Violações cometidas pela Fundação Renova são debatidas em audiência pública da CDHM

Participantes defenderam a importância da assessoria técnica para os atingidos, a necessidade de escuta das comunidades e elencaram uma série de violações aos direitos humanos pela entidade, criada com o objetivo de promover a reparação aos danos causados pelo rompimento da barragem em Mariana
10/06/2021 13h08

Captura e montagem: Fernando Bola/CDHM

Violações cometidas pela Fundação Renova são debatidas em audiência pública da CDHM

A Comissão de Direitos Humanos e Minorias debateu na tarde desta quarta-feira (9) as violações cometidas pela Fundação Renova, entidade sem fins lucrativos criada a partir de um Termo de Transação e Ajustamento de Conduta pelas mineradoras Samarco, Vale e BHP Billiton para promover a reparação dos danos causados pelo rompimento da barragem de Fundão em 2015, em Minas Gerais, que causou a morte de 19 pessoas e a destruição de distritos.

O termo inclui 42 programas, que se desdobram em diversos projetos de longo prazo, em execução em 670 quilômetros de área impactada pelo rompimento da barragem do Fundão ao longo do rio Doce e afluentes.

“A Fundação Renova, convidada para a audiência de hoje, comunicou que não participará, informando que vem cumprindo suas obrigações, e que suas manifestações ocorrem nos autos do processo judicial. Nós lamentamos profundamente essa negativa, que consideramos um desprestígio ao Poder Legislativo e ao debate público”, afirmou o Presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias, deputado Carlos Veras (PT/PE). 

O MPMG entrou com uma ação na Justiça requerendo intervenção e extinção da instituição, alegando que a Fundação não estaria cumprindo parte do acordo feito com o Município de Mariana e o Distrito Monsenhor Horta em relação à população atingida. Segundo o relatório do MP, há “grave desvio de finalidade na utilização de recursos da Fundação”. O órgão questionou, entre outras condutas, o alto salário de diretores da Fundação e os altos gastos com propagandas.

“O mesmo descaso que teve e que tem com os atingidos, desafiando o próprio Ministério Público, ela (Fundação Renova) faz com o Congresso, com a Câmara Federal. Esse é o comportamento”, apontou o deputado Padre João (PT/MG), autor do requerimento para a audiência pública.

Para Gabriel Pereira Mendonça, Promotor de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais, o grande problema é que, apesar da previsão estatutária de independência e autonomia frente às mantenedoras Vale, BHP e Samarco, isso não se reflete na prática da atuação da Fundação Renova. "Nós vemos uma total subordinação”, disse, apontando o que motivou a ação de extinção da Fundação.

“Nós temos encontrado uma grande dificuldade de independência, autonomia e transparência por parte da Fundação Renova, inoperância e incapacidade de cumprir toda a sua obrigação de reparação e repactuação desses danos”, afirmou o promotor de justiça. 

“O que a gente está verificando é o sofrimento dessas pessoas, o sentimento de desesperança, de abandono, a invisibilidade, as pessoas esquecidas pelo caminho, principalmente as mais simples, porque não têm nenhum tipo de apoio técnico. A assessoria técnica é um direito que consta da política estadual de atingidos por barragem, e infelizmente até hoje não implementado”, contou Paulo Cesar Vicente de Lima, Promotor de Justiça e Coordenador de Inclusão e Mobilização Sociais, acrescentando que a assessoria técnica só teria sido implementada em três regiões. O promotor informou que foram realizadas em 2021 diversas reuniões com especialistas e 13 reuniões com mais de 700 atingidos de 25 comunidades.

 

Pouca efetividade na reparação

Flávia Cristina Tavares Torres, Procuradora do Ministério Público Federal, afirmou que a ausência da Fundação Renova na audiência é semelhante à sua atuação nos territórios, devido à pouca efetividade nas medidas reparatórias.

“A gente precisa que a sociedade não se esqueça do que aconteceu. As pessoas costumam se lembrar apenas do dia do desastre e lamentar o que ocorreu e se esquecem que os impactos desses atos estão sendo sentidos pelas pessoas atingidas ao longo da Bacia do Rio Doce há quase seis anos”, reforçou.

Mariana Sobral, Defensora Pública do Espírito Santo, destacou a luta pelo reconhecimento do impacto do rompimento também em seu estado. Segundo a defensora, até hoje as empresas e a Fundação Renova não reconhecem o litoral capixaba como atingido pelo desastre. “A gente teve que fazer um trabalho, inclusive, de mostrar ao poder público municipal que eles eram atingidos. A gente tem uma quantidade de pessoas muito grande que ainda espera uma resposta da Fundação Renova”, contou.

“Atitudes valem muito mais do que palavras. E a atitude da Fundação Renova de não estar aqui, mostra o que ela tem feito nesses cinco anos. O grande erro desse processo todo de reparação foi a privatização do desastre, que trouxe uma entidade de direito privado para dentro do processo”, acrescentou a defensora.

Para Mariana, é preciso verificar o que a Fundação Renova trouxe em termos concretos para a população atingida. A defensora demonstrou preocupação com acordos realizados durante o período de pandemia, com quitações gerais, irrestritas, amplas, dando segurança jurídica à empresa, em um momento que as pessoas precisam de recursos. “Quem tem fome,  tem pressa”, declarou.

Destacou também preocupação com a situação de mulheres atingidas, que em termos percentuais estariam sendo menos contempladas com benefícios socioeconômicos. “Mais uma vez se retira da mulher a sua autonomia econômica e financeira”.

“E diferente de Brumadinho, os atingidos e as atingidas do Rio Doce estão morrendo aos poucos”, complementou a defensora.

 

Falta de transparência da Fundação Renova

A falta de transparência da entidade também foi destacada pela Defensora Pública Carolina Morishita, do Núcleo de Proteção aos Vulneráveis em Situação de Crise da Defensoria Pública de Minas Gerais. “Muitas vezes ofícios que trazem perguntas objetivas, práticas, são respondidos com dezenas e às vezes centenas de folhas de informações imprecisas, que trazem dados diversos do questionado, e uma impossibilidade de aferição do que realmente tem sido realizado”, afirmou, sobre a enorme dificuldade encontrada inclusive por instituições de justiça para ter acesso a informações.

“O primeiro direito de todas as pessoas, sejam das pessoas atingidas pelo rompimento ou em qualquer outra situação, é o direito à informação. Só assim conseguem tomar a melhor decisão de qual caminho elas vão seguir, qual é a melhor reparação para elas”, disse.

“Ouvir as pessoas atingidas é uma forma de compreender como depois de cinco anos e sete meses, as pessoas se veem sem alternativa, em um cenário em que se sentem obrigadas a seguir um único caminho, por não terem acesso a outras vias de informação ou de asseguramento dos seus direitos”, apontou a defensora, reforçando a importância das assessorias técnicas para a compreensão dos processos pelos atingidos.

Verônica Viana, da Associação Estadual de Defesa Ambiental e Social (AEDAS), elencou pontos para visibilizar práticas institucionais de violações de direitos humanos por parte da Renova, como a dependência minerária da Entidade que se manifesta no quadro de profissionais, mas também no fato de que a Fundação se nega desde o início da judicialização a apresentar informações a toda governança. Verônica apontou que a falta de critérios e objetivos claros para a condução da reparação e a inexistência de informações adequadas, estaria causando confusão e insegurança nos territórios, abrindo espaço para cooptação de lideranças.

Veronica também destacou o gasto de 17,4 milhões de reais pela Fundação Renova em 2020 em propagandas de autopromoção e a ineficiência dos programas: em quase seis anos, nenhuma comunidade foi reassentada, 34% das famílias cadastradas foram indenizadas, centenas de cancelamentos unilaterais, casas reformadas quatro, cinco vezes por falhas nos projetos. “Os últimos pontos dizem sobre a criminalização dos atingidos, a morosidade do processo reparatório. A gente deixa aqui a afirmação da importância das assessorias técnicas para que os atingidos consigam, de fato, construir o processo reparatório a partir de sua centralidade”, disse Verônica.

“Nós temos observado em Mariana uma tendência à individualização, que tem gerado espaço para essas inúmeras violações e práticas abusivas da Fundação Renova. O caminho tem que ser da construção coletiva, ouvindo as pessoas atingidas. É a partir da realidade da pessoa atingida que é possível compreender de que forma ela vai ser melhor reparada”, afirmou Caromi Oseas, da Cáritas Regional Minas, destacando que a pandemia agravou as violações, e que, mais do que acordos milagrosos, é fundamental garantir a questão do acesso a serviços, como a água, a comunicação, pois as famílias não conseguem acessar a defensoria, a justiça, por não terem acesso à internet.

Verber Souza, da Cáritas Regional Minas, destacou problemas na fase de negociação em Mariana, apontando que a autonomia metodológica da Fundação Renova foi utilizada de forma abusiva, com definição de critérios indenizatórios que nunca foram publicizados. “As famílias atingidas participavam do espaço de negociação sem sequer saber quais seriam os critérios que iriam ser considerados naquele espaço”, disse.

Segundo Verber, a Fundação Renova utilizava um processo de cadastramento diferente do realizado pela assessoria técnica. “A Fundação Renova não tem compromisso algum com o procedimento, isso leva a negociações que duram muito mais do que o teto estabelecido no TTAC”, conta.

“As famílias têm que aceitar tudo ou nada, a gente está falando de pessoas que estão há seis anos aguardando esse processo. Existe um universo de pessoas que não têm sido reconhecidas, que recebem uma carta por correio falando que elas não são elegíveis. Eu queria trazer o que a gente observou da fase de negociação extrajudicial e desse modelo que tem sido adotado como alternativa e que nos parece bastante perigoso nesse contexto”, completou. 

“A gente está falando da vida de milhares de pessoas, são dois estados que tiveram a vida completamente revirada. E que esperam e dependiam do trabalho de uma fundação que foi criada única e exclusivamente para executar as ações de reparação causadas por esse crime:  o rompimento, causado pela irresponsabilidade da Vale, da Samarco, da BHP, e, posteriormente, a atuação da Fundação Renova tem sido a perpetuação de mais cenários de crime”, declarou Bianca de Jesus Souza, representante do Centro Agroecológico Tamanduá (CAT).

 

A vida depois da tragédia e a espera por reparação

O morador de Tumiritinga José Pavuna Neto,  representante dos atingidos, narrou as dificuldades enfrentadas e os receios vivenciados pela comunidade depois da tragédia: insegurança com a qualidade da água do Rio Doce e a possibilidade de contaminação dos alimentos produzidos pelos pequenos agricultores, vendidos inclusive no PNAE, programa que abastece escolas.

“Temos um monte de perguntas que não tem resposta. A água que a gente joga pra crescer a planta, a água crua, irrigada, a água do Rio Doce, que faz o milho crescer.  Aí a gente colhe esse milho, vende para as pessoas comerem, produz leite. O metal pesado que estava na água crua passou para planta? Passou pro solo? A gente comendo a planta, a gente bebendo leite, passa para gente? São perguntas que a Renova não responde, as universidades não respondem, ninguém responde”, afirmou José, que é agricultor familiar e assentado da reforma agrária na comunidade de Cachoeirinha, que reúne 33 famílias que vivem na região há mais de 25 anos em cerca de 100 casas.

“As pessoas estão morrendo sem ver a sua casa, sem receber uma indenização. Não só os idosos, os jovens estão morrendo, sem perspectiva de vida, sem perspectiva de futuro. Estão falando de um acordo, esse acordo por acaso vai ter a participação dos atingidos? Ou vai fazer igual Brumadinho, entre o Governo e as empresas criminosas?”, questionou Mônica dos Santos, representante dos atingidos de Bento Rodrigues. “O assassino cuida do cadáver, vai falar qual vai ser a pena”, desabafou durante a audiência.

A morosidade da entrega de casas também foi destacada por Mônica, a expectativa era de que seriam construídas 270 casas, mas até o momento apenas sete ficaram prontas, e os donos ainda não teriam acesso.

“Esses problemas estão se arrastando durante todos esses anos e a gente vê a falta de iniciativas para reparar tanto os danos ambientais quanto os danos à vida humana, a essas famílias que estão até hoje desassistidas”, destacou o deputado Helder Salomão (PT/ES), que realizou diligência à região e defendeu a continuidade da atuação da CDHM na situação até que as pessoas tenham acesso à reparação.

 

Atuação da CDHM

A Comissão de Direitos Humanos e Minorias vem atuando há anos no contexto do rompimento da barragem do Fundão e depois, de Brumadinho. Foram realizadas três audiências públicas: em maio de 2016, novembro de 2017 e em novembro de 2019. A CDHM também realizou duas diligências, a primeira em 2016 nos municípios de Minas Gerais e a outra, em 2019, nos territórios afetados do Espírito Santo.

Em 2016 a CDHM identificou desrespeito aos direitos à informação e à participação, ao trabalho e a padrão digno de vida, à moradia adequada, à educação, à saúde, à reparação por perdas, à cultura e aos modos de vida tradicionais. Também percebeu negativa de cadastramento de pessoas atingidas pelo desastre, impactos sobre a saúde dos atingidos, discriminação contra a mulher, prejuízo no abastecimento de água potável, indenização insuficiente das famílias afetadas e desmobilização e criminalização dos movimentos sociais.

 Depois de nova diligência em 2019, a Comissão de Direitos Humanos e Minorias concluiu, em relatório do deputado Helder Salomão, presidente da Comissão na ocasião, que nenhuma das recomendações anteriores, seja da ONU, da Comissão Externa, ou da CDHM, foram cumpridas.  Concluiu, ainda, que a Fundação Renova não vem cumprindo o objetivo de sua criação, protelando e criando dificuldades para o pagamento das indenizações e das reparações.