até contou-me o caso de um coronel ou major, não sei, que estava presidindo a tortura quando entrou o filho dele — o Golbery me contou. O presidente do Tribunal disse: “Esse não; esse vocês não torturam”. E todos disseram: “Ou ele ou o senhor”. Quer dizer, eles, de fato, tinham uma independência muito grande, segundo o General Golbery me confiou.
Portanto, havia grupos fechados em todos os grandes quartéis onde eles tinham a liberdade de agir, e de agir com energia, mesmo com instrumentos ilegais, totalmente ilegais e fora da civilização que nós já conseguimos durante esses séculos.
O General Golbery disse-me: “Nós vamos descer. Se não tiver jornalistas, o senhor vai saudar o Presidente Geisel, que também é contra a tortura. Ele só admite a tortura em caso extremo, quando não se consegue tirar uma notícia, a não ser com violência da parte do outro. Senão, ele não admite tortura. Ele é como o primeiro Presidente do Brasil que também não admitia tortura, e, no entanto, entrou e se propagou e hoje está por toda a parte”.
A SRA. ENTREVISTADORA – Dom Paulo, eu gostaria que o senhor comentasse um episódio que ocorreu aqui em São Paulo, muito bonito por sinal. Foi no momento em que o estudante Alexandre Vanucci Leme morreu, os estudantes foram procurá-lo e o senhor rezou uma missa. Eu queria que o senhor contasse esse episódio, que eu acho extremamente emocionante.
O SR. PAULO EVARISTO ARNS - Sabe, quanto aos estudantes, eu tenho diversos casos impressionantes, porque a participação do estudante e do operário para mim eram sempre pontos fundamentais.
Uma noite, por volta das 10 horas, eu estava em casa, já ia descansar quando me disseram que havia uma dúzia de estudantes que queriam falar comigo; que tinham pressa e o caso era urgente. Que, além de urgente era um caso extraordinariamente grave. Eu me arrumei, desci, os recebi na sala e eles me disseram: “Nós somos mais ou menos de 7 a 10, 11 mil reunidos lá na Cidade Universitária e queremos romper agora, sair quebrando tudo para levar o povo a saber o que acontece nesse Brasil”. E eles falavam com aquele entusiasmo. Eles disseram: “Olha, eles querem que o senhor vá lá para falar com eles”. Então, eu disse: “Eu vou lá com muito gosto. Só que, claro, está tudo cercado por policiais. Eu não quero ser preso indo para lá. O melhor talvez seja, em vez de eu ir para lá...”
Eles queriam uma celebração de missa lá, pelo Alexandre Vannucci, que havia sido morto. Inventaram a mentira de que ele queria fugira etc., e por isso o mataram. “Os estudantes estão lá, eles querem uma missa; de qualquer jeito querem uma missa; de qualquer jeito querem o senhor”. Então, eu disse: “Eu vou, eu vou, mas eu não vou para o campo, porque está todo cercado e o Brasil não vai ficar sabendo. Eu quero que a missa dele seja na Catedral, na Catedral Metropolitana de São Paulo, porque daí se irradia tudo, para o Brasil inteiro.” Eles ficaram duvidando um pouco. E, depois, disseram: “O senhor quer escrever isso?” Eu escrevi um cartão dizendo que os convidava a todos para tal dia, tal hora etc. na Catedral Metropolitana de São Paulo. Eu ia presidir a missa, junto com o Conselho Presbiteral de toda a Arquidiocese de São Paulo, e eles levaram. Depois me mandaram dizer que os estudantes aplaudiram e disseram: “Vamos estar lá”. Eu disse: “Mas cuidado. Na entrada, vamos dar uma folha de cantos. Mas, de fato, a folha de cantos também é para se cobrir, para vocês não serem reconhecidos pela polícia etc.”
Então, na hora marcada, 3 horas, eu já estava pronto para sair, porque achava que deveria estar lá na Catedral algum tempo antes, e chegaram dois amigos, que eram Secretários do Paulo Egídio, o Governador. Eles queriam me convencer que o Geisel estava aí e que o Paulo Egídio me mandava o aviso que eu não fosse; que eu seria o culpado de muitas mortes porque, entre o povão, em torno da Catedral, estava cheio de policiais armados. Eu disse: “É muito curioso. Mas pode responder que a nossa arma é muito mais forte. Nós temos, em cada janela, um jornalista com uma máquina fotográfica, e das mais modernas, para fotografar qualquer pessoa que atire, e essa pessoa será execrada por toda a vida, porque atirou no povo, no povão!, reunido. E pode dizer ao Paulo Egídio que onde o rebanho está em perigo, o pastor tem que estar presente.” Eram dois amigos, Secretários, eu os abracei e disse: “Vão para casa, mas não façam nada. Contem aquilo que vocês ouviram, porque vocês são obrigados a ser fiéis. Então, vão para casa. Eu vou imediatamente.” E fui antes deles, para não haver alguém que me cercasse e me impedisse a aproximação da Catedral.
Fui à Catedral e, de fato, o amigo protestante, que é presbiteriano, o Jaime Wright, de fato, não estava lá ainda, mas já estava o Rabino Sobel. O Rabino Sobel era novinho, não era conhecido em São Paulo. Era a primeira vez que ele participava, e, naturalmente, contou uma história bonita e tirou uma conclusão bem do gosto do povo, né? Ele tem jeito para isso.
Durante a cerimônia, chegou não só o Jaime Wright, que fez uma oração muito bonita; um salmo e depois uma oração muito bonita. E eu fiz o discurso. E, no meio do discurso, dizia: “Os mandamentos de Deus são 10, mas no cerne, no centro, está a palavra ‘não matarás’. E mataram, mataram um estudante. Dizem hoje que foi por um acaso, porque ele fugiu etc. e foi atropelado por um carro.” Então, eu disse: “Não, vamos levar essa coisa para frente com muita calma.”
E fomos na Catedral, levamos para a frente, e fizemos com toda calma toda a cerimônia judaica. Eu disse “É dentro de um templo católico, porque não há espaço.” Aliás, os rabinos tinham dificuldade de concordar com o ato ecumênico.
Mas, como eu tinha provas não só da própria pessoa que lavou o cadáver e viu os sinais da tortura no cadáver, mas tinha mais uma outra prova que eu não vou contar aqui, nós sabíamos que ele não tinha se suicidado, que não tinha morrido por acaso, mas tinha sido morto, morto mesmo, portanto, assassinado. Então, eu achei que na Catedral isso devia ser dito: “’Não matarás’ é o cerne!, o centro!, de todos os mandamentos de Deus! A vida é a expressão mesma de Deus! Deus é vida! e Ele nos dá a vida para nós aproveitarmos e fazermos o bem o tempo que pudermos durante a existência.”
O discurso foi curto, tudo foi curto. Aí, quando terminou, eu ouvi uma voz atrás de mim. Era D. Hélder Câmara, que não tinha sido convidado de jeito nenhum. E ele disse no meu ouvido: “D. Paulo, nessas ocasiões há muito perigo de se encontrarem lá fora, depois pode dar uma desordem e os que estão aqui na cerimônia reagirem às provocações. O senhor diga que saiam em grupos de 5 e 10 e não aceitem nenhuma provocação, não respondam a nada, absolutamente nada. Deixem o pessoal falar mal e vamos para casa e vamos lutar pelo Brasil melhor.”
Quando eu estava lá fora, a esposa dele, a Clarice, né? A esposa dele ainda estava sendo cumprimentada dentro da Catedral. Eu estava lá fora, passaram grupos de jovens com cabelo cortadinho, como os militares, e provocando: “Oh, olha os covardes, rezando por suicidas, rezando por gente que faz mal ao Brasil” e não sei o quê, não sei o quê. Nenhum dos jornalistas que estavam comigo respondeu nada, nada. Eles se admiraram. Eu acho que em toda a parte se admiraram. O conselho de D. Hélder foi muito bom e trouxe a paz.
Depois então, quando a Clarice saiu, não tinha carro para ela. Eu disse: “Entra no meu carro, eu vou levar você até a sua casa. Só que eu não sei onde é, você guia.” Ela, então, nos orientou e a levamos para a casa dela. E assim terminou aquela tarde com um sentimento muito pesado, de termos um Brasil que não reconhecia nem mesmo a qualidade de um jornalista, de um comunicador sincero e que tenha um posto de direção até na TV Cultura. Por que, então, continuar se o Brasil espalha mentira a respeito do que faz? Mas Deus sabe o porquê.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O senhor era da Comissão dos Desaparecidos do Cone Sul; está na sua biografia na Fundação Getúlio Vargas. Matou-se no Brasil; matou-se muito mais na Argentina. Na Argentina chegou ao número 30 mil, não é? É o que se fala. O senhor sabe mais do que a gente. No Chile, também matou-se; matou-se no Peru – muito; no Paraguai; na Bolívia. Os americanos apoiaram todos esses regimes militares que se instalaram na América Latina.
Também queria que o senhor falasse a respeito da morte de ex-Presidentes da República que coincidiu com a denúncia em Caracas, numa reunião de líderes de esquerda, de que a DINA, chilena, o serviço secreto argentino e o SNI prepararam a eliminação física de líderes da Social Democracia. Por coincidência morreram – de 6 em 6 meses – respectivamente: o ex-Presidente Juscelino Kubitschek; 6 meses depois, o ex-Presidente João Goulart, numa morte misteriosíssima, e 6 meses depois do Jango, o ex-Governador do Rio de Janeiro, Carlos Lacerda.
Gostaria que o senhor falasse desses dois fatos: a violência comum nesses países de regime militar na América Latina — o senhor foi Presidente da Comissão de Desaparecidos do Cone Sul e tem muita informação sobre isso — e sobre as mortes de líderes importantes da Social Democracia na América Latina, todos brasileiros.
O SR. PAULO EVARISTO ARNS - Primeiro, vamos aos fatos.
(Interferência)
O SR. PAULO EVARISTO ARNS - Nós fundamos, aqui em São Paulo, a Comissão de Direitos Humanos, que foi muito valente, muito calma e também muito eficiente. Fundamos, em São Paulo, um outro grupo chamado Santo Dias, depois que foi assassinado o líder operário Santo Dias, do qual Hélio Bicudo até hoje é Presidente. Depois fundamos um terceiro grupo. O terceiro grupo era das paróquias, de lugares onde queriam ter sempre um advogado para defender uma pessoa que fosse presa. Depois, fundamos uma quarta coisa, a revista O Clamor e a união entre o Uruguai, a Argentina, mais tarde o Chile e, logo no começo, o Paraguai.
Bom, para o Paraguai, a coisa foi mais simples. O arcebispo me convidou para uma visita a Assunção. Eu fui e lá pedi ao Ministro do Culto que me apresentasse toda a lista de presos, porque eu queria examiná-la. Ele, em vez de apresentar a lista, soltou os presos. Então, mais de 500 presos foram soltos, vieram em torno da casa do arcebispo festejar comigo e tiraram uma fotografia que ainda deve existir por aí. Mas isso foi no Paraguai, foi muito simples.
Na Argentina, foi muito mais complicado. Na Argentina nós tínhamos 12 grupos, e esses grupos todos eram ecumênicos, quer dizer, não se olhava para a mentalidade da pessoa, e sim para a sua inteireza; se a pessoa estava realmente defendendo os presos, defendendo uma democracia, a participação do povo e a justiça com a solidariedade. Então, fundamos O Clamor, a revista, que espalhava todos os maus feitos da Argentina para todos os lugares, inclusive para o Papa, inclusive para Roma. Depois, conseguimos 12 grupos na Argentina que nos juntassem todos os dados etc. Nós comparamos todos os dados e fizemos um livro dessa grossura, que eu entreguei ao Papa e lhe disse: “Esse relatório é muito fiel.”
Um dia, ele estava celebrando justamente o fim do ano jubilar, e eu estava na praça vestido de Cardeal. Ele me chamou para o seu lado, e disse: “Este homem aqui está sendo acusado de prejudicar as nações da América Latina, mas está defendendo a justiça, a verdade e a solidariedade.” O povo todo clamou, e isso ressoou no Brasil de uma maneira favorável e até foi muito interessante, porque os jornalistas brasileiros, pouco antes, me tinham dito: “O senhor vai receber um pito do Papa em público”. E o pito foi esse, que ele me desse o louvor.
A mesma coisa nós fizemos no Uruguai, só que lá tínhamos apenas um grupo. Eles nos informavam de tudo. Nós, então, levamos isso adiante para todos os lugares onde era possível.
Tínhamos acesso à American Press, à France Press etc., porque os redatores das diversas organizações estavam aqui conosco e tinham reuniões particulares comigo, como também tinham reuniões com outras pessoas informadas que nos podiam nos informar. Assim, desse modo, trabalhamos juntos.
Quanto ao Chile, fui convocado pela ONU para fazer parte do grupo para examinar as coisas. Fomos aos comedouros, às paróquias, pregamos em todos os lugares. Eu tinha até alguns alunos de Teologia no Chile que me convidaram para falar para eles. Foi muito bom trabalhar no Chile depois do Allende e ter colhido as coisas mais importantes.
Aliás, o Chile acaba de me dar a maior distinção da nação. Os chilenos queriam que eu recebesse o prêmio no Chile mesmo, para tornasse conhecido na nação inteira e na América Latina, mas eu estava doente — como estou ainda — e não pude ir até lá.
Mas eu sei que todo o Cone Sul, como chamamos a parte sul da América Latina, estava incluído dentro da nossa luta no fim dos tempos, porque o pessoal começava a conhecer-se e a descobrir quem era digno de fé e quem realmente lutava ao lado do povo.
Por sorte, aqui em São Paulo, tivemos não só o Dalmo Dallari como chefe, depois houve outros, e não tivemos uma pessoa que arredasse o pé quando era para defender a justiça. Todos os nossos Presidentes realmente representavam a inteligência, o coração e a maneira brasileira de pensar.
Valeu a pena unir todo o Cone Sul. Até hoje, de vez em quando, recebo uma visita para agradecer e dizer: “Olha, o bem que foi feito também aconteceu porque o Brasil entrou lá dentro”.
Um dia encontrei o Presidente dos Estados Unidos e viajei com ele e a esposa de carro pelo Rio. Então perguntei: “Sr. Presidente, é verdade que a tortura e todos os aspectos psicológicos da tortura nos foram ensinados pela CIA?” Ele virou para a esposa e disse: “Olha, é uma pergunta difícil” — como eu entendo inglês, eu entendi a conversa. “Olha a pergunta difícil que ele faz! O que eu respondo?” Então, a esposa, muito inteligente — e ficou muito amiga minha depois —, disse a ele: “Responda que é possível.” Foi uma resposta boa de um Presidente da República, porque não comprometeu a América do Norte nem o seu país, mas também não negou.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Quem era o Presidente?
A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Era o Jimmy Carter?
O SR. PAULO EVARISTO ARNS - Era o Jimmy Carter. Não precisava dizer, mas era o Jimmy Carter, que até hoje me escreve. Eu até o felicitei quando ganhou o Prêmio Nobel da Paz, e ele mandou uma carta em resposta, porque continua estimando a nossa amizade, como sempre, uma amizade baseada numa coisa séria! Em favor do povo! Em favor da liberdade! Em favor da democracia! E, sobretudo, em favor da solidariedade humana!
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Sobre as mortes do Juscelino Kubitscheck, Carlos Lacerda e João Goulart o senhor tem alguma informação?
O SR. PAULO EVARISTO ARNS – Não. Eu deveria encontrar o Juscelino naquela noite, e ele foi chamado para o Rio um pouco antes. Ele estava numa festa, e eles me tinham convidado, mas eu não queria ir porque não convém a um Cardeal de São Paulo. Mas nós íamos nos encontrar naqueles dias, embora não conversamos muito na vida.
A mesma coisa eu posso dizer do Goulart, embora eu tenha celebrado a missa por ambos, uma missa muito solene, e fosse muito ligado à irmã dele, que é esposa do Governador Brizola. Assim, posso dizer que houve um consenso, mas não houve propriamente uma troca de idéias e uma ajuda mútua. Isso eu não poderia afirmar.
A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Está ótimo, D. Paulo.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Muito bom, Cardeal.
(Interferência/Pausa.)
O SR. PAULO EVARISTO ARNS - Uma benção de Deus. Uma grande benção.Quando eu andava pelos morros de Petrópolis, as crianças, dos sete morros, gritavam: “Bênção, frei! Bênção, frei!” Esses aqui são chamados de frei. Então eu gritava: “Deus te abençoe. Falem com a mamãe que Deus abençoa!” E corriam para dentro para contar à mamãe que Deus tinha abençoado. (Risos.)