Texto

 

DEPARTAMENTO DE TAQUIGRAFIA, REVISÃO E REDAÇÃO

 

NÚCLEO DE REDAÇÃO FINAL EM COMISSÕES

 

TEXTO COM REDAÇÃO FINAL

 

PROGRAMA MEMÓRIA POLÍTICA

EVENTO: Entrevista                   

N°: ESP001/01

DATA: 23/8/2007

INÍCIO:

TÉRMINO:

DURAÇÃO: 2h06min

TEMPO DE GRAVAÇÃO: 2h06min

PÁGINAS: 41

QUARTOS: 26

 

 

DEPOENTE/CONVIDADO - QUALIFICAÇÃO

 

ALMINO AFFONSO (parte I) - Ex-Deputado Federal e ex-Ministro de Estado.

 

 

SUMÁRIO: Entrevista com o Sr. Almino AFFONSO, exibida no Programa Memória Política, da TV Câmara, em 13/11/2001.

 

 

ENTREVISTADORES: Ana Maria Lopes de Almeida, Ivan Santos e Tarcísio Holanda

 

 

OBSERVAÇÕES

 

Há falhas na gravação.

 

Conferência de fidelidade do Conteúdo – NHIST 
A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida)
- Em que cidade o senhor nasceu?

            O SR. ALMINO AFFONSO - Eu nasci na cidade de Humaitá, uma pequenina cidade no interior do Amazonas, na região do Rio Madeira. É uma cidade muito bonita, é até chamada de a Princesa do Madeira, comparada a outras cidades dessa região. Essa cidade foi fundada pelo meu avô, um português que veio para o Brasil na adolescência, aqui se formou, na medida do que foi possível, em termos escolares e, já aos 30 anos, era um empresário próspero em Belém do Pará.

            Solteiro ainda, estranhamente, decidiu ir para os confins do Rio Madeira, que era, na época, mataria pura, e ali começou a dedicar-se à exploração da borracha, da castanha etc., e fundou um vilarejo que, em seguida, foi prosperando até se transformar em uma cidade, muito bonita, diga-se de passagem. Nela, há uma bela catedral debruçada sobre o rio, uma prefeitura que tem a extensão de quase um quarteirão, o Grupo Escolar Oswaldo Cruz, que é realmente bonito, e, para meu espanto até hoje, uma biblioteca pública. Não se trata de um departamento da Prefeitura, mas de um casarão bonito, que abriga a biblioteca.

Naquela época, já havia luz elétrica em Humaitá. Ele foi uma figura que sonhou com a ligação entre Humaitá e Lábrea - vale dizer, entre o Rio Madeira e o Rio Purus - naquele tempo, coisa que só hoje se concretizou.

Chamava-se Comendador José Francisco Monteiro, uma figura de empreendedor realmente notável. Sou neto dele pelo lado da minha mãe.

Por outro lado, na família paterna, a minha origem é do Rio Grande do Norte. O meu avô, de quem herdo o nome, Almino Affonso, era do Rio Grande do Norte, do vilarejo chamado Patu.

A história dele é muito comovedora, porque ele era de origem modestíssima. O pai morreu quando ele tinha 8 anos, e a mãe, com enorme bravura, educou os filhos. Não é bem claro para mim, mas o fato é que uma tia dele era casada com um português de boa formação cultural. E esse tio ensinou ao menino de 8, 9, 10 anos, português, francês e latim. Ele foi prosperando, até se transformar em professor de toda a meninada dessa região do Rio Grande do Norte a que estou me referindo.

Com pouco tempo, ele já havia se tornado um rapaz talentoso. E um tio o levou para fazer estudos de Direito, em Recife. Formou-se em Direito, em Recife. E, em algum tempo, ele se converteu em um dos maiores tribunos da região. Era tido e havido como um tribuno excepcional.

E ele participou da luta da abolição dos escravos. Primeiro, no Ceará, para onde ele foi depois. E foi o Ceará o primeiro Estado a libertar os seus escravos, em 1884, depois de haverem libertado em uma cidade chamada Acarape, em 1883. Ele foi um dos principais líderes desse movimento. Note-se: 4 anos antes da Lei Áurea.

Depois, ele participou da libertação dos escravos em Mossoró, no Rio Grande do Norte, em 1883. Posteriormente, foi para o Amazonas e passou a lutar ardentemente pela causa dos escravos, a 10 de julho de 1884. Ele era um andarilho da luta abolicionista.

Quando veio a República, o Rio Grande do Norte o lançou candidato a Deputado Federal, Deputado Constituinte. E, na Constituinte, ele cumpriu papel que considero realmente notável, que foi o de incluir na nossa Constituição, a primeira da República, o direito de participação das minorias, coisa que não havia ainda. Democraticamente, considerava-se maioria aquela que tinha voz cantante. E a idéia de que as minorias tinham de participar das decisões, na nossa história constitucional, é dele. Tanto que a primeira Constituição do mundo ocidental que depois consagra isso é a da Bélgica, em 1919. A nossa é de 1891.

            Então, é para mim uma figura muito marcada pela luta, pela entrega de seu conhecimento à causa pública, à causa social. É o meu santo, meu guru, a figura que realmente me marcou ao longo de toda vida. A tal ponto que eu não percebia a importância do meu avô materno. Só muito recentemente é que fui visitar Humaitá. E quando vi tudo o que tinha sido feito há mais de 1 século por aquele português sem maior instrução, mas com uma capacidade empreendedora notável, percebi que ele também tinha valor, e passei a dar a ele o merecimento que ele tinha e que eu não havia percebido.

            Essa é a minha história original, em termos familiares.

            Os meus pais, quando o meu avô era Deputado, depois Senador da República, estudavam no Rio de Janeiro. O meu pai estudou até o quinto ano de Medicina, e meu tio — Tio Martins, como nós o chamávamos — estudou Engenharia na Politécnica, também no Rio de Janeiro, até o quarto ano. O meu avô morre. Morre pobremente, como os homens públicos morriam antigamente.

            Vai para o Ceará, lá morre e, de repente, a família fica, a rigor, sem nada. Esse meu tio mais velho vai para o Amazonas e se converte em seringalista. Pouco tempo depois, meu pai vai visitá-lo, já no quinto ano de Medicina, e vê o quanto era áspera a vida em um seringal. E acha injusto que o irmão fique sozinho ali. Então, decide cancelar por um tempo as matrículas na Faculdade de Medicina e vem contribuir com seu esforço para o trabalho do irmão no Rio Madeira, em um vilarejo que passou a chamar-se Aliança. E aí não voltou mais. Ali se integrou, como meu tio. São, na verdade, duas figuras que contribuíram enormemente para desbravar o Rio Madeira naquela região que vai de Humaitá até Porto Velho.

            Essa é a origem que eu posso, em resumo, dar a vocês.

            Eu me eduquei em Porto Velho no curso primário. O meu pai era Prefeito. Grupo Escolar Barão de Solimões. Depois, não havia o ginásio ainda em Porto Velho. Fui para Manaus, fiz o meu curso ginasial, primeiro no Colégio Dom Bosco e, logo depois, no Colégio Estadual do Amazonas. Fiz, ainda, o primeiro ano de Direito na Faculdade de Direito do Amazonas, sempre aspirando enormemente vir para São Paulo. Por que essa aspiração? Porque eu era dado às chamadas letras, o que eu queria ser, na verdade, era poeta. Eu queria vir para a Faculdade de Direito de São Paulo por onde haviam passado os grandes poetas, desde Álvares de Azevedo, Fagundes Varela, Castro Alves. Todos as grandes figuras da vida cultural do Brasil daquele período passaram por São Paulo, pela velha e sempre nova Academia, como aqui se diz.

            Então, no segundo ano, eu pude ir a Manaus, através de um primo meu, que depois foi Deputado Federal — você deve ter conhecido, o Adalberto Vale, Deputado pelo Amazonas. O Adalberto era um homem rico aqui em São Paulo, Diretor-Presidente da Prudência Capitalização. Um homem de muita iniciativa, muita capacidade empreendedora. Então eu fui a Manaus. E uma tia minha me levou a visitá-lo, dizendo que eu tinha muito empenho em vir para São Paulo, mas, moço pobre, não tinha como vir, meus pais não tinham condição de fazê-lo e perguntou de que modo ele poderia me ajudar. Ele disse: “Eu posso empregá-lo na Prudência Capitalização. Eu o emprego pela tarde, e pela manhã você estuda. Você aceita?”

Era dificílima a transferência de uma Faculdade de Direito para São Paulo — enormemente difícil. Pela significação da Faculdade de São Paulo, não se transferia com facilidade. Mas ele era muito amigo do secretário, de quem tinha sido colega de turma, da Faculdade de Direito de São Paulo, e conseguiu a minha transferência. E assim, em 1950 eu vim para São Paulo. Exatamente como ele disse, passei a trabalhar à tarde na Prudência  Capitalização, e por sorte era pertinho da Faculdade. E, pela manhã, desde às 7 da manhã, fiz o meu Curso de Direito. Em relativo pouco tempo, eu fui começando a ser tido como orador, e fui ganhando presença nas assembléias do 11 de Agosto, ganhando expressão no mundo estudantil, a ponto de ter me convertido em orador oficial do Centro Acadêmico 11 de Agosto, e logo depois, já no quinto ano de Direito, creio, eu me converti em Presidente da União Estadual dos Estudantes de São Paulo. E eu fui ao Concurso Nacional de Oratória. Eu me candidatei, representando São Paulo, venci e fiquei consagrado como Orador Nacional dos Estudantes daquela época. Essa é a minha história estudantil.

Como eu vou entrando na política? Desde esse tempo que eu chego aqui, em 1950, já a luta pelo petróleo tinha presença, e foi crescendo, foi crescendo. Na Faculdade de Direito, por exemplo, nós tínhamos em frente, no Largo São Francisco, a torre do petróleo. Era o símbolo da resistência nacionalista. E começamos a plantar torres do petróleo por todo o interior de São Paulo. Eu  passei a me empolgar com essas coisas e me transformei num grande e apaixonado defensor da tese do monopólio estatal do petróleo. Eu já tinha essa idéia ao vir do Amazonas, onde esse movimento já existia. Mas foi aqui que ganhei fôlego e passei realmente a me consagrar a essa luta. Havia, na época, a chamada Federação Nacionalista de São Paulo, da qual era Presidente o Dagoberto Sales,  Deputado brilhante daqui de São Paulo, do PSD. Pois eu era Secretário Geral da Federação Nacionalista de São Paulo, apesar de ser um jovem estudante.

Portanto, a relação com a política nasce da luta nacionalista. Mas o nacionalismo que até então  predominava em nós foi-se mesclando com idéias mais relacionadas com as questões sociais. Não bastava a idéia do desenvolvimento econômico, era necessário que isso tivesse casado com compromissos de ordem social. Então, fomos, devagarzinho, a minha geração — Rubens Paiva, por exemplo, fazia parte deste grupo. Há leituras na área socialista, um pouco de Marx. Enfim, entramos no Partido Socialista Brasileiro pelas mãos de um Deputado brilhante, combativo, o Deputado Rogê Ferreira. Entramos. Éramos 20 colegas. Esses 20 entraram para o Partido Socialista. E já nas eleições em que o Juscelino se elege, 1955, creio eu, eu era candidato a Vereador pelo Partido Socialista de São Paulo. Perdi, honrosamente, perdi. Mas não perdi mais a aspiração política. Havia uma nova dimensão já na minha história pessoal. Quando vem a eleição de 58, eu era candidato a Deputado Estadual, também pelo Partido Socialista aqui. Não tinha a menor perspectiva. Análise mais sumária demonstrava que eu não tinha nenhuma possibilidade de me eleger. Mas aí a minha geração do Amazonas tinha chegado a uma posição de destaque. Era Gilberto Mestrinho, candidato a Governador; era Bernardo Cabral, candidato a Deputado Estadual; era Arlindo Porto, candidato a Deputado Estadual, e outras figuras da minha geração, numa posição de proa no Amazonas. E me convidaram: “Venha para cá, por que não vir para cá? venha andar conosco na luta pela mudança do Amazonas”. E eu me empolguei com aquilo e fui. A minha ilusão era a seguinte: como o meu passado — eu me vinculava à Humaitá —, a minha família, a família Monteiro, era de absoluto prestígio naquela região, eu achava que se a minha família me apoiasse, família materna, eu me elegeria. E fui para o Amazonas. Mas quando cheguei lá, a minha família materna já estava absolutamente comprometida com a candidatura de um Deputado Estadual que pretendia ser Federal, Deputado João Veiga, era um médico de valor. Os médicos, quando se dedicam à vida pública, relacionam muito a sua atividade profissional com a sua mensagem política. Então ele tinha real prestígio. Eu diria: justificado prestígio. E a minha família, naquela linha de “a palavra vale mais que tudo”, honrou, religiosamente, o compromisso com o João Veiga, mas me deu 20 votos contados, para não dizer que o filho da terra não havia recebido uma votação. Eu voltei para Manaus e me entreguei de corpo e alma, feito um louco,  de manhã, de tarde, de noite, de manhã, de tarde, de noite. Eu punha tamboretes nas esquinas das ruas e falava nas esquinas das ruas no tamborete. Eu vinha daqui de São Paulo, onde o hábito era o paletó. Era absolutamente comum; os jovens vestiam-se de paletó e gravata. Eu só tirei a gravata, mas fiquei de paletó. Então dava um tom meio diferenciado. Eu era tão jovem, mas já parecia um senhorzinho.

Para resumir, em 3 meses, 4 meses de campanha, louca, em Manaus, eu me elegi Deputado Federal. E aí vim para a Câmara Federal em 1959. A eleição a que me refiro é a de 58. Em 59, ao chegar na Câmara: aquela grande emoção; ainda no Rio de Janeiro, Palácio Tiradentes. Aquela grande emoção de estar ali no meio dos representantes de todos os Estados. Cheguei quase a adoecer de nervosismo por me sentir menor diante daquele quadro significativo, daquele painel, que era uma beleza, lá no fundo, por trás da Mesa, na Câmara. E fui pouco a pouco me enfronhando,  participando da Frente Parlamentar Nacionalista, ao lado de Sérgio Magalhães, Bento Gonçalves, Neiva Moreira, Clidenor de Freitas, Fernando Santana e tantas outras figuras marcantes daquele período. Em pouco tempo eu era uma figura significativa da Frente Parlamentar Nacionalista. Passei a ser Secretário da Frente Parlamentar Nacionalista da Câmara. E aí fui andando.

Vem a campanha, por exemplo, para a sucessão de Juscelino. No primeiro instante, o natural era que Jango fosse candidato, já que já era Vice-Presidente. Mas Jango não queria. Fincou o pé que não queria. Não queria sequer ser candidato a vice. Aí se esboça a hipótese da candidatura do San Tiago Dantas. Nós nos opusemos. O nosso grupo era um grupo radical. Como aceitar a candidatura de San Tiago Dantas, que tinha uma origem lá na juventude integralista? Como aceitá-lo, que era um dos grandes advogados de empresas internacionais? Tudo isso chocava-se com as posições nacionalistas que nós tínhamos e já então socializantes. Nos opusemos então a San Tiago. Ainda me lembro muito bem do dia em que derrotamos o San Tiago Dantas, numa reunião da bancada, ele saindo devagarzinho e veio a mim e disse: ”Meus parabéns pela vitória”. Doeu-me na alma, porque eu sempre fui dividido em relação ao San Tiago. Eu tinha resistências a ele, mas tinha uma enorme admiração pela sua cultura dele, pelo seu talento, pela palavra de um orador didático que ele era. Então aquilo tudo me magoou. Mas que coisa! Ainda bem que, passados os tempos, eu fui descobrindo os valores do San Tiago. Descobri San Tiago no Ministério das Relações, onde ele foi notável como Ministro das Relações Exteriores, e me transformei não apenas no admirador que eu já era, mas num grande amigo do San Tiago. Portanto, faço questão de recordar isso, para dar a notícia do começo e o que ficou no fim. No fim, eu sou um grande admirador de uma figura que... Acho que se San Tiago existisse hoje, o País teria talvez outra grandeza, teria outra grandeza. Muitas vezes o que nos tem faltado hoje é gente de maior cabeça para dizer um “não” a coisas erradas que se fazem.

Voltei ao Amazonas e disputei a Câmara Federal, a reeleição. E nesse período, eu já havia tido uma participação intensa na Câmara, realmente intensa, eu já tinha me transformado em Líder do PTB, já com a Câmara instalada em Brasília, e tive a maior votação do Amazonas, da sua história parlamentar até então, até àquela época.

Ao voltar para Brasília, o Presidente estava montando o seu Ministério, estava

montando o seu Ministério.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Mas o senhor já está aí em 62?

O SR. ALMINO AFFONSO - Sessenta e um, sessenta e dois...

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Sessenta e dois. Mas o senhor apareceu nacionalmente foi na renúncia do Jânio, não?

O SR. ALMINO AFFONSO - É verdade. Você pegou uma faixa importante que...

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Quando o senhor apareceu... o senhor, Aurélio Vianna, apareceram como orador só na renúncia do Jânio Quadros.

O SR. ALMINO AFFONSO - Eu não diria que tenha sido ali, porque eu já era Líder do partido. E a Liderança do partido naquela época dava presença na tribuna realmente, ao contrário de hoje. Dava presença. E eu tinha já exercido muito a tribuna na Câmara. Mas é fato que, no período da renúncia do Jânio Quadros, e, portanto, em seguida, a crise da legalidade, que impede ou busca impedir a posse do Presidente João Goulart, eu tive um destaque significativo. Primeiro, porque me opus fortemente à própria idéia da instalação do sistema parlamentar de Governo, por me parecer, embora eu fosse parlamentarista, que aquilo era um golpe branco, ou seja, algo que se fazia à revelia das normas constitucionais.

Então, é verdade que aí não apenas me destaquei na Câmara, como me projetei no Amazonas. Então, ao ir para a campanha eleitoral, eu tive essa votação extraordinária que você me fez destacar melhor, associando à luta parlamentarista, no Parlamento.

Volto de lá, e o Presidente — já então Presidente da República, na faixa presidencialista propriamente dita — vai montar o seu gabinete e convida um de nós, do partido, para ir para o Ministério do Trabalho. A bancada indica Bocaiúva Cunha. E era o meu candidato também por muitas razões. De repente, vamos para a decisão final e o Presidente me chama e diz que não podia manter o compromisso com Bocaiúva Cunha, porque a única imprensa que o apoiava era a Última Hora, de Samuel Wainer. E o Samuel Wainer era sócio do Bocaiúva Cunha na Última Hora. E sei lá por quê — nunca me ficou claro —  o Samuel passou a achar que, tendo o seu sócio numa posição de Ministro, o colocava numa posição menor nas relações de poder com o Presidente da República. É o que eu interpretei. O fato é que o Jango considerou que não poderia manter a candidatura de Bocaiúva e que, portanto, tinha que indicar um outro, e me convida. Eu me recuso, a princípio, por entender que o meu lugar no Parlamento era muito mais fácil, o trânsito mais livre, eu tinha condições de poder opinar com maior clareza do que nos limites do Ministério do Trabalho, onde o problema de poder ou não poder atender às reivindicações sociais era visivelmente apertado, estreito. O Jango disse: “Está bem. Está bem, já que você não quer... já que tu não queres” — porque ele usava o tratamento “tu” — “já que tu não queres, eu vou nomear  o Osvaldo Lima Filho”. O Osvaldo Lima Filho era um colega brilhante, inclusive um nacionalista em vários aspectos, mas na área propriamente social ele tinha certas limitações, pelo temor de que aquilo nos envolvesse com os comunistas. E era, por conta disso, a Liderança conservadora da bancada, enquanto eu tinha uma posição à esquerda da bancada. Eu disse: “Olha, Presidente, aí não dá. Nomear o Osvaldo Lima Filho, evidentemente que, com o poder de Ministro de Estado, vai nos dar uma batalha desigual”. Ele disse: “Mas é tu que queres”. Eu falei: “Está bem, Presidente, eu aceito”. E aceitei ser Ministro do Trabalho. Eu tinha 33 anos de idade e acho que foi uma experiência notável para mim porque em pouco tempo eu pude ver de perto o quanto é difícil governar, o quanto é duído você ter uma reivindicação que você percebe que é justa e não poder atendê-la. E quantas vezes isso me ocorreu com as reivindicações operárias! Mas, por outro lado,  também  me permitiu ver outras coisas com maior dimensão. Por exemplo, a luta dos trabalhadores rurais. Nós tínhamos já, no Parlamento — eu tinha participado dessa luta —, votado o Estatuto do Trabalhador Rural, projeto que tinha sido do Fernando Ferrari, mas que tinha crescido muito pela colaboração de  muitos de nós. E, ao chegar ao Ministério, eu realmente pus fogo na organização dos sindicatos rurais, criando inclusive uma comissão que se encarregaria de correr o País com estudantes, com padres, muitos padres, o Padre Lage, de Minas, que tinha uma participação muito grande na luta social no campo, ensinando como formular o sindicato, como organizá-lo. Eu sei que em pouco tempo os sindicatos rurais cresceram, as greves no campo passaram a ter também expressão.

 Eu me lembro de uma greve nos arredores de Recife da ordem de 300 mil trabalhadores rurais. Greve com esse montante rarissimamente se dava no plano urbano.

Portanto, realmente o movimento cresce e deixa de ser puramente aquilo que era até então, uma projeção das Ligas Camponesas. Entra os sindicatos rurais, mais as Ligas Camponesas, e a reforma agrária vem à tona, uma questão que alguns anos atrás era apenas um debate de ordem política, mas eminentemente intelectual, eu diria técnico. Alguns poucos homens públicos se dedicavam ao estudo da questão agrária, da questão social no campo, como Coutinho Cavalcanti, aqui em São Paulo, que tinha feito um projeto de lei notável sobre reforma agrária, ou como uma figura notável também da Bahia — que me falta neste instante o nome; era inclusive Líder do Governo na Câmara, no período da queda do Jânio —, enfim, que  tinha um projeto de lei sobre reforma agrária em 1958. Mas era uma minoria.

A partir desses fatos que eu estou narrando, o crescimento do movimento sindical no campo e das Ligas Camponesas, a reforma agrária deixa de ser um debate teórico, acadêmico, e vira uma questão política central. Não se falava mais nada em termos de futuro político no País que não passasse pela discussão de como fazer-se a reforma agrária. O próprio Juscelino, quando pretendeu ser candidato a Presidente no turno que não houve, porque interveio o Golpe de 64, tinha incluído na sua plataforma a questão da reforma agrária.

Depois disso, gradualmente, há corredeira: os rios que vão crescendo, as águas que vão se avolumando e, gradualmente, os problemas sociais, sem terem o atendimento necessário, os compromissos que nós tínhamos sem poderem ser levados muito em conta, porque a crise econômica começava a nos asfixiar, a inflação começava a ser dominante e, paradoxalmente, as nossas  mensagens, na área das transformações sociais, das reformas de base como então se chamavam, atendiam às grandes maiorias populares, mas alarmavam os setores mais conservadores, as elites, o empresariado e também o capital estrangeiro.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Nunca houve tanta demanda em tão pouco tempo.

            O SR. ALMINO AFFONSO  - Se você tomar em conta que o Governo João Goulart não foi além de 1 ano e 7 meses — 1 ano e 7 meses, se a memória não me falha; não vai muito além disso —, então, como, em tão pouco tempo, para atender tanto, eu não sei, eu não sei. Mas, na verdade, se pretendeu. Então, se deu um divisor de águas político no País: os que queriam as reformas e os que eram opostos a elas, ou porque se opunham mesmo ou porque temiam que naquele bojo viessem proposições de natureza comunista.

Era um absurdo esse tipo de análise. O Presidente João Goulart era um grande latifundiário, proprietário de terras enormes no Rio Grande do Sul, não é verdade? A que título quereria a reforma agrária de caráter socializante? Não ocorre essa hipótese. Mas era a imagem que se foi criando, e que permitiu aglutinar forças contrárias ao Governo do Presidente João Goulart, até o Golpe, finalmente, de 64, que corta profundamente um processo de evolução que pesou e continua pesando ainda hoje na história brasileira.

            Eu conheço uma pesquisa de opinião pública feita pelo IBOPE 1 mês antes, 1 mês e meio antes, do Golpe de 64, e é impressionante ver como, em termos de opinião pública, o Presidente João Goulart era visto ainda como um homem de grande prestígio político. Dizia-se até que, se fosse possível, pela lei, a reeleição, ele seria reeleito.

Quanto à tese da reforma agrária, 72% da população ali entrevistada considerou uma medida necessária e urgente. Portanto, é falso dizer que o Presidente João Goulart caiu ao desamparo do apoio popular. Não é verdade. A verdade é que as forças majoritárias do Exército e do poder econômico, casados, foram obviamente preponderantes e nos levaram à derrota.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - A classe média foi muito importante. Por causa da sucessão de greves, de paralisações.

O SR. ALMINO AFFONSO - Mas era dividida. Havia uma classe média influenciada pela Igreja que crescentemente tinha posições também mais progressistas.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - A Igreja naquele tempo era muito conservadora.

O SR. ALMINO AFFONSO - Mas era dividida já. Não esqueça que aqui nós já tínhamos... Lembro, por exemplo, de figuras, a que me referi há pouco, como o Padre Lage, ou, em Pernambuco, o Padre Melo, o Padre Crespo. Eram figuras da Igreja Católica com enorme presença na luta social. Aqui, em São Paulo, por exemplo, os dominicanos. Eles marcaram sua presença em termos de pregação das reformas sociais que eram verdadeiros comícios.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O senhor se lembra da Passeata com Deus pela Liberdade?

O SR. ALMINO AFFONSO - Sim, não estou negando; estou só tentando mostrar que havia uma divisão. Já não era algo como anteriormente, uma predominância de classe média sem que tivéssemos ali uma presença. Não, já tínhamos uma presença significativa. Aqui, em São Paulo, se vocês puderem conversar com pessoas dessa época, a Igreja dos Dominicanos, aos domingos, lotava e transbordava para ouvir os sermões dos padres. Havia um padre, que ainda hoje vive — não me recordo o nome, acho que é Jô Araújo —, que foi prior dos dominicanos, dono de uma oratória extraordinária. Ele ia à tribuna, para o púlpito, como se diz, e empolgava.

Enfim, o que eu quero dizer é que havia realmente uma força emergente favorável às mudanças sociais significativa e que se expressa nisso que eu estou dizendo, na pesquisa realizada pelo IBOPE.

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Dr. Almino, antes de superarmos essa etapa, quero voltar um pouco a uma questão. Diz-se muito que o Jango caiu porque, além das forças contrárias a ele se reunirem de uma forma muito homogênea — as Forças Armadas, o grande capital, os fazendeiros, os políticos conservadores , essa coisa toda —, dentro do Governo havia uma divisão muito grande, caracterizada pela postura do próprio Brizola em relação ao Jango. Dizia-se que o Jango não podia fazer uma aliança mais conservadora prá garantir... porque o Brizola não deixava. Havia os comunistas...

Como é que o senhor, que estava dentro desse processo todo, analisa esse processo final do Governo Jango? Como é que as coisas se desenvolviam? Diziam que o Jango não tinha mais controle da situação, que os sindicalistas estavam à frente, que Brizola puxava daqui..., e ele não conseguia armar uma estrutura política que lhe permitisse prosseguir.

O SR. ALMINO AFFONSO - Olha, eu não tenho hoje nenhuma dificuldade em reconhecer essa tese. Acho que de fato houve uma divisão negativa, muito negativa, a tal ponto que, num certo instante, o Presidente João Goulart, em conversas com o Ministro San Tiago Dantas, considerou necessário nós fazermos uma revisão do ponto de vista de comando político, criando um ministério que pudesse estar acima do PTB e que congregasse figuras expressivas das outras forças partidárias, desde que estivessem de acordo com o programa que nós elaboraríamos. San Tiago empolga-se com isso e passa a elaborar um trabalho, com uma equipe grande, incluindo as figuras mais significativas da área que apoiava o Presidente João Goulart para formular o que seria o programa desse governo de coalizão.

Eu próprio tive duas missões importantes naquele período: coube a mim fazer uma visita a Tancredo Neves e a João Agripino, ou seja, um grande líder do PSD e um grande líder da UDN, para ver como eles reagiriam a uma idéia de um governo de coalizão em torno de um programa que seria elaborado e, portanto, com a participação de cada um de nós. Eles se empolgaram. Eles se empolgaram.

Quando estávamos já bem avançados no trabalho, percebemos que o grupo estaria incompleto se não tivesse também a presença— eu diria: pessoal — do Brizola e das forças que o apoiavam, as lideranças políticas que o apoiavam. Então, eu liguei para o Brizola, com quem eu tinha na época uma relação próxima. Liguei para ele, e ele estava em Porto Alegre. Destaquei a importância do trabalho que estava sendo realizado e disse que era fundamental que ele viesse participar. Disse-lhe, ainda, que a idéia não era a de um grupo fazer predominar a sua opinião sobre os outros, mas que aquilo gerasse uma síntese. E fiz uma pequena malícia: enquanto eu argumentava com ele, passava o telefone para o San Tiago Dantas, a quem não sei se o Brizola atenderia se tivesse sido avisado. San Tiago vem e reitera tudo isso que eu disse, com aquela sabedoria que ele tinha. O Brizola se compromete a vir ao Rio no dia seguinte para reunir-se com seus correligionários mais próximos e tomar uma decisão — dos males o menor. E veio no dia seguinte.  À noite, portanto, do dia seguinte, ele se reúne — eu participei desse encontro — e discute amplamente a idéia. E foi de uma tristeza total, porque a recusa era primária. A recusa era a de que, com isto, o Presidente João Goulart, na verdade, aguava os movimentos progressistas, reduzia a menores proporções as teses sociais mais avançadas. Era real. É óbvio que, se você vai fazer um governo de coalizão, as teses sobre reforma agrária, as teses sobre capital estrangeiro ou as teses sobre lucro das empresas etc. já não serão iguais àquelas que anteriormente nós, sozinhos, defendíamos na chamada reforma de base. Seria, portanto, uma síntese, mas uma síntese que representaria um avanço; uma síntese que poderia representar uma consolidação do Governo João Goulart e, portanto, a preservação em termos institucionais da democracia. E não tenho qualquer dúvida: era um avanço. Tenho esse programa até hoje. Mais de uma vez eu tenho o lido e penso: “se tivéssemos feito isso, que avanço que teria se dado no País!”. Mas prevaleceu a tese contrária do grupo, à época, do Deputado Brizola. Com isto, ficamos muito diminuídos na força de juntar as demais correntes — chamemos progressistas ou razoavelmente progressistas — dos outros partidos. Como seccioná-los, se nós não nos fracionávamos? Ficava algo pouco condizente, pouco demonstrador de uma eficiência política no comando do Presidente João Goulart. Morreu a tese desse governo da coalizão a que me referi.

Portanto, considero esse fato como empobrecedor da força política do Presidente João Goulart, que, associado ao fato de que as forças propriamente reacionárias, no âmbito do empresariado, no âmbito do capital estrangeiro e no âmbito do Exército, juntas, levaram a melhor e com uma facilidade realmente incrível.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O senhor se lembra que, enquanto San Tiago Dantas articulava essa coalizão, esse governo de coalizão, ele investiu depois na negativa de Brizola, dizendo que a Esquerda estava dividida entre a Esquerda Positiva e a Esquerda Negativa.

O SR. ALMINO AFFONSO - Isso é verdade! Eu me lembro dessa expressão do San Tiago Dantas. Não é do Jango, é do San Tiago.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - San Tiago. Quis dizer San Tiago!

O SR. ALMINO AFFONSO - É verdade!

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Um outro mito da época é que o Presidente João Goulart não tinha propriamente consciência do poderio dessas forças que se articulavam contra ele, sobretudo as do meio militar.

O senhor, em razão da convivência com o Presidente, como Ministro e depois como correligionário do Presidente, sabe se ele tinha a dimensão do poderio dessas forças que se articulavam contra ele ou ele foi surpreendido?

O SR. ALMINO AFFONSO - Veja, surpreendidos fomos todos. Ele, portanto, também. E já darei o meu depoimento e direi por que faço uma afirmação dessa, categórica. Mas a verdade é que ele tinha também uma articulação política na área militar muito grande. Ele chegou a ter cerca de 40 generais. Quer dizer, 40 generais nomeados por ele. Isto é uma força! — não é verdade? Não sei de outro Presidente que tenha tido até aquela época uma presença tão grande de generais de sua confiança ou, pelo menos, de sua simpatia, nomeados por ele.

Ora, isso dava a ele uma margem de expectativa de que, no lado militar, ele estava bem situado. Eu lhe dou um outro exemplo: ele tinha no Comando do IV Exército o General...

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O Ladário Pereira.

O SR. ALMINO AFFONSO - Não, não, Ladário era no Rio Grande do Sul. Nós tínhamos aqui em São Paulo o Kruel, no comando do II Exército, que era o segundo grande exército do País. Era o daqui, era o Kruel, que, além do mais, era compadre do Presidente João Goulart, padrinho do filho dele. Bastos... Como era o nome do General...

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) – IV Exército é no Nordeste.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Era o Osvino.

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Alves Bastos?

O SR. ALMINO AFFONSO - Não. Não era o Osvino. O Osvino era do I Exército, no Rio de Janeiro — e já não era mais também.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Ah, sim, esse Bastos traiu.

O SR. ALMINO AFFONSO – Traiu! Eu estou falando de quando ainda não havia traído. O Kruel também o traiu!

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Justino Alves Bastos.

O SR. ALMINO AFFONSO - Justino Alves, Justino Alves. Tinha o Justino Alves no Comando do IV Exército, em Recife, portanto, no Nordeste. Aqui o Kruel. E no Rio de Janeiro já não era mais o Osvino ...

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Era o Ãncora, o Marechal Âncora...

O SR. ALMINO AFFONSO - Não, não era o Âncora.

O SR. ENTREVISTADOR - ... e o comandante da Vila era Omar Osório.

O SR. ALMINO AFFONSO - Não era o Âncora. Esses nomes começam a se apagar da nossa memória. E tinha lá no Rio Grande do Sul, também, uma figura de total confiança dele e do Brizola. Portanto, os comandos estavam sob o controle dele, sob a confiança... Contavam com a confiança dele.

Então, era legítimo que, com isto, embora tendo consciência de que conspiravam, de que havia movimentos contrários, de que havia figuras importantes como, por exemplo, o Marechal Castello Branco...

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda)  - O Cordeiro...

O SR. ALMINO AFFONSO - ... o Cordeiro, o Marechal Denis. Sabíamos de tudo isso. Sim, sabíamos, mas não tínhamos uma articulação, ao nível de comando, de primeira categoria. O Jair Dantas, a quem me referi agora, Comandante do III Exército, era homem de confiança absoluta do Presidente Goulart.

O SR. ENTREVISTADOR - Jair foi Ministro de Exército, Ministro da Guerra.

O SR. ALMINO AFFONSO - Sim, mas foi antes...

O SR. ENTREVISTADOR - Comandante do III Exército.

O SR. ALMINO AFFONSO - Comandante do III Exército. Então, ele tinha essa coisa toda. E tinha uma adesão dos setores – vamos chamar: politizados do Exército. Muito grande. Os sargentos, cabos, não é verdade? Uma área da oficialidade progressista também, no Clube Militar, também significativa. Ou seja, ele não estava ao desamparo. Então, era legítimo que ele pudesse também acreditar que por aí ele se saía. O drama é que vai num crescendo a crise econômica, com uma inflação que chega a 80% ao ano, em contraste com as demandas sociais, cada vez mais volumosas — e compreensivelmente mais volumosas, porque toda a nossa política, propriamente dita, era a de estimular isso. Defendíamos as reformas sociais para quê? Para melhoria do padrão de vida do povo, para acesso às escolas, para casas, etc. Tudo isso criava, portanto, um ânimo de disputa, de peleja, reivindicatório, sem precedentes. Havia nascido, por exemplo, a organização do CGT. Até então, os sindicatos tinham por lei a possibilidade de fazer greves verticais, na sua categoria. Não é? Havia a Federação dos Metalúrgicos, o Sindicato dos Metalúrgicos ou os Sindicatos Regionais dos Metalúrgicos. Era aquela categoria. Mas a partir da organização do CGT e de alguns outros organismos que antecedem o CGT, com os pactos intersindicais, passou a haver algo extraordinário no movimento sindical brasileiro, que era a organização horizontal. Então, você tinha, por exemplo, como houve aqui em São Paulo, uma greve de 17 categorias profissionais: os metalúrgicos, os homens da cana, o pessoal do tecido... Entende? Tudo isso somado deu uma greve, creio, de 170 mil trabalhadores rurais, em São Paulo. Ou seja, algo de uma dimensão e de uma capacidade de pressão nunca vista. Ora, para isso era necessário que a capacidade econômica de atender também crescesse, e não estava crescendo. O porquê disso é mais complexo. Não sou economista e prefiro limitar-me a constatar que não cresceu, enquanto cresceu a demanda social em todos os níveis.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Essa pergunta do Ivan tem muita pertinência. O senhor se lembra que o General Assis Brasil, que foi colocado na Chefia da Casa Militar, era Secretário do Conselho de Segurança Nacional, que naquele tempo tinha muita força, porque o Conselho de Segurança Nacional era o serviço de informação dos militares. E lá trabalhava o Andreazza e um bocado de gente. Tinha o Chrysantho de Miranda Figueiredo, que era do grupo do Jango.

            Mas quero dizer o seguinte: houve uma provocação encadeada pela Direita, que foi o Movimento dos Marinheiros, que teve grande importância para os militares, porque quebrou-se a hierarquia. Aquele Cabo Anselmo, que era claramente um agente provocador.

            O SR. ALMINO AFFONSO - E ficou provado isso, depois.

            O SR. ENTREVISTADOR Chrysantho de Miranda Figueiredo - Ficou provado. Houve o Cabo Anselmo e o Movimento dos Sargentos, que também inquietava os oficiais. No caso dos marinheiros, era o problema de o sujeito dormir com uma arma debaixo do travesseiro, dentro dos navios.

            O SR. ALMINO AFFONSO - Se você me permite...

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Só uma coisa a mais. A reunião no Automóvel Clube do Brasil — e isso ocorreu alguns dias antes do golpe —, aquilo ali foi o apogeu do que se chama provocação: a assembléia dos sargentos. Os oficiais ficaram apavorados com aquilo: o Presidente da República presente, e o General Assis Brasil dizendo para nós, jornalistas. “E o dispositivo militar, General? — perguntamos provocativamente, porque era o papel dos jornalistas. E ele respondeu, vermelho: “Basta apertar o botão”. E foi o que se viu. Na verdade, que surpreendeu, surpreendeu. Tem razão. Todo mundo se surpreendeu, porque todo mundo achava que o dispositivo militar do Jango estava muito forte: o Kruel; o Ladário Pereira Telles, em Porto Alegre...

            O SR. ALMINO AFFONSO - Não, o Ladário foi depois da caída.

            O SR. ENTREVISTADOR  (Tarcísio Holanda) - Não, mas depois da reunião no Automóvel Clube já era o Ladário.

            O SR. ALMINO AFFONSO - Não era.

            O SR. ENTREVISTADOR - (Tarcísio Holanda) - Porque, no Automóvel Clube, foi uns 6 dias antes do golpe.

            O SR. ALMINO AFFONSO - Não, o Ladário vai para lá com o Jango já praticamente deposto. Mas, enfim, são detalhes.

            O SR. ENTREVISTADOR  (Tarcísio Holanda) - Mas foi nesses dias.

            O SR. ALMINO AFFONSO - Mas você não está me contradizendo. Eu reconheço que havia, de um lado, razões para que o Jango acreditasse na sua capacidade de comando, em razão das forças a que me referi, pelos comandos que estavam diretamente vinculados a ele. E havia nos setores populares, na opinião predominante política no Exército, cabos e sargentos, que eram rigorosamente favoráveis ao Presidente João Goulart. Então, ele tinha razões de dizer: “Eu tenho com que defender-me”. Mas era real também que as forças do outro lado cresciam, estimuladas por uma realidade contraditória que o País vivia.

            As grandes reformas passaram por temas polêmicos. Como fazer reforma agrária? Hoje se fala de reforma agrária — até espantosamente — com naturalidade. Naquela época era questão polêmica. O domínio do proprietário de terras, do latifundiário, em relação ao trabalhador era absoluto. Se vocês levarem em conta que à época ainda era raro o pagamento de salários efetivos para os trabalhadores do campo... o pagamento era feito pela chamada “meia”, “terça” ou “cambão”, ou seja, formas quase medievais de relação de trabalho. As leis trabalhistas não chegavam ao campo. Eu me recordo que, quando Ministro do Trabalho, quando eu corria pelo País afora, sobretudo no Nordeste, raríssimo era o lugar que pagava salário mínimo.

Então, com essas limitações todas, quando veio a tese da reforma agrária, alarmou - de um lado. E de outro lado, veio a discussão sobre o capital estrangeiro. Passamos a ter a lei do capital estrangeiro, a lei que disciplinava o capital estrangeiro. Não era nada de extraordinário, o mundo inteiro subdesenvolvido tinha conseguido avançar mais. Por exemplo, a Índia, tinha a sua lei que limitava o uso do capital estrangeiro. Não é bem “limitava”; ela disciplinava. Quer dizer, pode vir o capital, mas passa a ser capital nacional. Portanto, não se devolve, em termos de lucros, a totalidade disso, porque isso já é considerado por lei capital nacional. Devolve-se uma parcela “x”, que nós vamos disciplinar. Isso alarmava. Áreas que considerávamos, digamos, inadequadas para serem exploradas pelo capital estrangeiro, a exemplo do minério de ferro. E havia a Mannesmann Corporation, em Minas, quando o Governo nacionaliza, coibindo, portanto, que a Mannesmann continuasse a explorar os minérios de ferro em Minas.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - A Hanna Corporation.

            O SR. ALMINO AFFONSO - É Hanna Corporation. Eu repeti duas vezes Mannesmann, tentando fazer com que soasse bem, mas era a Hanna Corporation.

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos)  - Existia a Mannesmann também.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - A Mannesmann é produtora de fios, de tubos sem costura. Não tinha nada a ver. É a Hanna, que era uma multinacional americana de ferro.

            O SR. ALMINO AFFONSO - De minério de ferro. Bom, tudo isso alarmava o capital estrangeiro. Então, associaram-se e passaram a ter, diga-se de passagem, um apoio, um estímulo muito grande da imprensa. A imprensa — excetuando-se o Última Hora e jornalistas aqui e ali, os quais, por audácia própria, diziam suas teses nas colunas a que tinham ainda acesso —, o grosso da grande imprensa nacional, a começar pelo Estado de S. Paulo ou O Globo, eram violentamente contrários a todas essas tentativas de reformas econômicas e sociais a que nós nos propúnhamos.

Some-se a tudo isso o fato de como o Presidente João Goulart sobe. Quando ele sobe, numa primeira etapa, havia um sistema parlamentarista, portanto, sem poder real, embora o Primeiro-Ministro fosse homem da sua confiança irrestrita, que era o Tancredo. E Tancredo, com o devido respeito, era um homem também do PSD, que fazia também o seu jogo de equilíbrios. Ou seja, o Presidente não tinha um poder real, nem podia ter, de acordo com as instituições do Parlamentarismo. Portanto, quero dizer que não tinha. E depois, quando assume, já no sistema presidencialista real, com a plenitude dos poderes presidenciais, já estávamos no bojo de uma crise econômica forte e a divisão política já tinha se dado inteiramente. O que era antes uma grande coalizão do PSD, por exemplo, com o PTB já tinha se fracionado. Ou seja, o Presidente começa a governar num quadro de extremas dificuldades.

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos)  - Dr. Almino, o senhor participou do comício da Central do Brasil?

O SR. ALMINO AFFONSO - No sentido de ter estado lá, sim; mas não falei, não fui um dos oradores.

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos)  - Está certo. Porque aquilo foi um episódio também simbólico, um episódio...

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Que desencadeou...

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos)  -  Desencadeou. Foi quando o Jango realmente assumiu a proposta das reformas, de uma forma pública e definitiva. Foi quando ele fez uma opção. Nessa hora, parece-me, ele desistiu dessa aliança mais ampla e assumiu esse compromisso, o que significava, de certa forma, um confronto — não é verdade?

O SR. ALMINO AFFONSO - Sim, na verdade...

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - E aí houve um ato ratificador de tudo isso, um ato de provocação também, tal como foi considerado: a estatização das refinarias. Lembra-se? O anúncio que ele fez no comício, ratificando a tese de que, fracassada a coalizão, fazia uma opção pelas forças que estavam aliadas a ele – pelo  confronto, portanto. Ele assinou ali o ato da desapropriação e estatização das refinarias.

O SR. ALMINO AFFONSO - Vamos nos entender sobre a provocação ou não provocação. Se o Presidente João Goulart quisesse ficar no poder fazendo tudo quanto os setores conservadores queriam, é claro que ele não teria caído. Quanto a isso não há qualquer dúvida. É claro que ele cria condições de adversidades na medida em que ele se põe à frente de teses que contrariavam certos setores poderosos do País — isso é tranqüilo. Agora, que o outro lado chame isso de provocação, isso é outro problema. Eu não chamo provocação, eu chamo a defesa de teses...

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Confronto. A idéia do confronto.

O SR. ALMINO AFFONSO - Não, eu chamo de defesa de teses, que correspondiam à visão de um grupo que tinha chegado ao poder. Era um poder, apesar de enormemente limitado pelas formas como ascendeu e pelo tempo que durou, mas era poder. Era, portanto, legítimo que dissesse ao que veio. Meus amigos, se vocês pegarem a quantidade de medidas que foram aprovadas durante o Governo João Goulart, naquele pequeno lapso de tempo, vocês vão se espantar. Vocês podem me dar um minutinho?

 O SR. ENTREVISTADOR - Pois não.

O SR. ENTREVISTADOR - Claro.

O SR. ALMINO AFFONSO - Isso aqui eu faço questão de mostrar. [O entrevistado seleciona documentos para mostrar aos entrevistadores]

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - ... no dia do golpe...

O SR. ALMINO AFFONSO – Disse agora, que o Governo João Goulart demorara 1 ano e 7 meses. Não foi? Mais ou menos? Sete de setembro, foi o dia em que ele tomou posse. Lembra disso?

O SR. ENTREVISTADOR - Lembro.

O SR. ALMINO AFFONSO – No sistema presidencialista. A 23 de janeiro... Não, isso é do parlamentarismo... Não estou encontrando...[referindo-se aos documentos que mostra aos entrevistadores].

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Mas é isso aí: setembro de 62 a 31 de março de 1964. Foi o quanto durou o governo dele. Até 31 de março de 1964.

O SR. ALMINO AFFONSO - Pronto, então é isso.

O sistema parlamentarista, do qual ele foi o Presidente pro forma, vai de 7 de setembro de 61 a 23 de janeiro de 63. E o presidencialismo — cai, portanto, o sistema parlamentarista — vai dessa data, 23 de janeiro de 63, a 31 de março de 64. Quanto tempo leva?

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Uns 17 meses.

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Menos, menos.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Setembro de 62...

O SR. ALMINO AFFONSO - Janeiro de 63 a março...

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Janeiro de 63 a março...Um ano e três meses.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) -  Não, mas ele assumiu o poder em setembro de 62...

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Não, mas ele está falando do presidencialismo.

O SR. ALMINO AFFONSO - Não, não posso pôr aquilo como poder de João Goulart — não é verdade. Pois o Chefe de Governo não era o Tancredo?

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) -  É. Mas na verdade ele só fazia o que o presidente queria...

O SR. ALMINO AFFONSO – Não é real! Não é real!  Foi o que eu tentei dizer ainda agora. Não é real! Tancredo não era um banana. Tancredo era uma figura com altivez, com expressão. Claro que o Presidente João Goulart pesava, mas não era o Governo dele, ele não podia dizer faça ou não faça. Não era! Por trás do Tancredo estava o PSD, que não era um partido qualquer. Na primeira fase do Governo, inclusive, estava até a UDN no Governo. Você não lembra?

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - É verdade.

            O SR. ALMINO AFFONSO - Estavam a UDN, o PSD, quer dizer...

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) -  Era uma coalizão.

            O SR. ALMINO AFFONSO - Como o Jango mandava e desmandava? Não mandava! Na primeira fase, o Jango não era o Presidente. Não era!

            Então, eu conto o Governo João Goulart, de verdade, a partir dessa data: janeiro de 1963 a 31 de março de 1964. Então, quanto dá? Vamos fazer o cálculo?

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Um ano e 3 meses. 

            O SR. ALMINO AFFONSO - Janeiro de 1963 a janeiro de 1964, 1 ano. Depois vêm fevereiro e março. Então, 1 ano e 2 meses! O Governo João Goulart, presidencialista, foi de 1 ano e 2 meses! Digam-me: que autoridade temos para cobrar as grandes transformações do País? Não temos!

            Gostaria de poder mostrar também as coisas que conseguiram ser feitas nesse período tão exíguo. 

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Agora, faltou o senhor falar também, Dr. Almino, na análise muito inteligente que o senhor fez, de um dado muito importante daquela época, de natureza internacional: a Guerra Fria.  Houve um encontro do Jango com o Kennedy em Viena, na tentativa de apaziguar os ânimos dos Estados Unidos, que estavam muito exaltados. Os americanos estavam muito preocupados com o que ocorria aqui. O senhor lembra?

            O SR. ALMINO AFFONSO - Lembro...

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) -  Jango foi a Viena se encontrar com Kennedy! Foi um encontro internacional importante mesmo.

            O SR. ALMINO AFFONSO – Nós tínhamos nos comprometido, na viagem do San Tiago aos Estados Unidos, em comprar a Light ...

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) -  Amforp.

            O SR. ALMINO AFFONSO – ...Amforp! Comprar a Amforp. Ele criou uma resistência nacional ...

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) -  E tudo o que o San Tiago fez os militares respeitaram. Todo o trabalho dele de encampação da Light, da Amforp, da [palavra incompreensível], enfim, tudo aquilo foi respeitado pelos generais depois do golpe. 

            O SR. ALMINO AFFONSO - Exatamente. Então, tínhamos razões de nos opor. A Light estava terminando seu tempo contratual! Aí nós tínhamos que comprar a Light!? Era um negócio de louco!: está-se com tempo para terminar – terminava em poucos anos mais - aí vamos e compramos!?... Não foi um bom acordo.

            O SR. ENTREVISTADOR - Aquilo era de natureza política. San Tiago queria apaziguar, tranqüilizar os americanos.  

            O SR. ALMINO AFFONSO - Sim, mas a um custo muito alto! — diga-se de passagem. Isso criou um grande  problema.

            Mas vejam o que queria dizer sobre algumas medidas. Apesar de todo esse clima difícil sobre o qual falamos, vejam as leis que foram aprovadas nesse período: a lei que disciplina os capitais estrangeiros, de 1962; a lei que define o Código Brasileiro de Telecomunicações, importantíssima naquela época, porque antes tudo era dominado pela ...

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda)ITT.

O SR. ALMINO AFFONSO - pela Telefônica de São Paulo, que eram empresas estrangeiras, numa área de comunicações, muito importante. Havia, também, um monopólio de pesquisa em materiais nucleares. O Estatuto do Trabalhador Rural. Ou seja, uma série de medidas da maior importância foi votada naquele período.

            Pode-se acrescentar, ainda - já que agora você falou sobre a parte externa - a política externa independente. A política externa independente, que, na verdade, esboça-se no Governo Jânio Quadros, mas ganha expressão no Governo João Goulart, com San Tiago Dantas no Ministério das Relações Exteriores. Quando o Brasil, então, reata relações diplomáticas com a União Soviética; quando esboça relações diplomáticas com a China, através relação inicial na área comercial. Enfim, houve todo um esforço de se ampliar alternativas para o País. Lembro-me de um episódio: nós tínhamos que vender o nosso café, e os grandes compradores eram os Estados Unidos etc. Então passamos a ter, por exemplo: da Tchecoslováquia, a compra de helicópteros de uma usina termoelétrica, ou seja, algumas coisas que os Estados Unidos tinham dificuldade de nos vender, porque tinham a sua política também de não propiciar expansões dos vizinhos. Para os Estados Unidos, era uma agressão quando nós buscávamos, por meio delas, com alternativas de mercado, crescer. Então nós tivemos problemas com os Estados Unidos por conta disso; por conta da União Soviética, que passava a nos vender petróleo em contrapartida de café. Lembra-se disso? A União Soviética fez um acordo conosco de passar a nos vender petróleo em contrapartida de café!

Ora, naquela época, nós tínhamos ainda carência de petróleo muito acentuada. Hoje, bem ou mal, nós já aumentamos razoavelmente a nossa capacidade de produção. Naquela época, estávamos quase começando — não lembro bem qual era a quantidade de petróleo que produzíamos, mas ainda éramos muito carentes. Agora, fazer um acordo do tipo “eu lhe vendo petróleo, e você me paga com café” era uma coisa extraordinária. Mas isso tudo criava nos Estados Unidos uma irritação muito grande, porque era o quintal libertando-se!

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Mas fale sobre esses contatos do Jango com o Kennedy, essa área das relações do Brasil com os Estados Unidos. Já estava próximo de 64. Talvez tenha sido um encontro de vendas uns 3 ou 4 meses antes de 64.

O SR. ALMINO AFFONSO - Mas foi em torno dessas questões de vendas que nós tínhamos nos comprometido e não estávamos mais honrando. Por exemplo, com relação à compra da Amforp, com a qual nós tínhamos nos comprometido por meio de San Tiago Dantas, e que depois começou a praticamente desdizer-se no Governo, houve esse diálogo com o Kennedy. Mas a lembrança que eu tenho é de um encontro em torno de uma potência econômica que queria que nós comprássemos o que para eles era útil que nós comprássemos. Não vejo outro alcance maior ainda naquele período, salvo o temor de que a política de nacionalizações que nós defendíamos pudesse, de fato, criar dificuldades crescentes para eles. Isso havia. Havia esse temor.

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Dr. Almino, a que o senhor atribui esse fato, que realmente é surpreendente, da intervenção militar, do golpe militar, ter acontecido sem nenhuma resistência, a não ser um esboço no Rio Grande do Sul? Quer dizer, com toda essa estrutura, sindicatos, os partidos de Esquerda agindo mais ou menos livremente, inclusive o Partido Comunista, com todos os estudantes, os próprios políticos, não houve resistência alguma, os militares vieram e...

O SR. ALMINO AFFONSO - Eu lhe digo que é a prova provada de que não havia, no Governo João Goulart, uma preparação para um golpe de Estado. A tese é de que havia um golpe de Estado em marcha. E eu digo que os fatos demonstraram, pela forma com que o castelo de cartas caiu, que não havia a preparação de um golpe de Estado.

Agora, por que, apesar da organização institucional, ocorreu da forma como você assinala, eu acho que não há muitas maneiras diferentes de dizer: pelas traições. Desagrada-me muito dizer isso, mas pelas traições. No caso, por exemplo, do Kruel, que era uma figura da intimidade do Presidente João Goulart, era padrinho do filho dele — é muito freqüente o Presidente da República ser padrinho de filhos de generais, de figuras importantes da vida pública; agora, o inverso não é tão freqüente, não é?  O  Kruel era um homem da confiança do Presidente João Goulart. Ora, num certo instante, o Kruel capitula diante das forças crescentes no meio militar e passa a exigir do Presidente coisas muito difíceis de o Presidente aceitar , se já estivesse capitulando. Por exemplo, fechar o CGT. Queria que fechasse o CGT, queria que fechasse o Clube dos Sargentos, que interferisse também diretamente no Clube dos Oficiais. Ou seja, onde havia na área mais atuante organizações mais visíveis, que o Presidente desse provas de absoluta distância deles com esse tipo de cancelamento. Queria que afastasse do seu Governo os que eles consideravam comunistas. Um deles era Raul Riff.

Não me lembro quais eram as outras figuras. Mas, enfim, havia várias figuras que eles consideravam claramente comunistas e que, portanto, exigiam — o Kruel exigia — que o Presidente desse provas de absoluta ausência de conspiração dessa área, demitindo, afastando. O Presidente não podia tirar o Riff, que era um assessor dele há um século e que, se era comunista, nem sei se ainda era um militante comunista. Acho que era muito mais como o nosso Niemeyer é, um homem de idéias, de proposições sociais, mas não um militante propriamente dito. Era a impressão que eu tinha do Riff.

Então, tem-se no Kruel, quando não é atendido, um golpe. Parece até aquela história de marido e mulher quando querem acabar, que fazem uma cláusula: o outro não pode de nenhuma forma aceitar. E aí vai para a ruptura.

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - O senhor que está falando de traição. Só foi no âmbito militar, não houve no civil? Nenhum civil nessas traições?

O SR. ALMINO AFFONSO - Olha, eu te diria que o abandono em que o Presidente João Goulart ficou, do ponto de vista das organizações políticas que de alguma forma estiveram próximas dele a vida toda, desde que ele entrou para a vida pública nacional, também foi uma forma de traição. Exemplo, PSD. O PSD abandonou o Presidente João Goulart de maneira total.

Pelo menos há uma lembrança de maneira muito nítida: desde que eu cheguei ao poder, a uma participação política nacional, indo para a Câmara com 29 anos de idade, em 1959, o PSD era um partido de aliança absoluta com o Presidente João Goulart. Seria natural que, na hora em que ele passou a ser acusado da forma como ocorreu, houvesse uma palavra de apoio. Não houve. Gradualmente isso foi sendo um lavar de mãos — até do próprio Presidente Juscelino Kubitschek, diga-se a bem da verdade.

Os outros partidos eram menores e não tinham um vínculo maior com o Presidente, mas o PSD tinha. E considero que houve também um abandono nessa área.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Agora, seria interessante, no tempo de exílio — o tempo de exílio é muito doloroso para qualquer pessoa —, o senhor falar a respeito de como o senhor via o Brasil lá de fora, depois do golpe, e como o senhor assistiu à contestação armada da juventude. E uma dissidência grande dos estudantes foi aproveitada por algumas organizações de extrema Esquerda — Ação Libertadora Nacional, que era do Marighella; PCBR, que era do Toledo Velho, que era o Joaquim Câmara Ferreira, e o Mário Alves. Lembra-se do Mário Alves? E aquela turma dissidente do PCB; e a VAR-Palmares, que era do Capitão Lamarca, que depois veio a morrer, a ser eliminado. Como é que o senhor via essa resistência armada lá de fora?

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Tarcísio, a gente está querendo fazer um corte só para ver o clima no dia do golpe. Pode ser? No dia do golpe, qual era o clima dentro do Congresso? Como é que estava o Congresso Nacional?

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Acho interessante exatamente isso, antes de ele chegar a esse ponto, a sua trajetória nesses dias do golpe e depois do golpe.

O SR. ALMINO AFFONSO - Então eu vou pedir licença para você para, antes de eu falar nisso, completar uma resposta a uma pergunta que você me fez, e eu parei. Você dizia: como é que caiu o castelo de cartas? Onde estavam as forças? Os estudantes? Os sindicatos? Eu respondi de maneira genérica, dizendo que isso prova que não havia uma articulação propriamente para um golpe de Estado, senão essas forças que teoricamente estariam ao lado do Presidente estariam no mínimo municiadas.

Ora, os sindicatos não tinham armas realmente. É falso imaginar que os sindicatos estavam armados para enfrentar uma luta, uma guerra civil. Não estavam. Tanto que não ficou provado em nenhum instante, depois do golpe, por meio de todas as devassas feitas, que os sindicatos estivessem preparados para uma luta armada. Não estavam.

No campo, a mesma coisa. Vou contar uma coisa que me constrange um pouco, mas que considero um depoimento. No dia em que recebi a informação de que eu não podia ficar em Brasília, porque poderia ser preso a qualquer instante, essa informação me foi enviada pelo Presidente Ranieri Mazzilli, ainda na Presidência do Governo naquele período de intermezzo. Também Francisco Julião foi igualmente avisado de que seria preso.

No primeiro momento, eu fui para a casa de um amigo absolutamente alheio às atividades políticas, e lá fiquei uns 2 dias até ver o que poderia fazer a partir da comunicação que havia recebido. E o Julião foi homiziar-se na própria Câmara dos Deputados. Afinal de contas, a Câmara continuava aberta. Então ele foi para um gabinete e lá homiziou-se. Depois, ao verificar que ali ele não podia ficar indefinidamente, ele consegue uma carona do Deputado Adauto Lúcio Cardoso, que o leva às redondezas de Brasília, a partir de onde ele se afasta.

Pois bem. Para onde ele foi? Foi para as redondezas de Brasília e ficou no casebre de um trabalhador rural daquela redondeza, sem vínculo com nada, absolutamente nada, no mais absoluto desamparo! Eu já estava na Embaixada, asilado, quando recebi uma carta do Julião convocando-me para assumirmos a reorganização de não sei o quê. Organizar o quê? Se a liderança do movimento camponês brasileiro, que tantos consideravam ameaçadora – uma  das razões de ser do próprio golpe – se seu principal líder, estava absolutamente no desamparo, perdido num casebre nos arredores de Brasília? Esse é um depoimento que dou, absolutamente verdadeiro.

Logo, também, as forças do campo não estavam articuladas para nenhuma luta armada. Os estudantes menos. Os estudantes faziam realmente uma grande pregação política pelo País todo, defendendo teses criadoras de inquietação nos setores mais conservadores. Mas atribuir à UNE uma organização armada para enfrentar a batalha não é verdade.

Então se podia dizer que o Brizola teria, mas ele também revelou que não tinha, porque, quando chega a Porto Alegre o Presidente João Goulart e reúne Brizola e as principais lideranças, o que fica visto? É o que o General Ladário disse: “Nós não temos mais condições de levantar o Terceiro Exército em defesa da legalidade”. Depois de fazer um balanço demonstrando que não tínhamos, o General Ladário diz ao Presidente João Goulart: “Presidente, me autorize, que eu próprio e um grupo de oficiais de minha confiança lavemos com sangue a honra da farda brasileira.” Ou seja, autorize-nos a morrer em nome do protesto. O Presidente João Goulart não pôde aceitar o que era humanamente compreensível.

Isso que eu estou dizendo está num discurso do Deputado Osvaldo Lima Filho — aliás, um admirável discurso — feito na Câmara. Quando o Presidente João Goulart saiu de Brasília levou com ele alguns Ministros. A idéia era formar em Porto Alegre um comando, enfim, um Governo, ou seja, instalar o Governo em Porto Alegre. Entre eles estava o Deputado Osvaldo Lima Filho, que assistiu a tudo o que estou dizendo de maneira resumida. E nesse discurso ele dá esse depoimento de que o Presidente João Goulart diz ao General Ladário: “Essa autorização eu não posso dar”.

Ou seja, também ali não havia organização de luta. Que o Brizola tenha imaginado tê-la, eu dou por descontado que sim. Basta você ver o que foi a acareação dele quanto ao chamado Grupo dos 11. O que era o Grupo dos 11? Por meio da Rádio Mayrink Veiga, toda sexta-feira, o Deputado Brizola convocava o País a se organizar em grupos de 11. Eram os grupos de 11 que estariam armados, militarmente armados, para a luta armada. Isso é verdade que ele fez. Mas era uma coisa tão, eu diria, vaga e tão imprecisa, que o que permitiu de verdade foi um número enorme de cidadãos serem presos por constituírem o Grupo dos 11 e sem terem, talvez, uma garrucha para enfrentar nada.

Ou seja, O Governo e os que estávamos apoiando o Governo não nos preparamos para a luta armada em nenhum instante. Porque o pressuposto é o de que o Presidente João Goulart, com a Forças Armadas que tinha a seu favor, manteria a legalidade. E como já estávamos abrindo o processo eleitoral da sucessão, já se tinha claramente as candidaturas do Magalhães Pinto, em Minas; do Lacerda, no Rio de Janeiro, e eu próprio tinha lançado à época o nome do Arraes entre as pessoas que poderiam talvez simbolizar os setores mais progressistas do País; o Adhemar de Barros também já havia se declarado candidato. Ou seja, o País já estava vivendo a pré-eleição, em cujo caso toda e qualquer tentativa de solução armada perde sentido. Não é verdade? Isso é clássico! Logo, nós não estávamos realmente nos preparando para a luta armada. Isso explica por que caiu como um castelo de cartas, agravado pelas traições que nós acabamos de ver, do Kruel, do Justino etc.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Mas fale sobre essa visão que o senhor tinha do Brasil lá fora.

O SR. ALMINO AFFONSO – Deixe-me concluir a pergunta dela. Veja, havia realmente uma divergência de enfoque. O Jango, num certo tempo, percebe que, ou ele ampliava as bases de sustentação — portanto, na tentativa daquele programa de um Governo de coalisão —, ou não tínhamos alternativa; enquanto que o Brizola, sem ver isto, acentuava a necessidade de radicalizarmos. Cito como exemplo o momento em que o Brizola tenta ir para o Ministério da Fazenda. Não sei se vocês se lembram disso. Ele pleiteia ir para o Ministério da Fazenda, e todos os penduricalhos, ou seja, era o BNDES, era a ... enfim, todos os organismos que direta ou indiretamente comandavam, influíam na vida econômica.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - A SUMOC, a Superintendência da Moeda e do Crédito. Era o Banco Central daquela época.

O SR. ALMINO AFFONSO - Era o Banco Central da época. Todas essas instituições subordinadas à figura dele no Ministério da Fazenda.

Bem, na hora que o Brizola faz isto, é evidente que ele supunha um Governo extremamente radicalizado contra tudo e contra todos, não é? Não dava. Mas isso vinha a público, isso era formulado. E muitos consideravam que isso era formulado de comum acordo com o Presidente. O Presidente de fato tinha nele o seu alter ego. Ele dizia aquilo que o Jango não podia dizer como Presidente da República. Não é verdade. O Jango, naquele instante, já estava com uma visão que implicava, eu diria, num período de transição, e de transação política, para formar algo que passasse pela tempestade que já era visível. Você não sabia quando o golpe viria. Mas que havia já a antevisão de que isso podia ocorrer, havia.

Se vocês fizerem um levantamento dos discursos na Câmara nos 6 meses que antecedem o golpe, vocês vão ver a quantidade de discursos denunciando que poderia haver, que estava em marcha. Eu próprio tenho vários. Portanto, era e não era. As coisas estavam ali difusas.

[zilfa1] À tua pergunta. Dia 1º. Bom, dia 31 de março começa a minha história. Dia 31 de março, eu vou à Câmara, manga de camisa. Fui lá buscar um tostão qualquer, a agência do Banco do Brasil era lá, e fui buscar algum dinheiro para despesas domésticas. Cheguei lá e encontrei a Câmara fervendo, Parlamentares de todo jeito, fala aqui, fala acolá, coisa absurda, muito insólita. Pela manhã a Câmara não funcionava naquela época. Rarissimamente nós tínhamos sessões pela manhã. As sessões eram à tarde e à noite; com freqüência pela noite; pela manhã, muito raro, muito raro.

Estava a Câmara fervendo. “Mas o que há?” Entrei numa daquelas rodas. “Você não sabe?” “Não sabe o quê?” “Começou a revolução!” “Mas como: começou a revolução?” “O General”...como é que chamava? ...a Vaca Sagrada...

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Olympio Mourão Filho.

O SR. ALMINO AFFONSO – ...“Mourão Filho já está em marcha sobre o Rio!” Eu disse: “Mas não é possível! É real?” “É real!” Eu absolutamente espantado com essas informações gerais, sobretudo os mineiros.

Volto para casa, ligo para o Senador Arthur Virgílio Filho, pai desse jovem Deputado Arthur Virgílio Neto. O Arthur era Líder do Governo no Senado. “Arthur, você está acompanhando?” “Acompanhando o quê?” Enfim, o diálogo é o mesmo. Ele não estava absolutamente a par de nada. Eu disse: “Eu estou sabendo isso, a Câmara está fervendo.” “Venha aqui, então. Venha aqui.” Os nossos apartamentos eram perto. “Vamos telefonar daqui para o Presidente.” O Presidente estava no Rio. Atravessei ali aquela quadra e fui para o escritório dele, para a casa dele. Ele telefonou, e eu fiquei na extensão do telefone. O diálogo foi esse: “Presidente, o Almino está chegando aqui, me trazendo notícias, enfim, graves, a respeito do levante em Minas, as tropas do General Mourão estão marchando sobre o Rio, etc.” “Mas, Arthur, de onde tu tiraste isso?” “Estou lhe dizendo, o Almino trouxe isso da Câmara agora. Lá todos estão dizendo isso, é voz corrente.” “Mas não é possível, Arthur! não é nada disso!” Aí diz: “Espera aí. General Assis...” O General estava passando, sei lá, pelas proximidades, e ele pede para chamar o General Assis, que era o Chefe da Casa Militar. Vem o General Assis, e ele: “General Assis, o Senador Arthur Virgílio está me dizendo isso, isso, isso.” Repetiu a história. Eu ouvi tudo, porque eu estava na escuta. O General Assis: “Presidente, não tem nenhum sentido, é absolutamente falatório, não há nenhum fundamento. O que houve foi simplesmente um movimento de rotina das tropas do General Mourão, que é comum no Exército. É comum marchar por experiência.” – Por experiência, não. Eu não sei como é que chama...

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Exercício.

O SR. ALMINO AFFONSO - Exercício. “Não é mais do que isso. Não é mais do que isso, Presidente!” “ Mas não há nada?” “Não há nada, Presidente! Se tivesse alguma coisa, eu já teria informado ao senhor.” “Tu ouviste, Arthur?” “Ouvi, Presidente.” “Pois então, é o que é.” “Presidente, eu chegando ao Senado, pelo que parece, isso será um tema em discussão. Eu estou autorizado a dar a versão que o senhor me está dando?” “Evidente! É a tua palavra de defesa do Governo de que isto tudo é falso.” Terminou. Terminamos. “Tchau!” “Tchau!” Fui para casa.

Almocei tranqüilo — devia ser talvez 3 da tarde —  voltei para a Câmara. Ao voltar, a Câmara fervia muito mais. Era um fervedouro para todo lado. Notícias. Um dava um detalhe; o outro, outro. Já se dizia que o Magalhães Pinto já tinha assumido o comando civil da revolução, ou seja, muito mais agravado do que eu tinha ouvido ao meio-dia. Aí eu entro numa daquelas rodas e digo isso que estou dizendo para vocês aqui: “Olha, isso tudo eu não sei de onde vocês estão tirando, essa boataria, porque eu ouvi o Presidente João Goulart dizer ao Senador Arthur Virgílio Filho tal coisa.” O Deputado Murilo Filho, sobrinho do Juscelino, que era de Minas, me tira da roda, me leva para um canto qualquer e diz: “Almino, uma de 2. Se o que vocês estão dizendo é uma forma de aguar a tensão nervosa, [P2] não sei se tem sentido, mas vá lá. Agora, se o Presidente João Goulart acredita ou está realmente baseado nessas informações que lhe foram dadas pelo General Assis, está perdido, porque tudo o que se está dizendo aqui é absolutamente verdade. Desde a madrugada o Magalhães Pinto assumiu o comando da Revolução. Desde a madrugada, Almino! É absolutamente verdade!”

Esse foi o meu dia inicial; o dia 31; ao longo do dia. No dia seguinte, pela manhã, o Presidente João Goulart chega a Brasília. Chegando a Brasília, manda me telefonar e pede para eu ir para a casa em que ele morava, chamada Granja do Torto. Ele chegara naquele instante, ainda estava com a roupa de viagem.

Então, fomos para lá eu próprio, o Arthur Virgílio, o Deputado Temperani Pereira, o Deputado Doutel de Andrade, que estava na liderança do partido na Câmara. Acho que só. E o Tancredo Neves. O Jango estava com uma roupa, acho que era linho, toda amassada, toda amarfanhada, barba por fazer, uma imagem pouco condizente com a de chefia vitoriosa.

Quando nós estávamos ali fazendo um ligeiro balanço do quadro: ele já tinha saído do Rio com a quase prisão que o grupo do Lacerda tentou fazer. Vocês lembram da história de que tentaram cercar o Palácio. Pelo menos era a versão, tanto que ele sai de lá meio improvisadamente, com o apoio das tropas do Almirante Aragão.

Bem, ele fez esse balanço. Aí toca o telefone. Era o General Ladário, que já estava no comando do Terceiro Exército. Ele deve ter ido para lá realmente naquelas imediações, porque o comandante anterior tinha vindo para o Rio fazer uma operação de câncer. Ele tinha vindo fazer uma operação de câncer. Então se nomeou o Ladário, que era homem da confiança total do Jânio e era um homem de grande valor.

Telefona de lá o General Ladário e diz: “Presidente, o senhor precisa vir para cá urgente, que é para termos um comando aqui. À medida que as notícias estão chegando às tropas, de aderirem ao movimento golpista no País inteiro, isso se reflete aqui. Aqui, por exemplo, neste instante, nós não temos um comando óbvio da tropa militar”. Como é que chamava a do Estado?

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Terceiro Exército.

O SR. ALMINO AFFONSO - Não, do Estado.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) -  A Brigada Gaúcha.

O SR. ALMINO AFFONSO - Não era Brigada também, não.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Brigada Militar, não é?

O SR. ALMINO AFFONSO - Brigada Militar? Enfim...

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Polícia Militar do Rio Grande do Sul.

O SR. ALMINO AFFONSO - Era polícia, mas tinha um nome sonoro.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) – Era a Brigada Gaúcha.

O SR. ALMINO AFFONSO - Brigada Gaúcha? Enfim. “Nós não temos comando”, o que é óbvio. “Mas aqui mesmo, em Santa Maria, acabam de perder Santa Maria.” E foi dando os vários pontos importantes do Exército no Rio Grande, com o Estado já arriando bandeira. “O senhor precisa vir com urgência.” “Bom, é inevitável. Providencie avião.” Providenciaram o avião mais moderno que o Brasil tinha naquela época. Tinha recém-chegado ao Brasil um avião da VARIG, Coronado. Era o avião de maior velocidade na época e novo no Brasil. Era novo. Então se vai nesse avião, que demora um tempo realmente pequeno.

Mas um de nós terá dito a ele: “Mas, Presidente, o senhor sair da capital sem um pronunciamento sobre a razão de ser da sua retirada daqui e os seus objetivos no Rio Grande vai ser um desastre.” “É, vocês têm razão. Vamos fazer uma declaração.”  Bom, aí: “Tancredo, tu não queres fazer esse texto?” Aí o Tancredo: “Bom, onde é que tem uma máquina datilográfica? Mas eu não sei datilografar.” Eu disse: “Bom, eu sei.” Então, fui para a datilografia.

            Então, eu de datilógrafo e o Tancredo de improvisador, com alguns palpites meus, compusemos o que foi o texto que o Presidente João Goulart leu para as rádios, em Brasília, antes de sair. À medida que o Tancredo ia fazendo o texto, houve uma hora que eu disse: “Espera aí, Tancredo. Isso está me cheirando muito à carta-testamento de Vargas. Como se discute muito o autor, será que foi você o autor?” Ele deu uma gargalhada e não disse nem que sim nem que não. Se foi ou se não foi fica para o pesquisador histórico. Naquele dia ele limitou-se a dar uma gargalhada.

            Terminada e entregue ao Presidente, o Presidente leu aquilo sem alma, sem vigor, sem crença naquilo que dizia. Era já um depoimento muito mais de um derrotado do que, na verdade, de alguém que ia caminhando para a resistência. Paciência.

            Fomos todos para o aeroporto.

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Dizia o que essa carta, sinteticamente?

            O SR. ALMINO AFFONSO - Dizia que as tropas insurgentes tinham tornado a presença dele no Rio de Janeiro inviável, que Brasília não era bem o centro adequado para uma resistência à tentativa dos golpistas e que ele ia para o Rio Grande, onde estava lá a fidelidade das tropas do 3º Exército, do povo gaúcho, da bravura do povo gaúcho, etc. Foi mais ou menos esse o espírito. Claro que denunciou o significado daquilo, que era um golpe de natureza reacionária, antinacional, antipopular. Isso a gente fez rápido.

            Bem, chego ao aeroporto em pouco tempo; cheio o aeroporto. Não demorou muito, começou a debandada. Nunca eu percebi tão rapidamente como os símbolos do poder caem rápido. Foi um tal de despedir, abraço daqui, abraço de acolá. Em pouco instante, o aeroporto estava vazio.

Tinha chegado lá o General Fico. Essa foi até uma das razões que nos levaram muito a estimular o Presidente a ir para Porto Alegre. O General Fico tinha dito a ele, antes, por telefone, que ele garantiria a presença do Presidente João Goulart em Brasília. Até onde garantiria eu não sei, mas fez essa declaração ao Presidente João Goulart.

Chegando ao aeroporto, o General Fico não estava, mas chegou logo em seguida. Cara fechada, sem conversa com ninguém, sem troca de opiniões com ninguém, apertou a mão do Presidente e, não demorou muito, despediu-se.

Ora, eu nunca tinha visto um oficial superior despedir-se do Presidente da República antes de ele entrar no avião. Aquilo tudo me cheirava mal. Mas fomos ficando.

O avião não decolava. O Presidente já tinha embarcado, mas o avião não decolava... não decolava. Eu comecei a ficar com dor no estômago, literalmente, e disse aos 2 outros, que eram o Deputado Bocayuva Cunha e o Tancredo Neves, que ficaram comigo: “Vocês não acham que isso está tendo um cheiro esquisito? Este avião é moderníssimo, acaba de chegar e não decola! Que estranho! Por que não vamos a bordo conversar com o Presidente? Vamos a bordo!” “Eu estava pensando nisso também” — disse o Tancredo. “Vamos lá”. E saímos os 3 para ir a bordo do avião. Íamos defender a tese de uma alternativa: vemos outro avião, se esse avião não pode decolar, porque era a única coisa que podia explicar ele não ter decolado ainda, apesar de estar lá dentro há mais de uma hora, uma hora e meia, sei lá.

Quando entramos no pátio, na pista, sei lá, a baioneta da tropa da Aeronáutica brilhando contra a gente: “click!”. Tancredo levanta aquela vozinha dele fraca, mas forte, meio fina, mas forte: “Respeitem! O representante do povo! Respeitem!” E um dos oficiais, não me recordo o nome dele, veio, mandou baixar as baionetas e nos abriu caminho até a escadinha do avião.

            Quando nós chegamos à escadinha, o Jango vinha descendo. Ele e todos os seus acompanhantes vinham descendo. Ou seja, cansaram de esperar que o avião decolasse, deixaram de acreditar que aquilo era uma pane, porque o que se alegava era que era uma pane, e passaram para um avião pequeno, um turboélice, um Avro, cuja demora de Brasília a Porto Alegre era enormemente maior do que o Coronaro  poderia fazer. Ao passar por nós, o Presidente disse: “Não esqueçam a batalha do impeachment. É isso que eles vão tentar. Resistam, porque em 2, 3 dias eu estou de volta”.  Foi a última coisa que eu ouvi do Jango nesse episódio. Voltamos todos — Tancredo para um lado, eu e Bocayuva para a casa do Bocayuva, para o apartamento do Bocayuva. Rapidamente promovemos uma reunião dos setores mais combativos do PTB e das forças democráticas que naquele instante estavam conosco, para analisar o que fazer.

            Quando nós estávamos nessa história, toca o telefone. Eram as funcionárias e secretárias do Auro Moura Andrade convocando para uma reunião do Congresso Nacional à 1h da manhã.

            Veja como os fatos foram se precipitando. “É evidente, é golpe! O que se vai esperar? Que o Moura Andrade vai abrir um debate conosco? Claro que não vai abrir um debate conosco. Isso já é a própria iniciação do golpe.”

            Bom, análise daqui, análise de acolá – porque nessas horas o que sobra é análise. Fomos para lá. Chegamos à reunião do Congresso, o Moura Andrade entra, abre o Congresso e de imediato o Darcy Ribeiro chegou com uma carta. Foi ele próprio que entregou, creio. Tenho dúvida se foi ele próprio. Mas a carta era dele, como Chefe da Casa Civil, comunicando ao Presidente do Congresso que o Presidente João Goulart estava se deslocando de Brasília para Porto Alegre e que, portanto, estava em território nacional. Ou seja, algo para evitar a idéia de que ele tinha fugido, de que ele tinha deixado o território nacional sem consentimento do Congresso, o que seria caso inclusive de impeachment.

            O próprio Moura Andrade faz a leitura. Eu não me lembro se foi o Darcy que levou. Mas acho que foi o Darcy. Ele acaba de ler isso e não dá mais voltas, não abre debate, não discute nada. Simplesmente ele proclama que o cargo de Presidente da República está vago. “Está vago o cargo de Presidente da República”. Nada mais. “Considerando o quadro nacional, considerando não sei o quê...” — vaguidades desse tipo —, “está vago o cargo de Presidente”.

            Mais uma vez, Tancredo — e é um depoimento que gosto de dar, porque a imagem do Tancredo é a do homem tranqüilo, do homem do diálogo, do homem do debate, de persuadir os outros; mas as vezes eu estive com Tancredo, em mais de uma oportunidade, que ele era também de briga; ele já tinha dado uns berros para os oficiais lá no aeroporto, no dia anterior —, nessa hora, quando o Moura Andrade termina de dizer isso, o Tancredo, com aquela altura dele, levanta e grita: “Canalha! Canalha!” Deu uns 2 ou 3 gritos de canalha que até hoje me ressoam.

            “Está encerrada a sessão”. Foi aquele tumulto. Realmente é emoção para todo lado. Ainda me lembro de alguns Parlamentares que choravam. Uns até homenzarrões literalmente chorando. Até me lembro dos nomes. Não digo porque pode parecer agressão minha. Não é. Era emoção.

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Diga os nomes. Isso é história.

            O SR. ALMINO AFFONSO - Mas para quê? Não aumenta muito.

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Não denigre.

            O SR. ALMINO AFFONSO - Não aumenta muito.

            Mas o Moura Andrade vem descendo a escadinha, cercado dos policiais da Câmara e do Senado, quando o Deputado Rogê Ferreira, que era uma figura atlética, um esportista, um atleta, um homem alto, forte e vigoroso na palavra, no gesto e na maneira de ser, vai lá e dá 2 cusparadas no Moura Andrade “taft, taft”. Suponho que não deu mais porque os policiais impediram a continuidade dele por ali. É o que eu chamo de “O Nojo Cívico”. Houve um momento de nojo cívico que o Rogê Ferreira, em nome de todos nós, soube exercer.

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Aí o senhor fez um discurso?

            O SR. ALMINO AFFONSO - Bom, como é que foi o discurso? Foi no dia anterior. Isso que estou falando já é o final, é o coroamento do golpismo.

            Realmente, Moura Andrade pode entrar para a história do golpe por ter sido a figura que inovou; ele conseguiu: ele próprio, Presidente do Congresso, dar um golpe de Estado.

            Mas o que eu tenho antes disso? No dia anterior, que foi o dia 31, nós já estávamos, portanto, com o golpe em marcha no País inteiro, ostensivamente, e eu fui um dos oradores. Fui o orador pelo PTB. Estava ganhando alma para poder fazer o discurso de que a resistência estava sendo levantada no País: “porque os trabalhadores...!, porque isso...!, porque os estudantes...!”, enfim, todo aquele discurso cheio de expectativas, quando, no meio disso, o Deputado Bocayuva Cunha me manda um bilhete — eu na tribuna —: “O Kruel aderiu.” Antes de ele fazer isso, veio lá do fundo do plenário um grupo de Parlamentares, que eu não me recordo o nome, gritando: “Viva São Paulo! Viva São Paulo! Viva São Paulo!”. A tal ponto que me abafou a voz, inclusive; eu estando na tribuna. Aí o Bocayuva me faz este bilhete dizendo: “É que o Kruel acaba de aderir ao golpe”. Aí o meu discurso soltou as rédeas. Eu fiz um discurso de uma violência verbal que eu nunca fiz na vida. E à medida que tentavam me apartear, vinham chicotadas! Quando, por exemplo, o Padre Godinho,  padre daqui de São Paulo — com o devido respeito; ele está morto —, homem de um vozeirão, tentou me apartear dizendo não sei o quê, eu disse: “V.Exa. não tem autoridade para falar. Está traindo a sua batina”. Então, veio o Herbert Levy e eu falei: “Eu hei de ver esses banqueiros um dia pendurados nos postes deste País”. E foi por aí. Foi o mínimo que eu disse (risos). Então, eu, que normalmente falava e era ouvido com respeito, eu diria até com gentileza, na Câmara — com muita freqüência, Pedro Aleixo vinha me abraçar, me cumprimentar —, naquele dia, não tive cumprimento de ninguém. Me recordo da frase do Sarney, que tinha uma história muito próxima à nossa. O Sarney, na juventude, chegando à Câmara com 29 anos ou 28 anos — ele tem mais ou menos a mesma idade que eu —, era do grupo nacionalista também. E até bem pouco tempo estava muito aliado a nós. Já naquela bifurcação ele foi se enquadrando no grupo golpista. Mas, nesse instante em que as pessoas estavam lá me provocando, porque sabe Deus o que é que xingavam, ele usou esta frase: “Não exijam de um homem como Almino. Almino é popular, tem outro comportamento hoje que não esse”. A frase não era exatamente assim, mas o espírito era esse. Eu fiquei com isso bem gravado. Foi o único gesto de algum respeito comigo na Câmara naquele dia, do lado do grupo golpista.

            Depois disso, eu estive no interior da Bahia. Depois retornei para Brasília, justamente no dia 9, quando houve o golpe consumado com o ato institucional. E daí, com a visita de San Tiago Dantas, que também teve seu lado saboroso, ele vai ali — eu tinha dito que tínhamos ficado amigos e isso que eu vou contar agora é uma prova de que eu não estava fazendo charme — para me ver, para me ver. Naquela hora de absoluto abandono de Deus e do mundo, ele vai à casa do Bocayuva para falar comigo e me faz uma análise da situação.

A análise dele era essa: “Veja, Almino, é dificílimo imaginar que o Parlamento sobreviva. Se sobreviver, não terá nenhuma autonomia. Tudo vai depender um pouco de quem assuma o comando dos fatos a partir deste instante. Por exemplo, parece provável que  muitos Parlamentares tenham os seus mandatos cassados. Se essa iniciativa for da própria Câmara ou do próprio Congresso, eu considero que você está salvo. Eu estarei salvo e você também, porque você tem respeito na Liderança da UDN, do PSD”. E era verdade. Tinha mesmo, apesar de eu brigar muito com eles. “Você será poupado. Se forem cassados até... Não, não, não. Se  for o Parlamento, você está salvo. Agora, se as cassações vierem por iniciativa dos militares, do chamado Comando da Revolução, aí, Almino, eu faria a seguinte análise: se forem apenas 6, você escapa. Eu já fiz minha análise dos que são considerados mais radicais. Até 6 você escapa. Mas se passar 1 de 6 você entra”. (Risos.)

Depois, olhou para mim e disse: “Agora veja, Almino, prepare-se para ir para o asilo, vá para uma embaixada. O homem político que se preza não deve se deixar prender. Ele é aviltado, menosprezado, desrespeitado. Procure uma embaixada, asile-se, asile-se. Não sei como, Almino, porque hoje o quadro aqui é que nós não temos embaixadas. Mas, enfim, veja o que você pode fazer. Asile-se. Você vai para o exterior. Você é jovem. Vai ser um período de enriquecimento para você do ponto de vista cultural,   do   ponto   de  vista político” — um pouco a sua pergunta ainda agora —, “olhando-nos de longe, tendo uma visão, portanto, do Brasil crítica, analítica. Isso  será muito bom para você. Além do mais, isso não dura, Almino, 3 anos. Em 3 anos isso termina. Você volta e retorna à vida pública. Almino, leve em conta. Por isso eu fiz questão de visitá-lo”.

Aí chega o tal anúncio do ato institucional que o Paiva nos dava. E ele pergunta se está incluído. Não está incluído. Disse: “Mas eu tenho algumas tarefas a cumprir”. E era essa história do diálogo que ele ia travar com Kruel. E despede-se. E nunca mais vi o San Tiago Dantas, que foi uma das maiores figuras que eu conheci na vida. Tenho o maior respeito, a maior admiração por ele. Um homem de uma inteligência privilegiada. Quando eu vejo esses pardais hoje pousando de poder, digo: “Meu Deus do céu, como nos faz falta o San Tiago”.

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Antes isso, porque está muito interessante. As suas revelações eu acho que nunca li e nunca vi em lugar nenhum.

O SR. ALMINO AFFONSO - É que eu ainda não escrevi meu livro. Eu quero escrever meu livro. Estou me antecipando. (Risos.)

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Mas como é que foi esse episódio da  sua saída de Brasília, indo até a Bahia? E, posteriormente, como é que o senhor seguiu o conselho do San Tiago Dantas e conseguiu se asilar?

O SR. ALMINO AFFONSO - Eu acho que a essa altura não tem maior mistério em dizer, até porque os meus 2 personagens estão mortos. Tão logo ficou visto o risco que eu tinha de ser preso, me aliviaram, vieram dar notícia pelo Presidente da República, que teve, eu diria, a humildade em mandar dizer que ele não podia fazer nada. E foi trazido por um Deputado.

O Bocayuva Cunha e o Rubens Paiva, que eram 2 irmãos meus, procuraram-me e disseram: “Almino, não dá para ficar aqui. Não tem sentido você ser preso. O que está acontecendo por aí...”  Já começara a haver torturas. Já havia a notícia de um  líder sindical no Amazonas que se dizia que tinha sido lançado do alto do CENIMAR e que tinha morrido. Ou seja, já tinha começado a haver coisas desse tipo.

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Um terror.

            O SR. ALMINO AFFONSO - O Arraes já estava preso. Já se falava que ele iria para Fernando de Noronha ou já tinha ido. Enfim, o quadro não era de nenhum modo tranqüilizador. Então, diziam eles: “Sai daqui, Almino. Não tem sentido você ficar aqui”.  “Mas para onde vou?” “Fuja para o interior da Bahia”, onde o Bocayuva tinha relações de amizade e podia me esconder. No fundo, era isso. “Está bem. Vamos. Como fazer?” “O Rubens sabe organizar essa parte de avião”. Porque o Rubens Paiva era piloto também. E o Rubens era uma figura audaciosa, empreendedora, uma capacidade criativa e de uma coragem realmente fantástica.

O Rubens, em pouco tempo, organizou, alugou um avião. Não sei que tipo de avião era, não sei repetir, e lá fomos nós. Como ficou montado o esquema? Parece incrível. Chega a ser anedótico. O aeroporto estava absolutamente cercado — tanques, tropa militar, tudo. Era um negócio para todo mundo respeitar. Pois o Rubens descobriu, não sei como, que era possível chegar por um “meio de estrada”, uma ruela quase, ao extremo da cabeceira da pista. Quer dizer, havia meio de chegar até a cabeceira da pista sem passar por aquele aparato todo de tanques e forças militares.

E lá fomos, de madrugada, cedinho, o sol raiando, o Bocayuva, eu, o Rubens e um piloto. O aviãozinho veio, quando deu partida, e foi lá para a cabeceira da pista. E lá na cabeceira da pista, nós, engatinhando, saímos daquelas macegas que tem por ali, aquelas árvores tortas, e entramos no avião de cócoras, ali embaixo, porque o avião ia decolar e passaria à altura da torre de comando. E, por via das dúvidas, (falha na gravação) tem olhos bons e nos enxergam ou nos reconhecem. E naquela hora você multiplica tudo, você cria uma fantasia, tudo. Então, nós, arriados ali embaixo, e o aviãozinho passando perto da torre.

Por desgraça, o trem de pouso não suspendia, e isso criava problema para a viagem. Então a torre de comando, simplesmente por essa razão, dizia: “Alô, alô” — e dizia o prefixo do nosso avião. “Alô, alô, o trem de pouso não recolheu. Alô, alô, o trem de pouso não recolheu. Queiram regressar à pista. Queiram regressar à pista”. Aí, o piloto, já pronto para cumprir ordens, já estava achando muito estranho aquela história de três sujeitos entrarem no avião de cócoras. Aquilo não estava bom para ele, coitado. Então, o piloto já pronto para fazer a manobra, o Rubens de Paiva disse-lhe: “Vá em frente! Vá em frente!” Aí o Rubens Paiva dizia assim: “Alô, alô! Alô, alô! Alô! Aqui falando” — dizia o prefixo do avião. “Não estamos ouvindo bem a torre. Há um pequeno defeito no sistema radiofônico. Queira repetir. Alô, alô! Queira repetir”. A torre vinha com a maior clareza: “O trem de aterrissagem não foi recolhido. Queiram voltar à pista”. “Alô! Alô!” E ficamos nesse, eu diria, jogo fantástico. E o pobre do piloto ali dirigindo, apavorado. E o Rubens falando: “Vá em frente! Vá em frente! Toca o avião!” Bom, até que fomos nos afastando, fomos nos afastando, e o Rubens ali dizendo que não ouvia. Coitado, não podia respeitar. Aí  (falha na gravação) e o Bocayuva fazer baixar o trem através de esforço físico. Agora, você viajando naquele aviãozinho pequenininho, sacudindo e fazendo aquele esforço, logo, logo, o estômago embrulhava. Mas, enfim, escapamos.

Em Salvador, nós pousamos no aeroporto. Lá, um cidadão ligado ao Bocayuva, deveria passar a “x” horas em um carro “x”, descrito pela cor, marca tal, suavemente, para nos levar para a tal fazenda. E lá nós ficamos.

            Chegamos ao aeroporto. Nada demais. Atravessamos e fomos para a praia, onde havia umas casas de palha que vendiam coisas próprias de drogas. Eu me lembro de que chamavam a cocaína de jacaré. Então, a senhora virava para mim e dizia: “O senhor quer um pouco de jacaré?” Eu não sabia o que era jacaré.

E ficou naquela conversa estranha, enquanto chegaria o carro. Lá pelas tantas chegou o carro. Fomos embora e ficamos livres do jacaré.

Enquanto estávamos ali — vejam que coincidência —, o Aeroporto 2 de Julho foi ocupado militarmente pelo Exército.

Vejam o problema da sorte. Em Brasília, a cabeceira da pista absolutamente livre. Em Salvador, quando nós chegamos ao aeroporto, as tropas, ou o regimento, sei lá o quê, ocupou militarmente o aeroporto, que até então não estava ocupado também. Vejam isso.

Pegamos o carro. O chofer saiu da estrada principal, pegou uma estrada secundária. Eu me lembro de que tinha buraco que não acabava mais, semelhante à São Paulo de hoje. (Falha na gravação.) Já anoitecendo, chegamos à fazenda. Aquele céu bonito, os pirilampos iluminando a mata. Comemos um belo frango ao molho pardo — lá chamam diferente: frango a cabidela.

Fomos dormir mais cedo. No dia seguinte, resolvemos treinar dar tiros. Nunca tinha dado um tiro na vida. Então, me deram uma arma, e me cabia aprender a dar tiros. Pegava a arma e “péin, péin, péin”. Coisa dessa época, desses momentos assim. Continuo sem saber dar tiros. (Falha na gravação.)

Ficamos 2 ou 3 dias ali, e todos os dias ouvíamos a rádio da Câmara, que estava funcionando normalmente, como o senhor dizia ainda agora. Então ficou incompreensível que nós 3 — eu, em particular — estivéssemos fora da Câmara em um momento como aquele. Então, decidimos voltar. Pois o Rubens, não sei como, foi a Salvador.

Em Salvador, ele voltou a ter contato com outro avião semelhante. Montou outra vez o (falha na gravação). Fomos para o aeroclube, decolamos e fomos para Brasília.

            (Falha na gravação.)

            (Fim da 1ª parte.)


 

DEPARTAMENTO DE TAQUIGRAFIA, REVISÃO E REDAÇÃO

 

NÚCLEO DE REDAÇÃO FINAL EM COMISSÕES

 

TEXTO COM REDAÇÃO FINAL

 

ENTREVISTA COM O SR. ALMINO AFFONSO - PARTE 2

EVENTO: Entrevista                   

N°: ESP008/01

DATA: 13/11/2001

INÍCIO: 09h00min

TÉRMINO: 10h28min

DURAÇÃO: 01h28min

TEMPO DE GRAVAÇÃO: 01h28min

PÁGINAS: 29

QUARTOS: 18

 

 

DEPOENTE/CONVIDADO - QUALIFICAÇÃO

 

ALMINO AFFONSO (parte II) – Advogado e Ministro de Estado do Trabalho e da Previdência Social no Governo João Goulart, ex-Vice-Governador do Estado de São Paulo.

 

 

SUMÁRIO: Entrevista com o Sr. Almino Affonso.

 

 

OBSERVAÇÕES

 

Não houve início nem encerramento formal da entrevista.

Houve intervenção fora do microfone. Inaudível.

Há palavras ininteligíveis.

 

Conferência de fidelidade do Conteúdo – NHIST
... todas. Mas o final da peripécia. Então, se decide: “Não tem jeito, vamos para uma embaixada”. Mas que embaixada? Antes, no dia em que as tropas invadiram, ocuparam Brasília, lembro-me muito bem de que estávamos embaixo de um apartamento daqueles, eu, o Deputado Paulo de Tarso e o Deputado Plínio Sampaio, quando as tropas passaram, aqueles tanques velhos, enferrujados, fazendo um barulho infernal. Então, naquele dia, decidimos mandar um emissário ao Rio para termos acesso à Embaixada da Iugoslávia, que tinha sido recém-reconhecida como território estrangeiro, extraterritorialidade, como se diz na linguagem do Direito Internacional, porque as outras embaixadas que na época estavam em Brasília não nos dariam acesso. Exemplo, a dos Estados Unidos, porque era parte direta no golpe, não tinha nada a ver conosco, e a da França, que tentamos, não dava o chamado asilo diplomático. A França poderia dar o asilo territorial. Se chegássemos até a França, ela nos daria o asilo territorial. A pergunta era como chegaríamos à França. Isso não foi respondido.

            Então, mandamos ao Rio um amigo que veio ter contato com o Embaixador da Iugoslávia, que ainda estava sediado no Rio. Aliás, todas as embaixadas ainda estavam sediadas no Rio, excetuando-se a da França e a dos Estados Unidos. A da Iugoslávia estava absolutamente vazia. Tinha sido inaugurada a propósito da visita do Tito, do Marechal Tito.

            Então, a Embaixada da Iugoslávia... É um dado curioso: a constituição iugoslava da época, hoje eu não sei, estabelecia como obrigação do estado dar asilo. Não é bonito? As constituições, normalmente, prescrevem a “faculdade” aos estados, os governos têm a “faculdade” de dar asilo. A da Iugoslávia tinha o dever de dar asilo. Olha que coisa bonita. Depois aprendi que também a da Argélia estabelecia o dever de dar asilo. Povinho bom, né? Nessas horas é que temos de descobrir povo bom.

            Aí, a Iugoslávia manda toda uma equipe, secretário especial, enfim, algo de qualificação mais pessoas menores, para ocuparem a embaixada, abrirem a embaixada para aqueles que eventualmente quisessem. Nós sabíamos. Então, lá fui eu, noite adentro. Aquela área era absolutamente um descampado ainda. A Embaixada da Iugoslávia era das raras existentes, estava novinha em folha, bonita, toda iluminada. Parecia um lugar próprio para salvar, o lugar da salvação. Levou-me lá um amigo meu, meu compadre, Dr. Gildásio Pereira, advogado, que continua em Brasília, padrinho desse meu último filho que tinha recém-nascido. Vimos um carrão lá no fundo, dentro da noite, seguindo o nosso carro. Eu disse: “Gildásio, corre, porque aquilo está me cheirando a polícia”. O que fazia aquele carrão, naquela hora da noite, naquele descampado? Paramos em frente à embaixada. Cadê que vinham abrir? Não havia movimento ainda. Fui dos primeiros a chegar. Tocava a campainha, tocava a campainha. Não vinham. Pulei a cerca. Literalmente, pulei a cerca. Lá embaixo, havia o diabo de um cachorro. O que esse cachorro me agrediu não tem graça. Mas eu não prestei muita atenção para ele porque eu estava salvo. Entrei, e aí foram chegando ao longo da noite. Não havia nenhuma mobília, sistematicamente nenhuma cadeira, nada. Tínhamos de dormir. Onde? No chão.

Na primeira noite, foi todo o mundo... Lembro-me da irritação do José Aparecido, que chegou lá tarde, também se asilou nesse dia. E eu estava muito falante. Eu estava falante porque estava feliz de não estar sendo preso. Que bom. A idéia de Santiago tinha me marcado muito. Eu estou num asilo, com dificuldade de outros tipos, mas na prisão, sujeito a tortura, estou fora disso. Eu estava feliz dentro da minha dificuldade do momento. Pois não é que o José Aparecido ficou irritado comigo? “Você quer me explicar, Almino, do que tanto você ri?” (Riso.) Atritamos lá um pouco, fui deitar num canto, dormi. No dia seguinte, entramos em contato com a família, e as famílias todas mandaram camas de vento, como se chama, daquelas que fecham, e passamos a ter camas de vento, um luxo total. Ao mesmo tempo, cada família mandou uma empregada, uma coisa, montamos a nossa cozinha. Foi um período meio estudantil. É curioso como a vida tem, de repente, lances que te tiram daquele quadro e te dão outra alma. Assim foi. Aí levamos um tempão, levamos... Que dia terá sido isso tudo que estou falando?

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Quantas eram e quem eram?

            O SR. ALMINO AFFONSO - Quantos eu não sei te dizer, mas vou lembrar bem os nomes. Vamos ver: Bocaiúva Cunha; Rubens Paiva; a mulher do Ryff, a Beatriz; Maria da Graça; José Aparecido; Ferro Costa, do Pará – lembram do Ferro Costa? – ; um Deputado do Rio de Janeiro... estou vendo a cara dele, meu Deus, está faltando... esse que foi Senador e Ministro do Trabalho...

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Amaury Silva.

            O SR. ALMINO AFFONSO - ...Senador Amaury Silva; uma líder camponesa, D. Catarina; um Deputado de Minas que caiu na besteira de receber a visita de uma namorada, e os jornais faziam toda a volta do cerco e tiraram de longe fotografia dele, com teleobjetiva, e publicaram com destaque nos jornais. Foi um drama familiar enorme. (Riso.) Até esse lado pitoresco da coisa. Mas eu não me lembro do nome dele. (Riso.) Quem mais? Acho que só. E eu. Ah, Fernando Santana.

            Aí, durante esse período, houve algumas coisas pitorescas. Primeiro, essa confraternização... Ah, um Deputado que era do Rio de Janeiro, que era o Presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Indústria, CNTI, um homem gordo.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Pelacani.

            O SR. ALMINO AFFONSO - Não, Pelacani é daqui de São Paulo.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Clodsmith Riani.

            O SR. ALMINO AFFONSO - Hein?

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) -  Clodsmith Riani.

            O SR. ALMINO AFFONSO - Clodsmith Riani não estava conosco. Enfim, no dia seguinte, começou uma confraternização. Ria-se, conversava-se, lia-se, passamos a ler, a ler. Anuncia-se que o Juscelino seria cassado. Aí, Juscelino vai, à noite, a uma reunião no Senado e faz um discurso vigoroso, etc., etc. E segundo informações que ele tinha nos mandado dar, ele ou alguém por ele, ele iria se asilar na Embaixada. Aí ficou aquele mal-estar, a Embaixada não tinha comodidade nenhuma, o que nós tínhamos era cada qual a sua cama de vento, e ninguém mandou comprar uma cama de vento para o Juscelino. Nunca me esqueço desse lado pitoresco.

            O Deputado Fernando Santana, que é um homem à vezes brusco, tem às vezes gentilezas impressionantes. “Não vamos deixar o Presidente dormir no chão como nós, não pode, isso não pode.” “Então, Fernando, dá a sua cama.” “Pois é o que eu vou fazer.” Pois ele foi, trocou a roupa de cama (riso), arrumou direitinho, mudou o travesseiro (riso) e deixou a cama pronta para o Juscelino quando chegasse.

            Acho que o Juscelino tinha feito exatamente de truque, mandou dizer que ia para lá e pegou a estrada para outro lado e foi embora para o Rio, não ficou em Brasília. Ou seja, o Fernando perdeu a oportunidade de ceder a cama ao Juscelino.

            Aí ficamos mais uns dias, até que finalmente tivemos, já em junho, véspera de São João... Você lembra, você esteve comigo em Brasília e no Rio.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - (Ininteligível.)

            O SR. ALMINO AFFONSO - Pois é. Chegou finalmente o nosso salvo‑conduto do Itamaraty, mais o papelório da Embaixada da Iugoslávia. Enfim, fomos levados de avião de Brasília para o Rio e ficamos na Embaixada o dia todo, até o final da tarde, quando o navio saiu. Fomos num navio que era um cargueiro, extremamente modesto, Borrini. E fomos, passamos, eu mostrei para vocês a fotografia ali, e fomos saindo devagarzinho, no Rio de Janeiro chuviscava de leve, mesmo assim as praias estavam cheias. E nós ali.

            Aí, o Fernando Santana usou aquela frase de Camões: “Ah, pátria ingrata, não verás meus ossos”. (Riso.) Fomos embora. Chegamos à altura de Salvador, para a primeira parada, havia carga a tomar. Mas era véspera de São Pedro, ou São João, e os trabalhadores não trabalharam. Ou porque era greve, ou porque era São João, o fato é que os estivadores não trabalharam.

            Então, ficamos parados ali uns 2 ou 3 dias. De frente para Salvador, naquele barco horroroso. E era bonito à noite ver os balões pequenos acesos, centenas deles sobre Salvador, e o vento os trazia para o mar, soprava o vento da terra para o mar, então eles vinham todos morrer no mar. Aquilo já me deu... manias de poeta da juventude, a dizer: “Isso é mau sinal (riso), isso está sendo um prognóstico pouco agradável. Tudo quanto é sonho da gente morrendo aqui.” (Riso.)

            Mas o outro lado pitoresco foi com o Governador Lomanto Júnior, que era ligadíssimo a todos nós, todos que estávamos ali podíamos até nos considerar amigos do Lomanto. Pois não é que o Lomanto manda botar o diabo de uma lanchinha, pequena, com meia dúzia de meganhas, de soldados, com metralhadoras, e essa lanchinha dava a volta em torno do nosso navio noite e dia, “poh, poh, poh, poh, poh, poh, poh...” (o orador reproduz o som produzido pela lancha), para que não fugíssemos e fôssemos para a terra? Você pode imaginar que loucura?

            Então, tinha lado pitoresco para todo lado. O Deputado Lamartine Távora, de Pernambuco, disse: “Não podemos comer essa comida aqui”. Porque a comida era muito gordurosa. A comida iugoslava é muito gordurosa e de um sabor diferente também. Ou manias da gente, que estava com bobagem de filho abandonado. Então, entrou em contato com a família dele e amigos, e nos trouxeram carne de sol, charque, feijão, arroz, tudo in natura. Aí, desceram eles, os que sabiam, sei lá quais, e foram ensinar os cozinheiros a cozinhar aquilo tudo, e passamos a ter uma comida todo dia razoável, que era feijão, arroz, carne de sol, charque, etc.

E atravessamos isso tudo. Chegamos à região de Cabo Verde, onde paramos para tomar água. Mas Cabo Verde não tem uma gota d’água, não sei se vocês sabiam disso, não tem uma gota d’água, não tem um verde, é chão pardacento puro. Ali são não sei quantas ilhas, um arquipélago, o Arquipélago de Cabo Verde. A água vem da Ilha de Santo Antão, de onde vêm aquelas enormes barcaças que abastecem a cidade e os navios. Quando estávamos nesta operação, chega um navio brasileiro, um navio do Lloyd, Almirante Jaceguai. Ao perceberem que estávamos ali, asilados brasileiros, sei lá, tomaram-se de patriotismo e resolveram fazer-nos uma visita oficial no nosso navio. Vejam o lado pitoresco da coisa. Mas o comandante considerou que não era adequado, porque ele tinha recebido comunicação oficial de que não poderíamos sequer saltar na cidadezinha, coisa que teria sido interessante visitar aquilo ali enquanto esperávamos água. Fomos proibidos de saltar. Como ia deixar cidadãos brasileiros entrar? Achou prudente não deixar entrar.

            Ao não deixarem-nos entrar, os oficiais e não sei mais quantos cidadãos, marinheiros, entraram em todos aqueles botes que os navios levam, arriaram todos e puseram-se a remar em torno do nosso navio (riso), dando voltas em torno do nosso navio, e a dar vivas ao Brasil, e a dar vivas a João Goulart, e a cantar o Hino Nacional. Menino, uma coisa — hoje eu conto isso rindo — comovedora, honestamente comovedora aquela história toda.

            Aí, houve um momento em que um deles, mais afoito, parou o barco perto de uma escadinha e quis, a todo custo, subir, mas já havia lá no tombadilho uma meia dúzia de meganhas portugueses, da ilha de lá, e era a primeira vez que eu via o contraste curioso: eram portugueses — na medida em que ali era território português —, falando português, porém negros. Então, ver negro falando português era na hora meio estranho.

            Então, eles estavam ali, era uma meia dúzia, armados, para que não pudéssemos descer, e aqueles oficiais resolvem subir. Foi um drama, porque à medida que subiam eles ameaçavam atirar: “Não venha, porque... Não venha, porque...” Aí de repente um deles, num estado realmente dramático, olhava e mostrava lá para o alto do morro um casarão amarelo e dizia: “Pelo amor de Deus, tenham pena da minha família, mandam‑me lá para cima! Mandam-me lá para cima!”. “Lá para cima” era a cadeia pública, porque lá era uma das cadeias importantes dos prisioneiros políticos do Salazar. Vocês vejam por onde andamos.

            E aí nós mesmos apelamos: “Não venham, vamos criar problema para os pobres desses cidadãos”. Foram embora.

            Abastecidos d’água, os nossos 2 navios tomaram o rumo. Eles iam diretamente em direção a Portugal, e nós começamos a ir em direção à Iugoslávia. Então, fizemos assim. Quando menos esperamos, à noite, os rádios anunciam que de lá, do navio Jaceguai, queriam falar conosco. Pois não é que fazem de lá discursos? Discursos em alto mar (riso), do Almirante Jaceguai, discursos em alto mar, homenageando a luta dos brasileiros que nós ali representávamos, os exilados, não sei o quê...

            Aí, nos reunimos. “Temos que responder.” Fomos ao comandante e perguntamos se havia inconveniente. Ele disse: “Não, não há inconveniente”. Então, fomos lá para a cabine do rádio e coube a mim fazer a saudação aos companheiros do Almirante Jaceguai, agradecendo. Porém, tínhamos estabelecido, até por recomendação do comandante, que houvesse um discurso, para não ficar também um pouco exagerado. Então, me elegeram. Meu companheiro, depois que eu falei, falaram todos. (Risos.)

            E fomos, chegamos à Iugoslávia, no porto de Rieca, justo onde estavam construindo um enorme porto para carga e descarga de minerais de ferro, que fazia parte dos acordos que o Tito tinha feito no Brasil.

            Então, mais uma vez, a tal história: como havia alguns comunistas a bordo, nossos colegas, a prudência imediatamente... como fazer a análise... Então, resultou daquilo, primeiro: quem seria o orador? Bom, tinha que ser um sujeito capaz de dizer as coisas com comedimento. Então me elegeram. Lá fui eu, eleito. Segundo: o que dizer? Então, dizer uma homenagem a sua terra, evitando ao máximo qualquer coisa que pudesse dificultar as relações boas entre o Governo do Tito e o Governo Militar, o que era uma desproporção, um exagero à nossa influência... Mas, de toda maneira, foi o que houve.

Ficamos todos ali no tombadilho, à espera de que os jornalistas entrassem, porque estava “assim” de jornalista. Jornalistas, radialistas, homens de televisão, uma coisa bonita, e nós todo orgulhosos, porque nós éramos, evidentemente, os exilados chegando ali, era uma coisa importante, segundo parecia para nós.

Atraca. Entra aquele grupo de sujeitos, correndo para um lado, para outro, correm para lá, correm para acolá. Passaram por nós umas 3 vezes e não se deram conta da gente. Aí, ficou visto que havia alguma coisa estranha. Não era por nós que eles estavam procurando, porque senão já tinham parado. Não era difícil perguntar: “Onde estão os brasileiros?” Não houve essa pergunta.

Bom, resumo da história: em alto mar, havia nascido uma criança. Voltavam para a Iugoslávia exilados da Segunda Grande Guerra Mundial, de quando os alemães ocuparam a Iugoslávia toda, e parte deles estavam, inclusive, nos campos de concentração. Até um casal gordo nos contava que tinham ficado em pele e osso. E, terminado aquele episódio, libertados pelas tropas russas — foram os russos que chegaram primeiro na Iugoslávia, expulsando os alemães —, eles acabaram saindo de lá. Acho que, cansados do quadro todo que tinham vivido, foram morar na Argentina, desde o final da Segunda Grande Guerra até aquela ocasião em que nós estávamos indo para Iugoslávia. Sendo que nós estávamos indo para o exílio. Eles estavam voltando do exílio para a terra deles. Era bem diferente. À noite, tocavam músicas. E as moças dançavam músicas iugoslavas para cá, para lá. Nós não dançávamos porque não sabíamos ou porque éramos bem comportados. Não sei bem.

Então, ficou visto que nós não éramos os homenageados. O homenageado era a criança que tinha nascido em alto mar e que passara a chamar‑se Borrina, porque o navio chamava-se Borrini.

Essa historieta que estou contando eu contei para o Celso Furtado quando cheguei a Paris, já tendo saído da Iugoslávia, logo depois. Eu não demorei muito. O Celso, com aquele jeitão dele, disse: “É, ainda não tinham desencarnado, não é, Almino?” (Riso.)

É isso.

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Delícia de historia.

O SR. ALMINO AFFONSO - Você tinha me feito uma pergunta. Eu me perdi.

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - A visão que o senhor tinha do Brasil...

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - No exílio.

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Nesse tempo do exílio.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - A revolta armada, aquelas coisas todas.

O SR. ALMINO AFFONSO - Eu sei dizer pouco. Salvo quando gradualmente começaram a chegar exilados, porque nós chegamos a ter 5 mil brasileiros no Chile. Cinco mil, claro, incluindo a família, os filhos. Passamos a ser uma comunidade de 5 mil pessoas. Mas houve um período em que havia muitos jovens, os que tinham participado exatamente das lutas armadas, os mais radicais, que começaram a chegar lá. Numa primeira etapa, éramos mais líderes políticos, quadros políticos, intelectuais. Vários intelectuais, o próprio Fernando Henrique, o Weffort, o Paulo Renato. O Paulo Renato não era exilado, mas, enfim, acabou participando do mesmo grupo. O Celso Furtado também esteve nessa primeira fase. A Maria da Conceição Tavares. Enfim, era um grupo de elite em termos intelectuais. Jesus Soares Pereira, lembra dele?

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Muito.

O SR. ALMINO AFFONSO - Aquele grande economista. E os políticos éramos o Paulo de Tarso, o Plínio Sampaio, eu próprio, o Salvador Losacco, o Ulisses Auer. Creio que só. Eu acho que, dos líderes políticos, só.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O Fernando Santana?

O SR. ALMINO AFFONSO - Não. O Fernando Santana esteve, mas muito pouco tempo. Em seguida, ele foi não sei para onde, mas não ficou no Chile. Quando eu cheguei, inclusive, ele já tinha saído.

Qual foi a sua pergunta?

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Sobre a sua visão do Brasil no exílio.

O SR. ALMINO AFFONSO - Ah, sim. Eu dizia que esse era um grupo de exilados. E nós, em primeiro lugar, toda semana, nos reunimos para fazer estudos sobre o Brasil. Era um grupo - não eram todos - do qual faziam parte Fernando Henrique, Weffort, o Serra, que também fazia parte dos exilados e era um jovem estudante, ainda. Às sextas-feiras, nós nos reuníamos, na casa do Plínio Sampaio, como se fosse um seminário, para discutir o Brasil, a realidade do Brasil, os problemas econômicos e sociais do Brasil, ou seja, quais eram os condicionamentos para que os militares permitissem reabrir o processo político ou fossem derrotados. Esse era o objeto da análise, interminável, interminável... Toda sexta-feira era isso.

Aos sábados, era o dia da feijoada, que, no começo, era feito com lentilha, porque não havia feijão preto no Chile. Aí, um cidadão, um pequeno fazendeiro, descobriu que havia uma demanda razoável de feijão preto dos brasileiros, descobriu que os mexicanos também gostam muito de feijão preto e passou a produzir feijão preto. No ano seguinte, nós já tínhamos feijão preto. Deixamos de comer lentilha. Num dia certo, íamos ao Mercado da Providência e nos abastecíamos de feijão para o ano inteiro. Aí, passamos a ter feijoadas deliciosas.

Umas das coisas mais gostosas que eu comi no exílio foi feijoada, inclusive porque lá eles usam muito carne defumada. E nós passamos a usar carne defumada, que enriquece muito a feijoada, viu? Aqui, não se faz, mas, olha, é um bom conselho. Fica muito gostoso. (Risos.)

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Esse Plínio, é o Plínio Arruda Sampaio?

O SR. ALMINO AFFONSO - É, sim, militante do PT. Naquela época, era um militante do PDC.

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - A origem do grupo era toda de AP?

O SR. ALMINO AFFONSO - Da AP. A origem do grupo...

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Desse grupo que estava exilado.

O SR. ALMINO AFFONSO - Não.

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Não?

O SR. ALMINO AFFONSO - Dos parlamentares?

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - O Plínio era da AP, não é?

O SR. ALMINO AFFONSO - O Plínio era da AP. O Plínio era da AP. O Paulo de Tarso, também. Mas os outros, não. Conceição não era, Weffort, também exilado, não era; o Fernando Henrique não era.

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - O Serra?

O SR. ALMINO AFFONSO - O Serra era. O Serra era. Lá, havia vários. Você tem razão. Lá, também, tinha, depois, o Betinho. O Betinho também fazia parte desse grupo. E também o Betinho era da AP. E eu não conto por ser bobo, mas eu fui ligeiramente da AP, também, num certo momento, aqui. (Risos.) Chegaram a lançar a minha candidatura à Presidente da República.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio de Holanda) - No exílio?

O SR. ALMINO AFFONSO - Não. Aqui, no congresso da AP. Quando já começaram a surgir as várias candidaturas, a AP lançou a candidatura Almino e Paulo de Tarso, “AP”. (Risos.) E o Hélio Fernandes, com enorme maldade, publicou no seu jornal que era a chapa... Como chamamos quando fazemos cálculo da porcentagem das coisas? (Pausa.) Era a “chapa estatística”, dizia o Hélio Fernandes. A “chapa AP”. Dizia que era a “chapa estatística”.

Mas você perguntou como é que nós víamos. Primeiro, não nós sabíamos muito a realidade. “Raríssimamente” chegavam-nos os jornais, e os moços que chegavam vinham já com uma visão muito direcionada, o que impedia informações mais precisas de outras áreas. E eram os que podiam mudar ou ir para o Uruguai. Eu fui expulso do Uruguai, por pressão do Governo brasileiro, porque havia já um comando crescente, político, no Uruguai.

Gradualmente, chegavam lideranças de diversas partes, montando ali um comando político, no fundo. As principais figuras eram o Brizola e o Jango, mas cada um de nós tinha a sua parcela de influência nisso ou naquilo. E isso, não digo que alarmou, mas irritou o Governo brasileiro, e passaram, num certo momento, a não tolerar mais gente nova. E eu caí na malha justo quando essa norma foi imposta por eles; eu e o Max da Costa Santos, que foi um Deputado muito brilhante do Rio, um professor de Teoria Geral do Estado. Eu, por azar, não tinha documento nenhum, porque saí sem passaporte - porque não nos deram passaporte, é claro. O único documento que eu tinha era da Ordem dos Advogados, que deixou de ser aceito. Na Argentina, normalmente, tem sido aceito, mas, naquela ocasião, não aceitavam. Enfim, eu não tinha documento.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Não tinha nem aquele documento da ONU?

            O SR. ALMINO AFFONSO – Não, imagina! Não deram nada para gente. Esse é um dos aspectos mais tristes do comportamento brasileiro. Os outros exilados, dos outros países, recebiam o passaporte e 20 dólares para a primeira noite. Gozado essa coisa, não é? Até os bolivianos faziam isso. Nós não tínhamos nenhum centavo, não tínhamos os nossos documentos nacionais ou um passaporte nacional, o que nos expunha a vexames muito grandes, como falsificação de documento. Todos nós tínhamos que falsificar documentos. Como entrávamos nos países? Tínhamos que falsificar. Mas era algo que incomodava muito, porque a cada instante estava eu sendo preso como falsificador. Que coisa desagradável, não é?

            Então, não tínhamos... Estou me perdendo muito.

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - O senhor estava falando da fundação do seu périplo no exílio. O senhor estava no Uruguai...

            O SR. ALMINO AFFONSO - Está bom. Então, acabei sendo expulso do Uruguai. E foi uma luta bonita, porque havia esse Galeano. Como é o nome dele?

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - O Eduardo Galeano.

            O SR. ALMINO AFFONSO - Eduardo Galeano, que tinha um bom jornal, um jornal de briga. Eu não me lembro o nome. Então, ele punha em primeira página, todo o dia. Porque o Governo brasileiro, como forma de pressão ao Governo uruguaio, passou a dizer que não importaria mais trigo do Uruguai. Que coisa horrível, não é? Ainda mais trigo! E a manchete do jornal do Galeano era: “Uma Família por Trigo”. Nessa hora, eu estava já com a minha mulher e meus filhos, que foram lá me visitar no Uruguai. E foi uma batalha bonita. A central dos trabalhadores que se manifestou contra; a central dos estudantes, se manifestou contra...

            Havia um Senador, que era um Senador briguento, uma figura extraordinária. No Uruguai, havia hábito ainda de duelo de espada. Uma surpresa total. Havia duelo! E esse Senador - que pena que está me faltando o nome agora também - chegou a ameaçar com um duelo com não sei quem, porque houve um debate no Senado sobre a nossa permanência ou não. Pois eles fizeram audiência pública dos Ministros das Relações Exteriores, do Ministro do Interior, tudo para a nossa permanência, enquanto esse Senador nos guardava na casa dele, a mim e ao Max da Costa Santos. Ficávamos à noite, nos arredores de Montevidéu. Até que ficou insuportável aquilo.

            Vejam como a vida dá voltas. O Presidente da República, Fernando Henrique, naquela época professor, e o Thiago de Melo, poeta, já estavam no Chile, e eram muito meus amigos na época - o Thiago continua. Eles obtiveram do Chile não apenas o meu direito de ingresso no país como me mandaram um salvo-conduto chileno. A Embaixada chilena me deu um salvo-conduto no Uruguai. Com isso, eu estava documentado. Deixei de ser uma figura ilegal, e de lá vim quando o Uruguai já se preparava para me mandar de volta para a Iugoslávia.

            Eu tinha recebido um chamado do Ministro do Interior, “não-sei-o-quê” Terrera, anunciando-me que lamentava, mas tinha que me mandar de volta para a Iugoslávia, quando me chega o salvo-conduto do Chile. Com ele, eu vim para o Chile.

            Ao chegar no Chile, no aeroporto, estavam lá me esperando o Prof. Fernando Henrique Cardoso e o Dr. Thiago de Mello. Fui recebido, em nome da coletividade, por essas duas figuras ilustres.

No Chile, fiquei 8 anos. Passei todo o período Frei, que foi extremamente solidário conosco, extremamente solidário, não apenas em nos dar documentos - porque não tínhamos documentos como cidadãos - para transitarmos, mas eles nos davam uma espécie de carteira... Era uma carteira qualquer, não sei. O fato é que substituía a existência do passaporte e, ao mesmo tempo, nos ajudavam a obter emprego.

            Quase todos nós, senão todos, tivemos empregos que foram obtidos pelo Governo chileno. Emprega um, emprega outro, conforme a aptidão de cada um - esse é professor, pode dar aula na universidade - até que cada um foi tendo vôo próprio e conseguiu coisas melhores.

            Cheguei a ser técnico da Organização Internacional do Trabalho, e foi o meu período de rico, porque eu ganhava em dólar; tinha direito a importar tudo com preços mínimos, por privilégio das Nações Unidas, tinha direito a importar carro. Foi um período em que tive um Mercedes Benz - escandalizem-se: um Mercedes Benz que me custou 4 mil dólares. Depois de algum tempo, podíamos revendê-lo no Chile, sem que pagássemos impostos, o que vale dizer que já dava um lucro de mais não sei quanto. Foi um período áureo. Até que veio o golpe, evidentemente.

            Do Chile, quando veio o golpe... Ah, bom, no Chile, a minha família foi para lá em definitivo. Eram todos pequenos, o mais velho devia ter 8 ou 9 anos, os outros todos eram pequenininhos, era uma cambada. E lá ficamos até o golpe do Pinochet. Daí, a minha família voltou para o Brasil, porque, realmente, as crianças já não estavam mais falando nada em português. Aquilo me doía na alma. Meus filhos não sabiam nem dizer uma palavra em português. Mandei-os de volta para cá, na esperança de que abriria logo, porque havia aquelas declarações do Geisel, como é que chamava? Não tinha uma expressão?

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Abertura.

            O SR. ALMINO AFFONSO - Abertura lenta...

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Distensão lenta, gradual e firme.

            O SR. ALMINO AFFONSO - Não.

            O SR. ENTREVISTADOR ( Ivan Santos) - Lenta, gradual e segura.

            O SR. ALMINO AFFONSO - Lenta, gradual e segura. Era dele. Com esse “lenta, gradual e segura”, um pouco mais, sei lá, um mês, dois meses, um ano, eu poderia voltar. Então, mandei a família, para organizar a vida das crianças - no fundo, foi isso - e fui para o Peru.

            No Peru, continuei funcionário das Nações Unidas, da OIT. Até que começou a pintar no ar um golpe lá, golpe dentro dos militares. Eu disse: “Tá danado, assim, também, já é...”

            Aí, tinha havido abertura na Argentina. O Cámpora tinha assumido o poder, tinham derrubado os militares, e se anunciava a chegada do Perón. Eu disse: “É para lá que eu vou”.  Lá fui, com documento falso e tudo. Entrei na Argentina e fiquei na Argentina até o Golpe do Videla, quando o Videla derrubou a Isabelita. Aí, eu disse: “Aí, também, já não dá. Estou cansado de golpes”.

            Decidi voltar de qualquer forma. Eu disse: “Eu volto mesmo sem anistia”. E voltei sem anistia. Foi um dos dias de maior emoção da minha vida, porque eu não tinha passaporte, insisto em dizer isso.

            Aí, fui ao Embaixador brasileiro e disse: “Estou querendo voltar, Embaixador, eu vou correr os riscos. Portanto, não há por que me impedirem de que eu me exponha. Eu só estou querendo poder viajar.” Mas ele não podia dar. Eu disse: “Bom, então, Embaixador, veja outra coisa. Eu sei que há um acordo entre o Brasil e a Argentina que autoriza o reconhecimento do cartão de advogado, da cédula de advogado como um documento equivalente a um passaporte.” Podemos ir à Argentina - ou podíamos, não sei como está hoje - com um documento da Ordem dos Advogados. Ele, então, disse: “Isso é verdade, mas não posso dizer isso por escrito.” E eu disse: “Se o senhor não pode dizer por escrito, o que eu posso fazer? Posso dizer que ouvi do senhor que vale, mas não vão acreditar em mim.” Pois esse sujeito extraordinário disse o seguinte: “Vamos fazer o seguinte. Que dia o senhor vai fazer isso?” Era o dia 30 de agosto de 76 ou 77, acho que 76. Em que ano morreu Jango? Por aí, eu viria com mais...

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) -  Setenta e seis.

            O SR. ALMINO AFFONSO - Setenta e seis? Então, era em 76, 30 de agosto.

            Fui ao aeroporto, fui à agência, que era Cruzeiro do Sul ainda. Disseram: “Não podemos. Com isso, não podemos.” Eu disse: “Mas isso tem validade”. Disseram: “Como é que o senhor pode dizer que tem validade? Não tem validade.” Eu disse: “Olha, o senhor vai me desculpar, mas, se o senhor permitir, eu falo com o diretor da agência. Ele pode telefonar neste instante para o Embaixador, e o Embaixador confirmará.” Olharam-me com ar de dúvida, mas eu falei forte. Levaram-me ao diretor da agência, e o diretor da agência, sei lá, por generosidade, pegou o telefone, ligou para o Embaixador e disse: “Aqui está um senhor assim, assim, assim, dizendo que tal documento tem validade”. E ele disse: “Isso é verdade, no Brasil, esse documento, pela lei tal, etc., tem validade”. Emitiu a passagem.

            Na medida em que ele ia escrevendo aquela historiada toda da passagem, a emoção foi tão grande, que eu não sei se eu já tive emoção mais forte na vida. O coração bombeava, “bam, bam, bam, bam”.

            Com a passagem, tomei duas iniciativas. Liguei para a minha mulher e disse: “Amanhã eu estarei aí” - eu viajaria dia 31. E ela perguntou: “Como?”. Repeti: “Amanhã eu estarei aí”. Liguei para o meu irmão, e o meu irmão perguntou : “Mas como você vem, se não preparamos nada, não falamos com ninguém? De repente você vai preso!” Eu disse: “Olha, meu irmão, agora é melhor ser preso aí do que, de repente, ser preso aqui”. Já havia o clima todo de mortandade, segundo se falava. Eu disse: “Já, já, eu entro numa brincadeira dessas, vou para o outro lado falando espanhol. Tenha paciência; que seja pelo menos falando português!”

            Vim. Meu irmão foi e veio comigo. Quando cheguei aqui, outra emoção: quando o avião bateu no solo, doutor, que coisa bonita é o avião batendo num solo, “pow, pow, pow”. Saí. A fila grande. Quando fui entrando no aeroporto de São Paulo, vi de longe o meu amigo, Dr. Adib Jatene, e um bando de gente que eu não conhecia, mas todos ali... um grupo. Aproximou-se de mim o Dr. Tuma, ilustre Senador da República - ele era chefe do DOPS - e disse: “Dr. Almino, o senhor queira nos acompanhar, eu sou do DOPS”. “Acompanho. Não com muito gosto, mas acompanho.” Levaram-me para uma saleta...

            Ah, não. Nesse ínterim, o Adib Jatene se aproximou de mim e disse... Eu não entendi. Aí, eu percebi que era o grupo das agências de polícia, militar, do SNI, da Marinha. Veio tudo, veio a corte toda, veio a corte toda. E, no meio daquela corte, estava presente o Adib Jatene. Não entrava na minha cabeça o que fazia o Jatene no meio desse povo. Ele se aproximou e disse: “Almino, eu estou aqui representando o Comandante do II Exército”. Veja como a vida é. O Jatene pode me pedir o que quiser na vida, tem de mim tudo. “Estou aqui representando o Comandante do II Exército.”

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) -  Na frente do Tuma?

            O SR. ALMINO AFFONSO - Não, falou para mim. Ah, não, ele estava representando oficialmente. Ele levou carta do general que o credenciava a representá-lo na minha chegada, em nome do Comandante do II Exército.

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) -  Era o Dilermando.

            O SR. ALMINO AFFONSO - Eu não me lembro se era o Dilermando.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) -  Era o Dilermando Monteiro.

            O SR. ALMINO AFFONSO - Dilermando Monteiro. Eu sei que a relação dele com o Jatene era que ele tinha operado o Dilermando, e sempre ouço dizer que há uma relação de muita afinidade depois de um sujeito fazer uma operação de coração, não é? Fica gostando muito do...

            O fato é que o Jatene tinha autoridade junto a ele, e foi pessoalmente a ele...

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) -  Ele era ligado ao Geisel e ao Golbery.

            O SR. ALMINO AFFONSO - Quem?

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) -  O Dilermando.

            O SR. ALMINO AFFONSO - Sim, mas o que eu digo: a relação foi rigorosamente humana, pessoal, do Jatene com ele. E a conversa do Jatene com ele, conforme o Jatene me contou, foi assim: “General, o senhor me desculpe, está vindo aí um grande amigo meu, por quem eu tenho admiração, respeito etc. Eu só queria ter a segurança de que ele não será torturado. Se ele tiver que ser preso, eu não tenho alternativa, mas que ele seja respeitado.” O General disse: “Fique absolutamente tranqüilo, que ele não será torturado. Você vai me representar pessoalmente”. E fez o tal cartão de representação com o qual o Jatene foi lá.

            Bom, levaram-me para uma saleta, como esta aqui, suponhamos, encheu daquela cambada de representantes dos vários órgãos de segurança, e não deixaram o Jatene entrar, mas puseram o Jatene numa saleta ao lado, com a porta entreaberta, que dava diretamente para a minha cadeira - ou seja, o Jatene ficou me vendo - ao longo de quatro horas e meia, enquanto eu era interrogado.

            Bem, perguntas bobas, isso e aquilo, coisas afirmativas. Eu já estava numa situação em que não tinha o que dizer. “Isso eu não disse, aquilo eu disse. Era isso ou era isso, sou ou não sou...” Enfim, a conversa foi direta. No final, passadas quatro horas e meia... Tinham consentido, nesse ínterim, que a minha mulher entrasse para me cumprimentar, só, e retiraram-na de volta.

            Aí, esse cidadão que eu falei, o homem do DOPS, como ele se chama?

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) -  Romeu Tuma.

            O SR. ALMINO AFFONSO - O Romeu Tuma disse: “Dr. Almino, eu vou lhe fazer uma pergunta”. Eu disse: “Pois não”. Perguntou: “O senhor acredita em Deus?”. Eu disse: “Acredito, acredito em Deus”. Ele disse: “O senhor é católico?” Eu disse: “Olha, a bem da verdade, eu já não sei, a minha formação religiosa é católica, meus pais eram católicos, minha mãe, meu pai, eu me formei com uma visão católica. Mas hoje eu tenho uma visão mais ampla, do ponto de vista religioso, de forma que eu não me sinto com direito de dizer que sou católico.”

            Foi um exagero de verdade comigo, mas eu quis dizer, com isso, que tenho uma visão, chamemos, ecumênica, uma visão em que o espiritismo entra etc., uma visão mais abrangente do que só católica, embora os valores católicos pesem muito em mim.

            Aí, ele disse: “O senhor reza?” Não, primeiro ele perguntou se eu acreditava em Deus, depois, se eu era católico... Aí, eu não sei que loucura deu em mim que eu virei e disse: “E o senhor, também acredita em Deus?”. Ele disse: “Sim, senhor, como não?”. E perguntei: “Também é católico?”. Ele respondeu: “Sim, senhor.” E perguntei: “Vai à missa aos domingos?”. (Risos.) Vocês acreditam? Em que loucura que eu me meti.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) -   Ele irritou-se?

            O SR. ALMINO AFFONSO - Não, foi curioso. “Vai à missa aos domingos?” Não, eu perguntei se ele era praticante. É “praticante” que dizemos, né? Quando ele disse que era católico, eu perguntei: “É praticante?”. Ele disse: “Na verdade, mais ou menos.” Eu perguntei: “Vai à missa aos domingos?” E ele respondeu: “Nem sempre. Mas eu rezo pelos nossos mortos.”

            Que resposta mais complicada, hein? Eu achei que era melhor eu mudar de conversa e não continuar perguntando as coisas, porque achei muito sinistra a resposta.

            Fiquei mais aquele tempo que eles acharam. Depois me liberaram, fui para a minha casa. Aliás, estávamos uns quarenta, cinqüenta amigos, inclusive, mais uma vez, o Dr. Fernando Henrique, o Dr. Weffort, todo o grupo do poder de hoje, estavam lá na minha casa, naquela noite.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) -   O senhor sofreu mais constrangimento?

            O SR. ALMINO AFFONSO - Sofri, sofri. A minha casa foi duas ou três vezes não digo invadida, mas ocupada. Revistavam tudo, gaveta por gaveta. Acho que era uma coisa mais de amedrontar do que outra coisa. Até que houve aquela história do marechal não sei das quantas, que andou ameaçando o Governo do Geisel, como se chamava?

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) -  Frota.

            O SR. ALMINO AFFONSO - Sylvio Frota.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Era General, Ministro do Exército.

            O SR. ALMINO AFFONSO - General, não é? Bom, mas lembrem-se de que houve um período em que se disse que aquilo andou próximo de um rebojo.

            Naquele período, eu fui convocado para ir à Polícia Federal. Levei quase uma manhã inteira de pergunta e resposta, pergunta e reposta, e eu não entendia por quê. Depois é que eu percebi que aquilo foi num contexto de algo que estava em marcha. Quer dizer, se o Sylvio Frota tivesse vencido, eu tinha entrado pelo cano, provavelmente - mais uma vez, não é? Mas, por sorte, o Geisel teve peito e conseguiu impedir que isso fosse adiante.

            Então, me diziam: “O senhor está convidado a vir aqui na próxima semana”. Eu dizia: “Vamos estabelecer as regras. Convidado eu não venho. Não tenho nenhum prazer de vir à Polícia Federal, nenhum, nenhum prazer. Se o senhor me intimar, eu sou obrigado, sou obrigado. O senhor me intima, que eu venho. Agora, eu, convidado, fique certo de que eu não venho”. Não me intimaram e, convidado, considerei que não tinha sentido. O Sylvio não levou adiante a loucura dele, eu fiquei em paz. Aí me deixaram em paz.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O senhor não tem dúvida de que os americanos inspiraram o golpe no Brasil...

O SR. ALMINO AFFONSO - Nenhuma! Nenhuma! Nenhuma! Nenhuma! Os americanos tiveram, naquele episódio, uma relação muito estreita, porque entrava aí o tal jogo da política internacional da época. Guerra fria para valer, não é verdade? De repente, um Governo com pretensões nacionalistas claramente demonstradas, a ponto de confrontar-se com coisas, como conversamos aqui, com os americanos, como a hipótese de haver alternativa de mercado internacional etc., poderia criar nisso um precedente na América Latina - a política externa independente, a que fiz uma referência ainda há pouco e que vou ampliar, porque ela talvez tenha tido mais significação ainda, além do problema do reatamento das relações diplomáticas com a União Soviética e Cuba; a posição de Cuba, que naquela época era chamada “o grande espantalho na América Latina”; o risco de ela estar promovendo, através daquela organização latino-americana, OLAS, a distribuição de centelhas da guerrilha pela América Latina etc. Notícias ou informações, falsas ou não, de compatriotas nossos que estavam indo para Cuba treinar guerrilha etc., tudo isso já naquela época. Não estou falando depois do golpe. Naquela época já se falava, também poderia citar nomes de pessoas que teriam estado lá, treinando guerrilhas etc. Os militares sabiam de tudo isso melhor do que nós, e os americanos ainda melhor do que nós.

Então, como permitir que se desenvolvesse aqui um Governo de certa maneira antagônico? Porque, embora não houvesse nenhuma declaração do Governo contrária aos americanos, havia uma prática política que não era do agrado americano. Pode-se imaginar um Líder do Governo - e fui Líder do Governo - com as minhas posições naquela época? Como os americanos poderiam dizer o que significava o não-comprometimento do Presidente João Goulart, se havia um moço, que era Líder do Governo no Parlamento – não é verdade? – que tinha posições as mais ostensivas em favor de Cuba, de admiração ao Fidel? Ou então aquele episódio do San Tiago Dantas, em Punta del Leste, quando defendeu a tese de que a OEA não poderia expulsar Cuba? E foi uma vitória extraordinária da diplomacia brasileira feita pelo San Tiago.

Como se podia dizer, vender a idéia para os americanos de que tudo isso não tinha algo além? Não devia ser muito lógico para eles que um fazendeiro, de repente, pudesse estar aceitando... Mas, sei lá, o fato é que eles claramente contribuíram para a derrubada.

            Digo, até pelo outro lado de raciocínio, que não contribuíram para o Governo de João Goulart com nada! Nada! Aquele plano que eles tinham de ajuda, a Aliança para o Progresso? Este é outro exemplo. Fui representando o Brasil na Conferência da OEA, na Venezuela. Não, nem foi. Foi uma Conferência de todos os Ministros do Trabalho da América, incluindo o dos americanos. E lá, o que eu desanquei os americanos em relação ao problema da Aliança para o Progresso, à falsidade daquilo tudo etc! Pode-se imaginar a raiva que aquilo causava.

            Aí, vem 2 Estados que faziam parte; por coincidência, da UDN. Um deles, por desgraça, era o Rio Grande do Norte, do meu amigo Aluízio Alves, o outro era o do Lacerda, a Guanabara. Ambos eram apoiados pela Aliança para o Progresso. Mas cadê que os outros Estados ou o próprio Governo brasileiro tinha algum apoio da Aliança para o Progresso? Nada. Ou seja, tanto pelo que eles não davam e pelo que iam fechando o terreno, é evidente que eles se prepararam.

Concluo com uma coisa que me parece — se aos senhores não ocorreu — taxativa.

Às vésperas do golpe, Magalhães Pinto constituiu um governo de projeção nacional. Ele montou um secretariado que era um ministério. Lembra disso? Ministério! As figuras eram de porte ministerial! Afonso Arinos foi ser — entre aspas — “Ministro das Relações Exteriores” de Minas. Por quê? Porque ele já estava na iminência da declaração do golpe. E precisavam estar preparados, num nível político alto, para fazer aquilo que se chama estado de beligerância. Eles queriam declarar estado de beligerância em relação ao Governo Federal. Ao se declararem em estado de beligerância, dizem as leis do Direito Internacional que um outro país pode optar para dar apoio a um ou a outro. Ou seja, os americanos estavam se preparando para dar apoio a Minas, declarada em estado de beligerância com o Governo Federal. Portanto, estava na iminência da história. Aquilo foi tudo montado, quando veio o famoso navio deles...como chama?

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Operação Brother Sam.

O SR. ALMINO AFFONSO - ...da famosa Ação Brother, que ficou aí dando voltas nas nossas águas para uma eventual necessidade, para uma eventualidade. Não tenho nenhuma dúvida de que os americanos prepararam-se para isso. Nenhuma!

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Gostaria que o senhor, para finalizar, falasse sobre sua reinserção no processo político. Era um processo político completamente diferente daquele que o senhor deixou. Por exemplo, o senhor era um homem ligado ao poder e estava voltando, ainda na vigência do regime militar. Estava voltando ao processo político na vigência do regime militar. O que lhe orientou? Para onde o senhor se encaminhou? Que pessoas... Gostaria que o senhor falasse sobre isso.

O SR. ALMINO AFFONSO - Quando eu regressei, nós estávamos ainda no regime da dualidade. Eram o MDB e a ARENA. Não havia dúvida. Nenhuma dúvida. Entrei para o MDB e em seguida para o PMDB, por decorrência.

Fui recebido no MDB, como no PMDB, já sob a Liderança de Ulysses Guimarães, com total, vamos dizer, apoio e, mais do que boa vontade, apreço. O meu ato de entrada no partido, inclusive, foi feito na Câmara. Eu não era Parlamentar, mas foi feito na Câmara, num daqueles salões, no Salão Negro – para mostrar o grau de atenção que Ulysses deu à minha entrada. Recordo-me até de quem me saudou quando eu cheguei: nada menos do que o Senador Brossard. Enfim, fui muito bem recebido no partido.

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) -  Isso antes da anistia (ininteligível) ou posteriormente? Antes de 79?

O SR. ALMINO AFFONSO - Já deve ser depois da anistia, porque eu não poderia, não tendo sido anistiado, participar formalmente de nenhuma militância política, embora isso já estivesse afrouxando. Por exemplo, eu passei a escrever na Folha de S.Paulo. Eu escrevia semanalmente na Folha de S.Paulo, na página 3, sobre razões políticas, as mais diretas. E no primeiro momento protestaram, reclamaram do Frias etc. Mas foi mantido! Foi mantido... Foi mantido... Ou seja, o processo realmente estava esgarçando-se. Mas, de toda maneira, essa data, por exemplo, de entrada oficialmente no partido deve ter sido depois da anistia, porque senão... Não consigo imaginar como, politicamente, me deixariam... Deve ter sido. Confessei aos senhores que não sou bom para datas. Mas esse é um fato inegável. Deve ter sido.

Houve em seguida o surgimento do PT. Tínhamos dentro do PMDB a chamada Tendência Popular. Tendência Popular era um grupo à esquerda dentro do PMDB, do qual eu era o Coordenador Nacional. Para quê? Para que, exatamente na hora de acabar o partido — parecia evidente que isso terminaria sendo ultimado pelo Governo —, nós tivéssemos uma alternativa. Que alternativa? Não existe um partido de esquerda democrático, mas precisamos ter.

            Cumpri algumas tarefas que reputo importantes. Uma delas foi organizar a Tendência Popular. Participei ativamente da organização da Tendência Popular em nível nacional. Depois fui à Europa para reaproximar Brizola de Arraes, porque os 2 estavam com relações rompidas. O Arraes estava morando na Argélia, mas ia muito a Paris; e o Brizola, em Lisboa. Fui recebido em Lisboa pelo Brizola com vela de sebo. Como é que se diz?

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos)  - Vela de libra.

            O SR. ALMINO AFFONSO - Com vela de libra! Com a maior atenção, a maior cortesia etc. E fui primeiro a Paris armar o encontro, que foi difícil, porque o Arraes não queria por nada. Até que, finalmente, conseguimos provocar o encontro dos 2. Era para ir armando a idéia de um partido único, que resultasse da extinção do MDB. Então vamos nos dissociar em vários. E a coisa foi avançando. Mas, ao regressar, Brizola promoveu em Lisboa o famoso encontro do PTB para rearticular o partido, o que já era uma dificuldade para montar um partido único, como parecia mais sensato naquele momento. Aí o Golbery, aqui, teve uma agilidade maior e entregou o PTB para a Ivete Vargas. A Ivete ficou com o PTB e o Brizola assumiu o PDT. Daí nasceu o PDT do Brizola. E nós, o que fizemos? Continuamos trabalhando e imaginando de toda maneira aquela idéia de um partido de esquerda popular, quero dizer, democrático.

            Eu tinha muito contato com Lula, que até então não tinha partido nenhum. Era a grande liderança sindical em ascensão. Mais de uma vez encontrei-me com ele em congressos de trabalhadores etc. Quando nós começamos — vejam como são as coisas; tantas vezes repeti aqui, e pode parecer até criação minha —, faziam parte dessa tarefa que estou querendo relatar, além de mim mesmo, Fernando Henrique, Weffort, José Álvaro Moisés, Chico de Oliveira e várias dessas figuras que são figuras de proa, como José Serra. São figuras de proa do grupo do PSDB de São Paulo. Menos o Chico de Oliveira, que tenho a impressão de que está distanciado, se a memória não me falha. E a idéia era formar esse grupo. Então convidamos Lula. O Lula se entusiasmou. Então, fizemos uma reunião aqui em São Paulo, chamada Encontro de São Bernardo. Para o Encontro de São Bernardo trouxemos todos os Parlamentares da Tendência Popular. Eram 34 Parlamentares da Tendência Popular e 3 Senadores. Os Senadores eram: Marcos Freire; aquele de Minas... De Minas não, de Goiás. Santilli Sobrinho....

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Ademar... Santilli Sobrinho.

            O SR. ALMINO AFFONSO - Ademar é o Deputado. Santilli Sobrinho. Não é Santilli Sobrinho. Não é!

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - O Santilli Sobrinho é Deputado por São Paulo. É Henrique Santilo.

            O SR. ALMINO AFFONSO – Henrique Santillo! É Henrique Santillo.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Foi Ministro da Saúde.

            O SR. ALMINO AFFONSO - Foi Ministro da Saúde. Henrique Santillo, que era Senador, e um terceiro Senador, que está me faltando o nome. Três Senadores e 34 Deputados. Era uma bancada! – Não  é? – Trouxemos as principais lideranças sindicais do País; ligadas a essa idéia, é claro. Lideranças estudantis, intelectuais. E fizemos um belíssimo encontro em São Bernardo, com a idéia de irmos criando as condições para esse partido alternativo. De repente, surge numa cidade do interior, não me lembro qual, lançada, creio, por aquele Benedito... Benedito... Ai, meu Deus! Foi Presidente do sindicato do ABC, de Santo André. Surge o PT, Partido dos Trabalhadores.

E, rapidamente, aqui em São Paulo... Foi uma opção quase a toque de caixa: ou vamos para esse partido nascente, o PT, ou ficamos esperando o surgimento desses partidos alternativos. Eu continuei defendendo que devíamos esperar o surgimento do partido alternativo para ter maior amplitude do que já irmos para um partido que nascia claramente minoritário; portanto, sem condições de fazer, ainda, o jogo que nós teríamos de fazer até a abertura democrática de verdade, final. E fiquei. Então eu continuei no PMDB, e o PT foi se estruturando. Lula foi para lá, afastou-se de nós, e também Brizola, Weffort, todo esse grupo, o que é natural.

Um dia eu ainda escrevo sobre o surgimento do PT, porque essa história... Por exemplo, pouca gente sabe o quanto... O Olívio Dutra, por exemplo, que hoje é uma figura importante no PT... Eu e o Lula fomos à casa dele, no Rio Grande, convidá-lo para participar desse movimento. Eu e o Lula. Portanto, havia uma coisa muito engatada. Eles me respeitam e me tratam até com carinho. Mas a história é essa.

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - E o Fernando Henrique participava também?

O SR. ALMINO AFFONSO - O Fernando Henrique participava desse movimento todo. É por isso que me magoa muito quando eu vejo o Fernando atuar no plano nacional hoje de forma tão contrária a tudo que ele era no exílio, na juventude dele e no retorno. Porque, no retorno, nós continuamos tendo reuniões em comum, discutindo alternativa partidária, discutindo os compromissos que teríamos. Quando ele foi candidato pela primeira vez ao Senado, como suplente... Não é como suplente... Na sublegenda. Naquela época havia sublegenda. Foram Montoro e mais 2 sublegendas: o Fernando e um outro. Quem era o outro?

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O Fernando Henrique já assumiu a senatória  porque Montoro elegeu-se Governador de São Paulo.

O SR. ALMINO AFFONSO - Sim, isso foi quando assumiu. Estou falando quando se elegeu. Fernando elegeu-se ...

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Em 1986.

O SR. ALMINO AFFONSO - Fernando elegeu-se Senador... Elegeu-se suplente, digo melhor... Elegeu-se primeiro suplente do Senado, quando Montoro se elegeu Governador. Mas o Montoro continuou Governador e ele assumiu o Senado. [Fernando Henrique foi o segundo candidato paulista mais votado nas eleições de 1978 para o Senado. Em função do mecanismo da sublegenda garantiu com essa votação a condição de suplente de Franco Montoro, então eleito Senador por São Paulo. Fernando Henrique assumiu a cadeira de Senador quando Franco Montoro foi empossado Governador de São Paulo, em 1983. Em 1986 Fernando Henrique foi eleito Senador.] Então é isso. O Fernando, então, fazia parte disso tudo, desse grupo. Quando eu vejo isso tudo, digo: puxa vida, o que há de novo? O que mudou? Como dizem: mudaram eles ou mudei eu. Não existe uma frase assim?

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Mudou o Natal ou mudei eu?

O SR. ALMINO AFFONSO - Essa é do Machado de Assis. Mudou o Natal ou mudei eu? Acho que fui eu, não é? É isso.

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Como o senhor vê o País, com essa história da qual participou de maneira tão intensa, tão apaixonada e, às vezes, não tão correspondida, pelo que vimos, pelo que o senhor nos contou? Como o senhor vê este País, que o senhor já deu provas de que ama tanto? Como o senhor vê essa perspectiva do Brasil dentro desse contexto novo, nesse milênio novo, nessas condições novas que estão surgindo?

O SR. ALMINO AFFONSO - Com amargura, porque, veja, nós entramos num rumo, a partir da chamada globalização, do qual não é fácil sair. Entende? É como um trem em alta velocidade. Você não freia subitamente. Ele descarrila. Um país que está tão articulado com os métodos que foram sendo impostos a partir dessa chamada globalização não corta isso brincando. Entende? As conseqüências podem ser muito graves, do ponto de vista econômico, sem meios de você, subitamente, contrapor.

O Presidente Fernando Henrique, nessa última viagem a Paris, num discurso que foi tão louvado, de certa maneira faz um mea-culpa, porque ele critica o modo como a globalização foi se impondo, em prejuízo dos países subdesenvolvidos, e passa a reclamar do que chama de globalização solidária. Mas isso ele poderia ter feito desde o começo. Se ele tivesse feito desde o começo, dificilmente um de nós poderia ser tão cretino e dizer que é contra a globalização, quando ela é um fato que resulta de uma evolução tecnológica e de um conjunto de problemas que não está na nossa mão conter ou mudar, senão contrapor, limitar e fazer a autodefesa, como os países fazem. E nós deixamos de fazer. Portanto, a idéia da globalização solidária que ele defende hoje, meu Deus do céu, podia ter defendido desde o primeiro momento, com outro tipo de visão. Mas ele fez o oposto: fez a entrega do País. Ele fez a entrega do País! Vejo isso com amargura, porque tirar isto desses trilhos vai demandar, primeiro, uma figura forte no Governo, uma figura de lucidez, uma figura de estadista, uma figura de força, de compromisso nacional, de compromisso popular, para poder enfrentar as resistências com altaneria. Não é fácil! E não é fácil sobretudo porque os partidos estão incrivelmente fracionados. O que é a chamada Esquerda em nosso País? Os partidos estão todos divididos na esquerda. Não estão? Não é verdade? É o PT para um lado, com uma candidatura já praticamente assentada; é o PDT com o Brizola, embora diminuto como partido; é o Partido Socialista, que é uma célula, e assim mesmo lança uma figura que nunca vi nada nele de comprometido com as transformações sociais, numa visão mais profunda, que é o Garotinho. O próprio Ciro, apesar das críticas que todos nós fazemos dele, poderia ter sido objeto de diálogo, de conversa, de entendimento, de superação de distâncias, até podermos ter uma chapa unificada das forças populares. Se nós somarmos as potencialidades eleitorais de todos esses partidos a que estou me referindo, teremos maioria. Mas divididos não temos. E o que é pior: se, por bênçãos do alto, vencermos, como governar sem uma coalizão importante para ter forças e poder realmente impor-se perante as forças contrárias? Enfim, o quadro é difícil.

Mas esse quadro é difícil também nos partidos menos definidos. Por exemplo, o PMDB. O PMDB é um partido de âmbito nacional. Continua sendo. O velho Ulysses dizia: “O que me agrada no PMDB é que se pode, no País inteirinho, até numa cancela de fazenda, ter o nome do PMDB.” E é verdade. Ainda é uma força potencial importante. Mas está dividido. Há uma ala visivelmente acomodada ou dormindo em berço esplêndido, na forma tradicional, fazendo tudo quanto o Presidente da República quer. É o partido do amém. E há outro grupo que, até prova em contrário, é minoritário, mas que também não é capaz de se unir adequadamente.

Nós temos, por exemplo, a figura da dimensão política pessoal do Requião, pela qual tenho grande admiração; do Pedro Simon, que é outra extraordinária figura; do Paes de Andrade, que tem história mais do que respeitável no PMDB; do próprio Quércia, em São Paulo, que pode ter contra ele críticas e queixas, mas que tem, em torno do problema da política nacional, uma posição correta. Ele é absolutamente favorável a uma visão nacionalista do País. Ele é, nesse particular, um adversário forte do Fernando Henrique em São Paulo. Mas está marginalizado, de certa maneira, no plano nacional. E o Itamar, que é uma figura com toda potencialidade de poder ter encarnado a proposta alternativa, mas que, sem quebra de respeito por ele... Tenho uma grande admiração por ele e torço para que ele possa ser um desaguadouro dessas águas afuniladas. Ele, de quando em quando, nos surpreende com gestos que dificultam a consolidação das coisas. Ele improvisa no sentido real do termo, sem prévia audiência dos demais companheiros mais importantes, o que torna a consolidação da hipótese da candidatura dele mais difícil. De toda maneira, é ainda a figura alternativa. Mas como fazer com que ela realmente tenha uma perspectiva maior, se eu vejo um outro grupo que, terminada a eleição, nem tem como ser expulso do partido? Terminada a convenção, não se pode mais nem expulsá-lo do partido. É fato consumado. E, como fato consumado, pode fazer a campanha da candidatura oficial do Presidente.

Veja, então, que o PMDB poderia ser eventualmente um alinhavador do PT, do PDT, com uma força inexpugnável. Não conseguimos fazer isso. Eu chamo isso de burrice, de ausência de liderança, de falta de visão. É não ter horizonte. É não olhar para trás e não ver o que já nos aconteceu por não termos uma unidade maior. Estamos diante disso. Agora, dos males o menor, porque, afinal de contas, o partido do Governo também não está tão coeso. Pelo contrário, tropeça um no outro. Não é graça. Cada dia um dá um chute na canela do outro. Fica a mancha roxa por vários dias.

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - O senhor tem um projeto político?

O SR. ALMINO AFFONSO - Eu? O que é um projeto político? Isso tudo que estou fazendo aqui é um projeto político. Eu não teria nenhuma razão para estar fazendo esse recordatório todo aqui se não tivesse ainda compromissos fortes.

 (Ininteligível.)

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Mas essa conclusão para nós é extremamente interessante.

O SR. ALMINO AFFONSO - Em primeiro lugar, sinto-me um homem comprometido politicamente com tudo isso que acabei de dizer e com ânimo de que isso, de repente, possa permitir uma saída. Agora, quando você diz “próprio”, você quer dizer candidaturas pessoais. A candidatura é sempre muito condicionada. Há uma candidatura que eu não gostaria de ter — é meio desagradável dizer isso: a Câmara. Acho que a Câmara empobreceu muito. Ela trabalha de maneira que não abre espaço para o debate. Eu vivi lá 4 anos, recentemente. Você perde um tempo incrível, porque não tem como ir à tribuna — são 2 minutos, 3 minutos. Quando se tem a tribuna livre relativamente é no período do Grande Expediente. Como a palavra não influi, como a palavra não se impõe, não determina os resultados, ninguém vai ouvir ninguém. Se você passar pela Câmara no dia de Grande Expediente, verá que não tem viva alma no plenário. Não sei como há colegas que têm coragem de subir à tribuna e falar para o vazio. E ainda gesticulam.

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Mas agora tem a TV Câmara.

O SR. ALMINO AFFONSO - É verdade. Esta é a novidade em termos de acesso. Mas mesmo assim, pensem, para a TV Câmara publicitar, é preciso que você tenha falado lá. Se você não tiver acesso à tribuna... A TV Câmara pode me entrevistar. Muitas vezes tenho visto entrevistas significativas. Mas, quanto ao mecanismo da Câmara propriamente dito, é preciso que se tenha acesso a ele. Quer dizer, ou vai à tribuna e fala, ou... Como a TV Câmara pode traduzir? Não pode. Não é verdade? Mas, de toda maneira, é uma abertura. Enfim, eu não gostaria de voltar à Câmara. Não gostaria de voltar à Câmara. E praticamente essa seria a disputa mais viável para mim, do ponto de vista eleitoral. Adoraria ir ao Senado. Adoraria ir ao Senado. Você pode dizer: mas o Senado também tem tantos percalços e tantas coisas que nem sempre agradam, ou até desagradam muito. Mas o Senado tem, em termos de suas instituições, de sua composição e de suas regras do jogo, um espaço muito maior. Você pode falar com absoluta segurança de 15 em 15 dias, para fazer um belo discurso — pensado, elaborado, cuidado. Você pode ter uma participação nas Comissões Técnicas com muito mais força, com muito mais presença. Ou seja, você pode passar um tempo influindo realmente nas decisões do País, a partir da audiência. Mas a Câmara não tem hoje. O que a Câmara nos diz hoje no País? Não diz. O Senado seria, para lhe responder muito francamente, a minha aspiração, com as dificuldades que reconheço que são muito grandes, seja de ordem eleitoral, porque sei o quanto é preciso ter para se eleger, seja de ordem monetária.  O chamado l’argent é muito pesado.

Eu já fui candidato ao Senado 2 vezes. Você vê que não estou improvisando a minha mania. Uma delas quando cheguei do exílio, em 1982. Disputei com Severo Gomes. Tive 2 milhões de votos. O Severo teve 3. Foram 8 anos de mandato do Severo. Fiquei na primeira suplência. Não fiquei na primeira suplência à ilharga da candidatura do Severo. Não. Naquela época a candidatura era autônoma. Eu disputei autonomamente o Senado. E, porque fiquei em segundo lugar, fui o primeiro suplente. Tive 2 milhões de votos. Valia a pena ter havido 1 dia de mandato, 2 dias de mandato, 3 dias de símbolo. Severo não me deu 1 dia. É uma amargura que eu tenho. Ele, esteja onde estiver, que me ouça, porque não procedeu bem, não foi generoso, apesar de eu achar que ele foi um grande Senador. Acho que ele foi um grande Senador. Mas, na relação comigo, foi pobre. Foi pobre. Depois, disputei outra vez o Senado — da última vez, quando eu perdi —, com uma desvantagem de tempo de televisão, de dinheiro, de tudo. Ou da minha incapacidade, porque falamos sempre que os outros são os negativos para nós, não nós. Ou da minha própria incapacidade. O fato é que perdi. Não perdi a aspiração. Se houver condições em São Paulo, disputarei o Senado.

(Intervenção fora do microfone. Inaudível. Conversas paralelas)

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Beleza de depoimento.

O SR. ALMINO AFFONSO - Gaguejei muito. Não gaguejei muito?

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Não. Muito bom. A par dessa clareza, da clareza como o senhor expõe suas idéias, é um depoimento muito... com consistência emocional muito grande. O senhor fala de coisas que conhece, de que gosta e que viveu. Foi um depoimento bonito para todos nós também.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Muito humano.

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Teve o lado político e o lado humano também, muito forte.

O SR. ALMINO AFFONSO – Então, valeu! Será que podemos pedir uma cópia a vocês?

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Claro. Com certeza.

O SR. ALMINO AFFONSO - Não aquela que um dia vocês vão elaborar.

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - A fita bruta?

O SR. ALMINO AFFONSO - A fita bruta. Dá?

O SR. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Dá, claro.

O SR. ALMINO AFFONSO - Na Câmara, naqueles anos, começou a haver gravação. Não havia antes. Então, eu tinha o cuidado de, aos sábados, quando eu não viajava, ir lá para a cabine me ouvir. Eu fazia a seguinte análise... As pessoas me aplaudiam, diziam que eu era bom orador, e eu queria ver: “será que é?”. Eu ficava ali me ouvindo, vendo os tropeços, vez por outra uma concordância fora de lugar. Voltava de lá tão triste que vocês não avaliam. (Risos.)

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) – Não. Foi excelente.

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - A televisão é um pouco cruel. A televisão revela coisas que não vemos no espelho.

O SR. ALMINO AFFONSO - É verdade.

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - E às vezes um tropeço, uma coisa assim é que dá a...