Texto
DEPARTAMENTO DE TAQUIGRAFIA, REVISÃO E REDAÇÃO
NÚCLEO DE REDAÇÃO FINAL EM COMISSÕES
TEXTO COM REDAÇÃO FINAL
ENTREVISTA COM O SR. DEPUTADO DELFIM NETTO |
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EVENTO: Entrevista |
N°: ESP002/03 |
DATA: 03/12/2003 |
INÍCIO: 09h00min |
TÉRMINO: 11h59min |
DURAÇÃO: 03h00min |
TEMPO DE GRAVAÇÃO: 03h00 |
PÁGINAS: 52 |
QUARTOS: 36 |
DEPOENTE/CONVIDADO - QUALIFICAÇÃO |
DELFIM NETTO – Deputado Federal pelo Estado de São Paulo. |
SUMÁRIO: Entrevista com o Sr. Deputado Delfim Netto. |
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OBSERVAÇÕES |
Houve intervenção fora do microfone. Ininteligível. |
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Ministro, relembre como o senhor chegou ao Ministério da Fazenda.
O SR. DEPUTADO DELFIM NETTO - Eu nasci em 1928, num bairro operário de São Paulo chamado Cambuci. Estudei inicialmente no Liceu Siqueira Campos, no Cambuci, depois fiz um curso de contador — sou dos primeiros contadores do tempo de 6 anos. Quando tinha 16 ou 17 anos, meu desejo era ser engenheiro, mas era muito difícil fazer engenharia, porque o curso era de tempo integral. Eu decidi, então, procurar o refúgio de todo brasileiro: um emprego público. Naquele tempo, o expediente era de meio dia, o que me permitia freqüentar a universidade.
Antes disso, com 14 anos, eu fui trabalhar na companhia Gessy, onde comecei como office-boy e lá fiz minha carreira de 4 anos.
Prestei concurso para a USP e entrei; prestei concurso no DER e entrei. Então comecei esta minha vida.
Houve uma coincidência. Em 1946, 1947, foi permitido aos contadores prestar vestibular na USP. Eu, então, escolhi o curso de economia, que freqüentei de 1947 a 1952, ano em que me formei — estou com 50 anos de formado. Permaneci na escola na condição de professor assistente e logo depois fiz doutoramento e cátedra. Fiquei na escola praticamente até 1966,1967.
Em 1966, além da escola, eu era assessor da Associação Comercial. Lá eu era técnico, e também lá, já um eminente bancário, estava Laudo Natel. Houve uma intervenção federal em São Paulo, Laudo Natel, que era Vice-Governador, me convidou para ser Secretário da Fazenda.
Aqui talvez tenha havido uma mão do Dr. Bulhões e do Campos, dos quais fui assessor ad hoc durante o Governo Castello Branco.
Fui Secretário da Fazenda, e, um dia, o Rui Gomes de Almeida, que era Presidente da Associação Comercial, me disse: “O Presidente Costa e Silva está precisando de alguém que faça uma exposição sobre agricultura”. Minha especialidade era café. Eu havia trabalhado com café desde bem mocinho, com gente que entendia do assunto, e me dispus a fazer essa palestra. Fui ao Rio, fiz a palestra sobre agricultura em geral, o problema da reforma agrária, que já naquele tempo se faziam as mesmas reivindicações de hoje. Foi tudo muito agradável.
Continuei na Secretaria da Fazenda de São Paulo até o final do Governo Laudo Natel. Antes de encerrar o Governo Laudo Natel, o novo Governador eleito, Abreu Sodré, me convidou para continuar na Secretaria. Aceitei de bom grado. Abreu Sodré era uma pessoa extraordinária.
Um dia estava eu sentado em meu gabinete na Secretaria da Fazenda e recebo a visita de um cidadão — depois vim a saber que era o Coronel Andreazza. Ele era portador de uma carta do Presidente Costa e Silva me convidando para ser Ministro da Fazenda.
Nunca houve nenhuma conversa com ele nem coisa nenhuma. Eu recebi por carta o convite. Fiquei muito feliz, é claro. Aceitei o convite. E aí começou a minha vida no Ministério da Fazenda. Não tinha praticamente nenhuma relação com o Presidente, mas as relações eram muito agradáveis. Hoje, relembro sempre com muito carinho o Presidente Costa e Silva, que era, na verdade, uma pessoa não só competente como rigorosa nas coisas que fazia.
Trabalhei com o Presidente Costa e Silva; houve problemas graves: primeiro, o Ato Institucional nº 5; depois, seu derrame; em seguida veio a Junta, e tive a honra de continuar trabalhando. Foi eleito o Presidente Garrastazu Médici, que me convidou para continuar no Ministério, e eu fui até o fim do Governo Médici.
(Intervenção fora do microfone. Ininteligível.)
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Quando o senhor assumiu o Ministério da Fazenda, recebeu uma política baseada na contenção dos gastos públicos e dos salários, na correção das tarifas dos serviços públicos, na eliminação de subsídios governamentais e no incentivo ao mercado de capitais — aumento das exportações e ingresso de capital estrangeiro.
Foi um período de saneamento das finanças públicas, austeridade e modernização da máquina administrativa, de flexibilização do mercado de trabalho e de combate tenaz à inflação, que reduziu de 100% para 54% em 1967. Foi nessa época que nasceu o Banco Central para gerir a política monetária.
Essa política foi, então, duramente criticada por empresários e sindicatos de trabalhadores insatisfeitos com a queda do poder aquisitivo e a instituição da estabilidade.
O que o senhor fez para mudar esse quadro?
O SR. DEPUTADO DELFIM NETTO - Na verdade, quando eu assumi, em 15 de março de 1967, o Brasil tinha feito uma verdadeira revolução, promovida pelo Dr. Bulhões e Roberto Campos. Em toda a estrutura administrativa do País houve mudança muito profunda que culminou no Decreto-Lei nº 200, do Beltrão, que rearrumou a administração.
Fatos importantes não foram só a criação de mercado de capitais. Haviam feito uma reforma tributária muito ampla mas não a puseram em prática. Quem a pôs em prática foi o Governo Costa e Silva, quando assumiu no dia 15 de março. De forma que o País estava realmente preparado para um crescimento mais amplo.
Havia uma longa discussão. A política econômica Bulhões/Campos acreditava na necessidade de mudança da expectativa inflacionária, o que seria alcançado apertando-se o crédito de forma até exagerada. Havia, naquele momento, enorme desperdício de recursos, desemprego, o capital estava sendo utilizado num nível muito baixo.
Quando eu entrei... Sempre digo que o Dr. Bulhões você não substitui. Dr. Bulhões, no máximo, você poderia sucedê-lo. Bulhões era uma figura extraordinária, como era o Campos, com uma intuição muito grande, porém com uma crença feroz de que apenas a política monetária podia resolver o problema. É verdade que eles lutavam muito pelo equilíbrio orçamentário, o que só foi conseguido posteriormente.
Quando nós entramos, considerando o espaço que existia entre o produto potencial, aquilo que o Brasil podia produzir, e aquilo que o Brasil de fato produzia, por conta da política econômica restritiva, vimos que era possível crescer. Exatamente o que está acontecendo hoje no Brasil: há um produto potencial que não se realiza por causa de uma política econômica restritiva.
Nós, então, introduzimos a reforma tributária e começamos um processo de redução da taxa de juros, de ampliação dos créditos, de ampliação do prazo de recolhimento dos impostos, para devolver capital de giro para as empresas. Lentamente o Brasil começou a viver outra vez; foi-se expandindo e o PIB começou a crescer aceleradamente. A partir daí, uma coisa ajudava a outra. O crescimento do PIB muito rápido, crescia a receita da União; o crescimento da receita da União permitia a extensão dos prazos de recolhimento dos impostos.
Imaginem que o ICMS, o IPI eram recolhidos 90 dias depois das operações. Hoje são recolhidos 8 dias antes de a operação se concluir. Com isso se ampliou o capital de giro das empresas e se reduziu muito a taxa de juros. Continuamos dando grande ênfase às exportações. Já naquele tempo, todos nós sabíamos que a restrição fundamental para o crescimento brasileiro era o setor externo. Isso havia começado no Governo Castelo, mas ainda com taxa de câmbio fixa. Houve uma desvalorização antes de começar o Governo Costa e Silva.
Em agosto de 1968, percebemos que aquilo não tinha futuro, porque a cada ano tinha que se fazer aquela desvalorização e descalibrava a economia inteira. Introduzimos, então, o que se chamava crawling peg, quer dizer, desvalorizávamos a moeda duas vezes por semana, ao acaso, calculando a diferença entre as taxas de inflação brasileira e americana. Com isso, se obteve enorme sucesso nas exportações, que cresceram muito, mais de 10% real no período inteiro, e começou‑se a ter, então, mais espaço para crescer. E foi o que aconteceu realmente. Houve redução persistente da inflação, aumento do crescimento e o Brasil foi encontrando o seu caminho.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) -Que plano estratégico de desenvolvimento foi lançado?
O SR. DEPUTADO DELFIM NETTO - Agora você teria que perguntar o negócio do...
O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - A famosa reunião quando foi decretado o AI-5?
O SR. DEPUTADO DELFIM NETTO - É isso aí. A pergunta teria que ser: o que aconteceu nesse interregno?
O que aconteceu de importante nesse interregno é que houve o Ato 5. Quando houve o Ato 5, do qual participei, e sempre continuo dizendo que, se as circunstâncias fossem as mesmas que eu vi e o futuro fosse conhecido, continuasse opaco como ele é, eu votaria como votei naquele momento. O meu depoimento tem sido um pouco controvertido. Algumas pessoas dizem que eu exigi até mais. Não. O que eu disse, e está escrito com todas a letras, é que eu queria aproveitar aquilo que estava acontecendo para completar as reformas que faltavam. E foi realmente o que aconteceu. Tão logo o Ato 5 saiu, fizemos enorme mudança no Sistema Financeiro Brasileiro. Esse, sim, foi um fator muito importante para a continuidade do crescimento. Tanto é que crescemos, no período, 6%, 7%, um pouco mais um pouco menos, até a Junta.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Quais foram essas mudanças?
O SR. DEPUTADO DELFIM NETTO - Mudanças pontuais, impostos, e todas restabelecendo a confiança no setor privado, no Estado.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Essas mudanças seriam aprovadas pelo Congresso?
O SR. DEPUTADO DELFIM NETTO - Essas mudanças foram, depois, aprovadas pelo Congresso, não no momento do Ato 5. Por isso que era uma coisa, digamos assim, que se processou com muito mais rapidez do que se processaria normalmente se o Congresso estivesse funcionando.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Como era a reunião ministerial do Ato 5, porque há uma versão desencontrada a respeito dessa reunião presidida pelo General Costa e Silva, com a presença do Vice-Presidente Pedro Aleixo. Como foi essa reunião ministerial sobre a qual existem tantas versões?
O SR. DEPUTADO DELFIM NETTO - Na verdade, cada um cria a sua própria versão. Mas havia um documento preparado, acredito, pelo Ministério da Justiça; houve um ajuste, o Dr. Pedro Aleixo tinha conhecimento pleno do documento, que depois foi submetido à votação. Cada Ministro deu o seu voto. O meu voto é esse que felizmente está registrado corretamente. O que eu queria era usar aquela oportunidade para fazer algumas coisas econômicas que ainda não tinham sido feitas, e que foram feitas.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Essas mudanças tiveram grandes resultados....
O SR. DEPUTADO DELFIM NETTO - Ah, sim. Essas mudanças produziram a continuidade mais simples do processo de crescimento.
O que é preciso lembrar é o seguinte: a situação no mundo era complicada — 1968 foi um ano difícil no mundo inteiro. Mas havia uma expansão econômica. O que o Brasil fez ? O Brasil ligou o plug no mundo. Essa é que é a essência do que aconteceu.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Agora, há muitas controvérsias também em relação à condução da política econômica quando o senhor era Ministro.
A que o senhor atribuiu o sucesso indiscutível nos números de crescimento do Brasil, na década de 70, cujo crescimento foi expressivo de 7%, 8%, até 10%. Quais foram as medidas que, conjugadas, levaram a esse desempenho considerado excepcional do século comparativamente ao que houve em várias décadas anteriores. Só no tempo do Juscelino é que houve expansões assim tão vigorosas. A que atribuir isso?
O SR. DEPUTADO DELFIM NETTO - Na verdade, é preciso lembrar que foi uma expansão com duas características importantes.
Primeira, foi a maior taxa de crescimento a que o Brasil assistiu, tanto que, em 1973, a taxa de crescimento foi de 14%, e o período médio, digamos, do Governo Médici, dá 9%, 10% de crescimento, reduzindo a inflação, sistematicamente. Isso, obviamente, incomodava a Oposição de uma maneira brutal, o que era até natural, porque eles tinham que se defender.
A segunda é que foi um crescimento com equilíbrio externo. O câmbio flutuante, o crawling peg, na verdade, o Governo Médici terminou com uma dívida externa de 12 bilhões de dólares, e tinha como reservas 6 bilhões de dólares. Ou seja, a dívida líquida somava 6 bilhões de dólares e as exportações eram de 6 bilhões de dólares. Quando você olha para aqueles números, nunca mais nós conseguimos esses números. Quer dizer, a relação dívida/exportação era 1, que é um número extremamente virtuoso, e muitos países cultivam isso; e é importante realmente. É um dos fatores mais importantes na construção do Risco Brasil.
Esse crescimento se deve ao fato de a política monetária ser bem ajustada, da existência de uma preocupação muito grande com a taxa de juro real; e o Governo tinha um papel muito mais importante na intervenção do Sistema Financeiro, a taxa de câmbio era ajustada semanalmente; o sistema tributário produziu o equilíbrio orçamentário. Quer dizer, aqueles anos todos foram anos de equilíbrio. Isso tudo é que produziu esse resultado.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Na verdade, foi o senhor que introduziu o ICMS, substituindo o antigo IVC — Imposto sobre Vendas e Consignações — pelo ICMS.
O SR. DEPUTADO DELFIM NETTO - Isso, aqui, estava no projeto de reforma tributária. Esse é um fato muito interessante, porque o Governo Castelo fez a reforma. Normalmente, qualquer reforma começa no dia 1º de janeiro. Eles decidiram deixar que o Governo Costa e Silva começasse a reforma.
Então, a reforma entrou em vigor, imaginem, no dia 15 de março de 1967.
Quando ela entrou em vigor, era uma reforma muito superior a tudo o que o Brasil já tinha visto. Hoje, a memória no Brasil é curta. Mas, em 1967, no dia 13 de março, você ainda lambia os selos e colocava nas faturas. Quer dizer, era um sistema arcaico completamente. No dia 15, entra um regime, inteiramente novo, moderno. E qual não foi a nossa surpresa? Ele talvez fosse mais moderno do que era possível. Por quê ? Porque o ICMS é um imposto típico de um país unitário. Quando entrou em vigor, o ICMS, os governadores, rapidamente...
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Isso na França, não é?
O SR. DEPUTADO DELFIM NETTO - É, de onde ele foi copiado, aliás. Os governadores perceberam, claramente, que ele podia ser usado como tarifa alfandegária. Então, cada um começou a fazer as suas mudanças internas. Foi preciso criar um órgão que, depois, muito depois, o Mário Simonsen institucionalizou, chamava-se CONFAZ.
O CONFAZ reuniu secretários da Fazenda, sob a presidência do Ministro da Fazenda. Então se punha ordem naquela desordem produzida pelo ICMS, como agora. Na nossa reforma tributária, de 2003, a maior dificuldade qual foi? A balbúrdia causada pelo ICMS num país federal é visível, de forma que o ICMS é incompatível com um país federal. Um país federal precisa ter um IVA federal.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda)- O ICMS é incompatível com a autonomia federativa.
O SR. DEPUTADO DELFIM NETTO - Não há dúvida nenhuma; ele precisa de um IVA federal. O IVA federal não precisa ser recolhido pela União. Ele pode ser recolhido pelos Estados, mas com uma legislação única, adequada, com a cobrança no destino. Tudo isso é perfeitamente possível desde que você aceite esses princípios.
Estou convencido, há muitos anos, de que o Brasil é autenticamente um país federal.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda)- Agora, Ministro, é evidente que o senhor, com a experiência e vivência que tem do problema brasileiro, sabe que essa reforma tributária num regime democrático teria sido inviável. Ela foi viabilizada pela existência de um regime de exceção.
Como era a sua relação com os governadores ? Habitualmente, depois do Ato 5 era um tipo de relação; antes do Ato 5 era outro. O senhor, naturalmente, estabelecia diretrizes de política econômica a que os governadores tinham que obedecer, tinham que cumprir.
O SR. DEPUTADO DELFIM NETTO - Na verdade, o Ato 5 reforçou o poder central. Esse é um fato muito evidente. O que eu digo é que o Brasil é um país federal. Desde Pedro I, o Ato Adicional 34 mostra que nem naquele instante de criação do País era possível se livrar das pressões provinciais, do desejo de as províncias terem uma parte no processo tributário.
Na Regência, todas as revoluções foram estimuladas por problemas tributários, fiscais, de forma que essa idéia de que a noção de federalismo é falsa no Brasil esta noção é que é falsa. O Brasil é um país federal. E qualquer reforma tributária bem-sucedida tem que levar isso em conta.
O que acontece é que normalmente num regime, digamos, democrático, de plena liberdade, republicano, de pluripartidarismo, a organização desse sistema de discriminação de renda é extremamente difícil. Extremamente difícil por muitos motivos, não só porque governadores e prefeitos têm, na verdade, desejos muito superiores aos permitidos pela sua receita. No caso de prefeitos, por exemplo, é um verdadeiro escândalo. Hoje, boa parte dos 5.400 municípios não tem como se sustentar. São truques políticos produzidos pelo fundo de participação que, quando se divide um município em dois, aumenta a renda dos dois. De forma que...
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - E reduz...
O SR. DEPUTADO DELFIM NETTO - Dos outros. Então, o que acontece? Agora, quando tentamos fazer a reforma tributária, ficou claro isso. Quer dizer, as reivindicações de governadores e prefeitos não cabem no PIB. Eu sempre brinco, não cabem nem no PIB americano.
Agora, há, por outro lado, na minha opinião, o desejo muito grande da União de centralização; os Ministérios são gigantescos.
Quer dizer, a idéia de que se precisa de um Ministério da Saúde do tipo que tem no Brasil, e que concentra em Brasília não sei quantos, 30, 40 mil, 50 mil sujeitos, sabe Deus quantos, e depois se reproduz no Estado, digamos em São Paulo, onde tem mais 50, 60 mil, e depois se reproduz no Município, onde tem mais 5 mil, 4 mil... Deveria ter um conselho de saúde na União que uniformizasse a política de saúde, e essa política de saúde seria executada pelos municípios. Ninguém mora no Estado nem na União, todo mundo mora no Município.
O que acontece? O tipo de organização consome a energia internamente. Não se trata de corrupção não. Você coloca 1 real na Saúde...
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Atividade-meio, não é?
O SR. DEPUTADO DELFIM NETTO - Atividade-meio consome atividade-fim. Se se colocar 1 real no Ministério da Saúde, ou da Educação, ou em outro ministério qualquer ele vai sendo roído lá dentro e chega até o pobre desgraçado 10 centavos, 5 centavos. Então era preciso fazer uma mudança muito profunda nesse processo. Essas coisas só acontecem com a experiência. A União não gosta de abdicar do comando, os Estados têm obrigações que não têm condições de satisfazer e são os Municípios que recebem a pressão da população.
De forma que a organização do País é bastante complicada, e isso certamente dificulta o crescimento.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda)- Uma pergunta que cabe fazer — muita gente discute hoje no Brasil, já discutiu muito: quando o senhor assumiu o Ministério da Fazenda, o Produto Interno Bruto do Brasil em dólar quanto era? Quando o senhor saiu em 1974, quanto ficou esse Produto Interno Bruto? Em 1964, quanto era esse PIB quando Jango caiu? Quanto era o PIB depois que o Castelo saiu?
O SR. DEPUTADO DELFIM NETTO - Vamos dizer o seguinte: os primeiros 3 anos depois do Jango foram de ajustes. Os crescimentos foram muito pequenos, até um crescimento negativo. Fez-se um ajuste brutal; mudou-se a cara da sociedade brasileira; organizou-se a sociedade não de acordo com o gosto de todos, mas de acordo com quem tinha o poder. Posteriormente, as coisas caminharam um pouco mais fácil, até o Ato 05, quando realmente recentralizou-se as coisas. O que se pode concluir disso? O crescimento até 1973 foi muito grande. Quer dizer, se você pegar o produto real, PIB real, ele dobrou um pouco mais do que dobrou no período. É um crescimento fantástico, mas dobrou, como eu disse, graças àquele esforço externo feito pelo Brasil.
Quando terminou, na verdade, o Brasil começou a se complicar com a primeira crise do petróleo. Antes disso, só para lhe dar um número, em 1980, digamos, quando já havia cálculos do PIB por paridade do poder de compra, isto é, usando preços americanos para uniformizar o cálculo, a economia brasileira é a oitava do mundo, e hoje é a 11ª, 12ª. O Brasil era um país grande.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda)- A dívida líquida do País quando o senhor deixou o Ministério da Fazenda em 1974, era de quanto?
O SR. DEPUTADO DELFIM NETTO - Seis milhões de dólares.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda)- A nossa dívida.
O SR. DEPUTADO DELFIM NETTO - A dívida do Brasil, 6 bilhões de dólares.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda)- Seis?
O SR. DEPUTADO DELFIM NETTO - Seis, com 6 de exportação.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda)- Multiplicado.
O SR. DEPUTADO DELFIM NETTO - Não. Se você quiser, podemos começar a conversar agora, eu já estava fora do Governo. O que aconteceu? Aconteceu o seguinte: em 1974 houve uma primeira crise no petróleo. Aqui é uma coisa muito interessante, porque freqüentemente ouço dizer que ela era imprevisível, que ninguém sabia que ela ia acontecer, agora mesmo vi um documento fantástico feito pela PETROBRAS dizendo que nem a OPEP sabia que ia haver o aumento do petróleo, em 1973. Eu estava, em 1972, em Roma, numa reunião do Fundo Monetário Internacional. O então Ministro de Finanças da França Giscard d’Estaing, que tinha relação de grande amizade com o Brasil — ele gostava do Brasil realmente —, chamou-me um dia e disse: “Olha, Delfim, vai haver uma crise e a OPEP está se preparando para fazer um cartel. Nós supomos que o preço do petróleo vai para 5 dólares o barril”. O preço do petróleo era 1 dólar e 20 o barril. Cheguei ao Brasil, comuniquei isso ao Presidente Médici. Ele organizou uma reunião nas Laranjeiras junto com o Presidente da PETROBRAS, que era o futuro Presidente Geisel, com o Chefe da Casa Militar, com o Chefe do SNI, com o Ministro de Minas e Energia, Antônio Dias Leite. Nessa reunião comuniquei isso ao Governo. Quer dizer, o Governo sabia, em setembro de 1972, que ia haver uma crise.
Infelizmente, o General Geisel, numa atitude um pouco arrogante, disse: “Esse Giscard d’Estaing não entende nada de petróleo, quem entende de petróleo sou eu”. Houve um atrito desagradável.
O que aconteceu? O Brasil não se preparou e realmente 18 meses depois a crise veio. Naquele momento estávamos propondo — eu e o Dias Leite — contratos de risco para a PETROBRAS acelerar nossa produção de petróleo.
É preciso dizer o seguinte: durante esse período todo a produção interna da PETROBRAS cresceu muito pouco, e uma política da empresa era guardar as reservas. Era muito mais fácil importar do que tirar petróleo. Na verdade, só se começou a acelerar a produção de petróleo no Governo Figueiredo.
O que aconteceu? Em 1973, gastávamos menos de 10% da receita de exportação em petróleo; em 1975, gastamos 35% da receita. Era impossível fazer o equilíbrio. O Governo pensou, inclusive, em fazer um racionamento, tentou fazer algumas coisas com equilíbrio. Estou convencido de que nesse campo a política do Geisel foi absolutamente correta. Se ele tivesse se metido num racionamento o Brasil teria virado Bangladesh.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda)- Então a opção do General Geisel foi correta.
O SR. DEPUTADO DELFIM NETTO - Foi correta. Quanto a isso não tenho a menor dúvida. Se ele tivesse enveredado para um racionamento, eu acho que nós teríamos tido uma situação das piores. Imagina o que seria no Brasil um racionamento de energia. O que se ia fazer da agricultura?
Nesse período começou-se um endividamento enorme, por quê? Porque havia, na verdade, um truque: os árabes não nos emprestavam, mas os bancos nos emprestavam dinheiro. Nós comprávamos petróleo dos árabes, que depositavam esse dinheiro no mesmo banco, que voltava a nos emprestar; os árabes novamente repetiam o processo. Tínhamos montado uma espécie de moto-contínuo que ia terminar de qualquer jeito. E foi o que aconteceu. Em 1979, o Brasil já estava com uma dívida gigantesca, mas o mundo tinha virado.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Cinqüenta bilhões de dólares.
O SR. DEPUTADO DELFIM NETTO - Cinqüenta bilhões de dólares. O mundo estava virando; a inflação americana chegou a 14% ao ano. Nesse momento convidaram Volcker e deram-lhe carta branca para acabar com a inflação.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda)- Ministro, houve outro problema além da mudança de patamar dos preços do petróleo que foi um choque também dos juros.
O SR. DEPUTADO DELFIM NETTO - Ao que me referi, choque dos juros é o seguinte: quando a coisa desandou, os Estados Unidos estavam numa situação muito delicada — uma inflação de 14% naquela economia é uma barbaridade. Volker recebeu na verdade carta branca para agir. E Volker fez uma experiência de livro-texto. O livro diz o seguinte: “Se eu encolher a moeda, os preços caem. Haja o que houver, quebra gente, vai à falência, uns se suicidam, mas se você tiver sangue frio o suficiente para ver a mortandade você vai ter sucesso”. O que é mais ou menos o que pensam alguns economistas brasileiros.
Bom, mas o que aconteceu? Ele puxou a taxa de juros federal funds, que é de 1%, para 17%, 16%. O país estava com um estoque de dívidas gigantesco. Sobre ela começou a incidir esse juros brutal. Isso levou o mundo subdesenvolvido a uma crise gigantesca. O Brasil nunca foi default. Mas o mundo inteiro praticamente, sim.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda)- A crise da dívida.
O SR. DEPUTADO DELFIM NETTO - Da dívida. Aqui, é interessante. As pessoas imaginam o seguinte: “Ah, foi o Gorbachev, que acabou com a União Soviética, porque se precipitou, fez a mudança econômica sem fazer mudança política. Foi o Gorbachev coisa nenhuma. Na verdade, todos os satélites soviéticos quebraram quando houve esse processo do choque dos juros. Então, quebrou a Polônia, quebrou a Romênia, quebrou a Estônia. Quebrou tudo
Quem destruiu ou começou a destruição do império soviético foi, na verdade, mais um movimento americano, econômico. Eu nem sei. Provavelmente, isso não estava nas intenções. Isso são aquelas conseqüências não intencionais do processo de ajuste. E o caso brasileiro foi realmente grave, porque, depois disso, perdeu-se o controle das finanças públicas.
(Intervenção fora do microfone. Ininteligível.)
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda)- A repercussão desses dois fatos: o choque dos preços do petróleo com o choque dos juros resultaram na crise cambial da década de 80. Não é isso?
(Intervenção fora do microfone. Ininteligível.)
O SR. DEPUTADO DELFIM NETTO - Bem, na verdade, a crise do petróleo, inicialmente, e a correção da inflação americana, posteriormente, foi uma coisa dramática, porque juntou estoques imensos de dívida em todo mundo contra elevações de taxas de juros muito altas. Aqui, é preciso dizer que isso afetou o mundo inteiro. Era muito interessante. No Brasil, a Oposição, digamos, insistia em que aquilo era uma crise brasileira. O que era natural, vivia-se um processo político de briga pela volta ao poder. Então, a coisa mais simples era dizer “isso é barberagem da política econômica brasileira”. E ignorava-se que havia quebrado o médico, tinha quebrado todo mundo. Na verdade, quebrou todo mundo com exceção de 3 ou 4 asiáticos que tinham um tipo de crescimento de outra natureza. E quebrou a União Soviética.
O que aconteceu nesse momento? As finanças públicas do País foram desorganizadas, porque houve uma crise cambial. Nós fizemos, primeiro, uma desvalorização cambial que não deu certo, porque não foi acompanhada por uma restrição de crédito adequada. Fizemos a segunda, que deu bastante certo, porque produziu a volta ao equilíbrio em 14, 15 meses, como aconteceu no Brasil recentemente quando, na verdade, a política cambial mudou e você passou de déficits importantes em contas correntes para o equilíbrio de contas correntes.
Esse período foi muito duro, porque houve uma crise mundial. O Brasil estava metido nessa crise. Era preciso um trabalho gigantesco, diário, para fechar as contas lá fora. Felizmente, o Brasil conseguiu fazer isso.
Quando esse processo foi concluído, final de 1983, começo de 1984, você já havia superado as dificuldades; você já estava novamente crescendo 6% ao ano — cresceu 6% em 1985, 7% em 1986, até que se inventou o cruzado. Aí a coisa mudou de patamar. O cruzado não tinha só erros em si mesmo; o cruzado tinha necessidade de um grande suporte externo, coisa que, digamos, no Governo Sarney não existia. O mundo financeiro não estava preparado para ajudar o Brasil a fazer um equilíbrio do tipo do cruzado naquele momento. Foi isso que nos levou à garra. E aí nós fomos realmente ao default.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda)- Por que o Brasil teve os melhores desempenhos de crescimento econômico em algumas décadas do século passado e por que chegou às últimas décadas morrendo na praia, as chamadas décadas perdidas, de 80 e 90? É possível hoje, mais distante, fazer uma análise mais fria desse grande malogro?
O SR. DEPUTADO DELFIM NETTO - Na verdade, o Brasil foi o país que mais cresceu no mundo ocidental entre 1900 e 1980, ou seja, com todos os defeitos da política econômica vigente em 80 anos, com todas as dificuldades, com todas as invenções, de grande história, de grande teoria desenvolvida pela Esquerda e por alguns cientistas — quando você prova o pudim, significa o seguinte: no meio de tanta dificuldade — o Brasil foi capaz de crescer sistematicamente ao longo de 80 anos. A explicação é que, aos poucos, o Brasil foi adquirindo uma certa experiência na administração.
Eu estou convencido de que essa idéia hoje vigente — é claro que o mundo também mudou — de “tira as mãos do Governo; você tem que afastar o Governo de toda a administração; você tem que eliminar, na verdade, a participação do Governo no processo, é profundamente errada. Não há exemplo na história do mundo de um país que tenha se desenvolvido sem um forte suporte do Estado. As pessoas citam os Estados Unidos como exemplo do desenvolvimento sem Estado. Isso é de uma ignorância histórica monumental. A idéia de que o Estado estava sempre fora. A Inglaterra criou um mercado de capitais, inicialmente, com o Banco da Inglaterra, que foi fundamental na primeira Revolução Industrial; os Estados Unidos, na segunda Revolução Industrial, protegeram seu sistema de desenvolvimento; a Alemanha, com Bismarck. Todos os países tentaram, e conseguiram, criar vantagens comparativas. É disso que se trata.
Hoje você tem uma disputa, digamos, de nível teórico que, na minha opinião, é falsa. Demonstra-se, abstratamente, que um modelo sem Estado produz o crescimento. Na minha opinião, modelo sem Estado não produz nada, porque ele é uma abstração absolutamente irrelevante para o crescimento.
Essa teoria não introduz um fator decisivo, que é o poder. Então, parece-me que uma das grandes trapalhadas do Brasil foi essa pretensão de que devíamos embarcar num regime como se o Estado não existisse. Isso estimulou, na verdade, a venda de todo o patrimônio nacional. Nós vendemos 100 bilhões de dólares ao longo do Governo Fernando Henrique, e ainda tivemos 180 bilhões de dólares de déficit em contas correntes. Quer dizer, não houve crescimento nenhum, houve um aumento de consumo sem ter sido produzido.
A mim me parece o seguinte: é preciso recuperar a idéia, não a velha idéia do Estado como interventor. Aprendemos que o Estado não precisa produzir aço. O setor privado pode produzi-lo muito bem. Agora, é muito pouco provável que o setor privado simplesmente produza investimentos adequados em setores cuja maturação é muito mais longa, em que se exige taxas de juros muito menores e há segurança regulatória absoluta para se atrair investimentos. Na minha opinião, esse é o grande problema que os noveaux economistas têm de explicar.
Como é que quando no Brasil estava tudo errado, de 1900 a 1980, crescia rapidamente; quando consertou tudo, de 1987, 1988 em diante, deu tudo errado.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Os militares acreditavam, durante o regime militar, no chamado Brasil potência. Muitos economistas, colegas seu, e também o senhor, reavaliam, hoje, para baixo esse potencial do Brasil no mundo. Quer dizer, muita gente hoje pensa o País, a longo prazo, como uma potência de nível médio, não mais aquele sonho de Brasil potência, alimentado pelos militares e por todos nós ao longo da história. Tínhamos essa imagem do Brasil do futuro.
O senhor acha que essa reavaliação, realista, é correta?
O SR. DEPUTADO DELFIM NETTO - É evidente que ninguém imaginou, nem nos momentos mais oníricos, o Brasil fosse a primeira potência no mundo; ninguém nunca imaginou o Brasil substituindo os Estados Unidos ou a União Soviética, como havia naquela bipolaridade. O Brasil é e será e tem todas as condições para ser um importante player no mercado internacional e na organização política do mundo, porque tem população, um povo diligente, trabalhador; tem uma estrutura industrial muito sofisticada; seus empresários sabem onde está lucro e vão buscá-lo. Mas o Brasil precisa de um governo razoavelmente eficiente e que tenha condições de estimular o uso dos fatores existentes, e isso nós destruímos.
O que se destruiu nos últimos 20 anos? As condições isonômicas de competição.
O Brasil e a Coréia, duas potências, competiram há 8 ou 9 anos. Em 1984, o Brasil exportou o mesmo que a Coréia; em 2002, exportou somente um terço. Tem de haver uma explicação para isso. Ou o mundo não gosta de brasileiro e gosta de coreano, ou os brasileiros não gostam de si mesmos e os coreanos gostam mais deles mesmos. Esse é um processo de competição.
Como isso foi possível? É muito simples. Por exemplo, em 1994, 1995 e 1996, o brasileiro pagava 35% de carga tributária bruta; o coreano, 20%. Se numa competição isso fosse transformado em quilo, já estaria o brasileiro carregando 35 quilos e o coreano, 25 quilos. Mais à frente, o brasileiro pagava 20% de juro real; o coreano, 3%. Ao se transformar em quilos, além dos 35, seriam mais 20, e o brasileiro já estaria com 55 quilos, e o coreano, com 23 quilos. A taxa de câmbio brasileira estava sobrevalorizada 20% — mais 20 quilos. E já também com 35 de impostos, mais 20 de...
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Sobrevalorização no câmbio.
O SR. DEPUTADO DELFIM NETTO - ...juros, mais 20 de sobrevalorização no câmbio, totalizando 75 quilos — provavelmente nem pese isso, mas está lá. O coreano tinha 20 de impostos, 3 de juros e menos 20 de subvalorização da moeda. Quer dizer, o coreano carregava 3 quilos e o brasileiro, 75 quilos. Numa corrida, o brasileiro dava 4 passos e caía. Um gênio de Brasília anunciava que o brasileiro não era eficiente.
Tiramos da nossa gente as condições de competir. Temos de dar condições isonômicas de competição. Essa violência na exportação, essa manifestação de espírito animal do empresário brasileiro é conseqüência de se ter corrigido uma ou duas coisinhas, não a carga tributária e a carga de juros, as quais continuam as mesmas. Bastou retirar a sobrevalorização do câmbio. Na realidade, assistimos ao povo brasileiro procurando seu caminho e vencendo. Isso aconteceu no passado e tem de acontecer no futuro.
O Vice-Presidente José Alencar está absolutamente correto quando enfatiza que só podemos competir se houver igualdade de condições. Se sou incapaz de conceder ao povo brasileiro uma carga tributária e uma taxa de juros parecidas às do concorrente, então, é melhor fechar tudo e vamos empobrecer e voltar a ser tribo.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - A próxima pergunta tem razão de ser, porque aqui no Brasil mediamos entre euforia, ufanismo e pessimismo completo.
Kissinger, há aproximadamente 1 ano, escreveu um artigo no qual enfatizou que o Brasil, a cada 10 anos, poderia ser um global player e de repente perder novamente a oportunidade. Não somos só nós que mediamos entre a euforia e a depressão. Até Kissinger, que nada tem a ver com o Brasil diretamente, tem essas mudanças de estado de espírito.
O SR. DEPUTADO DELFIM NETTO - O Brasil é particularmente ciclotímico. O brasileiro tem um tal desejo de melhorar que bastam pequenos sinais, ainda que absolutamente abstratos, para começar a se movimentar na direção certa.
Eu me divirto muito quando é perguntado qual o crescimento para o próximo ano e é respondido que, no mínimo, 3,5%. Dá-me uma só razão para isso. Não há nenhuma. Se todos acham que o País crescerá 3,5%, isso acontecerá. A profecia vai se auto-realizar.
Neste instante, estamos vivendo um momento interessante: o Brasil, em uma semana, passou de euforia para quase depressão. Felizmente, foi salvo por um remédio. Tudo estava caminhando: exportação crescendo, câmbio controlado, inflação declinante. De repente, o IBGE anuncia que cresceu 0,4% no trimestre. Desmontou tudo, acharam que não havia mais jeito, que tudo estava perdido, que não cresceríamos mais. Os 12 sujeitos que haviam previsto um crescimento de 1,5%, 2,5%, 3,5% explicaram por que não deu certo, uma coisa puramente tautológica. Não deu certo porque não havia relação entre a verdade e o que eles estimaram. Era simples manifestação de vontade. Os 3% de subsídio aos automóveis –– o que, na verdade, empurrou a economia para cima –– continuaram.
Isso já serviu para perceber que a situação estava melhorando. Passamos da euforia total para certo desespero com muita rapidez. Como eu disse, não é uma característica apenas nacional.
Segundo Kissinger, os países acabam enfrentando essas dificuldades com certa periodicidade. Temos de observar o seguinte: o Brasil é vítima da liberdade de movimento de capitais. O País não tem restrição de nenhuma natureza. Foi o que aconteceu 2 vezes no Governo Fernando Henrique: conseguimos quebrar 3 vezes em 8 anos. Nos primeiros 4 anos, quando chegou na eleição do Lula, o Brasil estava quebrado. Foi preciso ir ao Fundo Monetário tomar 41 milhões de dólares emprestados. Por quê? Porque os financiadores externos estavam dispostos a investir dinheiro aqui, dinheiro que chamo de morte súbita. Enquanto está andando, há rendas formidáveis, investe-se. Ao primeiro sinal de inversão do ciclo, sai todo mundo, e o País fica de cuecas, não há como enfrentar o problema. Em 2001, saímos correndo outra vez para pedir mais 16 bilhões de dólares ao Fundo. Em 2002, tivemos de recorrer ao Fundo de novo, na eleição do Lula, porque o País tinha quebrado outra vez. O Brasil quebra quando o setor externo decide que a credibilidade extraordinária será reduzida. Reduz-se a oferta externa de recurso, e o Brasil fica desamparado porque constrói uma dependência externa muito grande.
Essa dependência externa é que tem de ser eliminada. Estou convencido de que o Brasil é um País absolutamente normal. A incorporação do PT ao Governo completou a missão da Constituição de 1988. O PT sempre recusou a Constituição. Na verdade, ele era contra os seus princípios, era contra a propriedade privada, era a favor de uma sociedade sem classe. O PT esqueceu tudo isso. Se não tivesse esquecido, jamais teria chegado ao poder, mas chegou. A simples possibilidade de uma esquerda chegar ao poder, como chegou com o Lula, mostra que o Brasil é um país novo, que politicamente somos realmente uma democracia, uma república e que assim continuará por séculos.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Ministro, quando houve a intervenção militar em 1964, todos nós que estávamos no risco e que vivíamos aquela situação não tínhamos dúvida de que haveria uma intervenção militar. Tratava-se de uma ação tão grande, que não era possível que aquilo se mantivesse, que sobrevivesse, como realmente aconteceu. Mas a guerra fria favoreceu o predomínio dos regimes militares na América Latina. Até por uma questão de viés profissional, os militares foram levados a combater os inimigos da forma mais óbvia, mais simples que há, por meio da eliminação física, que inclusive aprendem nas escolas. É a educação deles. Isso todos sabemos, qualquer pessoa normal sabe. Agora, com a publicação de livros sobre a história contemporânea do Brasil, o jornalista Elio Gaspari traz ao conhecimento público um tesouro, que é o baú de documentos do General Golbery — não só um homem inteligente, perspicaz, como também um verdadeiro historiador, que teve a preocupação de guardar documentos de uma época importante da história do País. Tivemos com o terceiro volume — e o senhor foi personagem de matérias publicadas — um desabafo do General Geisel em conversa telefônica gravada — que ninguém sabe como ali chegou, mas chegou —,em que comenta com Dario Coutinho, Ministro da Guerra que morreu prematuramente com problema de coração, que se soltassem as pessoas, elas voltariam a fazer a mesma bagunça. Então, era uma barbaridade, mas ele concordava que era uma necessidade a eliminação do inimigo. Há outros dados que envolveram o senhor, inclusive, num desabafo do Coronel Andreazza. V.Exa. quer falar sobre isso?
O SR. DEPUTADO DELFIM NETTO - O livro do Elio Gaspari certamente será um marco na história do País, não simplesmente na história econômica, como principalmente na política. Ele se apoiou realmente numa espécie de tesouro deixado pelo Ministro Golbery, organizado pelo Heitor Aquino e apoiado também nos arquivos do próprio ex-Presidente Geisel. Certamente, é uma visão particular. É muito pouco provável que se consiga uma documentação tão rica quanto essa. Inclusive, ele faz sempre justiça, diz uma coisa, acusa, inclusive.
No meu caso particular, no terceiro volume, ele diz que o Andreazza teria dito: “Ele sabe os podres do gordo.” Eu e o Andreazza éramos amicíssimos. Eu conhecia os “podres” do Andreazza — era recíproco. Mas que podre? Não é podre de corrupção. Na verdade, Andreazza se referia a problemas particulares das pessoas e não a problemas do Governo. E mais: nisso eu não acredito, a não ser que me mostrem a gravação em que o Andreazza disse isso, eu jamais acreditarei nisso. Conheci-o profundamente. Foi injustiçado da forma mais negra por esses mesmos cidadãos que estão dando depoimento. Tenho dificuldade de entender as relações dele com esses 3 personagens, porque foram eles que organizaram uma campanha difamatória contra o Andreazza.
Para mim, essas coisas hoje estão muito claras. O que acontecia, na verdade — não é por ouvir dizer, isso me foi contado pelo General Médici —, era que eu tinha uma boa probabilidade de ser Governador de São Paulo. Trinta e dois nunca saiu da cabeça dos militares. O General Médici disse para mim que o Geisel disse que eu não poderia ser Governador de São Paulo porque eu, mais a Avenida Paulista, mandaríamos no governo dele e ele não faria o seu sucessor. É tão simples quanto isso. Aliás, essa é a leitura que se faz no livro do Elio, que mostra isso tudo e termina com um daqueles rodapés: “tudo isso foi dito e nunca nada foi provado. Na verdade, mostra que aquilo era um serpentário, um ofidiário, uma espécie de Butantã que havia sido montado para eleger o Geisel. Tudo bem, nada contra isso. O problema era que eles continuaram com a síndrome de 1932. O Delfim vem de um certo sucesso. Era o fim do Governo Médici, que terminou com um crescimento do PIB de 14% e inflação de 15%.
Então, era preciso inventar duas coisas: não podem dizer que não cresceu, têm de dizer que os 15% são mentira. E essa é uma das coisas mais deliciosas, porque é um complô de um ridículo mortal. O DIEESE publicou um número. Quando se foi analisar o seu levantamento, o DIEESE foi incapaz de dizer a que classe da sociedade se referia o seu índice. Depois, num relatório do Banco Mundial, um escritor anônimo afirmou: “Suspeito que foi 20.” E, finalmente, teria havido um relatório do Ministro Simonsen dizendo que não, que os número eram falsos. Isso era uma das coisas mais ridículas. Quem podia pedir para o Dr. Bulhões e para o Dr. Gudin para falsificar números? Só quem nunca conhecesse esses ilustres senhores. Então, diziam que os números não refletiam a realidade porque havia um tabelamento. Mas a resposta simples é a seguinte: teria sido a primeira vez na história do mundo que o tabelamento controlava preço. Se assim fosse, eu deveria ser eleito um grande herói, de uma competência extraordinária.
Na verdade, nada disso era verdade. E agora é fácil provar isso. Há vários índices de preço: IGP-DI, IPCA, INPC, PC-FIPE/São Paulo, todos eles estão muito próximos dos 15%. Que vantagem eu teria mexer num índice desses? “Ah! Mas é porque você tinha estimado 12%.” De fato, tínhamos imaginado que poderíamos chegar a 12%. E trabalhamos duro para chegar a 12%. Mantínhamos o abastecimento do Rio adequadamente. E era muito simples provar isso: bastava ir ao jornal O Globo, ao Jornal do Brasil e mostrar as filas que estavam formadas em 1973, se o tabelamento não estivesse funcionando.
Tudo isso hoje desapareceu, era um momento muito sério. Isso era um hedge do Presidente Geisel, que dizia o seguinte: “eu estou frito. Vem esse Médici, produz 14% de crescimento e 15% de inflação. Mário, o que vamos fazer agora?” “Diz que os 15% são mentira.”
De fato, os preços no primeiro Governo do Mário duplicaram não porque houvesse um erro de política. Mário Simonsen era um grande economista, conhecedor do assunto, sabia que os preços dobrariam simplesmente porque tinha acontecido uma elevação brutal do preço do petróleo. Ele sabia que isso ia acontecer, como sabia quando foi embora em 1979 que não podia mais fechar o balanço, porque tinha se produzido um tal desequilíbrio ao longo do Governo Geisel que não havia balanço que fechasse mesmo.
Algum dia, vamos ter pesquisa de doutoramentos, PHDs, defesas de tese analisando o período com isenção, com um pouco mais de objetividade, sem esse interesse imediato. Volto a insistir: Diante das dificuldades vividas, o Governo Geisel até que foi relativamente eficiente, manteve um crescimento importante. (Intervenção.) Na minha opinião, a uma distância adequada, afirmo que o Governo Geisel foi um Governo relativamente eficiente, teve, sim ambições gigantescas, que quebraram a indústria brasileira. Mas como enfrentar a crise do petróleo, não tinha outra alternativa. Quanto à idéia de que não poderíamos fazer um racionamento, o Mário foi vítima. Ele inventou a Simoneta: “Já está impressa a Simoneta.” O Mário era um sujeito inteligente, competente, sabia que o racionamento do petróleo terminaria na maior corrupção que o mundo já tinha visto. E por quê não acabava, o Governo? Como se manteria funcionando a economia brasileira com a PETROBRAS fornecendo 20% do consumo e sem crédito?
Então, parece-me que todas essas coisas vão ser agora ponderadas, olhadas com cuidado. A técnica da Oposição era o milagre brasileiro. O milagre é o efeito sem causa. Na verdade, o crescimento no Governo Médici teve causas muito objetivas: foi o trabalho e o investimento dos brasileiros. Naquele momento, deu-se uma lição inclusive numa boa dose, numa escola de economistas que imaginavam que era preciso, primeiro, poupar, para depois poder crescer. O que o crescimento brasileiro provou foi aquilo que aconteceu no mundo inteiro: que quando se desata um processo de crescimento, a poupança vem atrás. A poupança não é o fator limitante, ela é produzida pelo próprio crescimento. Como o crescimento é produzido pelo crescimento? É a crença de que o crescimento vai continuar que mobiliza, de novo, hoje, o espírito animal dos empresários para investirem, para buscar seus lucros, e o País então entra num processo de crescimento.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Agora, Ministro, em relação ao milagre, não foi só Mário Henrique Simonsen quem falou em manipulação dos índices da inflação. Julian Chacel, um economista relativamente importante na Fundação Getúlio Vargas também disse a mesma coisa — o senhor se lembra.
O SR. DEPUTADO DELFIM NETTO - Na verdade, Mário Simonsen nunca disse que houve uma manipulação dos lados. Só se ele fosse idiota. Quem controlava a Fundação Getúlio Vargas? Mário Simonsen, Dr. Bulhões e Gudin. É por isso que aquela frase que está no próprio livro do Elio é muito pouco provável, porque Gudin reconhecia o seguinte: “O rapaz era tão forte que ele olha para mim e eu obedeço.” Agora, imaginem se a Fundação Getúlio Vargas, comandada pelo Dr. Bulhões... Quem viu o Dr. Bulhões, bastava olhar e ver se alguém tinha coragem de chegar e dizer: “Ô Velhão, vamos dar um jeito aí nos índices”. Que idiotice é essa? Eram um bando de imbecis para falar uma coisa como essa. O que o Mário disse no relatório é que havia um tabelamento e que a Fundação pegava os dados do tabelamento e não os dados do levantamento. E aqui as coisas se resolvem muito simplesmente. Como o índice de atacado dá igual ao índice do varejo? Aí sim, precisa milagre. Então, os números desmontavam. Chacel jamais diria qualquer coisa a respeito de índice. Chacel era o chefe do grupo que calculava o índice, era um profissional absolutamente íntegro e se moveu depois. Chacel, na minha opinião, submetido a qualquer pressão, iria embora. É gente que tem na verdade não só o espírito acadêmico rigoroso, como tem vergonha na cara. Quer dizer, isso nunca existiu. Isso é tão cruel com a Fundação Getúlio Vargas.
Eu, por exemplo, este ano, apresentei uma emenda de 10 milhões de reais para a Fundação Getúlio Vargas, provavelmente para pagar o favor que ela me fez.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Agora, o milagre teve, como o senhor disse, razões objetivas. Como explicar aquele continuado ciclo de crescimento econômico virtuoso, como dizem os economistas, numa época política difícil, cheia de restrições? Quais são as razões que justificaram esse ciclo do crescimento?
O SR. DEPUTADO DELFIM NETTO - Isso é uma coisa interessante. Sempre se pergunta por que houve o crescimento. Houve porque houve uma política pró-crescimento. Vou dizer agora sem nenhum pejo, sem nenhuma dificuldade: nos bons tempos, chineses e coreanos vinham ao Brasil aprender como se fazia política de substituição de importação. Está aí registrado. Quando inventamos o BEFIEX, que foi um impulsionador enorme das exportações, eles vieram ver como era. O Brasil estava à frente desse processo.
Acreditávamos realmente — como continuo acreditando, já estou velho para mudar — que sem a participação do Estado, sem o entusiasmo do Estado não existe desenvolvimento. O setor privado está descoordenado, com um empresário aqui, outro ali, um homem em Araraquara, outro em Cuiabá. Esse sujeito tem de receber aquela comunicação, aquele choque elétrico de que estamos crescendo, de que o Brasil precisa do trabalho deles.
Nunca esqueço o momento mais grave da crise de 1982, o mais complicado, quando não havia mais como obtermos crédito, uma situação dificílima, quando não se sustentavam as contas brasileiras lá fora. Do dia para a noite, começava a rodar em Tóquio, terminava de rodar em Nova Iorque e recomeçava para São Francisco, o mundo andando para cima e para baixo. O Galvêas, que era Ministro da Fazenda, num esforço enorme para manter as nossas parcas linhas. Reunimo-nos na FIESP com Gastão Vidigal. Um encontro, na minha opinião, até muito importante na história, e perguntamos: “O que vocês podem fazer para substituir exportação?” Claro que não seria da mesma qualidade do produto importado, talvez no instante. Depois de 6 meses, provavelmente, de qualidade igual ou melhor. Por que preço? Claro que o preço não seria o do importado no instante. Mas, à medida que eles fossem ganhando experiência, o preço convergiria para o internacional. Fizemos um acordo de 1 bilhão de dólares. Naquele tempo, a exportação era 17, 18.
As coisas mais extraordinárias aconteceram. O empresário sabia que o Estado o tinha como um competidor competente. Atualmente, não, o Estado tem o empresário como um imbecil. Por isso não quer sequer dizer para ele o que tem de fazer. É um outro mundo.
Foi por isso que o Brasil saiu daquela dificuldade em 14 meses. A mudança fundamental era essa. No regime autoritário inteiro, que teve dificuldades, problemas, erros, acertos, a coisa mais importante que os militares fizeram, na minha opinião, foi, primeiro, que nenhum deles quis se reeleger. Foi preciso aparecer um civil para começar com essa brincadeira. Segundo, nunca nenhum deles atacou a economia de mercado. Um rigoroso cumprimento da propriedade privada, um rigoroso cumprimento dos contratos, isso explica o crescimento. O que explica o crescimento são boas instituições com bom espírito animal, com crédito e com taxa de juros.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Quem lê aqui se lembra dos anos do milagre:
“A taxa de crescimento do PIB recuperou-se rapidamente e se manteve elevada durante a gestão de Delfim como condutor da política econômica. O crescimento no período foi de 4,8% em 1968; 9% em 1969; 9,5% em 1970; 11,3% em 1971; 10,04% em 1972; 14,4% em 1973. No período, a produção de soja saltou de 300 mil toneladas para 6 milhões de toneladas. As exportações se mantiveram, até 1965, em 1 bilhão e 20 milhões de dólares; em 1966 e 1967, atingiram 1 bilhão e 700 milhões de dólares.
Em 21 de agosto de 1968, o Conselho Monetário Nacional aprovou a mudança, por proposta de Delfim, instituindo a política flexível de câmbio.
Em 1969, pela primeira vez, as exportações brasileiras quebraram a barreira dos 2 bilhões de dólares e continuaram crescendo a taxas superiores a 20% ao ano, atingindo 7,95 bilhões de dólares em 1974, aumento de 4 vezes no período. E nos 10 anos seguintes quadruplicaram novamente, chegando a 27 bilhões de dólares. O sucesso das exportações industriais e o crescimento do produto agrícola foram os 2 pilares da política que trouxe a economia brasileira de 48º lugar para 9º lugar na economia mundial em apenas 7 anos.”
O SR. DEPUTADO DELFIM NETTO - Na verdade, o crescimento foi brutal.
Hoje, quando olho retrospectivamente, vejo como doía na oposição o fato de o Médici ter terminado o Governo com um crescimento de 14% e com 15% de inflação. Aquilo, na verdade, comia o fígado não só da oposição, mas do Governo que estava entrando. Por quê? Porque era preciso fazer um hedge, que aquilo tudo tinha lá um componente misterioso. Era um milagre o crescimento físico. E os preços eram uma roubalheira. Essa é a explicação ridícula desse processo.
O crescimento foi sólido e continuou sólido no Governo Geisel, quando conseguiu os créditos para importar petróleo. Continuou sólido, mas aí a dívida crescia muito depressa.
Tivemos uma revolução que passou despercebida, que foi a da soja. Nestor Jost um dia entrou no meu gabinete e disse: “Delfim, tenho aqui o feijão soja, o soja. Isso aqui vai ser uma coisa maluca, vamos ter uma expansão sobre isso.” Olhei aquilo com uma certa desconfiança, mas eu tinha pelo Nestor uma grande admiração. O Nestor era um administrador primoroso. E decidimos dar apoio. Houve um aumento de 300 mil toneladas para 6 milhões de toneladas nos 7 anos. Multiplicou-se, portanto. Quem fez isso foi o Banco do Brasil e o Nestor Jost.
Isso só mostra outra lei: sem Estado não há desenvolvimento. Com um Estado perneta, que acredita que não pode pôr a mão no desenvolvimento porque vai atrapalhá-lo, não pode haver mesmo desenvolvimento.
( Interferência/ pausa.)
Nessa questão de agricultura, o Governo sempre se preocupou enormemente. Não só exportação era o vetor principal. Reconstruir, ampliar a agricultura, tanto para o mercado interno quanto para o mercado externo, era fundamental. Era preciso fazer a produção de alimentos crescer mais depressa do que a demanda por alimentos. Era a forma de combater qualquer pressão inflacionária.
Mas houve enormes investimentos na agricultura. Primeiro, criou-se a EMBRAPA. Depois, houve um projeto para entender como funcionava o Cerrado, o PRODECER. Esses projetos estão produzindo a atual revolução agrícola. Esses projetos acabaram incorporando ao Brasil a possibilidade de expandir sua agricultura em 50 milhões de hectares nos próximos anos. A área agricultável no mundo está declinando, e o Brasil será certamente um fornecedor importantíssimo de grãos.
O setor privado em Mato Grosso está construindo a estrada que o Governo incompetente é incapaz de construir. Reúne-se em cooperativa para construir a estrada. Vão sair por Santarém e ocupar o mundo. Essa revolução foi complementada pela infra-estrutura, pela mão do Estado, agindo, induzindo, convencendo e pondo para trabalhar o setor privado. É significativo o que construímos de estradas, mas fico até triste, porque, saí do Governo em 1984, e outro dia fui ao Rio Branco e vi que a estrada estava onde a deixamos, parada. Então, abandonou-se a infra-estrutura.
Essa revolução agrícola que está aí é produto da EMBRAPA, do PRODECER, de pesquisa e de mais uma atividade do Governo, o MODERFROTA. O MODERFROTA foi apresentado para o Governo Fernando Henrique em 1995. A Fazenda se opôs a conceder qualquer subsídio para aquisição de tratores porque achava que isso era pecado. Eles pensam que são cientistas, mas contrabandeiam para dentro da sua má ciência uma alta dose de péssima ideologia. “Essa política é controlada por uma média desarmônica de ciência e ideologia. Era algo proibido ao meu credo, eu que estudei no MIT, em Princeton, imagine o que o professor vai dizer de mim se eu der um subsídio? Vou ser desmoralizado, vão retirar o meu PhD.” Pois bem, resistiram durante todo esse tempo. Três anos atrás, o Presidente, em um ato de lucidez — até hoje não explicado —, aprovou o projeto do MODERFROTA e houve uma revolução. O Brasil, de importador de equipamento agrícola, passou a exportador de equipamento agrícola, no mesmo nível de tecnologia e estado da arte. Esse é um feito extraordinário, visível, que a mão do Governo ajudou a realizar.
Agora mesmo, fiquei entusiasmadíssimo com a última observação do Ministro da Fazenda Mantega ao Ministro da Indústria Furlan: “Não vamos prorrogar o abatimento do imposto do IPI sobre o carro”. Essa deveria ser, na verdade, uma discussão interna, provavelmente deveriam ter ouvido os cientistas. E a Fazenda, surpreendendo o próprio Governo e o Brasil, disse: “Pipocas! O subsídio funcionou. Vamos continuar com ele”. Essa é uma mudança radical, uma nova concepção da ação do Governo. As coisas estão encontrando seu verdadeiro caminho.
Insisto: não existe nenhum país desenvolvido no mundo que não tenha contado e não continue contando com a ação do Governo. Assim foi com toda pesquisa e todo desenvolvimento nos Estados Unidos, na Alemanha, na Inglaterra e na França. No Brasil é que importamos essa ideologia. Isso não é ciência. É uma coisa impressionante, o sujeito constrói modelos imaginando que o modelo é a realidade. A teoria econômica não é uma ciência dura em que existam recomendações de caráter absoluto. A ciência econômica tem questões de caráter absoluto. Por exemplo, vantagens comparativas são uma invenção, ou melhor, uma descoberta da teoria econômica. Ninguém pode violar vantagens comparativas. O que acontece é que a grande divergência entre quem constrói um país e quem emprenha o país de nada, que não produz coisa nenhuma, é a crença de que se pode construir vantagens comparativas ou não se pode construir vantagens comparativas. Para o cientista que está aí, a vantagem comparativa Deus nos dá e nunca mais se procura outra, porque se é incapaz de construir. Para o pobrezinho que não é cientista, ele tem segurança de que é possível para construir algumas vantagens comparativas. O MODERFROTA é o exemplo mais importante disso.
(Intervenção fora do microfone. Ininteligível.)
Há que se compreender que, na verdade, não houve milagre nenhum nessa época de 70. O desenvolvimento da agricultura e o desenvolvimento das exportações foram suportados por enorme desenvolvimento da infra-estrutura. Decuplicou-se o número de estradas asfaltadas, aumentou a energia elétrica, construíram-se portos, houve todo o suporte de infra-estrutura.
O Brasil era pensado como uma unidade. O Brasil era pensado em suas regiões e integrado no pensamento do Governo. O Governo procurava o conhecimento e a participação dessas regiões. Não era como hoje, quando se estabelece uma diretoria do Banco do Brasil, do Banco Central ou da Caixa Econômica e todos podem vir, da mesma escola, do mesmo lugar. Havia uma preocupação enorme em cada um desses órgãos, havia representação, e era possível escolher o melhor economista ou quem se quisesse, mas era preciso haver um pernambucano na Caixa Econômica. Você poderia escolhê-lo, mas não poderiam ser simplesmente paulistas ou cariocas. Era possível designar para o Banco Central quem você quisesse, mas escolhendo gente competente nos Estados, e assim por diante.
Juntamente com essa infra-estrutura criaram-se 15 milhões de emprego, essa é que é a verdade. Durante esse período o emprego cresceu 3% ao ano, assim como o salário real. Hoje existem depoimentos formidáveis do atual Presidente da República, como o de que só pôde comprar um carro novo em 1973. E por quê? Porque se podia sair de uma fábrica, atravessar a rua e se empregar em outra que pagava um pouco mais.
Como é que, posteriormente, com o BNH, construiu-se uma imensidão de casas, mais de 4 milhões? O BNH quebrou por causa de algumas impropriedades administrativas. Quando havia inflação alta e os salários todos haviam crescido 200% decidiu-se fazer graça e aumentar o aluguel em 100%. Então iniciou-se um processo de destruição.
O Brasil cresceu porque existia um Estado que se preparava para o crescimento. Havia equipes de projeção de energia, de estradas, de portos, que se antecipavam às necessidades. Isso tudo desapareceu e de tal forma que, 20 anos ou um pouco antes, 15 anos, depois de terminado o regime autoritário, fomos surpreendidos por um apagão que custou 2% do PIB. Esse apagão produziu uma destruição de 20 bilhões de dólares em produto interno bruto.
As estatais, isso é importante dizer, tinham seus inconvenientes mas eram em geral freqüentemente bem dirigidas. Você colocava um coronel na ELETROBRÁS, mas ele era um engenheiro elétrico formado em Cambridge ou no MIT. A escolha não era política. A TELEBRAS, por exemplo, conquistou vários prêmios quando era estatal. As estatais foram destruídas no processo eleitoral, nas eleições diretas, quando foram distribuídas ao poder político como presunto e cada partido levou sua parte. Por isso a privatização foi um ato de higiene pública, não foi uma necessidade econômica. Elas não podiam mais funcionar.
A privatização foi um boa coisa. Hoje, boa parte daquilo que se refere a coisas que o Governo não precisava produzir é produzida de forma mais eficiente. Você olha para a Vale do Rio Doce e vê que ela floresceu ainda mais, e isso parecia impossível. Entre as estatais, a Vale era das mais poupadas em questões de intervenção política no País. O Eliezer Batista era respeitado pelo Governo, ninguém ousava pedir ao Eliezer: “Nomeia aí um cupincha meu”. A Vale do Rio Doce, hoje, é ainda mais eficiente do que foi no passado. Esse é o caso das siderúrgicas.
Tudo aquilo que está privatizado no setor elétrico é o contrário, onde houve a privatização sem um regulamento adequado. Há uma encrenca dos diabos. Vamos começar agora a usar as termelétricas, porque até o momento na questão da água o ano está ruim. Vamos pagar muito mais caro. Ainda não fomos capazes de produzir uma regulação que atraia capital. Estamos em uma situação muito delicada, se não se iniciarem já os investimentos, teremos dificuldades no futuro. E penso que essas facilidades podem ser multiplicadas com o gás de Santos. As coisas estão caminhando na direção em que será possível construir uma matriz energética inteligente, usando a maior vantagem comparativa do Brasil que é a energia hidráulica.
O SR ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Para o Brasil crescer 6% ao ano era preciso construir um quarto de Itaipu por ano, expandir. O Brasil não tem hoje potencial energético para suportar a retomada do crescimento com índices a esses níveis.
O SR. DEPUTADO DELFIM NETTO - Freqüentemente se imagina que o Brasil atingiu um teto na produção de energia. Na minha opinião isso é um mito. Na verdade, a demanda de energia tem uma elasticidade um pouco maior do que a do produto. Se o País crescer 6% em média, a oferta de energia elétrica tem que crescer cerca de 7%, 7.2%.
É preciso haver investimento, e para haver investimento é preciso investidor, e para haver investidor é preciso dar-lhe garantia de que o contrato assinado será cumprido. Ora, o que temos feito recentemente? Temos posto dúvida em todos os contratos assinados e ameaçado que haverá uma mudança geral. Saiu uma primeira regulamentação deplorável do setor energético, agora saiu a segunda, que melhorou consideravelmente, mas ainda é muito ineficiente. Em setores em que houve privatização adequada, como o de telecomunicações, as coisas estão caminhando bastante bem.
É impossível manter um setor tão complexo como o de energia elétrica por causa dessa mistura introduzida na matriz energética: óleo combustível, água, gás. É preciso, na verdade, centros que redistribuam os recursos, o que é muito difícil de conseguir simplesmente com o PPP. Vamos ter que repensar esse problema. Mas não pode haver dúvida de que a expansão brasileira foi global. Aumentou a energia, aumentou o número de portos, de estradas de rodagem, de estradas de ferro, de casas populares. Aumentou tudo, aumentou até saúde. Agora, o milagre que se espera, esse sim, é esclarecer como isso foi possível. E por que isso não se reproduz hoje? Porque nos últimos anos fizemos coisas absurdas. Nós elevamos a carga tributária bruta de 28 para 36%. Ou seja, não dá mais para tirar do setor privado nenhum centavo. Ao longo desse período vendemos todo patrimônio que tínhamos acumulado. Quando se vende a TELEBRÁS, quando se vende a ELETROBRÁS está-se vendendo um patrimônio que era meu, que era seu. Você que está me ouvindo: quando fazíamos isso, fazíamos com honestidade. Você tinha que pagar um aumento de tarifa e eu te entregava uma debênture, para você no final vir receber a debênture, era empréstimo que você estava fazendo para o Governo e recebeu. Nós não deixamos nenhum empréstimo compulsório pendurado, todos foram liquidados. Hoje você está pagando sem saber para quem. Você montou aí 42 termoelétricas e ninguém sabe para onde vai esse dinheiro.
O que acontece? Havia, sim, um tipo de comportamento muito diferente. Esgotamos a capacidade de tributar, vendemos o patrimônio nacional e estamos com uma dívida que representa 57% do PIB. Ora, se eu não posso tributar e não posso mais fazer dívida, eu não tenho mais para onde caminhar. E o que aconteceu nesses anos? O custeio cresceu 6% real ao ano e a receita 2. Quer dizer, é um Estado antropofágico, está comendo a Nação, é uma coisa brutal.
É por isso que estamos hoje com 420 bilhões de dólares de passivo externo líquido, estamos com 220 bilhões de dólares de dívida externa, estamos com essa dívida total de 57% do PIB. Então, o Brasil está hoje em uma armadilha em que ele só vai sair com muito cuidado. Freqüentemente você ouve as pessoas dizerem: mas isso é porque está pagando juros. É verdade. Mas, por que está pagando juros? Porque se endividou. E eu sempre digo, o credor é canalha, mas você tem que saber disso antes de tomar emprestado. Porque o credor, depois de algum tempo, quer receber de volta o que te emprestou. O senhor acha que isso é justo?
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Agora, o senhor reclama muito da carga tributária...
O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Permita-me. Eu queria fazer uma pergunta de conteúdo político, até para descansar um pouco do tema econômico. Adversários mais ferrenhos do senhor, adversários e da sua política, a começar pelo próprio Presidente da República, reconhecem que houve uma modernização acelerada da economia durante o período em que o senhor esteve à frente do Ministério da Fazenda. O senhor estava alinhando diversos argumentos e para nós, sobretudo jornalistas, a impressão que a gente tem é que o senhor desfrutou de condições, por estar trabalhando em um Governo com o AI-5, por exemplo, de agilidade, de arsenal à sua disposição que nenhum outro Ministro da Fazenda na história do País já dispôs. Eu queria que o senhor falasse dessas relações de poder, como era sua relação com o Presidente, que tipo de autonomia o senhor tinha. Para nós se criou o mito que o senhor era o czar da economia, que as decisões econômicas eram atos de vontade quase, eram atos de convencimento individual e hoje são atos de engenharia política. Hoje tem que mandar uma reforma para o Congresso. E naquele tempo o senhor dizia: “Está precisando disso, vamos fazer”. Como é que as coisas funcionavam nesse nível? Como era a sua relação com o Presidente? Que tipo de autonomia o senhor tinha?
O SR. DEPUTADO DELFIM NETTO - Eu acho que uma das coisas que é importante a gente dizer é como que funcionava, na verdade, essa relação entre administração propriamente dita e o controle do País, que era um controle militar. Uma coisa que eu posso garantir, e para a qual eu sempre tento chamar a atenção, uma coisa que as pessoas têm muita curiosidade de saber, e que é importante saber, é qual era a relação entre a administração econômica e a administração política do País, que era, obviamente, militar. Um ponto que é preciso chamar a atenção é o seguinte, nunca houve a menor intervenção militar na política econômica. A política econômica era discutida com o Presidente da República e aquele grupo que o informava, que era o Chefe da Casa Civil, o Chefe do SNI, o Assessor Militar, o Chefe da Casa Militar. Ela era discutida nesse nível, se preparava um documento com aquilo que havia sido aprovado, depois se fazia uma reunião do Ministério total, ouvia-se as observações, que sempre existiam, e no final você saia com uma agenda aprovada pelo Presidente. E não havia a menor interferência do poder militar nessa agenda.
O exemplo mais típico para o qual sempre chamo a atenção: quando começou o Governo Costa e Silva o salário dos militares não estavam em dia, estavam atrasados. Depois de um tempo de harmonização, de conversas, se chegou à seguinte conclusão: há uma discussão dos orçamentos militares entre o Ministro Militar e o Ministro da Fazenda, entre os assessores imediatos do Chefe Militar e do Ministro da Fazenda. Uma vez preparado esse documento, o limite era a disponibilidade que você tinha, mas com o seguinte adendo, ele determinava como ele quisesse gastar. A escolha dos gastos era do Ministério, como foi com todos os outros. E um compromisso: no primeiro mês de cada trimestre você recebe a tua cota integral e aí administra isso. Nunca mais houve nenhuma dificuldade. Os orçamentos, mesmo quando não eram perfeitos, não eram mais rediscutidos. Se o Ministro da Fazenda estivesse errado, tinha rediscussão, mas se o Chefe Militar tinha errado não havia discussão, ele agüentava o equívoco que tinha cometido. A partir daí as coisas funcionaram muito bem, durante anos praticamente as relações entre, digamos, o Poder Militar e a economia se restringiam a uma relação de 4 ou 5 dias nas semanas de agosto, que antecipavam o Orçamento. Feito isso, terminou.
O sistema era absolutamente hierarquizado, cada um sabia sua posição. Você tinha o Presidente da República, o Ministro do Exército, que era linha, ele era uma espécie de linha acessória. O que acontecia? Ele não estava na linha hierárquica, mas se alguém brigasse com o Ministro do Exército ia embora. Então, ele, na verdade, era staff; tinha o Presidente e tinha o Ministro do Exército que era staff. Se brigou com ele, vai embora. Abaixo dele tinha o Chefe da Casa Civil. Também, brigou com o Chefe da Casa Civil, vai embora, quem estiver embaixo. Depois vinha o Ministério da Fazenda. Brigou com o Ministro da Fazenda, torna impossível a administração, vai embora. Então, cada um sabia exatamente o limite da sua ação.
O Presidente realmente arbitrava as divergências. Tinha uma divergência, iam os 2 Ministros conversar com o Presidente, abertamente. Essa é uma das vantagens do Poder Militar. Tem várias vantagens. Eu sempre digo, a melhor de todas é que as cerimônias começam na hora e terminam na hora, o que é uma vantagem tão grande que a gente não acredita. A segunda é que você fala tudo o que você está pensando, desde que você esteja honestamente colocando a sua posição. Quer dizer, não tem nada de diz-que-diz, vamos conversar isso, o outro está gordo, ele engordou 3 quilos, ele está vesgo e não sei o que mais. Na hora de conversar põe os 2 na frente e cada um expõe o seu argumento abertamente. De vez em quando saía briga mesmo, aí ele arbitrava, ou então acertava. Não havia essa interferência. Nunca houve uma interferência externa, na linha administrativa, na política econômica, acredito que em nenhuma das políticas, nem na política externa, nem na política industrial, nem na política social. Nunca houve interferência, na verdade eram Governos militares com administração privada.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Ministro, quando terminou 1974, V.Exa. era candidato natural a Governador de São Paulo, examinando o problema do ponto de vista político. V.Exa. tinha feito boa administração na Fazenda, era paulista, exprimia os interesses da burguesia brasileira com sua política econômica de êxito. Mas o General Geisel teve receio foi que V.Exa. pudesse se transformar num empecilho da autoridade dele na escolha do sucessor. Ele, provavelmente, o temia como alguém que pudesse contrastar o poder dele, e mandou o Sr. Petrônio Portela avisá-lo de que o V.Exa. não teria chance de ser o Governador de São Paulo, mas posteriormente ofereceu-lhe a compensação da embaixada em Paris, para onde V.Exa. foi depois.
Conte-nos essa história da sua conversa com o Petrônio Portela.
O SR. DEPUTADO DELFIM NETTO - Quando terminou o Governo Medici, o grande problema era o seguinte: o Governo Geisel estava confrontado com um fato inelutável: a inflação no Governo Medici tinha crescido 14%, com média de 11% e estava terminando com 15% de inflação.
Como já conversamos, alguns diziam que o índice é mentiroso; outros, que houve interferência. Como não era possível verificar, o Presidente Medici disse-me:
“O Geisel não deseja que você seja Governador de São Paulo.” Isso era absolutamente natural, eu teria sido eleito tranqüilamente, eu tinha a maioria tranqüila na Convenção. Perguntei: “E a explicação qual é, Presidente?” — são palavras textuais. “A explicação é que você mais a Av. Paulista vão perturbar o Governo dele”. Por isso digo que S.Exa. estava fazendo um hedge, porque provavelmente já sabia que no ano seguinte dobraria a inflação — não era por culpa de ninguém — e que o produto ia ser muito menor. Era este o ponto.
S.Exa. mandou o Petrônio Portela me procurar — hoje até eu me arrependo, porque o Petrônio era uma pessoa fina, e nós tivemos um daqueles desarranjos típico do Cambuci. (Risos.) Mas ainda assim foi preciso mais um movimento. O Paulo Maluf me procurou e disse: “Se você quiser, você se lança. Nós temos maioria tranqüila, você se elege, aí a gente vê o que acontece”.
Mas o Presidente Figueiredo, que era muito meu amigo, que tinha sido comandante da Polícia Militar em São Paulo, quando eu era Secretário da Fazenda, disse-me: “Delfim, se você se lançar, o alemão vai fazer uma intervenção em São Paulo e esse negócio desarruma tudo de novo”. Eu acreditei, porque não tinha nenhum interesse de fazer uma desarrumação dessas. Então o Paulo Maluf ganhou a convenção e foi um bom Governador .
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda)- Isso aí provocaria o endurecimento do regime.
O SR. DEPUTADO DELFIM NETTO - Eu não sei o que provocaria. Não sei se no fim aconteceria um ataque de bom senso, porque ele não era imune a isso. Foram muito raros, mas não seria imune. Mas quando o Figueiredo me disse isso, convenci-me de que não valia a pena, na verdade, porque era a síndrome de 32. Eles, na verdade, achavam o seguinte: São Paulo vai se apropriar do Brasil. É isto. Quer dizer, eu tenho vários episódios. Quando nós fizemos a Escola de Administração Fazendária, fizemos um convênio com os alemães, e o Geisel destruiu, na verdade, aquilo. “Não, o Delfim tinha imaginação de que os economistas iam mandar. Não, quem tem que mandar no Brasil é general mesmo.”
Bom, mas tudo isso é parte de um mecanismo. Com São Paulo, não tínhamos a menor dúvida. A referência à Avenida Paulista era uma referência clara a 32.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Mas conte a conversa com o Petrônio.
O SR. DEPUTADO DELFIM NETTO - A conversa com o Petrônio é incontável. Ele disse isso para mim e recebeu de volta...
O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Elogios?
O SR. DEPUTADO DELFIM NETTO - ...impropérios. Ele era um sujeito muito educado, um sujeito decente, direito. Tanto que teve um ataque na volta aqui. (Risos.) Ele foi lá fazer um serviço sujo, tá certo, mas era obrigação dele, afinal de contas ia ser o Ministro da Justiça e tinha que se desincumbir disso.
Hoje, me arrepender não me arrependo, mas acho que fui... Não foi uma conversa de cavalheiros. Mesmo porque nenhum dos 2 era cavalheiro.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Agora, Ministro, quando o senhor foi para a Embaixada em Paris houve aquele episódio do Coronel Raimundo Saraiva. Posteriormente, um dos coronéis importantes do sistema de repressão, Adir Fiúza de Castro, filho de um general histórico do Exército, o Marechal Fiúza de Castro, esse Adir Fiúza de Castro também deu declarações no mesmo sentido, acusando o senhor de ter recebido comissões, não sei o quê, como o Saraiva. O que o senhor diz disso?
O SR. DEPUTADO DELFIM NETTO - Na verdade, a mediocridade é um dos negócios mais graves. O problema do Saraiva é que ele foi pego fritando bolinho na minha casa, e levou um esbregue da minha mulher. É isto. O resto tudo é conversa. De forma que estava lá, era metido a entender das coisas. Quando eu cheguei lá, impus a minha vontade, na Embaixada. Então, inventava moda, inventou o relatório. Nada disso subsistiu. A prova disso é o seguinte: todas as acusações foram no período pré-construção da eleição do Geisel. Bom. Todo mundo conhece o Presidente Geisel. Alguém imagina que se o Geisel tivesse alguma dúvida sobre a minha integridade, ele teria me convidado para ser embaixador plenipotenciário em Paris? Por quê? Qual é a razão disso?
Esse relatório do Saraiva acabou na mão do Figueiredo, que era o chefe do serviço. Por que o Figueiredo me convidaria para ser Ministro da Agricultura no seu Governo? Por que o Figueiredo despacharia o Andreazza para Paris, 2 anos antes, para me cooptar para sua candidatura? Eu não tinha importância nenhuma. Por que ele faria isso, se tivesse alguma dúvida?
Então, essas acusações eram mesquinhas, produzidas, como eu disse, por um ofidiário, que se criou dentro do próprio Governo, em que as pessoas tentavam manipular as outras, por esse caminho. No caso da embaixada, é ridículo dizer que você podia fazer alguma coisa. Embaixada não compra, não vende, e quando compra, não paga, de forma que não tinha nenhuma razão para que pudesse acontecer qualquer coisa como essa.
Havia, sim, um problema político. Havia um problema político. Tanto quanto o impedimento para eleição era hedge do Governo. Depois de ser eleito, não tinha... Morreu tudo, acabou.
O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos)- Ministro, dizem os políticos que importante não é o fato, é a versão. Hoje temos uma memória histórica desse período em que o senhor foi Ministro da Fazenda, por 2 vieses: um, a euforia econômica, o País crescendo, aquela coisa do consumo, as pessoas podendo comprar carro e a classe média chegando ao paraíso. O outro, é a questão da repressão, que marcou muito. É uma memória muito forte.
E houve um momento em que esses 2 vieses encontraram-se, que foi a criação da Operação Bandeirantes em São Paulo. A elite econômica de São Paulo ajudou, vamos dizer, eufemisticamente a modernizar o aparelho de segurança naquela época. Houve um confronto com a luta armada.
O senhor era o Ministro da Fazenda e era de São Paulo. Que tipo de participação o senhor teve nessa elaboração?
O SR. DEPUTADO DELFIM NETTO - Nenhuma. Nenhuma. Aliás, isso está no primeiro volume do Elio, ou no segundo, não estou bem lembrado, uma reunião que houve no Clube São Paulo. Que reunião foi aquela? Eu era Ministro da Fazenda, e se reuniram lá alguns banqueiros, a convite do Gastão Vidigal, que queriam verba. Qual foi minha resposta? “Não tem”, e fui embora. E terminou a minha participação nesse processo.
O que eu digo é o seguinte: todos nós só conseguimos entender as coisas quando o futuro virou passado. Na época do Ato Institucional nº 5 a última coisa que se podia imaginar era que aquilo iria terminar daquela forma. Era inimaginável, mesmo porque aquilo ia durar muito pouco. O Presidente Costa e Silva disse para mim: “Delfim, eu vou assinar a Constituição dia 7 de setembro.” Tinha terminado. Depois, houve o stroke; houve o triunvirato, 68 inteiro, houve uma organização externa também que achava que podia derrubar o Governo, que achava que tinha uma política alternativa.
Hoje estão no poder. Estão no poder hoje. E, se você olhar, a política é exatamente oposta ao que eles propunham, e muito parecida com a que nós estávamos fazendo, em matéria econômica. Vocês imaginam o desastre que eles teriam feito naquela ocasião.
É como eu sempre digo, o Lula salvou o Brasil nessa eleição agora. Se ele tivesse sido eleito em 98, teria destruído o Brasil, porque não tinha ainda, na verdade, incorporado essa maturidade que ele incorporou no segundo mandado do Fernando Henrique. Então, não havia vínculos.
Quanto àquele episódio acontecido em São Paulo, ressalto que nunca vi essa tal Operação Bandeirantes, nunca passei perto, nunca soube do que se tratava. Eu via no jornal de vez em quando. As coisas migravam no jornal aqui ou ali. Então eu lia que tinha lá uma guerrilha dentro do Governo. (Risos.) No Palácio, nas reuniões de que eu participei, de que participavam o Dr. Leitão, o Chefe da Casa Militar, o Chefe do SNI — e eu era um dos civis que participava de todas — nunca ouvi uma referência a esse problema desagradável, terrível. Nada justifica a tortura. Não há nenhuma possibilidade de justificar a tortura. Mas eu nunca ouvi uma referência a isso no Palácio.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Agora, o senhor falou sobre o General Costa e Silva, dizendo que ele queria, em setembro de 69...
O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos)- Não, em 68.
O SR. DEPUTADO DELFIM NETTO - Não, o Ato foi de 68.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda)- Sim, 68. Ele ia assinar...
O SR. DEPUTADO DELFIM NETTO - Em 69.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Em 69 ele queria assinar a Constituição. Agora, se analisarmos as coisas — e o senhor é um homem que tinha acesso, e tem também uma capacidade intelectual muito arguta para fazer esse exame — ele não tinha as menores condições políticas para restaurar a democracia, com uma Constituição. Isso leva muita gente que conhecia a situação dominante no Brasil naquele tempo, e nós estávamos em posições diferentes: o senhor, no Poder, eu, na planície, mas eu também tinha muita informação, eu também tinha acesso a certas fontes militares, a generais e tal. Então, não havia condição de restabelecer a democracia. Isso ficou claro na continuação do processo, porque ele foi engrossando, foi radicalizando.
Ao mesmo tempo em que os meninos davam pretexto para essa radicalização, com assalto a banco, com aquelas chamadas organizações armadas, que para nós era uma titica, diante do Exército, uma brincadeira. Mas, de qualquer maneira, dava o pretexto.
Então, na verdade, o General Costa e Silva não tinha condições de assinar a Constituição coisa nenhuma. E o processo depois mostrou. Isso faz com que muita gente ache, embora alguns generais desmintam, que ele estava deposto quando ficou doente.
O SR. DEPUTADO DELFIM NETTO - Olha, fala-se muito que o Presidente Costa e Silva não teria como — como ele contou para mim num despacho: “Vou assinar dia 7 de setembro” —, não teria possibilidade de restabelecer a democracia. O Presidente Costa e Silva era um animal absolutamente diferente.
Eu assisti a muito leão virar gato. A tal linha dura, o tal negócio de que existe isso, existe aquilo. Um dia, eu estava embaixo de uma escada e o General Cizeno, que era Comandante do Primeiro Exército, quando o Presidente ia subindo a escada, disse: “Eu vou pôr... os meus rapazes querem sair.” O Presidente simplesmente virou e disse: “Põe teus rapazes na rua que eu ponho os meus.” E terminou o jogo.
Ele tinha uma profunda admiração pelo Vice-Presidente, pelo Pedro Aleixo. E o Pedro Aleixo é que havia costurado a nova Constituição. Ele ia pô-la em vigor mesmo, em 69, eu estou absolutamente convencido. Ia fazer eleição direta mesmo, como ele pretendia. Não tinha nada disso que dizem que as forças, a linha dura iria impedir, que a organização no Exército iria impedir. Que organização era essa? Do General Afonso? O que era? Quem ia derrubar o Governo? Se ele restabelecesse, se ele pudesse ter assinado a Constituição... a não ser que você imagine que aplicaram uma injeção nele e deram um stroke, o que é um absurdo. O que aconteceu? Na verdade, é o acidente que constrói a história. O stroke dele foi o acidente que construiu a história.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda)- O acaso.
O SR. DEPUTADO DELFIM NETTO - O acaso. Então, ele é produto desse acaso, é produto de uma circunstância imprevisível. De novo, é como eu digo, são as conseqüências não esperadas de um fato que acontece. Eu não tenho a menor dúvida de que ele teria devolvido ao País, teria restabelecido a democracia em 69. O futuro, depois, como as coisas iam acontecer, eu não sei. Mas é visível. Um daqueles líderes civis ia ser o Presidente da Republica. Mesmo porque no caso de assinar a Constituição, o que ia se precipitar — e eu tinha absoluta convicção — era a eliminação de todas as punições do AI-5, porque não ia subsistir. Quando abrisse, não subsistiria nada. A anistia era uma avalanche.
Na verdade, se analisamos o Presidente — e eu analisava aquilo com cuidado — porque ele foi empurrado pela tal linha dura. Quando chegou no Governo, ele desmontou a linha dura. O Presidente Costa e Silva tinha uma outra visão do mundo. Por isso afirmo: se alguém pensasse em blefar não vinha falar com ele. Há um caso em que ele resolveu um problema na Polícia Militar em São Paulo com uma bofetada. Eu estava jogando pôquer, avisaram a ele que estava havendo uma revolução, ele pegou o Aerowillis dele, foi lá e deu uma bofetada, e acabou a revolução. E está cheio de gente por aí que foi testemunha disso.
De forma que essa idéia de que um grupelho pretendia na verdade ter um programa para o Brasil — não tinha — ele compreendia isso com a maior tranqüilidade. Na verdade, aquele programa alternativo do Afonso não iria levar o Brasil a lugar nenhum. É interessante como a intuição é um fator preponderante. Era claro para ele que aquilo não levava a nada. Aquilo ia, sim, levar a uma ditadura destrambelhada, não tenho a menor dúvida. Se ele tivesse vivido até 7 de setembro, a história teria sido outra. Ele ia assinar a carta do Pedro Aleixo. E nós conhecemos quem era o Dr. Pedro Aleixo. A carta era cheia de rococós liberais. Na minha opinião, precipitaria a anistia. Ele teria encurtado, não teria acontecido nada de trágico do que aconteceu no processo revolucionário.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Logo no início do Governo Costa e Silva houve um atrito do senhor com o General Afonso Albuquerque Lima. O General Costa e Silva acabou lhe prestigiando em toda a linha e o Afonso Albuquerque Lima acabou saindo. Como foi esse episódio? Como se deu isso? Parece que começou com um problema na SUDENE, da qual era superintendente o General Euler Bentes Monteiro. O que houve? O Afonso era Ministro do interior.
O SR. DEPUTADO DELFIM NETTO - Deixa eu esclarecer. A divergência com o General Afonso era divergência de verba. Ele tinha lá os seus objetivos. Era claramente candidato a Presidente da República. Essa história de problema com o General Euler não procede, nunca houve problema. Pelo contrário. Foi com o General Euler que se acertou todas as finanças do Exército. Acontece que o Afonso tinha um desejo, estava dentro do Governo e achava que o Governo podia ser um bom instrumento para ele chegar à Presidência. E o Afonso também tinha um ofidiário particular, que era aquele grupo dele. Não era o José Luiz, era aquele grupo paramilitar que ficava em volta dele, incensando-o. Era um negócio muito parecido com o ofidiário do Golbery, quer dizer, do Geisel. Então esses ofidiários se criavam para, na verdade, montar coisas contra o inimigo, falsificar. Na verdade era esse o problema. A divergência era somente essa.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Coronéis da linha dura.
O SR. DEPUTADO DELFIM NETTO - Alguns, outros nem tanto. Mas ele tinha lá um grupo. Não era composto apenas de coronel, havia civil. É muito pior porque o civil quando entra num negócio desses é porque não tem nenhum caráter realmente. O militar a gente até perdoa porque ele está num círculo restrito. Agora, civil em ofidiário de militar é porque não tem caráter, definitivamente.
O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Ministro, o senhor disse que o Presidente Costa e Silva antes de adoecer, em agosto, assinaria em setembro e viriam eleições diretas e que possivelmente um civil o sucederia. Esse civil poderia ter sido o senhor?
O SR. DEPUTADO DELFIM NETTO - Não, deixa eu esclarecer. Eu não estava envolvido nesse processo. O civil ia ser o Lacerda ou o próprio Juscelino. Poderiam até colocar o Jânio. Sabe Deus o que viria. Mas não tenho a menor dúvida. Da forma pela qual estava montada a Constituição pelo Dr. Pedro Aleixo, uma vez aberta, assinada a Constituição, funciona o Congresso, está tudo livre. Não tem solução. As forças políticas iriam se reagrupar e tirar todo o proveito da Constituição. Nem sequer aquela idéia de dizer “esses estão fora”, não havia razão alguma. Não havia razão para colocar o Juscelino fora do processo. O que o Juscelino fez, a não ser o bem? Tinha algum mal essencial? Não. Na verdade, tinha uma concepção de nação, de entusiasmo. O próprio Lacerda tinha feito uma administração de boa qualidade na Guanabara. De forma que o Magalhães Pinto, naquele momento, tivesse assinado a Constituição, veríamos uma corrida de civis. Aquilo seria um circo de grande qualidade que mudaria a história a cada dia. Eles nem dormiriam, para trabalhar 24 horas. Alterariam tudo.
O Costa tinha a clara convicção de que isso era necessário para o Brasil caminhar. E jamais teria feito isso sem o conhecimento total do General Médici, que era o chefe do SNI. Essa história um dia será contada realmente. Foi abortada por um ato da natureza.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda)- O senhor protagonizou 2 situações opostas, antagônicas. Primeiro, participou de um processo de expansão econômica que foi, talvez, o mais vigoroso do século passado: o ciclo do Governo Médici. Depois, protagonizou uma fase de depressão econômica, a década de 80, quando se refletiram no País as conseqüências de um choque do petróleo e dos juros. Como o senhor analisa essas diferentes missões? Na década de 80, foi muito mais difícil a gestão da economia. O senhor atravessou inclusive uma severa crise cambial. Lembro-me de que havia dificuldade até para pagar telefone de embaixada no exterior. Não havia dinheiro, não havia dólar. Quando o senhor foi para o comando da economia, na década de 80, teve outro conflito com o Sr. Karlos Rischbieter. O senhor era o Ministro do Planejamento e ele acabou saindo do Ministério da Fazenda. O senhor poderia fazer uma análise desse fato?
O SR. DEPUTADO DELFIM NETTO - A década de 80 na verdade começou em 1979, no Governo Figueiredo. Foi completamente diferente da década de 70. O Brasil já estava numa situação muito delicada. É muito simples explicar isso. A década de 80 foi totalmente diferente da década de 70. Em 1980, na verdade, o Brasil já havia quebrado. Tomamos posse no dia 15 de março de 1979. O Mário Simonsen era o novo Ministro do Planejamento. Ele tinha vindo do Ministério da Fazenda do General Geisel. Aconteceu um fato em agosto. O Figueiredo gostava demais do Mário, como todos, porque era uma figura doce e inteligentíssima. O Mário foi embora. Abandonou o governo. A despeito de tudo o que o Figueiredo fez, pois moveu céus e terra para manter o Mário, mas ele não fechou o balanço, o orçamento, que tinha de ser apresentado no dia 30 de agosto e foi-se embora. Então, o Presidente me chamou e disse: “Vou precisar de você. O Mário foi embora e nem me comunicou. Precisamos dar um jeito nisso. Queria que você viesse ser o meu Ministro do Planejamento”. Eu disse: “Bom Presidente, o senhor sabe que o Brasil quebrou. O Mário não foi embora simplesmente porque tinha o desejo de ir. Ele foi embora porque, sendo um sujeito inteligente e participado do Governo Geisel como Ministro da Fazenda, embora não concordando na verdade com aquelas aventuras megalomaníacas do Governo, mesmo assim continuou até o fim. Ele sabe que o Brasil quebrou. O resto tudo é conversa. O Figueiredo tinha plena consciência de que a missão dele era simplesmente arrumar um pouco a situação. Fechou-se o Orçamento, o Brasil começou a caminhar, a segunda crise do petróleo se agravou. Houve a crise mundial e tivemos muita crítica. Ele me disse: “O Mário queria reduzir o crescimento e o Delfim empurrou o crescimento”. Isso é uma idiotice. O Mário era um sujeito inteligente. Ele sabia que não adiantaria crescer mais 1 ano ou menos. O Brasil já estava quebrado. O País tinha quebrado por causa dos juros e não por causa das importações.
De fato, empurrei mesmo o crescimento e consegui 8% em 1 ano, absolutamente consciente de que aquilo não alteraria em nada a tragédia já montada. Eu não perderia, portanto, 5% do crescimento por um fato já consumado. Essa foi a razão. O Mário foi embora porque quis. Ele desejou ir embora e tivemos de cumprir a missão. O Presidente dizia: “Você faz o que tem de fazer”. Fizemos realmente 2 desvalorizações cambiais. A primeira não funcionou porque não fizemos o controle monetário adequado. A segunda funcionou estupendamente. Em 14 meses o problema foi eliminado. O superávit em contas correntes estava zero. Houve um crescimento de 4,8% em 1 ano, crescimento este que continuou por 3 anos depois. Isso mostrou que o crescimento era robusto.
Havia sobrado uma inflação de 200% ao ano. Era um escândalo. Essa inflação era basicamente causada pelo desequilíbrio fiscal. Mas, mais do que pelo desequilíbrio fiscal, pelos mecanismos de correção monetária que existiam. Quando se transformou a correção salarial anual em semestral, a taxa da inflação dobrou. Esses documentos estão no Conselho de Segurança, um deles escritos por mim mesmo, dizendo que esse acordo salarial simplesmente vai dobrar a taxa de inflação e não vai causar mais nenhum efeito . Isso aconteceu porque já não havia mais poder político para elaborar uma lei salarial. Tanto que o Congresso recusou a 2024.
Divertia-me muito porque os jornais todos os dias publicavam que eu estava para cair. Uma revista célebre até me publicou sem cabeça. Era o Élio Gaspari. Eu dizia para ele: “Você nunca terá essa alegria ou esse pesadelo, porque somos amigos. Eu havia combinado com o Presidente Figueiredo as dificuldades que estávamos vivendo. Não adiantava querer brigar contra os fatos. Eram aqueles. O Brasil quebrou mesmo. Recuperou-se, crescendo em 1984, 1985 e 1986. Veio o Cruzado, que, infelizmente, congelou o câmbio e abortou todo o crescimento.
Em 1987, pedimos uma moratória e fomos empurrando. No Governo Sarney — estou convencido e já disse mais de uma vez —, mesmo com os defeitos do Cruzado, ele quebrou por causa da parte cega. Se o Sarney tivesse tido metade do suporte do FMI que o Fernando teve, o Brasil não teria quebrado.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda)- Se tivesse tido ajuda.
O SR. DEPUTADO DELFIM NETTO - É. Não teria quebrado. Só que o Brasil não era confiável.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda)- A situação de destrambelho.
O SR. DEPUTADO DELFIM NETTO - Estava tudo atrapalhado.
O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos)- V.Exa. não só é uma testemunha como um personagem privilegiado desses últimos 40 anos, tanto na área política como na área econômica. Hoje em dia, o que vemos é a desmoralização da democracia. Há um pensamento corrente que se opõe a decisões técnicas e políticas. Acredita-se que onde o político mete a mão a coisa desanda. E as decisões técnicas são aquilo de que o Brasil precisaria para ficar em ordem.
E a democracia, como tenta acomodar isso, acaba não...
Como V.Exa. analisa esse processo? V.Exa. esteve dentro de um regime duro, com toda a liberdade individual para tomar decisões sem pressão do Congresso e está vivendo essa outra situação. Acredita que essa democracia é capaz de resolver os graves problemas do Brasil?
O SR. DEPUTADO DELFIM NETTO - Eu gostaria de dar um testemunho neste momento. Se, de vez em quando, as pessoas têm dúvidas sobre a democracia, não é só no Brasil, mas praticamente na América Latina inteira. O Latinoamérica fez um levantamento terrível: 58% das pessoas dizem que, se for para melhorar a parte econômica, preferem sacrificar a democracia. E mais perigoso do que tudo isso é um levantamento no qual perguntam em quem as pessoas confiam. A sociedade é um processo de confiança, e um número imenso de pessoas dizem: “Não confio em ninguém.”. Ou seja, não confiam nem neles. Isso é uma anomia; a sociedade não existe, se não confiarmos um no outro.
Eu diria que há uma parte técnica e há uma parte política. Temos de levar a parte técnica com um certo grão de sal. Existem, sim, conhecimentos econômicos seguros. Por exemplo, não existe nenhum truque para fazer desenvolvimento com inflação. Há hoje centenas de estudos empíricos mostrando que, quando a inflação passa de 8% ou 9%, começa a reduzir o ritmo de crescimento. Existe, sim, um conhecimento claro, seguro, de que, se se tentar violar as vantagens comparativas, perde-se produto, não vai longe. Existem, sim, informações seguríssimas de que, sem o equilíbrio fiscal, é impossível eliminar inflação. Essas coisas são seguras. Pode-se dizer que seria a mesma coisa que um físico, que pode calcular onde está um planeta, um médico que sabe que o apêndice supurado tem de ser cortado e que pode abrir o buraco no lugar certo. São, digamos, proposições de um grande arco de conhecimento.
No entanto, existe também uma boa parte, que se chama ciência econômica, que é uma mistura de teoremas de matemática, o que é muito saudável, com ideologia. A idéia de que o mercado pode tudo e de que é o instrumento mais eficiente para realizar o crescimento é falsa. O mercado é instrumento importantíssimo para realizar o crescimento, mas deixar esse crescimento aos cuidados do mercado é falso.
O político é sempre contra todo o sistema de controle. Os políticos têm uma grande dificuldade para acreditar que o equilíbrio orçamentário não é violável, que ele não é um hímen complacente — violou, paga. Eles sempre imaginam que um pouquinho vai dar. Acontece que surge uma contradição entre essas observações, que são perfeitas e que, na minha opinião, seguras, e os desejos dos políticos. Mas, numa larga medida, a política vai harmonizar isso que é absolutamente necessário de ser cumprido e aquilo que é aquela mistura do contrabando ideológico que entra dentro da teoria. Não pode haver política industrial por uma razão muito simples: ela só poderá acontecer quando houver falhas de mercado, isto é, quando eu, economista, doutor, PhD, cientista de alta qualidade, determinar onde o mercado está falhando. Então, providencio uma forma de corrigir essa falha do mercado por interferência do Estado.
Mas, nesse caso, aparece o segundo teorema: “Os erros do Governo são maiores do que os erros do mercado. Logo, não se pode pôr a mão em nada. Os erros do mercado podem ser corrigidos pelos erros do Governo, mas normalmente o erro do Governo é maior do que o erro do mercado. Portanto, é melhor deixar como está. Isso é pura ideologia. Por isso, há um arco importante de coincidência entre aquilo que é economicamente legítimo e o sacrifício que legitimamente se pode exigir da sociedade, como, por exemplo, essa recente política de combate à inflação produzida no Governo Lula, depois do Governo Fernando Henrique. Na passagem de Governo, a inflação estava rodando a 40%. O Governo Lula tomou medidas enérgicas e aumentou os juros. O Ministro Palocci tomou medidas ainda mais enérgicas e aumentou o superávit primário e, em 4 ou 5 meses, inverteu a expectativa e a inflação caiu dramaticamente.
Em maio, já era visível que a inflação em 2004 seria de 5,5% a 6%. O Governo persistiu, perseguindo uma meta intermediária de 8,5% em dezembro. Perfeitamente dispensável. Isso tem uma contradição em si, é um sofrimento exagerado. Não era preciso ter feito isso. É evidente que hoje se diz: “É porque agora você conhece o passado. O que era futuro virou passado e sabemos que não era preciso adotar medidas tão fortes. Era visível, já em maio, que poderia ter havido um pequeno afrouxamento. A contradição disso tudo é que se manteve a taxa de juros mais elevada, o que elevou a relação dívida/PIB; mantendo-se a relação dívida/PIB elevada, elevou-se o spread, que eleva novamente a taxa de juros. Isso não tem nada a ver com ciência. São fatos que qualquer indivíduo, com o mínimo de conhecimento de lógica, é capaz de detectar.
Neste caso, certamente a intervenção política pode harmonizar a política econômica com a política propriamente dita, para se atingir um objetivo com custos menores. Certamente, o político tem maior sensibilidade do que o economista, principalmente do que o economista que se acredita portador de uma verdadeira ciência. Se sou portador de uma ciência, não tenho que dar confiança à sua opinião, porque sei o que é bom para você. Esta é que é a negação da democracia.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda)- O problema foi aprovar mudanças que o Governo propôs naquela época. V.Exa. se lembra?
O SR. DEPUTADO DELFIM NETTO - Era o Passarinho.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda)- Não foi isso?
O SR. DEPUTADO DELFIM NETTO - Era com o Ministro Passarinho.
O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos)- Desde a relação trabalhista também.
O SR. DEPUTADO DELFIM NETTO - Vamos lá.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda)- Faltou também a Serra de Carajás.
O SR. DEPUTADO DELFIM NETTO - Está bom. Isso podemos resolver no final.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda)- Isso é importante. O problema da Previdência virá depois. O problema de Itaipu, que foi uma usina gigantesca ...
O SR. DEPUTADO DELFIM NETTO - Ah, isso tem que se fazer. Carajás, Tubarão e Itaipu.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda)- Tucuruí e Itaipu... e o problema da Previdência que continua.
O SR. DEPUTADO DELFIM NETTO - O problema da previdência é crônico e foi se agravando. Mas uma coisa que é preciso deixar bem claro é quando da gestão então do Ministro da Previdência, Jarbas Passarinho, do Governo Figueiredo, antes de terminarmos o Governo, fizemos um acerto e saímos sem que o Tesouro devesse um tostão à Previdência Social. Pusemos em dia a Previdência Social. Nisso, o Ministro Passarinho teve um papel extremamente importante, já que a Previdência estava caminhando para o desequilíbrio. Mas o Governo pagou tudo o que devia e depois nunca pagou mais nada.
O Governo tinha uma concepção de administrar o País, como disse, olhando para a frente, procurando, na verdade, eliminar alguns problemas que se criariam no próprio processo de desenvolvimento. Um dos grandes programas foi o BENFIEX, que era um acordo entre o Estado e uma empresa estrangeira que vinha se instalar no Brasil especialmente para exportação. Posteriormente, isso foi aproveitado por outros países. Começamos com isso em 1969, 1970.
A empresa vinha, recebia isenção de todos os impostos, fazia uma planilha de exportação e venda para o mercado interno e cumpria aquilo rigorosamente. Esses projetos produziram enorme aumento das exportações. Eram projetos importantes, como a FORD e todas as outras empresas automobilísticas, e que foram decisivos para criar esse espírito exportador instalado, destruído pelo congelamento de câmbio, em 1986, em 1990 com o Collor, e em 1994 com Fernando Henrique Cardoso.
Grandes obras também antecipavam situações, como a Itaipu, que foi uma obra num momento que produziu muita discussão, se devia ser 1 ou 2. Hoje, entendo que provavelmente nossos técnicos estavam certos. Devia ser 1 mesmo. Está terminada, é extremamente eficiente, completa e grande parte dela foi feita com recursos externos.
Tucuruí foi outro investimento extraordinário, numa região que precisava de energia e que vai precisar ainda mais. Estou convencido de que o desenvolvimento do Nordeste e do Centro-Oeste estão por acontecer. Não são províncias minerais muito mais ricas do que imaginávamos, como oportunidades de investimento de produção agrícola impensáveis. No próprio sul do Piauí, tem-se hoje um desenvolvimento robustíssimo.
Carajás foi o primeiro grande projeto financiado pelo Banco Mundial com todos os cuidados ecológicos. Quer dizer. Antes de Carajás, ninguém se preocupava com a ecologia. Foi o primeiro projeto em que o banco exigiu que se conservasse a natureza praticamente intacta, o que é muito difícil. Mas é um jardim. É preciso ir lá para ver como a natureza foi protegida e constatar a eficiência da Vale naquele processo.
Outro projeto formidável foi Tubarão, com investimento japonês. Aliás, os japoneses nos ajudaram demais. O Brasil teve no Japão um grande amigo durante o processo de crise financeira. Quando fomos com o Presidente Figueiredo ao Japão, em 1982, o mundo estava seco, não tinha um dólar. O Governo japonês nos deu um empréstimo no valor de 2 bilhões de dólares para manter o País funcionando.
Vejam a diversidade desses projetos. Refletem a preocupação do Governo autoritário em diversificar os sistemas produtivos. Ele chegava a certos exageros. Por exemplo, as pessoas de vez em quando me criticavam pelo fato de haver um só preço para o aço no Brasil inteiro. Se o aço está sendo produzido em Volta Redonda, como é cobrado o mesmo preço para levá-lo a São Paulo e a Fortaleza? Não é que eu não soubesse sobre teoria de preços; provavelmente soubesse igual aos meus opositores, mas é que, acrescentando um centavo ao preço do aço em São Paulo, poderia vender o aço em Fortaleza pelo mesmo preço e estimular a criação de um pólo metal-mecânico, que era o sonho do Senador Virgílio. E ainda estão lá.
O que acontece? Havia uma siderúrgica na Amazônia difícil de dar certo, porque era isolada. E isso não funciona. Mas normalmente os projetos tinham muito mais lógica do que parecia, e o combate a eles — volto a insistir — foi muito mais ideológico do que técnico.
Freqüentemente, ouço comentários de alguns economistas brasileiros, que são bons, mas que têm um problema sério: um inimaginável desconhecimento de história brasileira. Eles juntam tudo e dizem que estava tudo errado e que o estímulo à atividade industrial terminou no fracasso. Vários projetos terminaram em fracasso, principalmente os iniciados na era Geisel, que eram megalomaníacos. Agora, por conta desses erros, recusar-se a entender — e vou insistir definitivamente — que é fundamental a mão do Estado, não só para harmonizar o País e criar uma certa equalização, como também para produzir o desenvolvimento. É impossível negar esse fato. A história de todos os países confirmam isso, e a História do Brasil também.
Eu me divirto quando vejo que o Brasil já foi por 3 vezes grande potência como produtora de navios: na Colônia, a Maria Louca mandou fechar; na Guerra do Paraguai, terminou, e nós tínhamos uma indústria que simplesmente se transferiu para a Coréia, quando fomos incapazes de suportá-la aqui. Esses são os contra-exemplos para os famosos exemplos de que nada deu certo.
O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos)- Ministro, V.Exa. falou em grandes projetos. O Brasil teve aquele ciclo de euforia econômica, mas pagou um preço muito grande em endividamento. Um desses mitos que subsistem é de que a sua administração teria sido a que deu o pontapé nesse endividamento famoso que temos hoje em termos de dívida externa. Até onde isso é verdade ou mentira, e por quê?
O SR. DEPUTADO DELFIM NETTO - O problema de endividamento externo, que em geral vem à tona, no sentido de que o Brasil se endividou para crescer, é absolutamente falso. É claro que o Brasil se endividou para crescer, mas qual foi o endividamento do Brasil em 1974, quando, na verdade, o ciclo estava se encerrando?
O Brasil devia 12 bilhões de dólares. Qual era a reserva brasileira de verdade, não emprestada? Seis bilhões de dólares. Qual era a dívida líquida, portanto? Seis bilhões de dólares. Quanto exportava por ano? Seis bilhões de dólares. Ou seja, a dívida era igual a 1 ano de exportação. Quando terminou o Governo Geisel, a dívida era 3 vezes e meia a exportação. Quem endividou o Brasil? Naquela época, foi para pagar petróleo e não para as obras que fizemos.
Quando tomamos recursos para a construção de Itaipu, Tucuruí, Carajás e Tubarão, estávamos investindo e ampliando as exportações. Aquele era um processo de endividamento para investir. O processo de endividamento feito durante as 2 grandes crises do petróleo eram para consumir.
Agora, havia solução? Não. Por isso que digo que, nesse aspecto, o Governo Geisel, na minha opinião, fez o que tinha que fazer. Existiam recursos, e se endividou. Se não o fizesse, estou convencido de que o Brasil teria virado um Bangladesh.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda)- Hoje a relação entre a dívida externa e as exportações é de 4 vezes?
O SR. DEPUTADO DELFIM NETTO - Não, é 3,5 ou 3,3. Muito recentemente, essa relação começou a melhorar. Estamos hoje valendo 3,2 ou 3,3.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda)- Talvez fosse bom, em face da experiência que V.Exa. viveu, dizer algo a respeito do futuro e do Governo Lula. Quais são as chances do Governo Lula de dar certo?
O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos)- Sr. Ministro, tenho uma curiosidade que também muitos têm. V.Exa. foi um homem que teve um poder muito grande durante um tempo importante e agora está no terceiro ou quarto mandato.
O SR. DEPUTADO DELFIM NETTO - Estou no quinto mandato.
O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Quer dizer, como V.Exa. se sente na condição de Parlamentar, depois de ter participado de maneira tão efetiva do governo, do Executivo, nas condições que V.Exa. participou?
O SR. DEPUTADO DELFIM NETTO - Na verdade, tenho 17 anos de Executivo — um pouco mais, um pouco menos — e 20 anos de Legislativo. Eu me ajustei nas 2 situações. No Executivo, a coisa é um pouco diferente: você é muito mais solicitado e tem um tipo de trabalho muito mais duro.
No Legislativo, no início, havia uma enorme restrição e eu me divertia muito. Passava um petista perto de mim e virava as costas. Eu entrava no elevador, e eles tinham medo de entrar e pegar doença. E, principalmente, eram deliciosas as reações emocionais das petistas diante de um monstro financeiro. Hoje, não. As coisas caminharam, as pessoas aprenderam, todos nós aprendemos muito.
Sempre digo que o Congresso é uma amostra do Brasil. Não tem ninguém no Congresso que foi eleito na Argentina. E quando se conversa com alguém aqui, mesmo a mais simples, vinda de um Município pequeno, fica-se surpreso com o conhecimento que ela tem da realidade em que vive. Quer dizer, o Congresso é realmente um instrumento de aprendizado formidável.
Se o sujeito chega ao Congresso imaginando que vai ser um grande participante, logo ele percebe que é um 1,513 avos de tudo. Por mais brilhante que seja, vale rigorosamente igual a qualquer um dos outros. O Congresso, na verdade, é um terrível exercício de humildade. Brinco sempre que, no Congresso, o pior instrumento de convencimento que existe é a lógica, porque esta instituição é muito mais emoção. Uma frase, um chiste, uma brincadeira produzem uma onda de psicologia coletiva e de vez em quando saem as coisas mais bárbaras que se pode imaginar.
Então, eu me divirto. Eu nunca vi, no Congresso, um discurso, por mais brilhante que fosse, mudar um voto. Isso simplesmente não existe. As pessoas vão para lá tendo pensado no assunto, tendo conversado com o vizinho, tendo falado com o seu líder, tendo o líder lhe convencido de que ele tem responsabilidades com o Governo. Aquilo tudo se processa de uma forma quase natural.
A coisa mais brutal no Congresso é se imaginar melhor do que os outros, tentar parecer melhor do que os outros, achar que tem muito mais conhecimento do que os outros e começar a querer dar aula. Cada Parlamentar sabe 1,513 avos do Brasil. Ninguém sabe muito mais do que o outro. Existe uma forma de organização em que o contraditório se explicita. O mais interessante é que mesmo a mais profunda divergência entre 2 Deputados termina num abraço.
O Congresso tem o dom de dissolver a divergência, a não ser quando há acusações pessoais, o que termina por desmerecer a Casa. Perdeu, perdeu, ganhou, ganhou e terminou. Terminada a eleição, não existe mais cobrança, até porque não adianta. O sujeito vota como quer e não existe cobrança para voto. Também não há arrependimento. O que se faz se paga. Por isso, o Congresso é uma experiência muito enriquecedora.
O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda)- E o Governo Lula?
O SR. DEPUTADO DELFIM NETTO - Quando aderi... na verdade, não aderi; quando passei a apoiar o Lula porque havia me convencido de que a Carta de 88 nunca tinha sido completa. O PT nunca aceitou os princípios da Constituição de 88.
Lembro-me de que, quando terminaram os trabalhos da Constituinte, 2 grupos ficaram de fora muito amuados e resistentes. Um grupo era constituído por um homem só, o Roberto de Oliveira Campos. Ele dizia: “Não assino esse negócio aí, porque essa Constituinte é muito socialista para o meu gosto”. O outro grupo era o PT, que não assinava porque a Constituição era muito capitalista para o gosto deles. Então, o Dr. Ulysses, com aquele seu jeitão, passou lixa num, passou lixa noutro e todo mundo acabou assinando a Constituição.
Até 1998, quando se olha para o programa do PT, vê-se que os petistas não aceitavam os princípios de uma sociedade democrática, republicana, pluripartidária, porque eles têm um defeito enorme que destrói a democracia: eles acham que são os portadores da verdade. Isso é resquício de um marxismo de pé quebrado que freqüenta a cabeça de muitos deles aí. A vantagem do Lula, na minha opinião, é muito grande. Ele provavelmente nunca ouviu falar no tal Karl Marx, o que é uma coisa extraordinária, e nunca pertenceu ao Partido Comunista. Isso é uma pena hoje, porque o seu currículo seria hoje muito mais rico se tivesse pertencido ao Partido Comunista. Mas naquela hierarquia isso não tem o menor problema.
Ele é um homem de uma intuição enorme e entendeu, no meio do processo, que com aquele programa eles não iriam ao poder. A Carta aos Brasileiros é, na verdade, uma coisa parecida à Carta de Baden Württemberg , feita por Willy Brandt, que arrancou do Partido Social Democrático o resquício de marxismo. Depois, ele se elegeu. É igual também à Carta de Westminster, feita por Blair, que conseguiu arrancar a Cláusula IV do programa trabalhista. Depois disso, ele se elegeu. Por quê? Porque era impossível eleger um trabalhista. Eles se elegiam e o programa mandava estatizarem as empresas. Eles perdiam as eleições e os conservadores privatizavam. Então, ficaram 18 anos fora do poder. Mudaram, elegeram-se e estão aí, agora, no poder. O Lula foi igual. Quando lançou a Carta aos Brasileiros, ele, na verdade, trouxe o PT para dentro da Constituição. Completou o quadro político. O Brasil hoje é um País normal, não mais suscetível a crises políticas que se resolvam com armas. Não é mais suscetível a crises políticas que levem à ditadura, que levem a uma restrição das liberdades.
O Brasil hoje é uma sociedade democrática, organizada, com uma forma republicana, com pluripartidarismo, com eleições periódicas. O Lula pode acertar, pode fracassar; quando terminar o seu mandato, se for candidato, pode ou não se reeleger. Não há mais ninguém que venha a substituir o medo. Não há ninguém, não há mais forma de assustar os brasileiros como eles foram assustados na sucessão de Fernando Henrique Cardoso.
Por maior que seja o cidadão, se for um pouco radical, não se elege. O Lula entendeu isso. Não pode haver nada mais traumático do que a aparente mudança. Não pode haver nada mais trágico que a mudança que houve entre o Presidente Fernando Henrique e o Lula, que foram vendidos como coisas opostas. O Lula foi vendido como o produtor da Argentina, e a sociedade o aceitou e fez a experiência.
A experiência do PT, na minha opinião, é fundamental para definitivamente consolidar a democracia no Brasil. Essa administração do PT, na minha opinião, vai bem do ponto de vista macro. Ela, ao contrário do que as pessoas dizem, só prosseguiu a política do Fernando Henrique. Não. Ele tinha uma política canônica utilizada em 140 Estados. Ela não foi inventada pelo Fernando Henrique. E acho que foram a inteligência e a intuição do Lula que o levaram a essa continuidade política com o Palocci, com esses líderes petistas que aí estão.
Do ponto de vista operacional, certamente, o Governo deixa muito a desejar. Eu acho que cresceu muito. A integração entre os Ministros é pequena, a imaginação se restringe a uma repetição de projetos. De vez em quando, fico muito preocupado porque vejo que estão lançando com a mesma verba vários projetos sucessivos. Mas ele também mudou o Brasil num aspecto que acho fundamental: colocou a pobreza e a desigualdade como algo que não pode mais ser esquecido no processo de crescimento. Tenho uma grande confiança de que o Governo Lula vai terminar bem.