Texto

DEPARTAMENTO DE TAQUIGRAFIA, REVISÃO E REDAÇÃO

 

NÚCLEO DE REDAÇÃO FINAL EM COMISSÕES

 

TEXTO COM REDAÇÃO FINAL

 

PROGRAMA MEMÓRIA POLÍTICA

EVENTO: Entrevista                   

N°: ESP004/00

DATA: 23/8/2007

INÍCIO:

TÉRMINO:

DURAÇÃO: 2h28min

TEMPO DE GRAVAÇÃO: 2h28min

PÁGINAS: 46

QUARTOS: 30

 

 

DEPOENTE/CONVIDADO - QUALIFICAÇÃO

 

CÉLIO BORJA - Ex-Ministro da Justiça e ex-Líder da ARENA na Câmara dos Deputados.

 

 

SUMÁRIO: Entrevista com o Sr. Célio Borja, exibida no Programa Memória Política, da TV Câmara, em 8/05/07.

 

ENTREVISTADORES: Ana Maria Lopes de Almeida, Ivan Santos e Tarcísio Holanda

 

 

OBSERVAÇÕES

 

Há palavra ininteligível.

Houve intervenção fora do microfone. Ininteligível.

 

 

Conferência de fidelidade do Conteúdo – NHIST


            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Qual é a sua origem social, Ministro Célio Borja? Como o senhor ingressou na política?

            O SR. CÉLIO BORJA - Bom, eu sou carioca. Eu nasci no Rio, filho de pai potiguar — meu pai era do Apodi, no Rio Grande do Norte — e de mãe carioca.

            A família de meu pai é uma família nordestina e sertaneja. Meu avô paterno era do Apodi, no sertão do Rio Grande do Norte, e sua família, uma família portuguesa muito antiga nessa região. Basta dizer que o último português que chegou e se incorporou a essa família foi meu quinto avô. Quer dizer, isso há 150 anos.

            Meu pai, se estivesse vivo, teria feito, em 1995, 100 anos. Nós festejamos devidamente o centenário dele, embora ele já tivesse morrido. É uma pena.

            Minha avó paterna era da Paraíba, do Catolé do Rocha, e o sobrenome de sua família é Carrinco — eu ainda tenho primos, tanto no Apodi como na Paraíba, em Natal, em Mossoró.

            A verdade é que essa família, embora seja tradicionalmente de proprietários e de comerciante, é modesta, como tudo é modesto no sertão.

            O que não é modesto no sertão é o caráter. Isso eu herdei do meu pai. Essa consciência de si próprio, essa despreocupação com o julgamento dos outros, uma certa introversão — isso é do sertanejo. E, sob esse ponto de vista, eu me considero um carioca sertanejo. Eu tenho alguns atributos, que podem ser politicamente negativos, como esse que eu acabei de mencionar, porque o político há de estar sempre prestando atenção no que os outros dizem, rebatendo as opiniões contrárias, adversas, malévolas — e eu nunca me dei conta disso nem me preocupei com isso. Esse traço sertanejo, esse traço muito brasileiro de quem vive no isolamento, isso continuou em mim. Eu herdei do meu pai e continua em mim.

            Meu pai, embora nascido no Rio Grande do Norte, no sertão, num lugarejo, foi mandado para estudar em Portugal. Estudou no Porto. E contava ele que, nas horas em que não tinha aula, ele lia desesperadamente. E foi também um momento político importante em Portugal: o da derrubada da monarquia e da instauração do regime republicano. De sorte que ele tinha um gosto muito apurado pela literatura portuguesa, sobretudo pelos poetas, e ao mesmo tempo uma visão muito pessoal — porque direta, haurida na fonte — da vida política portuguesa naquele instante. Tinha um sentimento republicano muito arraigado. E, é curioso, depois que morreu o meu avô e ele foi obrigado a cuidar de si próprio, ele, por assim dizer, não fez outra coisa senão cuidar dos seus negócios. Foi muito feliz. Veio para o Rio e em pouco tempo estava rico e pôde proporcionar a seus filhos e a seus netos uma vida muito confortável.

            Eu não conheci dificuldades. Eu costumo dizer, talvez exagerando, que eu sou filho de rico, porque essas dificuldades que vão ajudando a forjar o caráter, fazendo uma certa dureza no coração, eu não as conheci. Eu sempre vivi com 2 sentimentos: um, de confiança em que meus filhos não passariam necessidade; e o outro de que eu não devia abusar da bondade do meu pai — dos meus pais, porque da minha mãe também. Quer dizer, eu deveria fazer a minha vida independentemente deles. Se porventura eu não conseguisse, num mês ou noutro, cobrir as despesas, eu poderia recorrer a eles. Mas envergonhado.

            E foi assim a minha vida toda. Eu procurei me tornar independente deles, mas conservando, como todos os meus 5 irmãos, um imenso amor por eles.

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida)  - E a sua vida política, como começou?

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - E sua vida política, Dr. Célio Borja, como começou?

            O SR. CÉLIO BORJA - Ela começou cedo, porque eu, logo que concluí o Curso Clássico, como se chamava então o Segundo Grau, entrei para a Ação Católica. Eu estudei no Colégio São José e, depois, um pequeno pedaço no Colégio Santo Ignácio. E concluí o terceiro ano clássico no colégio La-Fayette.

            Desde então participava da Ação Católica, que não era um movimento político, mas era um movimento que chamava a atenção dos jovens para a responsabilidade social dos católicos. Quer dizer, o cristianismo não é um partido político, não é uma corrente ou um movimento político; o cristianismo é essencialmente religioso. Mas, exatamente porque existe uma consciência religiosa, o aspecto social da convivência humana não lhe é estranho. Então, é preciso que a gente assuma a responsabilidade de modificar o status quo, na medida em que ele é desfavorável a uma grande parte da população.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Naquele tempo, uma grande liderança laica do Rio era o Dr. Alceu.

            O SR. CÉLIO BORJA - Alceu Amoroso Lima. Ele era inconteste o líder do laicato católico no Brasil. Tinha uma imensa autoridade, uma extraordinária cultura. E, isso era curioso, porque era um homem que provinha de uma classe social muito elevada. Quer dizer, ele era um aristocrata, no sentido duplo da palavra. Ou melhor, a palavra em grego quer dizer isso: o poder dos melhores. Ele era o melhor ou um dos melhores. E também porque pertencia a uma classe social que sempre gozou de grande prestígio. Ele era filho de uma família de comerciantes ricos. E nisso eu até me pareço com ele. Só que a sua família juntava à riqueza material um certo gosto, uma certa intimidade, com as letras, com os livros, com as idéias etc. e era aparentada com os que tradicionalmente mandavam no Rio de Janeiro e, às vezes, no Brasil. Então, o Dr. Alceu era, de fato, esse líder.

            Mas não foi por aí que eu acabei na política. A Ação Católica levou-me a disputar uma eleição na UNE — e eu fui Vice-Presidente da UNE em 1948/49. Depois da UNE, eu estava praticamente me formando e queria começar a vida profissional porque queria me casar. E o fato é que, durante um longo período, até praticamente 1960, eu me abstive de qualquer atividade política e até mesmo dessa atividade de Ação Católica etc., porque tinha de começar a minha vida profissional, tinha que me afirmar nela, porque, como chefe de família, tinha que prover o sustento e não dava tempo para outras coisas.

            Foi quando eu, já me tendo graduado, já sendo bacharel em Direito, já sendo advogado, voltei à faculdade para fazer doutorado. Aí, turma pequena, de 3, 4 alunos, o mestre Aliomar Baleeiro, nosso professor de Economia e Finanças, foi quem começou a descobrir em mim uma vocação política, da qual eu não suspeitava. Eu sempre me considerei uma pessoa um pouco avessa, diria melhor, sem as qualidades cênicas e histriônicas necessárias para obter êxito na política. Sempre fui uma pessoa muito introvertida, mais contemplativa do que ativa, gostando mais do livro do que de outras coisas, e não me acreditava capaz de fazer uma carreira política. Mestre Baleeiro apostou nela e me forçou, praticamente, a candidatar-me a Deputado Estadual nas eleições de 1962, pela UDN, que sempre foi o meu partido. Eu entrei na UDN quando tinha 17 anos. Não podia nem entrar porque eu não era eleitor, mas já participava de reuniões do diretório estudantil  etc.

Como eu era um udenista “velho” — entre aspas —, o Baleeiro insistia muito para que aceitasse a indicação para a Assembléia Legislativa, pela então Guanabara. Eu disputei, não me elegi, fiquei de Primeiro Suplente, e, logo, Carlos Lacerda, Governador, chama um dos Deputados, Raymundo de Brito, grande médico, para Secretário de Saúde; abre-se a vaga, e eu entro e não saio mais, até o fim da Legislatura, porque no meio da Legislatura faleceu um Deputado... Faleceu, não. Um Deputado saiu e eu ocupei a vaga em caráter definitivo como titular.

No Governo Carlos Lacerda fui Secretário de Governo. Primeiro, fui Líder da UDN,  na Assembléia, e depois fui Secretário de Governo dele, logo depois do Movimento de 64.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Como foi a experiência do Carlos Lacerda no antigo Estado da Guanabara? O Carlos Lacerda era um orador genial, de grande talento, com inteligência rápida, inteligência fulgurante, mas nunca tinha tido uma experiência executiva. Poucos acreditavam que ele viesse a revelar tanta capacidade de organização, como veio a revelar. E, na verdade, o modelo administrativo de Carlos Lacerda no Rio de Janeiro acabou se disseminando pelo Brasil. A centralização do planejamento administrativo, que teve no Hélio Beltrão um dos seus formuladores principais, acabou sendo imitada em vários Estados. Como foi essa experiência? Houve também ao mesmo tempo um acirramento do conflito ideológico — e hoje poucos se lembram — que foi a causa principal da intervenção militar e do golpe que depôs o Sr. João Goulart em 1964. O senhor poderia falar das 2 coisas?

O SR. CÉLIO BORJA - O Carlos Lacerda, até tornar-se Governador do Rio, numa eleição extremamente disputada e muito difícil, que ele ganhou por uma estreita margem de votos, era apenas um jornalista genial. Todos reconheciam a sua coluna, A Tribuna da Imprensa, no Correio da Manhã, onde ele despontou como jornalista, fazendo um comentário — creio que diário — sobre os trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte de 1946. Carlos Lacerda ganhou aí, como titular dessa coluna, um renome que até então não tinha.

Revelou-se, sobretudo, um jornalista engajado. É uma coisa curiosa, porque do jornalista hoje a gente espera a isenção, não o engajamento. É fundamental para que o jornal tenha credibilidade que ele não seja, digamos...

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda)  - Comprometido.

O SR. CÉLIO BORJA - Exato. Engajado, comprometido ou com um partido, ou com uma igreja, ou com um clube, ou com uma corrente de pensamento, ou com uma filosofia. Ele passaria a ser órgão de uma igreja, de um partido, mas não seria um jornal no sentido amplo e verdadeiro da palavra. E o Carlos Lacerda, seguindo ainda uma tradição que vinha do Império, em que o jornal era engajado, jornal se criava para defender posição de “a” ou de “b”, do partido “c” ou “d”, seguindo essa velha tradição, foi o tempo todo um jornalista engajado; ele nunca foi um informador, ele era um formador de opinião pública.  E, com isso, conseguiu ter uma legião de seguidores no Rio de Janeiro e, acredito, até no Brasil, porque às vezes encontro pessoas da minha idade ou um pouco mais moças do que eu que me identificam pela ligação com Carlos Lacerda ainda.

Pois muito bem, o Carlos Lacerda que depois da Constituinte foi ele próprio Deputado, exerceu uma atividade política importante na UDN, foi líder da UDN na Câmara dos Deputados, candidata-se, quando da transferência da Capital, ao Governo no novo Estado, o Estado da Guanabara. Elege-se e aí era uma incógnita: um jornalista brilhante, um homem mestre no uso da palavra, será que administra esta coisa complicada que é a velha Capital da República, já sem os recursos da União, com um movimento econômico que era decadente desde 1956 e que tendia a zero? As estatísticas do movimento econômico da cidade do Rio de Janeiro indicavam que esse movimento tendia a zero. Quer dizer, ano a ano, ele se reduzia. E, portanto, se a economia não cresce ou decresce — pior —, a renda pública também tem que decrescer.

Acontece que esse jornalista extraordinário monta ambiciosíssimo plano de recuperação física da cidade do Rio de Janeiro, que vai desde o visual até as coisas básicas, quer dizer, de infra-estrutura, água, esgoto, saneamento de modo geral, pavimentação de ruas. O problema dramático da cidade do Rio de Janeiro na ocasião era a impossibilidade de se andar em qualquer veículo que fosse: bonde, que existia, ônibus, carro de passeio, nada andava. Levava-se um tempo infinito para se chegar à cidade, partindo-se de qualquer ponto periférico do Rio. Ir trabalhar era um drama, ir para a escola era um drama. Não havia água em grande parte da Zona Sul. Faltava água periodicamente na Zona Oeste. Os serviços de eletricidade haviam chegado a um ponto quase intolerável de má prestação. E assim com os serviços públicos de modo geral.  

O SR. ENTREVISTADOR - Havia racionamento de energia elétrica.

O SR. CÉLIO BORJA - Racionamento de energia elétrica, exatamente. De vez em quando, racionamento de água também, e ia por aí. E a cidade estava, digamos, com seu visual decadente. Era uma cidade lindíssima pela natureza, mas já começava a dar sinais de desgaste. Então ele tinha que fazer um grande governo e fazer uma grande obra, e uma grande obra física.

Além disso, a corrupção administrativa no Rio de Janeiro era algo estrutural, estava na alma da administração. Ninguém conseguia movimentar um papel sem pagar uma gorjeta. Isso começava nos serviços mais imprescindíveis, mais necessários, desde postos de saúde, serviços de água, serviços disso, serviços daquilo. Sempre tinha que ter uma gorjeta. E a administração tributária era um horror! Era dinheiro grosso. Não era o pequeno dinheirinho de bolso, não; era dinheiro grosso de verdade. Então, não bastava ele fazer uma grande obra de recuperação física do Rio. Era necessária uma obra de reformulação, de reorganização administrativa, o que tinha sentido, dado que se estava transformando uma Prefeitura num Estado da União.

O que surpreendeu foi a capacidade de Carlos Lacerda de mobilizar gente extremamente capaz para os postos de direção. E, de outro lado, conseguiu uma coisa em que ninguém acreditava: adotar o princípio de que só se entra no serviço público estadual por concurso, e levar esse princípio às suas últimas conseqüências. O que deu no seguinte: o Rio de Janeiro passou a ter a melhor Procuradoria de Estado, a melhor Procuradoria de Justiça, os melhores médicos a seu serviço.

O serviço de educação, por exemplo, é difícil, porque toda a educação, tanto a primária quanto a secundária, é ministrada por mulheres, por professoras de extraordinária dedicação, mas de vencimentos muito baixos, porque evidentemente se supunha que elas eram heroínas. Mães de família, tendo que atender os seus deveres domésticos, tinham ainda que trabalhar muito por pouca coisa. No entanto, o Governo conseguiu mobilizar a boa vontade do professorado e fez também uma revolução no ensino primário, no ensino de primeiras letras. O Rio, por incrível que pareça, ainda tinha uma alta taxa de analfabetismo, tanto infantil como de adultos. Por quê? Porque o Rio era naquele tempo — hoje é menos, mas sobretudo naquele tempo — o destino dos migrantes que vinham de toda parte do País, que vinham do interior, onde não havia educação formal de espécie alguma. Então, era necessário fazer reverter esse quadro, e isso foi feito.

Por exemplo, ele fez um modelo arquitetônico de escola muito criticado. Tratava-se de um prédio montado, pré-moldado, pré-fabricado e montado no lugar, o que permitia multiplicar o número de escolas numa velocidade fantástica, até então desconhecida. Os críticos diziam: “Sim, mas está fazendo o quê? Está montando uma casa que não dura 5 anos”. Elas duram, estão aí até hoje. O fato é que aquilo permitia multiplicar salas de aula. Ao mesmo tempo, era necessário motivar o professorado para  que se dedicasse efetivamente ao ensino, à sala de aula, tirar as professoras e os professores do serviço burocrático e colocá-los na sala de aula. Era necessário priorizar a sala de aula e gratificar quem nela permanecia. Enfim, isso foi feito.

Nos postos de saúde, a mesma coisa. Ambos são modelares. Do ponto de vista administrativo, portanto, Carlos Lacerda foi uma surpresa, uma enorme surpresa não só para os que votaram nele, mas sobretudo para os que o combatiam. E começaram a criar as maiores dificuldades para o seu Governo. A Oposição era impiedosa, era absolutamente impiedosa.

Eu fui Líder da UDN e do Governo Carlos Lacerda na Assembléia, antes de 1964, e pude acompanhar esse movimento. Era algo fantasticamente bem organizado e que conseguiu criar um clima de hostilidade ao Governo, que fazia pela cidade o que nunca ninguém fez — eu diria que nem mesmo Pereira Passos, porque a cidade no começo do século era uma, mas no meio do século já era outra cidade.

Nesse meio tempo, sobreveio o episódio Jânio Quadros. O Presidente renuncia...

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Para cuja renúncia o Sr. Carlos Lacerda teve participação decisiva, com a denúncia de um golpe. Lembra-se!?

O SR. CÉLIO BORJA ­- Lembro-me, lembro-me perfeitamente.

Eu dizia que, nesse meio tempo, veio o episódio Jânio Quadros, até hoje nunca esclarecido totalmente. Por que o Sr. Jânio Quadros renunciou? Porque o Sr. Carlos Lacerda se desentendeu com ele e foi à televisão dizer que ele planejava um golpe? O que ele poderia fazer? Poderia fazer um monte de coisas, poderia reagir de muitas formas a essa denúncia do Carlos Lacerda, mas o que fez? Ele renunciou a Presidência do País. Ele estava vivendo um momento solar da vida política dele: Presidente da República respeitadíssimo, dono do Brasil. Todo mundo tinha medo dele: funcionário público tinha medo dele, empresário tinha medo e eu acredito que até nações poderosas tivessem medo desse Presidente imprevisível e meio  esquisito, que, de um lado, era rigorosamente ortodoxo em matéria financeira e, de outro, fazia suas visitas a Cuba. Tinha um olho no padre e outro na missa, um olho naquilo que os Estados Unidos têm como absolutamente essencial...

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda)  - Conservador.

O SR. CÉLIO BORJA - ... que é a ortodoxia financeira... Do ponto de vista financeiro, era um  conservador. O Ministro da Fazenda dele era Clemente Mariani. O Dr. Clemente Mariani, nosso companheiro da UDN, era um homem ilustríssimo, um advogado extraordinário...

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda)  -  Banqueiro.

O SR. CÉLIO BORJA - ...banqueiro, e grande banqueiro! E não era um pequeno banqueiro, era um grande banqueiro, um homem com uma reputação de honradez e de decência pessoal extraordinária. Esse homem, portanto, era o fiador, vamos dizer assim, da ortodoxia econômico-financeira do Governo Jânio Quadros, que começou a sanear o Tesouro, as obrigações que a União Federal assumia, etc. E outra: ele era um Presidente que jogava politicamente. Ele era um jogador, sempre foi um jogador, um homem inteligente, com uma percepção rapidíssima, com uma visão dita realista da natureza humana. Conhecia as fraquezas dos políticos e dos homens de um modo geral. E o Sr. Jânio Quadros renuncia, quando estava no auge do poder, quando tinha a seus pés gregos e troianos! Era uma coisa inexplicável.

A explicação que sobreveio foi que essa renúncia era apenas para forçar uma volta ao poder, mas com todos os poderes. O poder que tinha até então não lhe bastava, queria mais. E queria mais poder para mudar a organização política do País.

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Um ditador, não é?

O SR. CÉLIO BORJA - É o que diziam. Amigos ou inimigos que tentaram interpretar essa renúncia sempre saíram pela presunção de que ele visava, efetivamente, a uma semiditadura ou a uma ditadura aberta, declarada. Isso é coisa para os historiadores decifrarem.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - E lembre-se de que ele fazia praça da sua admiração pelo líder dos jovens turcos no Egito, que era o Coronel Nasser.

O SR. CÉLIO BORJA - Sim. Do ponto de vista político, ele se dizia um nacionalista, mas não nos esqueçamos de uma coisa: era um nacionalista que tinha uma imensa admiração pela cultura ocidental e pelo jeito de ser do homem ocidental. A grande admiração do Presidente Jânio Quadros, parece-me, era a Inglaterra e os políticos ingleses.

Eu nunca o tinha encontrado pessoalmente. Presidente da Câmara, fui a uma conferência interparlamentar em Londres. Ali, um dia, jantando num restaurante com Deputados brasileiros, fui alertado por um deles da presença do ex-Presidente Jânio Quadros, já então deposto, numa mesa até longe daquela em que estávamos. E, claro, fui lá. Como o meu companheiro o conhecia bem, era amigo dele, e foi cumprimentá-lo, também eu fui. Ele foi gentil. Admirou-me o fato de que ele era um londrino, na roupa, nas atitudes, na gravata. Era um homem absolutamente na última moda. O desenho dele, a pintura do Jânio Quadros era a de um cidadão de Londres altamente colocado, um gentleman. Aquilo fazia um contraste tão grande com o Presidente de... Eu não diria de bermudas, tinha um outro nome a roupa que ele usava. Era uma...

            A SRA. ENTREVISTADORA - Slack.

            O SR. ENTREVISTADOR - Slack.

            O SR. CÉLIO BORJA  - Sim, era um slack. Aquilo fazia um contraste tão grande, de outro lado, com o candidato vestindo roupas amassadas, sujas...

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Comendo sanduíche de mortadela.

            O SR. CÉLIO BORJA - ... comendo sanduíche de mortadela e cheio de caspa — parece que a caspa era toda ela fingida, não é? —, fazia um contraste tão grande  com essa figura, que realmente a gente não sabia bem quem era o Presidente Jânio Quadros, embora fosse, no trato, extremamente amável e muito educado. Ele foi sempre muito gentil comigo. Em mais de uma eleição me mandou uma carta de apoio, para que eu a divulgasse. Ele sempre me distinguiu muito.

Contudo, esse episódio da renúncia dele provocou, eu penso, uma ruptura espantosa na trajetória política do País. O Presidente João Goulart, que sucedeu a Jânio Quadros, não parecia estar preparado para viver aquele momento, porque acabou dando causa a que o País se convulsionasse. Normalmente quem convulsiona um país é a oposição. O governo, pura e simplesmente, põe a oposição no lugar, chama-a à ordem, chama-a à razão e tenta conviver com ela em termos civilizados. Não foi o que aconteceu. O Presidente, também por razões que os historiadores um dia dirão com segurança, passou a ser ele próprio um agente de desestabilização. Ele denunciava a sua próxima desestabilização e concorria imediatamente para que ela acontecesse. Por quê? O Brasil estava habituado a conviver com os grupos de esquerda, com os partidos de esquerda.

Na verdade, em 1945, quando o Partido Comunista voltou à legalidade, o País respirou assustado, mas ao mesmo tempo aliviado, porque a tensão, que sempre existiu oculta, o medo de uma comunização do Brasil só foi aplacado, depois de 1935, pelas medidas fortes da ditadura getuliana. Getúlio Vargas foi um ditador, e não foi um ditador mole, eu diria; ele foi um ditador duro. Que o diga a Polícia, que perseguiu os adversários do seu regime, do regime que ele instaurara!

Mas o País estava habituado a conviver com as esquerdas. Mesmo depois de 1947, quando o registro do partido foi cassado pela Justiça Eleitoral. O País que pensa, o país que age, o país que produz estava habituado a lidar com o Partido Comunista, fazia alianças com ele. Um velho líder comunista dizia: “Fulano de tal, que é tido como um grande líder conservador, sempre fez as eleições dele no interior de São Paulo com o nosso apoio, sempre. Nós não dizíamos, é claro. Ele pagava o que tinha de pagar e tinha os nossos votos, nós o ajudávamos.” Por trás daquele imensa, doentia oposição às esquerdas, ao Partido Comunista e a não-sei-o-quê, havia também essa transação, essa capacidade de negociar, que nunca morreu. Ela sempre atuou e, evidentemente, reduzia a tensão, diminuía o medo, o pânico que algumas vezes se apossavam de certas categorias.

Enfim, o Presidente João Goulart — e, para mim, isso é uma coisa ainda um pouco misteriosa — em certa medida, foi o agente da desagregação desse quadro de transação. Não era muito visível, mas existia, estava lá no fundo, todo mundo sabia como eram feitos os acordos entre Esquerda e Direita, entre indústria, comércio e trabalhadores. Isso tudo sempre teve os seus modelos de conciliação, de composição, de negociação. De repente, nada disso funcionava mais. O que havia era um programa de reforma de bases, que o Presidente dizia que implantaria na marra. Esse clima foi-se acirrando de tal modo, que se tornou previsível que o desfecho desse processo seria traumático.

Eu era líder da UDN; e era, digamos, o amigo mais chegado do Presidente João Goulart na Assembléia do Rio o Deputado José Talarico, meu amigo até hoje. Eu propus ao Deputado Talarico que trabalhássemos para que houvesse uma conversa do Governador Carlos Lacerda com o Presidente João Goulart, a fim de evitar aquilo que já se estava desenhando no horizonte: ou uma intervenção militar, ou uma insurreição popular, que levaria Deus sabe aonde. O Deputado Talarico disse: “Vamos lá! Você fala com o Lacerda e eu falo com o Jango”. E assim fizemos.

O Carlos Lacerda ouviu, ficou de refletir. No dia seguinte, ou dois dias depois, eu cobrei uma resposta e ele disse que aceitaria, desde que fosse uma coisa absolutamente sigilosa, desde que houvesse a garantia do sigilo, o que interessava tanto ao Presidente João Goulart quanto a ele. O sigilo era fundamental.

De posse dessa resposta, cobrei do Deputado Talarico a parte dele. Ele me disse: “Olha, o Presidente não quis”. “Mas por que ele não quer? Será que ele não está vendo o que todos nós estamos vendo?” “Não, ele tem receio de perder a liderança do movimento, ser acoimado de traidor”, e essas coisas que compreendemos. Não se tratava de covardia, mas prudência.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Havia um sectarismo muito grande.

O SR. CÉLIO BORJA - Terrível, terrível! Eu próprio experimentei isso. Eu era professor do Instituto Rio Branco, do Ministério das Relações Exteriores, que funcionava aqui no Rio, no antigo Palácio do Itamaraty; e era Líder da UDN na Assembléia. Na última hora, fez-se uma campanha contra o fato de eu ser professor no Rio Branco. Eu pedi exoneração, pedi que se rompesse o meu contrato de trabalho, porque eu estava vendo que aquilo, no Governo do Presidente João Goulart — que era trabalhista, muito comprometido com as esquerdas, etc. —, poderia causar algum dano ao Instituto, que é uma instituição respeitabilíssima e que tinha um extraordinário diretor na ocasião. Ele se recusava a rescindir o meu contrato. Dizia-me: “De maneira nenhuma, e tal. Isso não tem nada a ver com política. Você é um professor, dá as suas aulas sem sectarismo nenhum”. Mas o fato é que eu me senti compelido a romper o contrato, porque eu estava vendo que aquilo iria causar algum dano ao diretor ou ao Instituto.

O sectarismo chegava a esse ponto, era uma espécie de perseguição pessoal, não poupava nada. Tínhamos medo pela família, pelos filhos, pela mulher, porque às vezes a casa era cercada por gente hostil. Assim como temos medo hoje do ladrão, do assaltante, tínhamos medo dessas pessoas enlouquecidas, ensandecidas pela paixão política, quase sempre pessoas muito modestas, que praticavam esses despautérios, como agredir uma criança ou uma mulher. Isso, antes e depois, causava uma certa apreensão.

Foi nesse clima, portanto, que se deu a intervenção militar. O que é diferente...hoje estamos vendo isso também. Estamos vendo que certos movimentos sociais perderam a perspectiva da história. Como em 1935, quando o Senador Luís Carlos Prestes imaginou que o golpe militar comunizaria o Brasil, parece que muita gente está imaginando que hoje, tomando de assalto repartições públicas ou terras particulares, isso vai mudar o Brasil, vai mudar o rumo das coisas. Vai provocar — Deus permita que não! — uma reação violenta, uma reação do Poder Público, que tem o dever de manter a ordem. Mas o que era diferente então era que o Presidente da República, por razões que eu não posso absolutamente pretender julgar, também concorria para isso. Ele concorria porque, pelo que se viu, temia perder a liderança de um grupo político extremamente importante, forte, etc.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Ministro Célio Borja, existem essas notícias, esses rumores, na Oposição brasileira — e algumas figuras eminentes da Oposição sancionam essa versão ou essa suspeita —, de que teriam sido assassinados o ex-Presidente Juscelino Kubitschek, o ex-Presidente João Goulart, o ex-Governador Carlos Lacerda e até o Presidente eleito e não empossado Tancredo Neves. Há versões que chegam a causar perplexidade na família de Tancredo Neves. Eu pergunto ao senhor se considera que possam ter algum tipo de procedência esses rumores.

O SR. CÉLIO BORJA - Não, até mesmo porque são passados tantos anos e essas mesmas pessoas que inventam essas coisas nunca trouxeram para a apreciação do grande público, e nem mesmo do pequeno público, os motivos ou as razões que as levam a acreditar nisso. Eu nunca ouvi uma pessoa responsável, não delirante, dizer: “Olha, eu acredito que o Presidente Juscelino foi assassinado por isso e aquilo”. O rumor corre, e isso parece que faz parte de um delírio ou de uma coisa extremamente maldosa.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Como o senhor analisa os cinco Presidentes militares e todo o ciclo militar? Os Presidentes foram o General Humberto de Alencar Castelo Branco, o General Arthur da Costa e Silva, o General Emílio Garrastazu Médici, o General Ernesto Geisel e o General João Baptista de Figueiredo.

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Desculpe-me, Tarcísio. Creio que, para que se possamos organizar um pouco melhor o argumento, deveríamos dividir a pergunta. Indaguemos primeiro sobre o General Castelo Branco, que inclusive rompeu com o Governador Carlos Lacerda. Como foi esse rompimento? Abordaríamos isso e, depois, vincularíamos a carreira política do General à ascensão desses outros generais.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) -  Sim, está correto.

O SR. CÉLIO BORJA - Se eu entendi direito...

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) -   Trata-se de uma análise desde o Governo Castelo Branco, começando pelo rompimento com o Carlos Lacerda.

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Sim, e o momento político que o senhor viveu, como o senhor se situava nesse quadro todo.

O SR. CÉLIO BORJA - Perfeitamente. E daí, prossegue a análise para os demais.

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - E sempre vinculando à sua trajetória.

 

(Intervenção – Pausa.)

 

Estamo-nos referindo ao Lacerda no poder.

O SR. CÉLIO BORJA - Isso é uma simplificação.

O SR. ENTREVISTADOR - É uma simplificação, é verdade.

O SR. CÉLIO BORJA - Há duas simplificações.

O SR. ENTREVISTADOR - Aquela discussão com o Muniz de Aragão mostrou isso.

O SR. CÉLIO BORJA - Convém esclarecermos.

Podemos continuar?

A SRA. ENTREVISTADORA - Sim.

 O SR. ENTREVISTADOR - Sim, podemos.

O SR. CÉLIO BORJA - Nessa história das relações do Presidente Castelo com o Governador Carlos Lacerda há muitas simplificações, que levam a formulações...

 

(Intervenção - Pausa.)

 

O SR. CÉLIO BORJA - Nas relações do Presidente Castello Branco com o Governador Carlos Lacerda, creio que é preciso esclarecer, em primeiro lugar, a posição do Governador Carlos Lacerda em face do movimento militar e, depois, o que aconteceu nas suas relações com o Presidente Castello Branco.

A primeira afirmação que faço é que o Governador Carlos Lacerda não desejava o movimento militar, do qual temia que desembocasse num governo autoritário, numa ditadura aberta.

Às vésperas da eclosão do movimento, eu estava passando o feriado da Semana Santa fora do Rio, vendo no noticiário da televisão o movimento que ocorria nos sindicatos, nas Forças Armadas e nas ruas. Encurtei o feriado e voltei. Cheguei aqui no sábado, deixei a família em casa e fui ao Palácio Guanabara. Não havia ninguém. Mandei ligar para o Governador, que me pediu que o aguardasse, que ele iria para lá. E começamos a conversar a respeito de tudo que estava ocorrendo.

            Eu me lembro muito bem que, em uma conversa a dois, sem testemunhas, ele dizia: “O Jango está provocando uma intervenção dos militares. Ele vai tornar isso, digamos, inevitável. E o pior é que ele sobra, sobro eu...”

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Com licença, Ministro, o senhor me perdoe, mas alguma coisa aconteceu nessa volta do diálogo que está alterando o som. Temos algum problema.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Desde o início?

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Não, só depois que nós tiramos o microfone e o recolocamos. Podemos continuar.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - A análise que o Lacerda fazia, então.

            O SR. CÉLIO BORJA - A partir daí?

            A SRA. ENTREVISTADORA - Sim.

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Do ponto em que o senhor recomeçou.

            O SR. CÉLIO BORJA - Sim, do ponto em que recomecei.

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) -  Sim, do ponto em que o senhor recomeçou. Vamos fazer tudo de novo.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Fazer tudo de novo?

            O SR. ENTREVISTADOR - Só a partir do início dessa resposta, quanto à participação do Carlos Lacerda no Golpe de 64.

            O SR. CÉLIO BORJA - Penso que são necessários dois esclarecimentos a respeito das relações do Presidente Castello Branco com o Governador Carlos Lacerda. A primeira é que este último, o Governador, não desejava o movimento militar. Ele até o temia. Recordo-me de que era um feriado da Semana Santa. Eu estava fora do Rio, vendo pelo noticiário da televisão a agitação que começava a crescer. Abreviei o feriadão e voltei para o Rio. Cheguei aqui no sábado, deixei a família em casa, fui para o Palácio Guanabara e liguei para o Governador, que me mandou aguardar lá, que ele estaria indo. O Palácio estava deserto, estava vazio. Era um sábado à tarde.

            Começamos a conversar sobre aquela movimentação toda e ele insistia, repetia como se fosse um mote: “Desgraçadamente o Jango está provocando os militares, que vão intervir. E eu temo que dessa intervenção resulte um governo militar autoritário ou ditatorial.”

            Eu tentava dissuadi-lo disso, dizendo que a tradição dos militares brasileiros, sobretudo na República, era intervenções curtas. Sempre que possível, eles, digamos, desarrumavam uma certa situação para que outra pudesse nascer, quase sempre liderada por um civil, e que não devíamos esperar o pior, embora reconhecesse a dificuldade da situação. O que eu queria era acalmá-lo, simplesmente dar a ele uma palavra que não concorresse para uma excessiva excitação, para uma ação precipitada. Eu entendia que o que convinha a ele era não se envolver e aguardar; e, no momento próprio, aí sim, agir. Eu dizia que naquele momento nada era claro, não se sabia de coisa nenhuma.

O que ficou nítido na minha consciência é que ele não desejava e temia a intervenção militar, tanto que antes concordara em conversar com o Governo João Goulart, exatamente para evitá-la.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - E ele estava tão certo, que ela se virou contra ele depois.

            O SR. CÉLIO BORJA – Aí, entra o segundo momento. O Governador Carlos Lacerda, como a UDN, nunca foram, digamos, os preferidos dos militares. A Oposição inventou que a UDN era uma vivandeira dos quartéis. Isso não é, absolutamente, verdade. Por quê? A UDN teve um candidato militar em 45, que era o Brigadeiro Eduardo Gomes, porque o Governo tinha o Ministro da Guerra como seu candidato. Não era um civil, que poderia enfrentar o Exército, representado pelo Ministro da Guerra, e que acabaria por ganhar a eleição.

A UDN era um partido de bacharéis, de democratas, de homens que queriam um governo civil, a ordem jurídica implantada no Brasil. E lutou a vida toda por isso.

Carlos Lacerda podia ser — e o foi em determinado momento — o preferido de um pequeno grupo de militares — mais da Aeronáutica, menos da Marinha e menos do Exército.

O grosso dos generais era ligado ao Governo. O Governo, de fato, tinha um bom diálogo com os generais. Tão bom que o Presidente confiava no que ele chamava de seu esquema militar, como dizia o General Assis Brasil, então Chefe da Casa Militar do Presidente João Goulart.

É uma balela essa história de que Carlos Lacerda era o candidato dos militares. Ele não era! Ele podia ser — e acredito que fosse — o candidato de um pequeno grupo de majores e coronéis, que depois viraram a linha dura que atrapalhava o Presidente Castello, que forçava soluções, eu diria, autoritárias ou ditatoriais, que queria cassar todo mundo que não lesse a cartilha deles.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Alguns defendiam até fuzilamento!

O SR. CÉLIO BORJA - Eram homens broncos, muitos deles; outros, mais refinados; mas todos eles muito exaltados. E foi exatamente, eu diria, uma espécie de intriga que envolvia o Carlos Lacerda nessas atitudes extremadas que levou o Presidente Castello e, certamente, mais do que o Presidente Castello, os generais em comando a querererem distância do Governador Carlos Lacerda. E o Governador sentiu isso, porque, embora realisticamente soubesse que não tinha a adesão do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, ele tinha um grupo de militares, homens, digamos, de boa formação moral, mas exaltados, que gostavam dele, que o tinham como líder. Queriam tê-lo como líder. Mas nem eram, digamos, o grosso das Forças Armadas, nem falavam pelas Forças Armadas, tampouco poderiam servir para alicerçar, para impulsionar um movimento político, uma candidatura a Presidente. Não era por aí.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Agora, sem dúvida, o Carlos Lacerda fazia o contraponto às esquerdas, no conflito ideológico, então acirrado, que havia no País.

O SR. CÉLIO BORJA - Sem a menor dúvida. O Carlos Lacerda e todos os que não eram de esquerda. Agora, o Carlos Lacerda com um brilho que nem todos que não eram de esquerda tinham. O Carlos Lacerda tinha o dom da palavra, o dom da persuasão, uma força de comunicação fantástica, como poucos políticos brasileiros tiveram. E isso, sim, era um capital político extraordinário, que alicerçava sua candidatura.

Ele não contava com esse tipo de apoio do empresariado nem de militares para ser Presidente. Ele contava era com apoio popular. Daí o fato de que, grande administrador, grande Governador, ainda encontrava tempo - porque não dormia - para as manifestações políticas.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Dr. Célio Borja, o Governador Carlos Lacerda, uma vez instaurado o regime militar, acabou marchando para um curso de colisão com seus principais líderes. E a UDN, na verdade, não se solidarizou com Carlos Lacerda.

O SR. CÉLIO BORJA - Não.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - As principais lideranças da UDN procuraram se conservar, com o diálogo, com os detentores do poder, então.

O SR. CÉLIO BORJA - O que aconteceu foi que a preocupação da candidatura a Presidente tomou conta do coração e da inteligência do Governador Carlos Lacerda. Isso era um coisa que ele passaria — como passou — a perseguir, acima de qualquer outra coisa.

O SR. ENTREVISTADOR - Já existia a candidatura do Juscelino Kubitschek também.

            O SR. CÉLIO BORJA - Exatamente. E havia uma espécie de acordo tácito, porque, existindo 2 candidaturas, o processo sucessório estava na rua. E o Governador Carlos Lacerda confiava muito nisso. Confiava. Nem ele retiraria a candidatura, nem o Presidente Juscelino. Enquanto os 2 estivessem no páreo, havia um processo eleitoral em curso, ainda que não reconhecido, não declarado pela Justiça Eleitoral, não sancionado pelas leis. Mas existia. Havia 2 candidatos. Existia, portanto, um processo de campanha para a Presidência da República.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Aí, houve a eleição nos 11 Estados, não é? Nos 11 Estados.

O SR. CÉLIO BORJA - Não, olha... Um momentinho.

(Intervenção fora do microfone. Ininteligível.)

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Mas é porque essa eleição nos 11 Estados...

O SR. CÉLIO BORJA - Não, não. Isso veio depois.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) -...teve um papel importante no bloco dos militares...

O SR. CÉLIO BORJA - Veio depois. Veio depois.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) -  ...porque acabou a candidatura de Juscelino e Carlos Lacerda.

O SR. CÉLIO BORJA - Veio depois. Veio depois.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - É.

O SR. CÉLIO BORJA - As pessoas também esquecem o que houve no meio tempo. O que houve no meio tempo foi que o Presidente Castello manifestou publicamente um grande apreço pela dupla Bulhões/Roberto Campos. Praticamente se dizia que quem governava o Brasil eram esses 2.

E o Roberto Campos, mais moço... O Dr. Bulhões já era um homem de idade e, sabidamente desambicioso, do ponto de vista político, não queria ser Ministro, não queria ser Deputado, nem Senador, nem Presidente. Ele era um economista, que serviu sempre ao País em posições de comando, mas em posições secundárias. Ele não queria ribalta. Já o Ministro Roberto Campos era um homem moço, vigoroso, muito afirmativo, um polêmico, culto, tendo, por isso tudo, uma admiração evidente do Presidente Castello Branco.

Quando o Governador Carlos Lacerda sentiu — e ele sentiu desde o começo, desde abril de 64 — que havia contra ele certa resistência da parte dos chefes militares, houve um episódio desagradável entre ele e o General Costa e Silva, então comandante do movimento revolucionário, comandante supremo do movimento revolucionário. Não havia, ainda, sequer sido designado candidato dos militares à Presidência o General Castello.

Tinha havido um incidente desagradável entre o Governador e o General Costa e Silva. E o Governador percebia claramente que havia uma vertente dos militares querendo uma verdadeira ditadura, querendo um governo revolucionário, um comando militar liderando uma revolução. E ele procurou se precaver contra isso, inventando a candidatura do Marechal Dutra, que foi um presidente militar de corte, de figurino civil, fiel ao livrinho, à Constituição. E àquela altura, já idoso, certamente desambicioso, mas muito vaidoso do conceito que ele adquiriu historicamente, que era o de ser um cumpridor fiel da Constituição. Esse era o traço que mais seduzia a todos nós, ao Governador Carlos Lacerda, na figura do Marechal Dutra como o Presidente do Brasil, depois de um movimento militar que poderia, a qualquer momento, descambar para um governo autoritário e ditadorial.

A candidatura Dutra não emplacou. E a candidatura Dutra trouxe um grande desgaste para o Governador Carlos Lacerda no meio militar, porque era uma forma, dizia-se, de evitar que os que efetivamente tinham liderança no meio militar assumissem o Governo do País; era para afastar os militares do centro do poder; era um golpe contra os militares — assim foi interpretado. E ele, que já não tinha, eu diria, grande intimidade com os que verdadeiramente mandavam nas Forças Armadas, perdeu o pouco apoio que se dizia que ele tinha.

Ele, realista, começou a verificar que a UDN, colhida entre 2 focos, tentava, digamos, colocar-se bem com o Presidente Castello. Até porque o Presidente Castello era o General Dutra redivivo.

O Presidente Castello também tinha essa vaidade, essa santa vaidade de querer ser o militar que foi fiel ao regime democrático, que restabeleceu, num momento confuso da história brasileira, a democracia. Isso era o que ele, General Castello, tinha no coração. Isso me parece absolutamente evidente. Quem viveu aquele momento sabe que ele era o garante da democracia no Brasil. Não era nem o Carlos Lacerda, nem o Presidente Juscelino, não era ninguém. Era ele! E, na medida em que ele se enfraquecia, a idéia do restabelecimento democrático começava a se enfraquecer também.

O Governador Carlos Lacerda, tendo percebido que perdia o apoio, não diria nem a simpatia, mas a neutralidade dos militares influentes, dos que tinham, de fato, o comando dos tanques e dos canhões... Esses já não admitiam a idéia de tê-lo como Presidente. Vendo, de outro lado, o Presidente Castello, cada vez mais, incensar o Ministro Roberto Campos por todo o estilo, porque fazia uma grande obra, uma bela administração, uma bela gestão no setor financeiro e econômico, começou, por estratégia, por pura tática, digo melhor, a atacar o Ministro Roberto Campos, provocando a solidariedade do Presidente Castello.

Isso foi se azedando de tal maneira... O Presidente, sentindo-se agredido cada vez que o Governador da Guanabara falava mal do seu Ministro, foi se solidarizando sempre com Roberto Campos, e isso acabou por afastar os 2. Criou‑se uma cunha também entre os militares. De sorte que o Presidente Castello saiu desgastado desse episódio, já que o Governador o atacava impiedosamente. A autoridade... Sabe-se que, para militar, a questão da autoridade é fundamental. Ele era um presidente militar e tinha de ouvir os desaforos de um governador civil. Isso, para nós, civis, não é nada. São ossos do ofício ouvir recriminações da oposição. É assim mesmo. Esperar o quê? É o jogo? É do jogo! Mas para eles, não.

E o Presidente Castello se enfraquecia à medida que não tinha uma reação violenta contra quem o atacava. E o atacava de uma posição de governo. Não era um jornalista apenas, não era um Deputado da tribuna da Câmara. Não, não era nada disso. Era um Governador de Estado, e um Governador que tinha um conceito muito alto entre a população. Era um líder de opinião.

Então, isso tendia a enfraquecer o Presidente Castello militarmente. E aí, penso eu, a escolha, no meu caso pessoal, tornou-se extremamente difícil. Eu, intimamente, considerava um erro os sucessivos ataques do Governador Carlos Lacerda ao Presidente Castello, porque para mim a coisa importante era o regime democrático. Tudo o mais era secundário. Pouco me importava se ganhasse a eleição o Presidente Juscelino, ou o Governador Carlos Lacerda, ou Ney Braga, ou sei lá quem. Claro, na ordem das prioridades, primeiro vinha a democracia, depois vinha a candidatura Carlos Lacerda. Mas, para mim, a coisa absolutamente fundamental era uma estratégia de recuperação democrática do País.

E eu achava, naquele momento, que com uma oposição dura que fazia ao Presidente Castello, o Governador Carlos Lacerda enfraquecia-o militarmente e abria a guarda para a linha dura, que imediatamente se manifestou e tomou como patrono o General Costa e Silva, Ministro do Exército.

Esse, penso eu, é um dos episódios mais mal explicados do movimento de 64, porque as explicações vão ao sabor dos interesses políticos. A verdade não interessa a ninguém. Vai interessar, daqui a algum tempo, aos historiadores, que vão ter muita dificuldade de desencavá-la, porque estará soterrada debaixo desses detritos das vaidades, das ambições e das ideologias. Esse é, a meu ver, o fato.

Foi assim, penso eu, que a candidatura Costa e Silva medrou, porque cavalgava a linha dura. Parecia fazer um acordo com ela, que atraía para o General Costa e Silva, que já era influente no meio militar, o apoio do segmento que inicialmente se dizia autor do movimento de 64, condutor de seu pensamento. Ele ganhava esse pessoal. Eram poucos, mas muito ativos, falavam muito. Os militares cerraram fileiras com ele, e o Presidente Castello, que queria fazer um sucessor civil, perdeu o controle do processo. Essa é a verdade.

O candidato do Presidente Castello, certamente, era o então Deputado Bilac Pinto. Quando viu que não podia sustentar, ele o fez embaixador em Paris e deu-lhe o exílio por menagem.

Esse processo se conclui melancolicamente com o Ato nº 2, lido na rádio e ouvido por mim e pelo Governador Carlos Lacerda — nós 2 sentados no gabinete dele. Ele me chamou. Eu estava dando aula na Faculdade de Direito do Catete.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O senhor me permite só uma observação?

O Governador Carlos Lacerda deu razão a muitos que achavam que ele queria a ditadura militar, porque ele combateu a eleição e a posse de Negrão de Lima e de Israel Pinheiro, em Minas. Negrão de Lima no antigo Estado da Guanabara, porque substituiu o General Lott, e Israel Pinheiro em Minas, com o apoio de Juscelino.

O senhor pode fazer alguma referência a esse fato?

            O SR. CÉLIO BORJA - Eu farei, mas ainda não é o momento.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Daí sai o Ato nº 2.

            O SR. CÉLIO BORJA - Isso é um episódio menor. Eu acho que estou na linha do episódio maior, que é esse que estou relatando.

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - O senhor dizia que estava dando aula...

            O SR. CÉLIO BORJA - Eu estava dando aula na Faculdade de Direito do Catete, quando recebi a notícia, por um bedel, de que o Governador me chamava para ir ao Palácio. Encerrei rapidamente — já estava no final —, fui para lá e o encontrei sozinho no gabinete. Ele me disse: “Eu o chamei porque quero que você, comigo, ouça o locutor, às tantas horas, anunciar o Ato nº 2, um ato institucional novo”. Eu disse: “Como é que o senhor sabe disso?” Ele disse: “É porque o General Costa e Silva me telefonou avisando que eles já haviam resolvido baixar um novo ato institucional e que eu ficasse atento à leitura, que seria feita pela tarde. Eu o chamei para que você, que é constitucionalista, me diga quais são as conseqüências verdadeiras das disposições desse ato”. Ficamos ali conversando. Em pouco tempo veio o locutor, leu-o, e era aquilo que todos nós sabemos hoje.

Aí, encerrou-se praticamente o Governo Carlos Lacerda. Então, nesse momento... – Ele já havia dito que queria renunciar ao Governo da Guanabara. Ele me havia dito isso 1 mês antes. Eu me opus violentamente, dizendo que ele não podia renunciar, tinha de levar aquele mandato até o fim, porque a renúncia dele poderia abrir as portas para a ditadura militar descarada. Ele tinha de se manter no posto, porque ele era, ainda, um símbolo de resistência às posições extremas daquele pequeno grupo de militares que queria, de fato, levar o País para a ditadura. Com esse argumento, ele havia desistido de renunciar. Em setembro, fins de agosto, ele estava decidido a renunciar. – Quando terminou a leitura, ele diz: “É, está claro! Está claro porque é o fim de tudo.” Eu digo: “É, realmente, ficou difícil, ficou difícil, porque ele recuperar um poder de cassar mandatos, de aposentar, é o recomeço do ciclo revolucionário”. Aí ele me diz: “Agora você concorda que eu não tenho mais o que fazer aqui. Eu posso ir embora.” Aí, eu disse: “eu não tenho mais nada a lhe dizer, porque de fato isso põe fim a qualquer esperança de governar, de administrar dentro da lei. Agora é o puro arbítrio.” Eu estava indignado também: “Aí o senhor faz o que quiser”. E disse: “Mas você fica no governo.” Eu disse: “Eu não fico, não. Eu vou embora”. Eu estava doido para ir embora. “Não, não. O Rafael vai assumir e eu queria que você ficasse com ele. São poucos meses, faltam poucos meses para terminar o mandato.” – Estávamos em outubro e o mandato terminava 5 de dezembro. – “Faltam poucos meses para terminar o mandato.” A eleição estava perdida. A eleição para Governador estava perdida. Ele, logo depois, escreve a carta, um ofício ao Presidente da Assembléia, dizendo que ele renunciava ao restante do mandato.

Rafael de Almeida Magalhães assume o Governo. Não, ele, na verdade, se licenciou. Ele se licenciou e o Rafael assumiu, com ares de Governador definitivo, por muito pouco tempo, mas ainda na ausência do titular. Mas o fato é que ele não voltou mais ao Governo. O Governo dele estava terminado, e eu, poucos dias depois, pedi ao Rafael para me liberar e ele, amavelmente, concordou, e terminou o Governo Carlos Lacerda, e terminou dessa maneira. Terminou, na verdade, com o Ato 2.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Agora o senhor podia fazer a apreciação, desde o General Castello Branco, dos Presidentes militares, dos cinco.

O SR. CÉLIO BORJA - Eu não tenho muito o que dizer a respeito deles, porque essa é uma história conhecida. O que ocorreu foi que, surpreendentemente, o Governo do Presidente Costa e Silva foi, até o momento em que ele adoece, uma tentativa de conduzir o País dentro da ordem constitucional. Com o fim do Governo Castello, o Congresso votou uma nova Constituição para o País, que consideravam, a meu ver, erradamente mais moderna do que a de 46, mais atualizada, e o Presidente se manteve rigorosamente dentro da Constituição. Tinha coisas que eu não gostava, acredito que muitos não gostavam, mas era a Constituição que tinha sido votada pelo Congresso. E ele se manteve dentro daquele figurino do Marechal Dutra, garantindo a Constituição, a ordem constitucional.

Isso foi num breve período. Ele teve a colaboração de um homem da qualidade de Hélio Beltrão, de Rondon Pacheco, um político hábil e sério. Como Vice-Presidente, o Dr. Pedro Aleixo, que era também um homem de vocação democrática universalmente reconhecida, um homem sério, de caráter. Portanto, não era um Governo de que se devia desconfiar, como querendo implantar um Governo abertamente ditatorial ou autoritário. Não. Ele queria viver dentro da Constituição.

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - O senhor foi para onde no final do Governo Castello?

O SR. CÉLIO BORJA - No Governo Castello eu me candidatei a Deputado Federal e perdi. Aconteceu que eu voltei a minha atividade profissional, e um dia cruzo na rua com Adauto Lúcio Cardoso e Hélio Beltrão, atravessando a Av. Presidente Vargas. O Adauto me segura rapidamente — vínhamos em sentidos opostos — pelo ombro e me diz: “Eu preciso falar com você.” Eu digo: “Sim, sim, mas estou com pressa”. E segui meu caminho. Cumprimentei os dois rapidamente. Ele não me falou nada. Eu, envolvido com minha atividade, minhas obrigações, não pensei mais naquilo. “...Amanhã ou depois eu falo com ele.”

            No dia seguinte, cedo, estou tomando banho, estou debaixo do chuveiro, telefona meu pai e fala com Helena, minha mulher, que tinha uma coisa importante para me dizer. Eu, enrolado na toalha, atendi e ele me disse: “Olha, eu ouvi ontem em A Voz do Brasil que um Célio Borja foi nomeado Diretor da Caixa Econômica. Célio Borja que eu conheço é só você. É capaz de ser você, hein? Não aceite. Você vai muito bem no escritório, na faculdade, com suas aulas, dentro da sua carreira docente etc. Não se meta nisso. Ultimamente, as pessoas, mesmo os homens mais sérios, acabam tendo aborrecimento. Os invejosos acusam de desonestidade. Se um dia você passasse por isso, morria. Não se meta nisso.”

Eu disse: “Ó, papai, não é comigo não, porque é um cargo tão disputado que ninguém dá à revelia. Ninguém é nomeado à revelia para ele. Não sou eu não. Pode ter certeza. O senhor ouviu mal. Deve ser outra pessoa. Deve ter um Célio Borja aí qualquer, que não sou eu.”

Era! Adauto me telefona pouco depois dizendo que eu deveria aceitar, que ele e o Hélio haviam tomado uma decisão de que era a forma de manter a UDN viva. Não podia... O fato é que eu, envolvido nisso... E que eu poderia continuar no escritório, porque a Caixa não ocupava muito, era só ir lá na parte da tarde assinar os contratos, ela era muito bem administrada pelo pessoal permanente, que realmente era muito bom.

Pois sim! Foi a minha desgraça. Eu passei 3 anos na direção da Caixa, ganhava uma miséria, tive que vender o carro para poder comer; o apartamento em que moro até hoje, quase 40 anos depois, estava em construção, eu tinha de pagar umas prestações muito pesadas. Aí, vendi 2 apartamentos que meu pai me havia dado para poder honrar esses compromissos da construção do prédio. Não podia tomar empréstimo na Caixa, porque, sendo diretor, na minha concepção das coisas seria um ato de improbidade. Foi um período terrível. A Caixa estava quebrada.

Felizmente, 3 anos depois, quando eu saí, eu podia dizer que a Caixa ia bem, que tinha posto dinheiro para dentro, estava com uma administração segura e podia honrar os seus compromissos. Quando eu entrei, ela não tinha dinheiro para pagar cheque, para terem uma idéia. Isso me envaideceu muito, porque, assim como eu havia sido Secretário de Planejamento e Orçamento de Carlos Lacerda num momento em que o Estado fazia muita obra e não tinha um tostão para gastar, eu dizia: “Olha, afinal, eu sou apenas um professor de Direito, um advogado. Não sou financista, não sou economista. Mas administrando direito as coisas acabam dando certo.”

O SR. ENTREVISTADOR - O senhor acabou varando o AI-5?

O SR. CÉLIO BORJA - Varei.

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - O senhor me permite? Eu só queria retornar um pouquinho. Temos um depoimento também gravado do Ministro Jarbas Passarinho, em que atribui, vamos dizer, a culpa do AI-2, a grande motivação do AI-2, — no depoimento dele: segundo ele, ele extraiu da convivência com o Presidente Castello Branco — à atividade política do ex-Governador Carlos Lacerda. Segundo ele o AI-2 foi editado exclusivamente para neutralizar a influência do Governador Carlos Lacerda no meio militar.

Segundo ele, o Governador Carlos Lacerda estava se reunindo...

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Eu já tinha falado isso.

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Falou. Quando veio aqui, – o esquema militar, em Brasília, não lhe era favorável – ele, aqui no Rio, procurou se articular com oficiais das Forças Armadas para, dentro das Forças Armadas, organizar um movimento de resistência a essa tendência que lhe era desfavorável.

O senhor tem algum...

O SR. CÉLIO BORJA - Eu não me sinto autorizado a desmentir o Ministro Jarbas Passarinho. Mas eu posso dar um testemunho que não é absolutamente concordante, discorda dessa visão em alguns pontos.

Primeiro é o seguinte, o Governador Carlos Lacerda não procurou militar algum. Ele foi procurado. Esse pequeno grupo de coronéis, de majores que gravitou em torno dele em certo momento do processo de 1964, já se havia, digamos, dispersado, pelo menos se ausentado do palácio. Quando, em determinado instante, isso já em 1965, na proximidade das eleições estaduais, esse grupo começou de novo a ser visto. Procurava o Rafael, um procurava a mim, outro procurava a não sei quem. As coisas eram, como sempre foram com eles, muito vagas, digamos, muito subjetivas, visões de Brasil, temores disso, temores daquilo. Eu sempre fui muito frio em relação a isso. Nunca alimentei esse tipo de conversa. Acho que o Governador Carlos Lacerda também não. Recebia porque foram pessoas que, em certo momento, estiveram próximas dele, como em 1954, no atentado na Tonelero, e ele considerava alguns até amigos pessoais. Mas era um grupo tão pequeno, e eu achava tão sem influência no meio militar. Eram idealistas, eram pessoas que queriam um Brasil da maneira deles etc, um pouco subjetivistas, boas pessoas, homens honrados, homens sérios, homens decentes, mas politicamente não me parecia que iam a lugar nenhum.

E não foi o Governador Carlos Lacerda que foi procurá-los. Nem o Governador Carlos Lacerda manteve qualquer entendimento com militar influente em comando, porque, para decidir qualquer coisa com relação a militares, a primeira pergunta que se faz é: ele está de pijama? Se está de pijama não vale nada. Se ele não tem comando, igualmente. Quer se sempre estar em contato, ter uma aliança com quem comanda, com quem põe os tanques na rua.

Por isso é que me parece muito pouco verossímil, muito pouco provável, para dizer de uma forma delicada, que tivesse sido atividade do Carlos Lacerda. Serviu de pretexto. Pretexto, sim. Agora, de razão não, porque nenhum desses jovens oficiais tinha comando de coisa nenhuma. Quem comandava alguma coisa comandava um batalhão. Com um batalhão não se faz revolução, não se ataca o Exército... O batalhão é esmagado! Está aí a Intentona Comunista de 1935 para contar história. Ou tem o Exército, ou tem quem comanda, ou então vai ser triturado. E foi o que aconteceu. Não precisou esforço nenhum, não saiu um tiro. Onde estavam os conspiradores? Não eram conspiradores coisa nenhuma. Eram idealistas. No dia seguinte, não tinha mais nenhum deles. Não aconteceu coisa nenhuma. Não me parece que fosse essa a versão importante.

A outra versão tem a ver com as eleições estaduais, para os Governos Estaduais. Acho que todos se lembram que a Constituição mandava que elas fossem diretas, seriam eleições diretas. E o Governo patrocinou a transformação dessas eleições em eleições indiretas. Contra isso, nós do Governo da Guanabara de então nos insurgimos.

O então Senador Filinto Müller escreveu um artigo, que a imprensa publicou, defendendo as eleições indiretas de Governador. E eu fiz um artigo respondendo, e objetando, a essa sugestão, entendendo que no sistema presidencial a eleição há de ser direta. Se querem fazer parlamentarismo, tudo bem, a eleição de quem governa pode ser indireta. Mas no sistema presidencial ela tem de ser direta.

Essa discussão, essa polêmica civilizada divulgada nos jornais não era suficiente para dizer que havia uma conspiração em marcha. Não havia conspiração coisa alguma. O que havia era uma decidida oposição à idéia de que o Governo Federal poderia manipular as eleições para fazer governadores aqueles que ele preferisse em cada Estado, como aconteceu.

O candidato ao Governo do Rio de Janeiro, o então Secretário de Educação Flecha Ribeiro, não contou com qualquer auxílio do Governo Federal. As forças políticas que gravitavam em torno do Presidente, sobretudo do Governo Federal, do Ministério, apoiaram o Embaixador Negrão de Lima, que foi vitorioso, e numa eleição direta para Governador. Imediatamente, o Governador Negrão de Lima, que era tido como homem das forças decaídas, amigo do Presidente Juscelino, compadre dele, etc, como se dizia, teve todo o apoio do Governo Federal que faltou ao Governador Carlos Lacerda.

Não tivemos, enquanto no Governo, auxílio financeiro do Governo Federal. Tivemos um bloqueio político. Não se conseguia nada, coisa alguma, sem embargo da minha admiração pelo Marechal Castelo Branco e por apostar nele as minhas fichas de que ele era o garante de um retorno à democracia. Mas o fato é que o Ato 2 veio porque havia uma situação que certamente desagradava aos que mandavam no País e era a forma que tinham, digamos, de prosseguir o que entendiam ser a limpeza de gente perigosa que poderia colocar o regime então estabelecido em risco. A idéia era restabelecer as cassações, era retirar do Congresso pessoas consideradas perigosas e que seriam capazes de criar enormes dificuldades ao Governo. A idéia era essa. Era simples. O que se queria era, de fato, poderes e assemelhavam o Governo de então à ditadura.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Agora, Ministro Célio Borja, houve uma insurreição militar. Eu me lembro, porque era repórter no Rio. Os tanques ficaram até em Campinho. E quem abafou a insurreição militar foi o General Costa e Silva. A partir dali, o Governo Castello Branco praticamente acabou, porque a candidatura do Costa e Silva tornou-se imperativa. O senhor se lembra disso.

            O SR. CÉLIO BORJA - Sim, eles dizem que houve uma insurreição militar. Quer dizer, houve movimentação em algum quartel.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Dos tanques.

            O SR. CÉLIO BORJA - Não, os tanques se movimentavam constantemente durante esse período. Havia uma provocação militar ao Governo de então, mas provocação que tinha seu patrono no General Costa e Silva, Ministro do Exército. Por conta de quê? Da desconfiança de que o Presidente Castello não o quisesse para seu sucessor. O que se queria, o que se dizia era: “O Presidente Castello quer um civil, mas nós temos no Ministro do Exército o nosso candidato.” É isso!, nada mais do que isso. Era apenas um episódio militar de uma campanha sucessória que tinha, de um lado, o Ministro do Exército e, do outro, um Deputado eminente, homem da mais alta categoria moral e intelectual, que era o Sr. Bilac Pinto.

            O Presidente Castello Branco, a partir desse episódio, a partir do Ato 2, realmente, era virtual prisioneiro do Marechal Costa e Silva.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Por que o senhor acha que o General Geisel promoveu o processo de liberalização? Ele que foi até seu eleitor declarado para Deputado Federal aqui no Rio de Janeiro?

            O SR. CÉLIO BORJA - Tinha que ser, eu era Líder do Governo na Câmara.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Pois é. Foi uma decisão do regime ou foi uma decisão isolada do General Geisel fazer a abertura democrática?

O SR. CÉLIO BORJA - A abertura? Isso eu não saberia responder com segurança.

O General Geisel me dizia assim — e ele disse isso, por exemplo, no dia seguinte à Revolução dos Cravos, em Portugal: ”Você está vendo? Seguraram, seguraram, seguraram, não promoveram a abertura política lá, e no que deu? Deu nisso aí. Você vê como a gente está certo querendo abrir? É imperioso abrir, porque senão explode. Porque, num governo de exceção, você agüenta algum tempo, mas não agüenta o tempo todo.” Essa era a tese dele. Agora, ele não queria uma abertura, digamos, a galope, ele queria uma abertura controlada.

Até a minha escolha para Líder tem uma explicação. Na época, os jornais diziam que ele me escolheria para Ministro da Justiça. Eu tinha com ele relações muito distantes e muito cerimoniosas. Eu praticamente não o conhecia. Estive com ele uma vez, quando era Diretor da Caixa, porque ele foi assinar um contrato de financiamento para os empregados da PETROBRAS — ele era Presidente da PETROBRAS. Foi muito gentil, mas demorou meia hora. Nunca o tinha visto antes. Depois, só fui vê-lo numa outra cerimônia ou coisa assim, mas também sem trocar palavra.

Ele, escolhido para ser sucessor do General Médici, do Presidente Médici, instala-se no Largo da Misericórdia e, através do Senador Ney Braga, convida-me para conversar com ele sobre fusão do Estado do Rio e da Guanabara. E me pede para que leve uma pequena memória, de poucas páginas, tratando do assunto, vantagens e desvantagens, porque era um assunto sobre o qual ele queria meditar antes de se empossar como Presidente. Eu vou, entrego a ele, converso sobre esse assunto etc., ele guarda o papel e diz que oportunamente voltaria a conversar comigo. Iria ler, refletir e depois conversaria.

Passaram-se semanas, não havia reação da parte dele, imaginei que isso era uma coisa para as calendas, quando fui surpreendido com um telefonema de lá pedindo que eu fosse encontrá-lo. Isso já às vésperas de ele tomar posse, já começando a organizar o Governo. E os jornais dizendo que eu seria Ministro da Justiça. Muito bem, vou e ele me dá uma explicação. Disse: “Eu nunca cogitei você para Ministro da Justiça. Eu vou lhe fazer um convite, que é para a Liderança do Governo na Câmara. E quero lhe dizer que é para abrir. É para abrir. Eu escolho você, porque você não tem rabo.”

Eu disse: “Ah! Isso é verdade. Eu posso não ser a pessoa indicada para essa função, agora, que eu não tenho rabo, eu não tenho mesmo, não. Não tem perigo. Desse susto o senhor não morre, nem eu”. Aí, me disse: “É para abrir, é para abrir, porque o País precisa dessa abertura, já demorou demais, o Médici devia ter feito isso quando tomou posse, porque, naquela época, a economia era muito melhor do que agora. O País já estava começando a gozar os efeitos de uma inflação baixa, relativamente baixa.” Enfim, entendendo que a abertura já vinha com atraso, o momento já havia passado, mas que tinha que fazer de qualquer forma, porque o País não agüentava mais, aquilo já estava começando a engessar o Brasil. E o Brasil, no crescimento econômico em que vinha, tinha necessidade de se afirmar internacionalmente.

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - E havia a pressão das ruas, não é?

O SR. CÉLIO BORJA - Também. Não, não havia pressão das ruas nenhuma. Naquele momento não havia nada, a guerrilha urbana havia sido esmagada. Havia, ainda, no Araguaia, uma guerrilha rural — nem rural, das selvas —, que estava acabando e teria sido batida.

Então, na verdade, não era nem o clamor das ruas, porque não existia ainda, nem a insurreição armada, porque essa é uma piada. Acabou virando piada, embora o heroísmo pessoal. Do ponto de vista estratégico, político etc. era irrelevante. Era um movimento irrelevante.

O fato é que ele acrescentou: “Mas se porventura houver necessidade de em algum momento endurecer, retroceder, você fica comigo”. Eu disse: “Não, Presidente. Eu vou lhe dizer o seguinte: eu não vivo mais drama de consciência, porque eu vivi isso no final do Governo Carlos Lacerda, quando eu achava que o Governo do Rio estava errado em atacar o Presidente Castello, que era o único capaz de assegurar a democratização do Brasil, opor-se às tentativas evidentes de quem detinha a força de querer um governo autoritário, no mínimo autoritário. Ele era a nossa esperança de que isso não aconteceria. Em sendo atacado, enfraquecido, acabou no que acabou: no Ato-2.

Naquela ocasião, eu não podia sair também do Governo Lacerda, porque era como rato abandonando navio que está afundando. O Governo ia muito mal, tinha perdido a eleição — estava na cara que ia perder a eleição — e em dificuldades financeiras. Eu era o Secretário de Planejamento e Orçamento — não era de Finanças, era quem carregava esse piano — e sair nessas circunstâncias poderia parecer deserção. Aí, sim, eu sofri um drama de consciência danado e eu não quero repetir isso. A minha formação, o meu entendimento das coisas levam-me sempre a admitir que nada é melhor do que o regime democrático. Ele resolve todos os problemas”.

Infelizmente, foi o que aconteceu, quer dizer, ele sentiu necessidade de dar recuos, cassou na Câmara, quando eu já era Presidente da Câmara, e eu não pude ficar com ele. Eu fiquei com a minha consciência. Certamente, ele ficou magoado, como o Carlos Lacerda ficou magoado comigo, porque eu disse a ele o que pensava. Não abandonei o Governo, mas disse o que pensava, como disse ao Presidente Geisel.

Em 74, quando o Governo perde praticamente a eleição, porque tinha uma maioria fantástica na Câmara e no Senado e perde essa maioria esmagadora, tendo apenas maioria, o Presidente me chama, logo depois do resultado da eleição, e diz: “E então, como é que se explica?”  Eu disse: “Presidente, quem explica é o senhor. O senhor já deu explicação, o País não agüenta mais, a abertura tem que se concluir. O senhor agora tem é que precipitar a abertura, é revogar o Ato, é promover uma modificação da Constituição, para que ela se adapte ao que é, de verdade, uma democracia, um governo representativo etc. e tal.” Mas ele estava muito irritado, não disse nada. Ele ouviu calado. E: “Mas como é que se explica isso?, como é que se explica aquilo?, derrota aqui...” “A explicação é só essa, entendeu, o País está cansado disso. Não é porque a economia vai mal” — porque não ia tão mal assim —, “nem por isso, nem por aquilo; é porque o País quer democracia, o País quer regime representativo”.

A partir desse episódio, eu senti que ele esfriou. Senti que ele esfriou comigo e que começou a dar passos atrás. Distância. Senti logo que ele não me quereria como Líder. Ele já ficara decepcionado no episódio Chico Pinto, porque eu me recusei a fazer a acusação contra o Chico Pinto. Eu fui à tribuna, em resposta ao discurso dele, que foi feito no pinga-fogo, que ninguém assiste. No dia seguinte, eu fui à tribuna, como Líder, dizer que eu não atacaria um colega que estivesse sendo processado no Supremo Tribunal Federal: “Não posso dar-lhe solidariedade política porque não sou correligionário dele, não penso como ele; não tenho as mesmas reservas que ele tem em relação à pessoa etc., eu estou do outro lado, mas eu o respeito como homem. Acho que seria indigno atacá-lo num momento em que ele está sendo perseguido. Judicialmente, é verdade, mas sendo perseguido”.

Isso foi uma bomba. Parecia que o Líder do Governo não defendia o Governo e estava processando, estava movendo processo no Supremo Tribunal. Sei que já foi uma pedrinha na minha chuteira. A outra foi essa: talvez o Presidente quisesse ouvir de mim que ele deveria endurecer e eu dizia: “Não, pelo contrário, acelera essa abertura, porque ela está indo devagar demais”. O País está dizendo: “Tem que precipitar essa abertura”. Senti que ele não gostou, e vi isso no dia seguinte. A minha candidatura a Presidente começa a surgir dentro da Câmara. Reunião da bancada. O Deputado mais influente veio me falar a respeito. Eu era Líder: “Eu não tenho...agora, claro que ser Presidente da Câmara é o coroamento de um mandato etc.,  mas isso não é assim, não pode ser assim. Estamos vivendo um momento delicado do Governo no processo de abertura etc”.

É quando, para minha surpresa, o Presidente me chama e me diz: “Ah! Eu soube...muito feliz... a bancada quer muito você para suceder o Flávio Marcílio e acho que você vai ter um grande papel, porque a administração da Câmara... botar em dia... não sei o quê.” Não me queria mais como Líder, é evidente, e, como eu tinha realmente o voto da bancada, aceitei. Mas não é que, então, a minha candidatura, que parecia abençoada pelo Presidente, sofre a oposição do meu sucessor, que ele já havia escolhido, que era o Deputado José Bonifácio! Zézinho Bonifácio. Me criou as maiores dificuldades. E não era ele o Líder escolhido para me suceder, pelo Presidente? Se o Presidente estava de acordo com a minha candidatura a Presidente da Câmara, o Líder dele tinha que me ajudar, e não querer unir a bancada para me obrigar a ter uma eleição formal com outro candidato patrocinado pelo futuro Líder, que era o Deputado Hebert Levy, que perdeu para mim. Estava selado o meu destino.

Eu podia recuar da candidatura a Presidente? Não, porque eu sabia que era a defesa da Câmara. Se eu recuasse, eu desertava a Câmara dos Deputados, que iria, pelo menos, sofrer algum tipo de constrangimento. Podia não ser um grande constrangimento; mínimo que fosse, alguém tinha que defendê-la. E não deu outra.

O primeiro ano do meu mandato de Presidente da Câmara foi tranqüilo. O único episódio foi o processo no Supremo Tribunal contra o Chico Pinto. Mas quando eu fui falar com o Dr. Ulysses... – Eu soube que o Governo tinha requisitado a representação ao Procurador Geral da República, no Supremo, contra o Deputado Francisco Pinto, imediatamente procurei o Dr. Ulysses e o Laerte Vieira, que era o Líder do MDB – O Dr. Ulysses me disse: “Olha, realmente a gente fica triste e tal, mas já é um grande progresso. Podia ter cassado. Em vez de cassar, está processando na Justiça. Portanto, é uma transformação já apreciável, demos um passo adiante nesse processo todo de abertura. É um sinal de que existe abertura. Ela existe. Vamos fazer o possível para ajudar o Chico Pinto etc. e tal, mas reconheçamos que é diferente do Governo passado”. Foi o único episódio, no primeiro ano, em 75.

Como disse, infelizmente, tive que ficar com a minha consciência e, portanto, desagradar o Governo. E sei por que o Presidente não me escolheu para Ministro da Justiça, como depois não me escolheria para Governador do novo Estado do Rio de Janeiro, que resultou da fusão: porque ele entendia que eu era liberal demais. Ele havia tido uma experiência, ruim para ele, com o Governo de São Paulo, quando Paulo Egydio era Governador. Porque o Paulo Egydio, com a mesma formação que eu tenho, resistiu às pretensões dos comandantes militares e intervenções ou na vida administrativa do Estado ou em matéria de repressão a adversários políticos do regime. Criou um enorme rolo entre o Governo civil de São Paulo e as autoridades militares locais, o que obrigou o Presidente a intervir pessoalmente para salvar o Paulo Egydio que, afinal, era uma pessoa da intimidade dele, escolhido por ele e fiel a ele. Absolutamente fiel a ele.

Então, ele queria evitar isto aqui, não me escolhendo, portanto, para Governador da fusão. Como também ele não me queria para Líder, que eu continuasse como Líder, já em 76, depois de 1 ano na Liderança, porque, certamente, ele já fazia a previsão de que ia dar uns passinhos para trás e de que não contaria com a minha solidariedade, como não contou.

A SRA. ENTREVISTADORA ( Ana Maria Lopes de Almeida) - E em 76? (Intervenção/Pausa.)

O senhor ficou 75 e 76, não é?

O SR. CÉLIO BORJA - É.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Talvez aproveitando para ele falar da sua gestão na Presidência da Câmara.

A SRA. ENTREVISTADORA ( Ana Maria Lopes de Almeida) -  Pois é, ele já está em 75. Qual foi o fato que marcou mais a sua passagem pela Presidência da Câmara? (Intervenção/Pausa.)

A pergunta já está feita, o fato mais marcante. O senhor falou de 75 e de 76. Em 75 teve o caso Chico Pinto. Teve algum outro?

O SR. CÉLIO BORJA - Em 76 foram as cassações. Houve cassações na Câmara. Não foram muitas, nem no atacado, foram no varejo, mas houve.

A SRA. ENTREVISTADORA ( Ana Maria Lopes de Almeida) - Quem?

O SR. CÉLIO BORJA - Foram cassados Alencar Furtado... Primeiro, foi cassado Marcelo Gato, Deputado do MDB, do Partidão — todo mundo sabia, era do Partido Comunista Brasileiro; cassaram um outro Deputado Estadual de São Paulo, juntamente com ele, Fabiano — não lembro exatamente o nome; depois, cassaram Amaury Müller e Nadyr Rossetti, na Câmara dos Deputados; o Alencar Furtado; e o último creio que foi o nosso amigo Lysâneas Maciel.

Então, foram esses fatos os que transformaram a minha presidência num inferno, um verdadeiro inferno.

Agora, há fatos torpes e nem vou referi-los aqui. E há também, digamos, um esforço muito grande para reorganizar a administração da Câmara, modernizá-la. Essa modernização havia sido começada pelo Presidente Pereira Lopes. Ele foi um Presidente inovador, sucedido por Flávio Marcílio, que também era um homem arrojado, que gostava de coisas novas e tinha muito amor pela Câmara. A Câmara era a vida de Flávio Marcílio. Era um príncipe medieval — perdão – da  renascença. Ele gostava de coisas arrojadas, queria projetar a Câmara, tinha prazer em conviver com os Deputados na intimidade. Portanto, era extremamente popular. E esse trabalho de atualização dos procedimentos na Câmara e de reorganização dos seus serviços começou com Pereira Lopes, foi continuado em parte pelo Flávio Marcílio e eu dei também continuidade, porque eu fui o Relator da Comissão nomeada pelo Pereira Lopes para fazer as propostas de modificação na administração da Casa e no processo legislativo. E, realmente, a proposta era muito modernizante. A Assessoria Legislativa, por exemplo, foi criada nessa ocasião e por inspiração do nosso relatório na comissão de modernização do processo legislativo da Câmara.

Então, há esse lado também; quer dizer, é um lado que dá prazer. Ao mesmo tempo, era uma administração austera, porque não fez obras. Fez praticamente 2 obras: uma, por exigência do Corpo de Bombeiros, porque a Câmara estava muito vulnerável a incêndios, sobretudo aquele Anexo I; a outra, uma obra de misericórdia, a reforma das instalações da Taquigrafia, que era no subsolo. As taquígrafas passavam às vezes 24 horas ali dentro sem ver a luz do sol. Era uma coisa terrível. E, graças à compreensão do arquiteto Oscar Niemayer, pudemos ter um projeto que dava a elas o direito de ver a luz e de trabalhar num ambiente menos pesado que aquele em que viviam. Era terrível aquilo. Tirando isso, acho que não se fez mais. O que se fez foi modernizar os serviços. Por exemplo, o avanço que teve a pesquisa legislativa foi muito grande.

Eu abri concurso para Assessores e, com isso, a Câmara ganhou pessoal comparado em qualidade ao que ela recrutou por concurso em 1945. A Câmara tinha, quando inaugurou-se a Assembléia Nacional Constituinte, em 46, o melhor funcionalismo do Brasil, todo recrutado por concurso. Candidataram-se as pessoas mais qualificadas, e levaram. Quer dizer, foi pelo mérito. Então, com esse pessoal, a Câmara resistiu durante 20 anos. Depois, mudança para Brasília, muitos ficaram por aqui, alguns se aposentaram. E quando a Câmara, em 71 — quando eu entro —, depois de um longo recesso, retoma suas atividades, ela estava realmente precisando renovar seu pessoal, porque as aposentadorias eram muitas e as contratações não produziram o resultado que se esperava. Então, os concursos tinham que ser obrigatórios. E, com isso, creio que se deu à Câmara de novo a respeitabilidade que ela sempre teve em matéria de administração e de recrutamento de pessoal.

Agora, realmente, o drama político foi este: o ano de 76 foi o ano do retrocesso. Infelizmente, esse retrocesso me atropelou, estando eu na Presidência da Câmara. Eu não tinha escolha, eu ficaria com a Câmara em qualquer circunstância, e o Presidente sabia disso. Eu não fui desleal com ele, porque no ato mesmo de ele me convidar eu fiz a ressalva. Disse a ele que eu não sofreria drama de consciência; eu ficaria com a minha consciência. E a minha consciência foi formada no sentido de que a liberdade e a democracia são bens indisponíveis. Ninguém pode dispor deles. E acho que me comportei dessa maneira. Aí terminou também a minha vida política.

Na verdade, aquilo a que se visava era, imediatamente falando, a revogação do Ato. Veio em 79. A partir desses episódios que vivi em 76, eu me considerei desvinculado de qualquer obrigação outra que não fosse para com a liberdade e a democracia. E organizamos, Flávio Marcílio, Djalma Marinho e eu, a famosa emenda das prerrogativas, que foi derrotada por 4 votos. Emenda constitucional que restabelecia as prerrogativas dos Parlamentares e tentava pôr fim às intervenções do Executivo no Legislativo. Quase essa emenda vira Constituição. Por 4 votos não foi aprovada.

Depois houve a nossa tentativa de fazer candidato a Presidente da Câmara, fazer Presidente da Câmara Djalma Marinho, que era um símbolo. E fomos derrotados. Venceu o candidato do Governo, o Deputado Nelson Marchezan, que, aliás, foi um excelente Presidente da Câmara. Mas fomos derrotados, mais uma vez.

Eu entendia que, a partir daí, eu teria apenas que aguardar a revogação do Ato, que veio em 79, com o Presidente Figueiredo, que acho que não gostava de mim. Ele me achava ranzinza, porque eu cobrava democracia e liberdade. E, com toda razão, não estava disposto a ouvir essas coisas. Tem todo o direito.

O fato é que, quando veio, em 79, a anistia, a revogação do Ato, eu achei que não tinha mais nada que fazer, porque era isso o que eu queria.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Agora, na verdade, o senhor não abandonou a política.

O SR. CÉLIO BORJA - Não.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) -  Porque, com a eleição de Sarney, do Senador José Sarney, que era seu amigo, aliás, com a eleição dele para Vice-Presidente, a doença do Sr. Tancredo Neves, ele acabou assumindo a Presidência da República e o senhor acabou voltando à política.

O SR. CÉLIO BORJA - O que aconteceu foi que eu, que estava decidido a não me candidatar mais, fui convidado pelo Senador Amaral Peixoto, de quem eu era amigo e a quem eu admirava muito, a ser candidato ao Governo do Rio ou ao Senado.

Ao Governo do Rio eu achava que não devia concorrer, porque seria torpedeado pelo Presidente Figueiredo, que não gostava de mim. Então, ele praticamente selou o meu destino, dizendo: “Então, Wellington vai ser candidato ao Governo e você candidato ao Senado. Assim seja?” “Pode ser, mas com uma condição: eu não quero sublegenda. Serei candidato único.” “Ah, mas aí você perde.” “Pouco importa. Eu não quero recorrer a um expediente que eu sempre condenei, o da sublegenda em eleições majoritárias. Acho que é um expediente para impedir que a Oposição ganhe eleições. E disse isso em parecer, que me foi pedido pelo Deputado Tancredo Neves, na ocasião, que era candidato a Senador por Minas, e perdeu. Eu era udenista. Ele me pediu um parecer sobre a constitucionalidade da sublegenda e eu dei o parecer que ele me pediu, dizendo que ela era inconstitucional. Não tem sentido eu, agora, concorrer para o Senado com sublegenda.’

E praticamente não perdi não, porque tive 1 milhão e 200 mil votos e Saturnino teve 1 milhão e 300 mil. Ter 1 milhão e 200 mil votos por um partido como aquele, que não tinha prestígio! Concorrer com a cara e a coragem — o Governo Federal não era bem quisto no Rio de Janeiro, que é um reduto, sempre foi um reduto de oposições —, eu considero um prêmio, quando se está querendo sair e ir embora. Eu me candidatei certo de que seria derrotado e terminaria minha vida pública, como dizem os franceses, un vote. Cumpri o meu dever, dei a contribuição que podia a um candidato ao Governo que eu considerava bom, porque ligado ao Senador Amaral Peixoto, em quem eu confiava muito. E ali encerrava minha vida, como de fato encerrei.

O que houve, e a pergunta tem a ver com isso, é que em 85 eu estava com a minha vida profissional recomposta, e graças a Deus tudo correndo muito bem, vivendo como um simples cidadão, um simples advogado, no Rio de Janeiro, pondo em dia minha vida patrimonial, negócio de empresa, e recebo um telefonema do Presidente Sarney, já Presidente, já no exercício do cargo, me pedindo que fosse a Brasília no dia seguinte, porque queria conversar comigo. Em chegando, disse-me ele da situação em que se encontrava. O Ministério não era o dele, era do Tancredo, de quem éramos ele e eu amigos, por sinal, e ele estava em dificuldade, porque o Consultor-Geral da República estava demissionário, não queria continuar. Havia aceitado o cargo por ser muito ligado a Tancredo. Tancredo morreu. Ele tinha uma banca fantástica em Belo Horizonte. Entendo perfeitamente bem que havia aceitado para ser agradável ao amigo. O amigo morreu. Por que ele iria continuar cultivando um prejuízo monumental?

            Então, naquela situação, ele queria muito que eu fosse ajudá-lo. Não tinha cargo de Ministro, ele disse logo. O que ele tinha era a Chefia da Assessoria Especial do Presidente da República. Eu disse: “Olha, o cargo não interessa. Até porque eu não quero ficar por aqui muito tempo não. É só enquanto você se equilibra. Depois você me libera, e eu vou voltar para a minha vida de sempre”. Dito e feito. Quer dizer, eu fiquei lá até dezembro de 1985. Fiz algumas coisas que considero importantes. E quando chegou dezembro eu pedi a ele que me liberasse. Ele não quis liberar. Eu disse: “Olha, com ou sem liberação, volto para o Rio”. Quando eu estava voltando, ele me fez o convite para o Supremo Tribunal Federal. Eu recusei. Depois ele insistiu, ligou para a minha mulher, para a Helena – nós somos, de fato, muito amigos Marly, ele, Helena e eu. Nós nos queremos muito bem –. Disse Helena: “Eu acho que ele deve fazer o que quiser. Nunca foi diferente. A família já pagou todos os preços por causa dessas loucuras políticas. Se quiser aceitar, tudo bem, não tem problema nenhum”. Quando cheguei, ela me disse que ele havia ligado e que ela havia dito isso.

            O Supremo ninguém pode recusar. Um advogado não pode recusar. Não deve pedir. Ninguém deve pedir para ser Ministro do Supremo, mas, se é convidado, não pode recusar. Alguns Ministros do Supremo de então, meus amigos, insistiram muito, e eu acabei, 30 dias depois, dando o “sim”. E foi um período extremamente feliz da minha vida.

O Supremo é a melhor instituição deste País. O País não sabe o que deve a esse Tribunal, não sabe a vida modesta, a vida trabalhosa, a vida dedicada exclusivamente ao País dos Ministros do Supremo. Isso faz honra a qualquer país do mundo. E é uma pena que os brasileiros não conheçam o Supremo Tribunal.

A imprensa — eu digo isso em tom de queixa — nem sempre ajuda a compreender como é que se trabalha ali. Parece que é um bando de velhinhos, com alguns meninos para equilibrar a faixa etária, para equilibrar a média de idade, que estão ali um pouco por conta do à-toa. E não é nada disso. É uma enorme responsabilidade. Ela é vivida com enorme, imensa dedicação. Creio que eu posso dizer que vivi ali... Até que, por circunstâncias que independiam de minha vontade, tive de deixar o Supremo. Vivi 6 anos ali. Mas eu tenho a melhor recordação. Tenho pena, inclusive, de tê-lo deixado. Eu não o deixaria, porque me sentia muito realizado no trabalho. Era uma forma extraordinária de realização pessoal, embora sem alarde, modesta, como eu gosto. Sempre foi um pouco do meu estilo.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Ministro Célio Borja, o senhor acabou Ministro da Justiça. Ainda não encerrou aí sua carreira política. Deixou o Supremo, aposentando-se, e depois foi convocado de novo para a política, como Ministro da Justiça, não foi?

O SR. CÉLIO BORJA - Ah, sim.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - E depois...

O SR. CÉLIO BORJA - Aí a explicação... Depois, mais nada. Depois, reitor da Santa Úrsula, advogado...

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Como foi essa experiência no Ministério da Justiça? Como foi sua experiência com o Governo Collor?

O SR. CÉLIO BORJA - Foi uma experiência muito dura, porque eu fui convidado para ajudar o Ministro Marcílio Marques Moreira a tirar o carro do atoleiro.

Muita gente se recorda de que o Presidente Collor se desfez do seu primeiro Ministério integralmente, até sacrificando homens da mais alta reputação e competência. Mas ele queria um ministério novo — rumores em relação a um, não a todos. Mas, enfim, ele queria um ministério novo. Conservou apenas o Ministro da Economia, que era o Embaixador Marcílio Marques Moreira, de quem sou amigo a vida toda.

E ainda estava no Supremo quando o Marcílio... – Somos  ambos devotos de São Bento e assistíamos à missa, juntos, no Mosteiro de São Bento de Brasília. Depois almoçávamos. – Eu pude acompanhar a dificuldade que ele estava vivendo, porque o quadro político não era favorável ao Governo. Havia muita queixa, muita reclamação em relação à conduta de Ministros etc. Ele estava lutando com as organizações internacionais, FMI... Fui a um jantar, a um jantar de churrascaria com Michel Camdessus — para o senhor ter uma idéia de como as coisas se passavam, não é? – Eu fui convidado para um jantar num domingo, numa churrascaria. E lá o Marcílio estava conversando sobre os problemas da economia brasileira com Michel Camdessus, diretor-gerente do Fundo Monetário Internacional. E assim eu pude acompanhar o drama que o País estava vivendo e o risco que corria — um risco enorme. O risco de um retrocesso nos progressos que a economia havia feito. Poucos, é verdade, mas progressos, enfim. Quer dizer, a taxa de inflação não havia disparado, as despesas públicas estavam sendo contidas dentro do limite do razoável.

O SR. ENTREVISTADOR  (Tarcísio Holanda) - A abertura da economia.

O SR. CÉLIO BORJA - A economia aberta, o que era uma condição fundamental para o País poder progredir.

De repente, Marcílio me procurou e disse que o Presidente o havia mantido no Ministério e queria que ele indicasse nomes que pudessem ajudar. E disse que ele havia indicado o meu nome, entre outros, para Ministro da Justiça. Ele teria indicado, conversado com o Presidente, feito, digamos, um croqui do novo Ministério, a arquitetura do novo Ministério, e eu estava lá como uma das opções para o Ministério da Justiça.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Um aval moral.

O SR. CÉLIO BORJA - Como?

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Um aval moral.

O SR. CÉLIO BORJA - Eu me envaideço de ouvir isso de um homem como Tarcísio Holanda, mas o fato é que eu recusei. Aí, o Marcílio passou... Era uma segunda-feira. Ele foi cedinho lá em casa para me fazer o convite, em nome do Presidente. Eu recusei. Mais tarde ele me ligou, dizendo que o Presidente não aceitava recusa e que pedia a ele que insistisse e que esclarecesse: ele me queria para Ministro da Justiça para implantar o Parlamentarismo. Aí me comprou. Quer dizer, se há alguma coisa que eu acho que o País precisa é de mudar o sistema presidencial de Governo, que provou que é extremamente oneroso. E, a essa voz, eu me dispus a ir conversar com o Presidente, que foi muito gentil, me recebeu à noite e reiterou isso. Disse que tinha, sinceramente, a disposição de lutar para que, no plebiscito, que seria em março do ano seguinte, o Parlamentarismo vencesse e que queria... Porque ele, uma vez, havia conversado comigo sobre como é um sistema parlamentar, os requisitos etc. Disse que havia gostado muito do que eu havia dito a ele e queria que eu o ajudasse nisso. Eu não tinha como recusar, porque isso é uma luta de toda a vida. Foi isso. Depois, infelizmente, o que sucedeu me impediu de ser outra coisa que não um apagador de incêndio, um bombeiro. E felizmente deu certo, porque, mesmo num processo doloroso de impeachment do Presidente, não se quebrou neste País uma vidraça. Isso eu acho que justifica eu ter passado pelo Ministério da Justiça.

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Ministro, hoje, com a perspectiva dos anos passados — quase 25 anos passados —, o senhor considera, apesar das suas diferenças, apesar de todas essas incompreensões, que foi necessário o País passar por aquele processo de retrocessos, de cassações, enfim, o processo de abertura que o senhor viveu com essa intensidade toda? O senhor acha que essa estratégia, já com o julgamento à distância, foi correta?

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Teria sido melhor para o Brasil... A pergunta dele é muito boa: teria sido melhor para o Brasil não ter a ditadura militar?

O SR. CÉLIO BORJA - Sem a menor dúvida. Sem a menor dúvida. Ela era absolutamente desnecessária.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - E o País teria progredido?

O SR. CÉLIO BORJA - E vou lhe dizer mais: ela se tornou inevitável, porque não se quiseram usar os instrumentos constitucionais e legais de contenção da insurreição e da baderna.

É preciso não esquecer que foram os liberais, no Brasil, que impediram, em momentos críticos, que o País fosse para a ditadura, usando os instrumentos duros que a Constituição põe a serviço, põe à disposição dos Governos para a preservação da ordem pública.

Em 1963, o que se dizia no Congresso, e fora dele, contra o regime constitucional e contra a Constituição era o suficiente para, judicialmente, processar os autores dessas provocações. Se o Governo tivesse usado os instrumentos constitucionais e legais de contenção da baderna, teria evitado a intervenção dos militares. Foi o medo de ser taxado, em certo momento, de autoritário, de ditatorial, de perverso, disso ou daquilo. E, depois, o comprometimento do próprio Presidente, que era o último responsável pela ordem pública, com os que estavam fomentando a baderna. Que isso sirva de lição para o Brasil.

Quer dizer, o uso dos instrumentos constitucionais e legais de contenção da insurreição, da subversão e das tentativas de desestabilização da ordem pública é dever dos Governos. É dever dos Governos. Por quê? Porque, em não fazendo assim, eles vão comprometer todo o regime legal. E essa foi a nossa tragédia naquele momento. É que, no fundo, todo mundo sabia disso, mas ninguém queria ser o primeiro, ser o boi de piranha, o que ia correr o risco de passar à história como o ditador, como o perseguidor de pessoas, de opositores etc.

Agora, a verdade é que a ordem legal, democrática tem de ser defendida. E tem de ser defendida pelos instrumentos que a legalidade põe à disposição dos Governos para esse fim.

Decretar, por exemplo, um estado de sítio, quando necessário, para restabelecer a ordem pública, é dever do Governo. O Governo não pode deixar, por exemplo, que as propriedades sejam invadidas sem remédio. O Governo não pode deixar que as pessoas ou as instituições sejam constrangidas simplesmente por grupos insurrecionais. Ele tem o dever de manter a ordem pública, de garantir a liberdade de todo mundo. Liberdade sob a lei.

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - E o caso do Riocentro, Ministro? E o arquivamento, agora? Como o senhor vê essa questão?

O SR. CÉLIO BORJA - Olha, eu acho que está perfeitamente claro para todo mundo que o caso do Riocentro foi uma iniciativa de oficiais que tinham, digamos, participação no processo de repressão, em atividades consideradas subversivas. Não foram os comunistas, não foram os socialistas, não foram os fascistas. Foi um grupo de oficiais do Exército que serviam no DOI-CODI do Rio de Janeiro que fez aquilo e que foi acobertado. É besteira querer negar a verdade em que todo mundo acredita e que hoje está patente. Pode ter havido um momento em que se tivesse dúvida. Hoje ninguém tem dúvida.

            Agora, há um detalhe técnico. É que nenhum processo arquivado na Justiça poderá ser reaberto se não houver provas novas. Por exemplo, eu sou acusado de homicídio. A polícia investiga, investiga, investiga, produz as provas, entrega ao promotor. O promotor me denuncia. O juiz examina as provas e recusa a denúncia. Diz: “Não há provas. Não há provas para processar o Sr. Célio Borja. Ele não pode ser acusado de homicídio em juízo, porque as provas não apontam nesse sentido”. Muito bem. Arquiva-se o inquérito. Não há denúncia. Passam-se 2, 3, 4 meses, 1 ano, e a Promotoria colhe provas novas — aí, sim, incriminando o acusado efetivamente, com meios de persuasão, indícios, provas etc. e tal, demonstrando que o acusado praticou o crime. Aí, o processo tem de ser reaberto.

            O grande problema, a meu ver, consiste nisso. Eu não acompanhei, agora, a tentativa de reabertura do caso. Portanto, não posso opinar se está dentro ou não dessa linha, se atende ou não a esse requisito da lei. Mas parece que — pelo menos foi o que eu li nos jornais — o que se alegou foi isto: não existindo novas provas, o caso não pode ser reaberto.

Agora, acho que ninguém, neste País, tem qualquer dúvida a respeito dos autores desse atentado, de onde partiu a iniciativa. Pode-se dizer: o general tal — aí, tem de provar —, o coronel..., o presidente.... Prove! Agora, quem botou a bomba, quem fez aquele estrago, aquela coisa horrorosa pôs em risco a vida de meninos e meninas. Isso nós sabemos.

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Ministro, só para encerrar, então. O senhor é um homem de formação liberal, participou desses episódios todos. Alguns, conforme seu próprio depoimento, causaram-lhe problemas — ficou com crises de consciência, essa coisa toda.

Nós estamos vivendo praticamente há 10 anos num regime democrático pleno. O senhor é otimista em relação ao futuro da democracia no Brasil? O senhor considera que há alguma ameaça grave no horizonte? Como o senhor avalia esse quadro do futuro?

            O SR. CÉLIO BORJA - Não, eu não sou um otimista, eu sou um realista. Não tenho dúvidas de que a democracia é o regime da preferência do povo brasileiro. Ela, ao longo de 500 anos de história... Quer dizer, um governo representativo, eleição, voto, essas coisas todas sempre sofreram algum tipo de atentado.

            Quando o Brasil era uma colônia de Portugal, havia as Cortes Gerais do rei. As Câmaras Municipais votavam em representantes seus para irem a Lisboa fazer as reclamações dos povos perante o rei. Durante muito tempo, deixaram-se de convocar as Cortes Gerais. O que havia eram as Câmaras Municipais funcionando, era a representação do povo. Eram eleitos. O censo era alto. Portanto, só muito poucos podiam ser candidatos. Mas o fato é que havia voto, havia representação e essa gente falava, essa gente se autogovernava.

            Veio a independência. O Brasil teve um regime representativo. Madison dizia que era a única democracia da América do Sul. Era a democracia coroada. Era assim que se considerava o Brasil. O Brasil era um país de prestígio. E, depois, a República. A República manteve o regime representativo até 1930. De 1930 a 1945, a democracia desapareceu — salvo o hiato de 1932/1937 — do Brasil e do mundo. É preciso que se diga isso. Só houve ditadura, eu diria, quase fascista no Brasil nesse período de 1937 a 1945, porque o mundo caminhava para o fascismo ou para o comunismo; quer dizer, para o totalitarismo de qualquer jeito. E o totalitarismo não é compatível com o regime democrático. Ou seríamos comunistas, o que é a negação da democracia, ou fascistas, o que também é a negação da democracia. E isso é no mundo. Tirando a Inglaterra e a França...

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - E os Estados Unidos.

            O SR. CÉLIO BORJA - E os Estados Unidos. Porque os Estados Unidos, nesse particular, têm uma tradição própria, diferente da do resto da América. Tirando esses países, todos os outros tiveram perturbações gravíssimas. A própria França teve, em determinados momentos, os governos de salvação nacional. A Inglaterra era dirigida por uma pequena elite. E os Estados Unidos eram, na verdade, a terra do capitalismo. O que mantinha o país em pé e funcionando — talvez seja assim ainda hoje — era, sobretudo, a predominância da economia sobre sua sociedade. A economia justifica tudo. Uma economia pujante como eles têm hoje. Não têm desemprego, é baixíssima a taxa de inflação — praticamente, pode-se dizer que não há inflação, se comparado com o resto do mundo — e, ao mesmo tempo, têm uma produção fantástica. Eles têm a moeda do mundo, a moeda de trocas universal: o dólar. Era, portanto, já naquele tempo, também uma exceção.

            Mas o resto do mundo oscilava entre os 2 totalitarismos: o comunista e o fascista. É um milagre que este País, que naquela época era um país, digamos, muito mimético — só reagia ao que acontecia lá fora —, tenha encontrado, em 1945, um meio de se livrar disso. E o que o livrou, na verdade, foram as Forças Armadas que foram lutar na Itália.

Lembro — eu tinha 17 anos — quando eles voltaram. O povo chorava nas ruas. O Brasil havia dado uma contribuição de sangue para que a democracia não crescesse no mundo. E não fazia sentido algum continuarmos a ser uma ditadura depois de termos oferecido o sangue dos nossos irmãos para morrerem na Europa e salvar a democracia lá. Perdemos um pouco o sentido da história. Mas o sentido é esse.

Quer dizer, este País não se conformará com nenhuma forma de ditadura ou de autoritarismo. Qualquer dessas formas terá vida curta. A única coisa que ameaça o Brasil é a injustiça social, é essa desigualdade brutal, é essa convivência com a miséria extrema. Mas não é porque exista a miséria extrema. É porque damos de ombros para ela. Essa é única ameaça que o Brasil enfrenta. Nós não podemos continuar a cultivar um desnível tamanho entre seres humanos. É isso que ameaça o Brasil.

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - E a questão da terra, Ministro? O MST.

O SR. CÉLIO BORJA - Eu acho que é uma das coisas mais equivocadas que eu conheço. Para mim, é um mero exercício de mobilização revolucionária. Não é a terra que está em questão. Eu acredito que quem acha que é preciso dar acesso à terra — como eu acho — a quem quer trabalhá-la não vai por esse caminho. Esse é o caminho para inviabilizar um programa de reforma agrária. Não é possível que alguém imagine que vai inaugurar um novo regime fundiário no Brasil com esse processo. Vai simplesmente fazer uma nova revolução. Vai simplesmente estabilizar o País. Mas nada promete no sentido de que se conseguirá dar um novo dono produtivo à terra brasileira dessa maneira. Vai simplesmente... É como fazem, não é? Quer dizer, distribuem a terra... Como aconteceu na reconquista da Península Ibérica. Os generais distribuíam a terra entre os seus soldados. Nem todos os soldados sabiam cultivar a terra ou tinham interesse em fazê-lo. Era uma forma de premiar apenas. E o que tem acontecido é que se dá, muitas vezes, a terra a quem ajudou a ocupá-la, mas a pessoa não tem nenhum interesse nisso, não tem nenhuma aptidão, prefere vendê-la. Vai comê-la, mas não vai cultivá-la. E, ao mesmo tempo, não existe nada preparado para dar suporte. Imaginar que um pobre homem vai, com sua mulher, e talvez com os filhos, com a enxada, trabalhar, mais do que para a subsistência, para o mercado, que vai permitir a ele ter uma vida sempre melhor, é brincadeira. Tem de ter apoio.

Então, na verdade, não é um trabalho revolucionário no sentido bélico. É um trabalho revolucionário no sentido de solidariedade, de composição, de agregação de esforços para que, de fato, quem quiser trabalhar a terra tenha a terra, e quem quiser trabalhar a terra tenha apoio e capacidade de se tornar produtivo; portanto, de crescer, ter renda.

            O grande problema é a renda no campo. Até mesmo, às vezes, um grande proprietário tem uma renda ínfima. Não se compara a quem tem uma atividade de serviço, por exemplo, na cidade. Esse me parece ser o problema.      Agora, o que eu vejo hoje é um bruto exercício de mobilização política, à custa da gente mais humilde deste País e à custa da produtividade da terra.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Foi muito bom o depoimento. Muito bom. Afirmativo. Muito bom.