Texto

DEPARTAMENTO DE TAQUIGRAFIA, REVISÃO E REDAÇÃO

        NÚCLEO DE REDAÇÃO FINAL EM COMISSÕES

 

TEXTO COM REDAÇÃO FINAL

 

ENTREVISTA COM O SR. MIGUEL REALE

EVENTO: Entrevista                   

N°: ESP005/01

DATA: 12/11/2001

INÍCIO: 09h00min

TÉRMINO: 10h45min

DURAÇÃO: 01h21min

TEMPO DE GRAVAÇÃO: 01h21min

PÁGINAS: 28

QUARTOS: 22

 

 

DEPOENTE/CONVIDADO - QUALIFICAÇÃO

 

MIGUEL REALE – Advogado, jurista, professor, filósofo, ensaísta, poeta e memorialista.

 

 

SUMÁRIO: Entrevista com o Sr. Miguel Reale.

 

 

OBSERVAÇÕES

 

Há palavra ininteligível.

Conferência da fidelidade de conteúdo – NHIST  07/01/2009 (TT)

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Dr. Reale, relembre a sua infância, a sua juventude, a sua origem social, a sua formação.

O SR. MIGUEL REALE - Eu acho que não é possível contar a vida, sobretudo de uma pessoa com uma vida tão longa, sem levar em conta os primeiros anos, que têm tanta importância e significado.

Eu nasci em uma pequenina cidade paulista chamada São Bento do Sapucaí, que tem a característica de estar na fronteira entre São Paulo e Minas Gerais, de tal maneira que, para chegar a ela, é preciso passar por parte de Minas Gerais.

São Bento do Sapucaí, porém, não é a cidade da minha infância, porquanto dela saí ainda com poucos meses. Eu, ao contrário, passei a minha infância em Itajubá, a cidade do Presidente Venceslau Brás, ainda abaixo do Rio Sapucaí, mas já no Estado de Minas. E tive uma infância em uma família burguesa, e, para a época e para o lugar, abastada.

Tive, portanto, tudo aquilo que podia ser exigido de uma criança nos primeiros anos. Participava intensamente, quer dos estudos no ensino fundamental, quer dos passeios e recreios.

E foi por essa participação intensiva que eu deixei de morar em Itajubá. É que participava da vida alegre dos moleques da cidade, dos primos e parentes que iam freqüentemente me visitar.

Um dia, eu saí para ir nadar no Rio Sapucaí. Lá, nós nos divertimos com uma cobra d’água. Quando chegou o meu pai, de surpresa, ele ficou perplexo e indignado, porque, para italiano, cobra é cobra, pouco importando que seja uma mansa cobra d’água. E o resultado é que ele me trancafiou em um colégio interno na capital de São Paulo. É a razão pela qual eu digo que o meu destino foi mudado por uma cobra.

Vim para São Paulo para ser aluno interno do colégio que naquela época se chamava Instituto Médio Dante Alighieri, que era um colégio italiano, onde não se falava, no ensino propriamente, outra língua que não fosse o italiano. Eu ignorava completamente essa língua, porque sendo minha mãe Vieira da Rosa Góes Chiaradia, ela falava português, e meu pai também falava português em casa, muito embora fosse um médico italiano de grande cultura — aliás, o que influiu muito na minha formação intelectual.

Então aconteceu de ter, no colégio interno Dante Alighieri, conhecido, ainda menina, aquela que iria se tornar a minha esposa e com a qual eu iria viver nada menos de 63 anos.

Por aí se vê como o acaso interfere na existência dos indivíduos e das nações, tendo razão Monod e Maquiavel quando dizem que o acaso ou a fortuna têm um valor de incidência fundamental no desenvolvimento de nossa existência, quer individual, quer coletiva.

Assim começou a minha vida, com uma formação clássica dispensada pelo colégio Dante Alighieri, que era um colégio clássico, mas com 7 anos de ensino de latim e de literatura muito intensa e intensiva, sobretudo literatura italiana. Bastará dizer que os últimos 3 anos de colégio, chamados na época de 3 anos do Liceu, eram destinados à leitura e ao comentário da A Divina Comédia.

No primeiro ano do Liceu estudava-se o Inferno. No segundo, o Purgatório. E, no terceiro, o Paraíso. Digo isso para mostrar a intensidade do estudo literário que iria naturalmente influir poderosamente na minha formação espiritual.

Assim começou a minha vida no que ela tem de essencial, além, naturalmente, da afeição. Mas devo dizer que, em certo momento, a minha família passou por uma crise econômica profunda que ia me obrigar, ainda adolescente, a trabalhar dando aula de latim para poder sobreviver. Eu tinha apenas 14 anos e já ensinava latim e francês em aulas particulares.

O meu destino estava traçado. Eu ia ser, ao longo da vida, aquilo que na realidade sempre fui: um professor. Se me perguntarem o que é que fui acima de tudo, eu responderia imediatamente: acima de tudo, acima da advocacia ou da filosofia, a minha vida foi a de um magistério.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - E os primeiros tempos? Como o senhor foi atraído para a política?

O SR. MIGUEL REALE - Eu sempre tive interesse e atração pela política. Comecei a perceber isso ainda menino, quando rebentou a Revolução de 24, e já então morava em São Paulo. Porque o fato de ter sido transferido para São Paulo e o acidente sofrido por meu pai levaram-me a morar em São Paulo, herdando, por assim dizer, uma clínica de um seu antigo colega que voltava para a Itália.

Quando rebentou a Revolução comandada por Isidoro Dias Lopes, eu tinha de 13 para 14 anos, e comecei a me interessar pela vida política, a ponto de fugir de casa, para ir ouvir um comício que os revolucionários faziam no Largo do Arouche para convocar voluntários. E fiquei muito espantado quando um orador disse: “Nós vai por esse mundo afora defendendo o Brasil”. Eu fiquei impressionado com mau português e disse: “Com esse eu não vou”.

De maneira que, desde menino, tive atração pela vida política e estava, talvez, no sangue, porquanto meu avô, Miguel Chiaradia, apesar de italiano, que era um fazendeiro na ocasião, homem de muitas posses, se interessava profundamente pela vida política local de São Bento do Sapucaí, a tal ponto que recebeu o grau de Major da Guarda Nacional.

O que acontece tem sua razão de ser, mas é inexplicável.

(Interferência dos técnicos.)

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Como é que começou a sua militância política?

O SR. MIGUEL REALE - Quando moço, eu ia estudar Medicina, que seria para seguir a trilha da minha família, porque eu seria talvez o sétimo médico da família. Mas, à última hora, senti que esse não era o meu destino, ao fazer uma visita a um hospital. E resolvi estudar direito na Faculdade de São Paulo, cuja imagem está ali. Estudar direito na Faculdade de Direito de São Paulo é participar necessariamente da vida política.

A época era a véspera de 1930, por conseguinte uma fase de transição fundamental para a formação política nacional. Eu era contra o regime antigo do voto de pena e da falta de voto secreto e da verdadeira democracia. De maneira que participei, já como estudante, dessa luta pela implantação no Brasil de um sistema jurídico democrático com garantia plena dos direitos e participei, portanto, da Revolução de 30.

E mais tarde, quando o Presidente Getúlio Vargas não foi fiel aos compromissos assumidos no plano democrático e São Paulo assumiu a Revolução Constitucionalista de 32, eu, que já estava no segundo ano de direito, me alistei como voluntário. E como era o único estudante de direito que tinha feito serviço militar no Colégio Dante Alighieri, passei a ser terceiro sargento. E foi na qualidade de terceiro sargento que fui para o interior do Estado de São Paulo, na zona sul de Itaquera, Capotera, altura de Avaré, para participar, portanto, da Revolução Constitucionalista. E quando esta não conseguiu vencer as tropas revolucionárias muito mais poderosas do Governo Federal, eu entrei numa natural crise, como foi a de todos os vencidos, mas compreendi que a vida continuava e participei, portanto, intensamente da vida política.

No momento eu tinha uma formação socialista em parte influenciada por certa tradição mazziniana, num socialismo moderado, seguido por meu pai.

O SR. MIGUEL REALE - Mazzini, que foi um dos grandes líderes do pensamento italiano, liberal, social, para empregarmos uma expressão que não corresponderia exatamente à situação da época.

O fato é que, depois, por uma série de circunstâncias, percebi que havia necessidade de superar o liberalismo dominante no Brasil, por ser um falso liberalismo. Foi em reação contra o liberalismo que houve a tomada de posição de vários jovens daquela época, como é o caso, por exemplo, de San Tiago Dantas, de Goffredo da Silva Telles Junior, de um Jeová Mota, entre os militares, de um padre Hélder Câmara, de um Antonio Gallotti, de um Thiers Martins Moreira e de tantos outros cujo nome não me ocorre neste momento. E todos nós formamos aquele movimento tão mal julgado que se chamou “o integralismo”.

Quando se fala em integralismo no Brasil, pensa-se logo em fascismo, o que é uma interpretação errônea, pelo menos incompleta. Na realidade, éramos nacionalistas de formação política, visando à instauração de uma nova política no País que não se contentasse apenas com o problema do voto, mas levasse em consideração, ao lado da democracia, os problemas sociais fundamentais da população. Era uma solução, porém, corporativa, era um corporativismo nacionalista, mas corporativismo democrático, enquanto o do fascismo era um corporativismo estatizante.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Mas é evidente que o partido tinha influência do que havia na Europa.

O SR. MIGUEL REALE - Tinha influência. E da Itália, porquanto o integralismo começou em 1932, quando o nazismo ainda pouco significava no mundo, e veio a ter influência somente quando o integralismo praticamente estava para findar, porque o integralismo durou apenas 5 anos.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O senhor viu que o Jornal de Brasil de ontem publicou uma matéria sobre a influência do Partido Nazista em São Paulo.

O SR. MIGUEL REALE - De jeito nenhum! Não, não. Em São Paulo nunca houve influência do Partido Nazista. O nazismo teve influência no Rio Grande do Sul e sobretudo em Santa Catarina, mas em São Paulo a influência foi muito reduzida de um grupelho insignificante.

No integralismo nunca houve influência do nazismo como tal. O que houve foi um certo movimento, diminuto também, anti-semita, do ponto de vista mais econômico do que racial, chefiado por Gustavo Barroso. Mas era uma minoria, movimento do qual não participei. A prova cabal de que jamais participei do movimento anti-semita está no fato seguinte: quando escrevi, em 1934, o meu primeiro livro, O Estado Moderno, eu o dediquei a um judeu, estudante, meu colega, falecido na Revolução de 34, o húngaro José Praes. De maneira que nunca alimentei qualquer diferença contra o judeu por ser judeu.

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos - Eu queria saber só uma coisa, um detalhe: essa sua opção pelo curso de direito, aconteceu alguma coisa que fez o senhor desistir da medicina e optar pelo direito? Alguém o influenciou?

O SR. MIGUEL REALE - Não houve uma influência de pessoas. Houve uma influência da minha visita a um hospital, sentindo o cheiro do clorofórmio. Verificando o tipo de vida que ia ter, eu percebi que não estava condizente com as minhas tendências naturais, mesmo porque o direito era algo mais próximo a uma certa vocação que sempre tive pelos problemas de natureza filosófica.

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - E essa adesão às teses do integralismo, houve alguém, ou alguma coisa aconteceu, ou foi uma aproximação natural?

O SR. MIGUEL REALE - Não, não. Não transformemos a vida numa seqüência de causalidades, porque isso seria muito fácil e difícil de explicar.

A minha ida para o integralismo obedeceu a uma situação de momento, porque naquela época até Churchill tinha admiração por Mussolini e pela obra que ele estava realizando na Itália. Se depois Mussolini se transformou num joguete na mão de Hitler, esse é um outro processo histórico. Naquele momento, ele estava realizando algo de significativo para a Itália, que tinha saído de uma desordem incomparável.

De maneira que tudo tem sua razão de ser nas condicionalidades históricas, razão pela qual Ortega y Gasset diz com muita razão: “Eu sou eu e a minha circunstância.” São as circunstâncias que determinam muitas vezes a razão de ser de nosso existir. E eu naquele momento tinha, portanto, que tomar uma posição, como tantos outros tomaram no sentido do chamado Estado forte, como solução para a crise do momento, inclusive para fazer face ao movimento comunista, ao perigo comunista, que se apresentava de maneira bem visível em todo o mundo.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Agora o senhor viu que depois de um dos maiores erros do comunismo mundial... Aliás a Alzira diz, naquele Vargas, Meu Pai, que o General Cordeiro passou 2 dias para andar 4 quarteirões. Que o General Cordeiro de Farias, que deveria socorrer o Getúlio, passou 2 dias para percorrer 4 quarteirões.

O SR. MIGUEL REALE - Não sei. Eu não morava no Rio de Janeiro nessa ocasião.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Depois da Intentona Comunista de 1935, 2 anos depois, houve um putsch integralista, que foi uma tentativa de tomada do poder por golpe de Estado pelos integralistas, que cercaram o Palácio Guanabara.

A Alzira Vargas do Amaral Peixoto, no livro Vargas, Meu Pai, conta que o socorro por meio do General Cordeiro de Farias chegou atrasado, passou 2 dias para atravessar 4 quarteirões.

O SR. MIGUEL REALE - Bom, em primeiro lugar, é preciso fazer uma correção fundamental. É uma tolice — perdoe-me que uso essa palavra — falar-se em putsch integralista. Na realidade, o que houve foi uma aliança entre integralistas ressentidos com o fechamento do partido, um grupo chefiado por Belmiro Valverde, que era, aliás, um grande médico e uma grande personalidade. Um grupo chefiado por Belmiro Valverde e os liberais de São Paulo, da Aliança Liberal. Tanto assim que o chefe geral era o General Castro Junior, que depois confirmou essa minha declaração, conforme eu explico longamente no meu livro de memórias.

O integralismo foi um instrumento, foi o corpo de ação no ataque ao Palácio Guanabara, mas chefiados por um líder liberal, o Capitão Fournier, que é nada mais, nada menos do que o famoso capitão chefe do trem blindado da Revolução de 32 em São Paulo. De maneira que essa história está mal contada, como tudo aquilo que a Esquerda nacional deforma de maneira intencional.

De maneira que, em primeiro lugar, quero dizer isso. Nessa ocasião, eu não estava no Rio de Janeiro, mas já morava em São Paulo, de onde, por conseguinte, não poderia estar participando do putsch integralista, do assalto ao Palácio Guanabara, tampouco Plínio Salgado, que na ocasião se encontrava exilado em São Paulo, ou melhor, hospedado em São Paulo, desde quando o integralismo fora fechado.

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - O senhor se filiou ao partido? O senhor é filiado?

O SR. MIGUEL REALE - Como?

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - O senhor se associou ao partido. O partido lhe indicou para a Constituinte para ser Deputado?

O SR. MIGUEL REALE - Não, não. Em 1937 ou 1938 — não me lembro bem, neste momento, a questão da data —, Plínio Salgado foi para a Europa e deixou como representante dele uma pessoa que, de acordo com as normas integralistas, não tinha a prioridade na representação. Eu não concordei com essa sua decisão e me afastei definitivamente do integralismo. De maneira que em 1938 eu já não tinha vinculação nenhuma com o Partido Integralista, passando a atuar livremente.

Fui, porém, diante dos reflexos da época, obrigado a exilar-me para escapar à perseguição de que eu era naturalmente vítima. E fui para a Itália, onde passei alguns meses, quando resolvi voltar novamente para afrontar a situação e resolver. Já então estava casado e tinha uma filha. De maneira que a situação era bem complexa.

De volta a São Paulo, fui preso e em seguida posto em liberdade, porque nada houve de comprovado contra a minha participação no chamado putsch integralista, em cuja feitura na realidade não tive participação sequer do ponto de vista programático.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Durante todo o Estado Novo, o que o senhor fez?

O SR. MIGUEL REALE - Durante o Estado Novo — aqui eu preciso explicar um pouco —, nos últimos anos do movimento integralista, enquanto Plínio Salgado, de certa maneira, mostrava certa reserva para com o Presidente Getúlio Vargas, eu achava que o Integralismo poderia ser uma força auxiliar, não do Estado Novo em si, mas para dar a ele um conteúdo que não tinha. Talvez Getúlio Vargas soubesse desse meu entendimento. O certo é que os acontecimentos me transformaram em uma espécie de colaborador de Getúlio Vargas.

Para compreender isso, é necessário que eu reconte um fato fundamental na minha vida, que não tem nada de política. É que, quando eu me vi vítima da vida política, resolvi voltar à minha tendência natural ao magistério e me preparei para um concurso à Faculdade de Direito de São Paulo, para a disciplina Filosofia do Direito, aberto em 1939. Foi então que escrevi minha tese Fundamentos do Direito, que foi publicada em 1940, para o concurso então realizado. Eu venci esse concurso. Mas, por um duplo ódio, filosófico e político, o meu concurso foi anulado, muito embora eu tivesse sido aprovado, com distinção, pelos 3 professores de fora, e reprovado com 6,85 pelos 2 mestres da Casa que faziam parte da banca.

Foi nessa ocasião que procurei o Presidente Getúlio Vargas, para fazer um apelo no sentido de que meu recurso para o Conselho Federal de Educação não sofresse influência política, por meio da intervenção pelo então Interventor de São Paulo, Adhemar de Barros, pressionado pelos professores paulistas. Nessa ocasião, Getúlio Vargas me disse: “Não haverá intervenção política. Se o Conselho entender que o senhor tem razão, o seu posto será garantido”. E efetivamente o Conselho Federal de Educação acolheu, praticamente por unanimidade, o meu recurso, e foi restabelecida a validade do concurso por mim vencido. E foi assim: graças à neutralidade de Getúlio Vargas, eu pude ser Professor da Faculdade de Direito de São Paulo.

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Em primeiro lugar, gostaria de perguntar-lhe justamente sobre essas 2 personalidades. Em primeiro lugar, como o senhor conheceu Plínio Salgado? Como foi a sua relação com ele? E, na perspectiva histórica dos dias de hoje, como o senhor vê o papel de Plínio Salgado na história do País?

O SR. MIGUEL REALE - Há um aspecto muito curioso na minha vida para com Plínio Salgado, porque Plínio Salgado nasceu na mesma cidade em que nasci eu: São Bento do Sapucaí. Mas eu nunca o havia encontrado. Só o encontrei quando já formado e, portanto, advogado militante. Foi quando vim a conhecê-lo. Plínio era um homem de grande talento, um dos maiores escritores deste País. Não se faz justiça à obra literária de Plínio Salgado. O Estrangeiro, de Plínio Salgado, foi o primeiro romance social publicado no Brasil. E ele focalizava exatamente o conflito de imigrantes em São Paulo, com o aparecimento de novas idéias tendentes a interpretar o mundo contemporâneo. Pois bem, eu tinha simpatia pelo Plínio escritor, que eu conheci pelo livro, antes de conhecê-lo pessoalmente. De maneira que Plínio Salgado não pode ser esquecido, antes de mais nada, como um autoditata, de genialidade incontestável. E ele tinha formação filosófica de autoditada, de filosofia política, que revelou em seu livro, que  merece ser relido, que se chama Psicologia de Revolução.

De maneira que foi aí que ele começou a escrever outras obras fundamentais. Se ele não tivesse valor, não teria atraído em torno de si a juventude intelectual mais representativa da época, com jovens como San Tiago Dantas, Jeová Mota e outros nomes que acabei de rememorar. E isso ocorreu tanto em São Paulo e no Rio de Janeiro, como também no Recife e no Rio Grande do Norte, com o grande Luís Câmara Cascudo.

De maneira que é preciso compreender que o integralismo, à época, reuniu o que havia de mais importante e significativo na juventude, fazendo face a outros intelectuais que operavam na linha marxista.

Basta citar esses fatos para mostrar que Plínio Salgado era um homem que efetivamente tinha personalidade. É claro que ele tinha uma ambição desmedida e pensou que tivesse condições de fazer face, em uma luta política, ao Presidente Getúlio Vargas, que, ao contrário, não tinha a capacidade intelectual de Plínio Salgado, mas tinha muito mais habilidade política, como demonstrou ao longo de toda a sua prodigiosa existência.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Como é que o senhor traçaria um retrato de Getúlio Vargas? Já que o senhor fez o retrato de Plínio Salgado, qual o retrato que o senhor faria do Getúlio Vargas?

O SR. MIGUEL REALE - Getúlio Vargas é uma personalidade que efetivamente merece um estudo muito profundo, porquanto ele é uma figura bem diferente daquela que geralmente é pintada. Ele é apenas apresentado como um homem que, em razão dos seus golpes políticos inteligentes, apropriava-se do poder, para manter-se nele de maneira mais longa. Na realidade, Getúlio Vargas era um estadista, como demonstrou em várias oportunidades. Eu mesmo vivi um episódio que bem demonstra como Getúlio Vargas acompanhava tudo o que acontecia no País.

Certa feita, fui convidado para ir a Petrópolis, onde Getúlio Vargas desejava a minha presença. Chegando lá, Getúlio me convidou para representar o Brasil em uma conferência internacional de Direito do Trabalho — notem bem que era uma conferência internacional de Direito do Trabalho. Muito embora fosse um cultor também do Direito do Trabalho, estranhei o convite. E Getúlio me disse: “Preciso do senhor. E mais do que isso, preciso que o senhor, ao chegar a Genebra, inscreva-se na secção relativa à agricultura.” Foi maior ainda a minha estranheza. E ele dizia: “Quando o senhor lá chegar compreenderá a razão dessa escolha”. Eu pretendi maiores explicações, e ele me respondeu: “Se o senhor precisasse de maiores explicações, não o teria convidado.” Ao chegar a Genebra, na condição de um dos 2 representantes do Brasil na Conferência Internacional do Trabalho, obedeci à instrução recebida, no sentido de ir para o setor agrário, e verifiquei que nessa área estava sendo programada uma solução altamente prejudicial ao Brasil, que seria a dispensa do salário mínimo nas plantações. Era a Inglaterra, que após a guerra ainda pensava poder impor o seu plano de exploração das plantações em nosso amplo e já por findar-se país colonial, pelo império colonial.

Imediatamente, eu me opus a essa solução, porquanto o Brasil teria, nas plantações de cana-de-açúcar, de café e de algodão, que pagar o salário mínimo, enquanto os seus competidores estariam dele dispensados. Havia, portanto, um desequilíbrio fundamental.

Vejam bem como o Presidente Getúlio Vargas estava a par de coisas dessa natureza, mostrando a atitude com a qual ele acompanhava os acontecimentos nacionais. E eu, felizmente, tive êxito, fazendo prevalecer o ponto de vista brasileiro, por uma votação em plenário, porquanto eu fora vencido no seio da comissão.

De maneira que lembro esse episódio não para enaltecer uma atitude minha, mas para mostrar até que ponto o Presidente Getúlio Vargas acompanhava os acontecimentos nacionais. E ele revelou.

Agora, o Estado Novo era uma continuidade da tradição positivista do Rio Grande do Sul. Geralmente, quando se fala em Estado Novo, mais uma vez surge a comparação com o fascismo italiano, com a Carta Del Lavoro como inspiradora da nossa legislação trabalhista, o que até certo ponto é verdade.

Na realidade, Getúlio Vargas era um positivista, um adepto, até certo ponto, da visão da teoria política de Augusto Comte, para quem o Poder Executivo é poder máximo e fundamental, sendo o Poder Legislativo apenas de natureza fiscalizadora. Daí o desprezo que o Getúlio sempre manifestou para com o Parlamento e a força que ele dava ao exercício do poder presidencial.

De maneira que considero Getúlio um homem de grande força e capacidade política, que soube identificar alguns problemas fundamentais do Brasil. Um problema que ele afrontou foi o da organização administrativa. O grande instrumento de ação do Estado Novo foi o DASP, Departamento de Administração do Serviço Público, porquanto, por meio do DASP, ele organizou não só a Nação, mas também permitiu que se organizassem os Estados.

Digo isso porque ele me nomeou membro do Conselho Administrativo do Estado de São Paulo, que legislava, ao mesmo tempo, para o Estado e para os Municípios de São Paulo e, de certa maneira, fiscalizava a ação do interventor nomeado pelo próprio Getúlio Vargas, que na ocasião era o Dr. Fernando Costa.

De maneira que devemos ao Estado Novo a reestruturação administrativa do País, o que nem sempre é lembrado, o que constitui uma grande injustiça do ponto de vista da sua contribuição à cultura brasileira.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O suicídio de Getúlio não fez o senhor mudar a imagem e o conceito que o senhor tem dele?

O SR. MIGUEL REALE - Como? Não entendi bem.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O suicídio de Getúlio Vargas não fez o senhor mudar o conceito que tem dele?

O SR. MIGUEL REALE - Não. Getúlio Vargas, com sua atitude, revelou 2 coisas: primeiro, que ele não tinha uma formação espiritualista, como, aliás, demonstra; por outro lado, revela uma coragem moral impressionante, porquanto ele se sentiu vítima de uma conspiração que não correspondia absolutamente aos fatos que lhe eram atribuídos. Ele podia, inegavelmente, negar a liberdade ao País; ele negou o processo democrático, mas ele nunca deixou de ser um grande patriota.

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Eu queria voltar a um ponto: o senhor se afastou do movimento integralista, e o País caminhou para a redemocratização em 1945. Que rumo tomou a sua vida política?

O SR. MIGUEL REALE - Nessa ocasião, eu era membro do Conselho Administrativo do Estado. Quando se deu a redemocratização do País, eu resolvi fundar um partido político, e o fiz ao lado de um grande político democrata de São Paulo, Marrey Júnior, que tinha sido um dos líderes do Partido Democrático, partido que veio fazer a luta contra o Partido Republicano antes de 1930.

O partido que fundei com o Marrey Júnior chamava-se Partido Popular Sindicalista, e nós conseguimos alguns aliados, como, por exemplo, na Bahia e no Ceará. Aliás, elegemos um Senador e 7 Deputados. Enquanto Adhemar de Barros, com o seu partido, chamado Partido Republicano Progressista, elegia apenas o Deputado Café Filho no Rio Grande do Norte.

Pois bem. Diante do insucesso eleitoral dos nossos partidos, eu propus ao Adhemar, que então conheci, que fundíssemos os 3 pequenos partidos: o Partido Republicano Progressista, o meu partido, o Partido Popular Sindicalista — e o popular-sindicalismo revela sempre a minha tendência no sentido da problemática social — e o Partido Agrário, do Mário Rolim Teles.

E da fusão desses 3 partidos surgiu o Partido Social Progressista, PSP, presidido pelo Adhemar de Barros, que tinha como Vice-Presidente o Café Filho e, em terceiro lugar, quem está falando neste momento.

De maneira que a minha vida política tomou outro rumo, o do social-progressismo, o que me iria levar, logo depois, a exercer o cargo, quando o Adhemar ganhou a eleição para Governador de São Paulo, a ser Secretário de Justiça, em 1947.

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos)  - A figura do Adhemar de Barros é uma figura extremamente polêmica, controvertida. Como é que foi a sua relação como Secretário e como colega de partido com Adhemar de Barros?

O SR. MIGUEL REALE - Adhemar de Barros era um homem também muito controvertido e de difícil definição, porquanto ele tinha uma visão inegavelmente grandiosa da ação pública, da função pública, como demonstrou o fato de ele ter construído rodovias como a Anchieta, ou realizado obras como a do Hospital das Clínicas de São Paulo, até hoje o maior hospital do País. Mas, ao mesmo tempo, ele pecava porque não sabia realizar obras públicas sem ter uma participação indireta na sua execução. E isto se tornava, de certa maneira, incompatível com a minha maneira de ser, razão pela qual eu sempre ocupei cargos por poucos meses. Eu fui Secretário de Justiça apenas por 5 meses, porque não encontrei condições para continuidade. É o que posso dizer.

Adhemar de Barros tinha alguma visão de estadista e ao mesmo tempo comprometia essa sua atividade em razão de outros compromissos, aos quais eu prefiro não fazer alusão maior.

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - O senhor chegou a conviver com Luís Carlos Prestes?

O SR. MIGUEL REALE - Eu nunca tive contato com Luís Carlos Prestes, a não ser quando o Partido Social Progressista uniu-se a ele em torno da candidatura política do próprio Adhemar de Barros, que recebeu na última hora o apoio dos comunistas.

Eu preferi fazer abstração do meu anticomunismo visceral, porquanto não ia negar ou recusar o apoio, o voto, de quem na ocasião era fundamental, mas devo reconhecer que, quando Secretário de Justiça, tive que afrontar muitas lutas, e encontrei por parte dos Deputados comunistas um apoio transpessoal de maior significado. E foi nessa ocasião que me tornei grande amigo do então Deputado Caio Prado Júnior, que, antes de mais nada, era um grande escritor, cuja obra merece a nossa atenção e admiração.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Professor Reale, o senhor talvez seja o brasileiro que tenha tido o privilégio de participar, de assistir, seja como testemunha, seja como protagonista, ao maior número de acontecimentos da história contemporânea do Brasil. Como o senhor vê essa crise institucional crônica, da qual o senhor participou ou, pelo menos, à qual assistiu em posição privilegiada?

O SR. MIGUEL REALE - Eu posso dizer que somos politicamente imaturos. A grande crise do Brasil é a falta de cultura do nosso povo. O povo brasileiro, politicamente, não tem uma identidade consolidada. Esta é a razão fundamental, é o motivo pelo qual as mutações se operam, sempre à margem da vontade popular e sempre por uma liderança que impõe o seu poder e as suas opções segundo as circunstâncias que vão ocorrendo.

Dessa maneira, considero que até hoje temos esse vício de uma formação política incompleta, imatura. Gilberto Kujawski acaba de escrever um livro muito interessante sobre o Brasil, intitulado A Arquitetura Incompleta. Esta afirmação ainda é mais válida no que se refere à vida política. Então, os partidos políticos também não têm a devida consistência. Os partidos políticos são mais agregados de interesse do que, na realidade, uma concentração de valores e ideais em torno de um programa, ou pelo menos de uma diretriz a ser seguida por um certo tempo.

No meu modo de entender, se é possível responder à sua pergunta, que é muito complexa e difícil, podemos dizer que é a falta de embasamento político na massa popular a razão primeira do insucesso da vida nacional, no plano democrático. E é, então, o motivo pelo qual tudo é incerto e inseguro.

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Professor, como estamos falando de instabilidade institucional e tudo o mais, como o senhor analisa a intervenção militar de 64? Como o senhor se colocou em relação à intervenção militar de 64 e como o senhor a analisa, com a perspectiva do tempo?

O SR. MIGUEL REALE - Bom, neste ponto, tenho que corrigi-lo um pouco, porque a intervenção militar veio em um segundo momento. O que houve, na realidade, com a renúncia do Presidente Jânio Quadros, foi que o País ficou em estado de absoluta perplexidade. E quando subiu ao poder o João Goulart, inegavelmente ele não estava preparado para a missão. A solução dada naquele momento, do parlamentarismo, ao qual chamei “parlamentarismo brasileiro”, talvez fosse uma solução adequada, se tivesse por exemplo tido êxito a candidatura de San Tiago Dantas. Se a candidatura de San Tiago Dantas tivesse tido êxito, o cenário nacional teria mudado profundamente. Contudo, João Goulart não acreditava, tinha temor, como todo homem medíocre, do homem inteligente que era San Tiago Dantas, com a sua capacidade não apenas de conhecimento mas de realizações. Assim, o Governo de João Goulart ficou solto no espaço. E nesse momento houve uma penetração inegável do Partido Comunista.

Lembro-me de um artigo de Luís Carlos Prestes na Folha de S.Paulo. Focalizando a situação do Governo de João Goulart, ele dizia que o comunismo não está no poder, mas está perto dele, está ao lado dele, para mostrar, portanto, como o comunismo tinha uma vinculação poderosa, havendo uma possibilidade de um golpe à maneira cubana no Brasil. Houve, então, uma reação, e essa reação não foi militar, inicialmente. E nisso que está o grande erro na colocação do problema de 64.

O meu filho, Miguel Reale Júnior, na época era estudante. Ele e outros estudantes promoveram um encontro singular e estranho entre Carlos Lacerda e Adhemar de Barros, dois inimigos e adversários que se encontraram diante do perigo e do risco do Partido Comunista. Então, deste encontro de Carlos Lacerda com Adhemar de Barros, surgiu uma tomada de posição de outros Governadores, como, por exemplo, de Meneghetti, no Rio Grande do Sul e de...

O SR. ENTREVISTADOR  (Tarcísio Holanda)- Magalhães Pinto.

O SR. MIGUEL REALE - Magalhães Pinto veio depois. E no Paraná...

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Ney Braga.

O SR. MIGUEL REALE - Ney Braga, no Paraná.

Posteriormente, houve a adesão do Magalhães Pinto, mas sempre à mineira, sem ser uma tomada de posição positiva e clara, a se revelar mais tarde, no momento do desfecho da revolução. Aparece, então, essa figura que se leva tão pouco em conta: General Mourão. Fala-se no movimento militar pensando-se no Costa e Silva, quando quem desencadeou o movimento na realidade foi o General Mourão, que era o comandante da região militar de Juiz de Fora.

Mourão quem era? Era um antigo integralista, era um dos componentes daqueles jovens que se formavam em torno de Plínio Salgado.

Depois, conversando com Mourão, ele me disse: “Estava eu fumando meu cachimbo quando minha mulher me disse: ‘Mas como é, Mourão, você não vai ouvir o Presidente da República, que vai visitar os marinheiros?’ E então eu caí em mim e fui ouvir no rádio o que estava acontecendo. E quando ouvi o Presidente da República tomar aquela posição subserviente perante os marinheiros, eu disse que chegara a hora de tomar uma posição. E eu me comuniquei imediatamente com o comandante de Belo Horizonte e com o Presidente e com o Governador Magalhães Pinto. Resolvi desfechar a revolução e marchar sobre o Rio de Janeiro. Entrei numa aventura.” E foi nesse momento que o Exército do Rio de Janeiro aderiu e São Paulo também tomou posição com o General...

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Kruel.

O SR. MIGUEL REALE - Kruel, que tinha ligações muito diretas com Adhemar de Barros.

Dessa maneira, quando se fala no movimento militar, é preciso ter todo o cenário presente, não é possível pensar apenas naquele desfecho, que foi a nomeação do General Costa e Silva para uma junta militar da qual ele era o chefe e a imposição que ele fez do Ato Institucional.

Costa e Silva, até aquele momento, não havia participado de nada que tivesse relevância e alto significado. Durante todo o tempo em que conspirei, notem bem, durante todo o tempo em que conspirei ao lado de Carlos Lacerda e de Adhemar de Barros e dos demais nomes que lembrei, jamais tive a oportunidade de ouvir qualquer referência a Costa e Silva. Ele foi nomeado chefe da junta militar porque era a patente mais alta que estava no Rio de Janeiro. Mas uma vez nomeado para a chefia, ele se revelou um homem de capacidade decisória extraordinária, porquanto entendeu que deveria tomar uma posição clara e definida, dando um rumo diferente àquele que deveria ser um processo democrático na visão de Adhemar de Barros, Carlos Lacerda e dos demais; tomou um rumo de natureza militar, herança talvez do antigo positivismo que veio passando por Floriano Peixoto, Hermes da Fonseca e assim por diante e que constitui e parece ser uma constante em certos meios militares.

Costa e Silva apelou para Carlos Medeiros, o jurista, a fim de que resolvesse a situação. E Carlos Medeiros se lembrou de Francisco Campos, que é uma luz que sempre se acende quando há curto-circuito na democracia, ou melhor, é uma luz que sempre se acende paradoxalmente quando há curto-circuito na democracia.

E Francisco Campos concebeu o Ato Institucional, que não era numerado, porquanto ele teria a duração apenas de 6 meses, para a escolha de um chefe militar e o restabelecimento do processo democrático. Eram 6 meses ou um pouco mais do que isso, não tenho bem presença.

Quando foi escolhido para ser o primeiro Presidente militar, infelizmente o General Castelo Branco deu continuidade ao Ato Institucional, baixando o Ato Institucional nº 2 ! E  o de nº 2 trouxe como conseqüência o de nº 3!; e o de nº 3, o de nº 4!. E finalmente apareceu o tremendo Ato Institucional nº 5! , que consolidou por tantos anos uma solução antidemocrática.

Talvez eu esteja aqui revelando alguma coisa que não seja do conhecimento comum, mas que representa a verdade histórica, tal como ela foi pessoalmente vivida por mim.

A SRA ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - E a Constituição de 1967, o senhor participou dela?

O SR. MIGUEL REALE - Não participei da Constituição de 1967. A Constituição de 1967 foi um arrependimento do General Castelo Branco. Castelo Branco era paradoxalmente um democrata inegável, mas praticou atos antidemocráticos também por sua vez incontestáveis. Mas ele se arrependeu de ter baixado o Ato Institucional nº 2, que poderia levar à continuidade um regime de exceção. Então, ele convocou os juristas da época, entre os quais não estava eu, para fazer a Constituição de 1967.

A Constituição de 1967, por conseguinte, surgiu como uma solução de emergência. Era uma Constituição bem-feita, bem-elaborada, sintética, da qual faltava apenas uma declaração de direito, como depois me disse Afonso Arinos de Melo Franco, quando fomos membros do Conselho de Cultura.

Certa vez, conversando com Afonso Arinos, ele disse: “O General Castelo Branco me consultou — ele era Parlamentar na época, Senador, se não me engano — sobre a Constituição de 1967.” E ele, Afonso Arinos, disse que nada tinha a observar, a não ser que faltava uma declaração fundamental de direitos, que foi às pressas escrita para compor a Constituição de 1967.

E depois se deu o drama de Castelo Branco na escolha do seu sucessor, indo o Presidente Costa e Silva. Foi com Costa e Silva que eu tive relacionamento para a revisão, para restabelecer a Constituição de 1967, ou melhor, para a revisão da Constituição de 1967. Por que razão? Porque Costa e Silva, apesar do seu sentido duro, apesar da sua orientação, por assim dizer, de natureza autoritária, ele queria pôr termo ao AI 5, que havia sido baixado por ele. Convidou, então, um grupo de juristas para compor uma comissão presidida pelo Vice-Presidente da República, Pedro Aleixo. Foi feito um projeto de Constituição, para o qual eu fiz uma proposta: que o Ato Institucional poderia a qualquer tempo ser revogado por decreto do Presidente da República, restabelecendo-se o regime democrático.

Devo aqui declarar, por ser expressão da absoluta verdade, que Costa e Silva concordou com esse meu ponto de vista, declarando que um dos seus primeiros atos seria a revogação do Ato Institucional. Infelizmente, ele foi acometido de um mal súbito, e a sua morte veio alterar completamente o rumo dos acontecimentos. Com a morte súbita de Costa e Silva, o nosso projeto de Constituição ficou prejudicado, e aquele capítulo especial de revogação desapareceu, para o Ato Institucional continuar em vigor durante tanto tempo.

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Quem mais fazia parte dessa comissão?

            O SR. MIGUEL REALE - Quem fazia parte?

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Da comissão para revisar a Constituição.

            O SR. MIGUEL REALE - Dos que eu me lembro, faziam parte Themistocles Cavalcanti, Carlos Medeiros, o Ministro da Justiça da época, meu antigo colega de turma da faculdade, o Prof. Gama e Silva, e outros cujo nome, assim de pronto, não me ocorre. O Presidente da comissão era, porém, o Vice-Presidente Pedro Aleixo.

Depois o poder acabou nas mãos do Presidente Médici, porque foi o General Médici que assumiu a Presidência, e o nomeou o Ministro da Justiça — como chamava ele?

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Alfredo Buzaid.

            O SR. MIGUEL REALE - Não, não o da Justiça; o Chefe da Casa Civil.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Dr. Leitão de Abreu.

            O SR. MIGUEL REALE - Leitão de Abreu, que fora incumbido antes... Esperem um pouco, estou dando um salto, porque antes de Médici houve uma comissão. É preciso levar em conta que eu tenho 91 anos e que, de vez em quando, há falha de memória.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O senhor está muito bem!

            O SR. MIGUEL REALE - Com a morte de Costa e Silva, foi nomeada uma comissão de generais.

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Uma junta militar.

            O SR. MIGUEL REALE - Uma junta militar, não uma comissão, que depois iria escolher o Presidente Médici. Essa junta militar incumbiu o Professor Leitão de Abreu de dar uma redação à Emenda Constitucional de 1969, que é chamada de “Constituição de 69”, e naturalmente eliminando toda aquela parte que havia sido desejada por Costa e Silva, no sentido de eliminar o governo de exceção.

Ao contrário, daí veio a “Constituição de 69”, que aproveitou em parte o nosso trabalho, menos aquela parte que punha termo ao regime de exceção, compreendem? Este ponto é muito importante para que se compreendam os acontecimentos futuros.

            Depois veio a eleição do Presidente Médici e toda a seqüência do Governo Geisel e Figueiredo, até se chegar à reconstitucionalização do País.

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Eu queria voltar a essa comissão constitucional para a revisão da Constituição dos militares, a de 1967, em função daquele artigo do Correio Braziliense que trata do “Tribunalzinho” — como estava sendo chamada por Costa e Silva —, da qual participou Gama e Silva, Rondon Pacheco, o senhor, Hélio Beltrão e...

            O SR. MIGUEL REALE - O Themístocles Cavalcanti.

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) –... que estava querendo acabar com a unidade, para separar os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Como o senhor viu essa reportagem?

            O SR. MIGUEL REALE - Eu não conheço essa reportagem, pois me foi mostrada só agora. Saiu ontem, não sei em qual jornal.

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - No Correio Braziliense.

O SR. MIGUEL REALE -  Eu não sabia que o Costa e Silva se referia a nós como “Tribunalzinho”, porque, na realidade, era uma comissão constitucional. O que eu posso repetir é que esta comissão foi constituída porque Costa e Silva tinha o propósito de pôr termo ao regime de exceção, voltando a uma Constituição que seria, esta sim, a verdadeira “Constituição de 1969”, e não aquela que depois passou a ter vigência, mas com a eliminação da parte, por assim dizer, de caráter democrático.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O senhor colaborou na redação de alguns documentos. O senhor chegou a colaborar na redação de alguns atos institucionais?

            O SR. MIGUEL REALE – Não, nunca tive participação em qualquer dos atos. Felizmente, nunca tive participação na redação de nenhum ato institucional.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Que apreciação o senhor faz dos generais Presidentes da República que se sucederam no poder desde 1964 até 1985?

            O SR. MIGUEL REALE - Os generais foram o Costa e Silva — ao qual já fiz referência e sobre o qual já manifestei a minha opinião —; em seguida, vem o General Médici. Não me ocorre agora o nome do Chefe da Junta Militar.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) -  General Lyra Tavares.

            O SR. MIGUEL REALE - Lyra Tavares, que era cunhado do Leitão de Abreu, razão pela qual Leitão de Abreu recebeu, além de seus méritos pessoais de jurista, a incumbência de aproveitar, na medida do possível, o trabalho feito pela comissão a que pertenci, compreendem?

            Depois veio o Presidente Médici, que é considerado o Presidente responsável por todos os atos de violência, os maiores atos de violência.

            Tenho a impressão pessoal de que ele ignorava a maior parte dos atos de violência praticados, porquanto, por seu temperamento, não me parecia que fosse capaz de dar cobertura a todos aqueles atos violentíssimos que foram praticados. Mas prefiro me omitir, porque não tenho qualquer prova nem a favor nem contra essa circunstância.  

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Mas que apreciação o senhor faz desses generais? Quem o senhor considera mais qualificado?

O SR. MIGUEL REALE  - Do ponto de vista do preparo, inegavelmente o mais preparado deles era o General Ernesto Geisel, que foi indicado como o general mais dotado de qualidades intelectuais e culturais. Mas ele era um homem, digamos assim... Seria difícil caracterizá-lo.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Um autocrata.

O SR. MIGUEL REALE -  De um espírito muito violento e autocrata. A palavra talvez mais ajustada a ele seria esta, autocrata, no sentido de querer impor sempre a sua vontade, como ele demonstrou em 1977, quando quis fazer a reforma do Poder Judiciário, que foi recusada pela Câmara dos Deputados. Incontinenti ele decretou o recesso parlamentar e impôs, por emenda constitucional, a reforma por ele desejada. Assim, ele era um homem que não compreendia determinadas atitudes.

E aqui lembro um fato pessoal, que demonstra bem a natureza do seu espírito. Ele me convidou, como já o fizera o Presidente Costa e Silva, para ser membro do Supremo Tribunal Federal, mas confesso que jamais tive vocação para juiz, ainda que da Suprema Corte. Declarei que tinha compromissos de ordem filosófica com o Instituto Brasileiro de Filosofia, que eu havia fundado e do qual era Presidente, e com o compromisso do meu pensamento, com minha vocação verdadeira de jurista e de filósofo. Enquanto Costa e Silva o compreendeu e nada disse, Geisel de certa maneira respondeu: “Há certos cargos que quem é patriota não pode recusar.” Eu respondi: “Cabe a cada um saber no que consiste o patriotismo”. Vejam bem o tipo de homem ao qual estamos nos referindo!

Eu o considero um homem extremamente prepotente em certas circunstâncias. Ele tornou mais difícil o exercício do poder, até o momento em que ele percebeu, porque ele era homem muito inteligente e muito perspicaz, que não havia condições para a continuidade do poder militar. Daí ele passou a uma solução, que foi a escolha do General Figueiredo, que iria dar mais abertura.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Ele dizia, o General Geisel, que o povo brasileiro não tinha preparo para conviver com a democracia. Ele pregava a tese de que a democracia no Brasil deveria ser relativa. O senhor acha que ele tinha razão?

O SR. MIGUEL REALE -  Até certo ponto sim, no sentido de que nos faltava um embasamento democrático, ou melhor, uma educação política, como acabei de fazer referência. Porém, ele se engana em um ponto de vista: o de que a democracia não se aprende na escola. Aprende-se a democracia praticando-a na vida concreta eleitoral. Não há como educar um povo, a não ser no processo democrático.

Estamos vendo que o povo brasileiro hoje tem mais educação política do que há 10 anos, no início da Constituição de 1988. O processo democrático, por si mesmo, é a maior escola de formação política, sobretudo agora com o rádio e a televisão.era Assim, o grande erro dele é o de que ninguém aprende a nadar lendo um tratado de natação e sem ter a coragem de se lançar à água, como dizia Hegel, com muita razão.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O senhor acha que o Brasil ainda corre risco de intervenção militar, de golpe de Estado, de retrocesso institucional?

O SR. MIGUEL REALE - Não creio. Fiz referência à educação política atual e sinto que hoje nós temos uma estabilidade tal, que aquele  mal positivista, na ditadura positivista, que ficou na origem da República, já não tem mais a força que tinha. Eu não acredito de maneira alguma num retorno a uma ditadura ou a um regime de exceção, a não ser que surja algum acontecimento ou imprevisto de natureza universal. Na conjuntura e na situação atual, é improvável qualquer ruptura no processo democrático já conquistado pelo País.

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida)  - E esses movimentos, o MST, o próprio Partido dos Trabalhadores, como o senhor vê isso dentro da realidade brasileira às vésperas de uma eleição?

O SR. MIGUEL REALE - O Partido dos Trabalhadores é um partido que merece o nosso respeito inegavelmente por aquilo que ele já realizou e tem realizado em vários Estados, mas ele jamais terá, pelas circunstâncias atuais, maioria parlamentar. Dessa maneira, na melhor das hipóteses, em caso de eventual vitória do Lula, ele poderá ter o Poder Executivo, mas não terá todo o poder, muito menos o Poder Judiciário, para fazer o que bem entende. Assim, vejo a possível entrada de um representante do Partido Trabalhista no Governo como uma experiência a mais a ser vivida nessa nossa inconstante vocação democrática.

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Professor, quero voltar a um ponto que considero importante. O senhor, ao lado de outras lideranças civis importantes, participou dessa conspiração que redundou no golpe de 64. Em que momento os senhores perceberam que perderam o controle do processo, que começou com a operação civil, e por que os senhores perderam esse controle?

O SR. MIGUEL REALE - Como eu escrevo no segundo volume de minha memória, que tem o título A balança e a espada, a Revolução de 64 foi, antes de mais nada, uma revolução de Governadores, que acabou sendo uma revolução de generais. E nós percebemos diante da circunstância de força: aos poucos os Governadores perceberam que seu poder constitucional não podia fazer face à decisão militar tomada à revelia deles. Então, foi um fato consumado, um fato consumado puro e simples, diante do qual não havia como tomar posição.

Eu lembro quando o Adhemar de Barros voltou do famoso encontro dos Governadores com o General Costa e Silva, quando este declarou: “Está terminada a sessão. Os senhores podem voltar para os seus lugares e continuar nas suas atuações, porquanto cabe a nós, e tão-somente a nós, a decisão suprema.”  Foi nessa ocasião que se deu o conflito com Carlos Lacerda, que foi o único que protestou, e saiu como que expulso da reunião.

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Indago sobre Carlos Lacerda. Carlos Lacerda é visto por boa parte dos analistas políticos como um homem que era inimigo nato da democracia.

O SR. MIGUEL REALE - Como assim?

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Porque conspirou contra Getúlio, que era um Presidente eleito, conspirou contra Juscelino, conspirou contra Jânio, conspirou...

O SR. MIGUEL REALE - Não.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Pregou o regime de exceção em 1955 e 1956. Pregou o regime de exceção abertamente.

O SR. MIGUEL REALE - Não, ele era...

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Que avaliação o senhor faz da atuação política e da pessoa de Carlos Lacerda?

O SR. MIGUEL REALE - Eu jamais veria o Carlos Lacerda um inimigo da democracia. Ele era inimigo da ideologia comunista, da qual ele foi durante certo tempo um seguidor; mas depois ele percebeu o que representaria de negativo o comunismo para o País, e tomou uma atitude. Ele foi sempre adversário de duas coisas: ditadura e comunismo. Como classificá-lo como antidemocrata?

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Porque ele pregou o regime de exceção.

O SR. MIGUEL REALE - Essa pintura do Carlos Lacerda como antidemocrata só pode ser mais uma criação do esquerdismo nacional, que às vezes se diverte em inverter os valores históricos.

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - O Jânio Quadros, o senhor chegou a ter algum contato com ele ou chegou a conhecê-lo?

O SR. MIGUEL REALE - Pouco. Foi uma figura histórica com a qual quase não tive contato e sobre a qual posso ter uma opinião, mas que é pessoal.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - E qual a sua opinião sobre Juscelino Kubitschek?

O SR. MIGUEL REALE - O Juscelino Kubitschek foi o homem que teve a compreensão de qual seria a democracia possível no Pais. E isso lhe valeu muito, porquanto ele atuou sempre aceitando uma aposta: a aposta do bom vencedor. Então, eu acho que ele teve uma mineirice de grande êxito. O mineirismo é uma qualidade rara, que deve ser posta em evidência, e inegavelmente Juscelino soube tirar proveito da confiança que inspirava. Ele inspirava muita confiança na Nação, e soube com isso realizar uma obra extraordinária, para a qual infelizmente não houve continuador.

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Falando em Presidentes e em ex-Presidentes, cito Tancredo Neves.

O SR. MIGUEL REALE - Eu não tive maior contato também com Tancredo Neves. Eu, residindo em São Paulo e perdido nos meus estudos filosóficos da última fase da minha existência, não tive contato com Tancredo Neves, a não ser naquele momento em que ele afrontou a candidatura perante o Colégio Eleitoral.

Naquela ocasião, eu examinei, como jurista — e este considero um dos momentos culminantes da minha vida como constitucionalista —, os poderes do Colégio Eleitoral e sustentei a tese de que o poder de incompatibilidade não se projetava. Se bem me lembro, a matéria que era...

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Era a fidelidade partidária.

O SR. MIGUEL REALE - Exato, que a obrigação da fidelidade partidária não atingia o Colégio Eleitoral, que a fidelidade partidária era constitucionalmente válida apenas no seio do Congresso e não se estendia ao Colégio Eleitoral, que tinha outra natureza jurídica, razão pela qual recebi de Tancredo Neves um telegrama, que  guardo com muito carinho, agradecendo essa tomada de posição, que foi decisiva para a sua eleição.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Como o senhor viu o processo de transição do regime ditatorial, do regime militar, para a restauração do poder civil? Como o senhor viu a ascensão de José Sarney, em razão do impedimento, por doença e morte, de Tancredo Neves?

O SR. MIGUEL REALE - Antes disso, eu prefiro lembrar outra participação minha: com o Ministro da Justiça do Presidente Figueiredo.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O Petrônio Portela.

O SR. MIGUEL REALE - Sim, Petrônio Portela. Petrônio Portela convidou-me para assessorá-lo na elaboração de uma emenda constitucional destinada exatamente à abertura democrática. Eu, que sou geralmente apontado como integralista — porque impuseram-me nas costas o nome de integralista e, daí por diante, não se pensa em mais nada — dei uma colaboração fundamental e escrevi vários projetos, várias opções possíveis e elas serviram para a abertura democrática que depois sobreveio. É uma das minhas vaidades! A vaidade não é própria só das mulheres, os homens velhos também são vaidosos, naturalmente vaidosos! Assim, quando houve essa passagem, isso não foi surpresa, porque eu havia trabalhado para o seu advento.

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Peço ao senhor uma opinião com relação à Constituição de 1988, a chamada Constituição Cidadã. Ela ficou muito além da realidade brasileira? Qual é a sua opinião a respeito da atual Constituição?

O SR. MIGUEL REALE - Eu tenho escrito muito sobre a Constituição de 1988, não só em livros como em pareceres. A Constituição de 88 foi uma grande ilusão democrática, pretendendo transformar algo em democracia, somente pelo fato de assim declarar o Congresso. Portanto, a Constituição de 88 se perde naquilo que eu chamo “o totalitarismo normativo”. A democracia implica na renúncia de certos valores que devem ser deixados à liberdade de escolha. Quando, ao contrário, se quer determinar tudo na Constituição, acaba-se no totalitarismo normativo. É o mal da Constituição de 88: ela dispõe sobre tudo e não deixa lacuna para a liberdade e para a ativação partidária. Este ponto é muito importante.

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - No momento, para o Brasil consolidar-se do ponto de vista democrático, que tipo de iniciativa é fundamental para se equilibrarem os poderes? Que tipo de iniciativa o senhor considera fundamental para o Brasil se consolidar definitivamente como uma democracia?

O SR. MIGUEL REALE - Eu tenho a impressão de que o Brasil não está precisando de reforma constitucional, a não ser a tão importante reforma política. A crítica que tenho feito à reforma que vem sendo feita é a preterição daquela que deveria ter sido a primeira, a reforma política. Se tivesse havido a reforma política, por exemplo, com o voto distrital misto e outras decisões desse tipo, com a implantação de um neoparlamentarismo ou de um presidencialismo parlamentarizado ou coisa que o valha, porque seria difícil explicar aqui, se tivesse sido feita a reforma política, o Governo não teria sido obrigado a ceder tanto às pressões e às convenções partidárias.

Infelizmente, nós vimos que o Presidente Fernando Henrique muitas vezes foi obrigado a ceder diante das composições do PSDB, do PMDB, do PFL, e assim por diante. A reforma política deveria ter sido a primeira a ser feita, para se assegurar maior equilíbrio. A reforma política é aquela que me parece fundamental.

E é nesse ponto que eu tenho receio da vitória do PT, porque o PT jamais faria a reforma política, para preservar o seu poder de mando. Eu não sou contra o PT pelo PT, mas pelas conseqüências que poderão surgir em razão da reforma política que considero absolutamente urgente.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) – O que o senhor considera relevante a respeito da sua atuação universitária?

O SR. MIGUEL REALE - A atuação universitária é essencial na minha vida, de maneira que eu estava sentindo um pouco a falta disso. O meu maior orgulho político foi ter sido reitor por duas vezes, porque foi nessa oportunidade que eu pude exercer por mim mesmo, deliberar por mim mesmo e poder executar aquilo que eu achava indispensável para a juventude e para a cultura nacional.

Eu me orgulho de ter sido reitor em 1949, quando implantei o ensino noturno em São Paulo pela primeira vez, com repercussão em todo o País; quando criei os campi universitários no interior do Estado, não ficando tudo concentrado na Capital; quando criei, por exemplo, a Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, que iria se transformar em um dos centros científicos mais importantes do País. Depois, de 1969 a 1973, quando realizei a reforma universitária básica - implantei praticamente essa reforma -, pondo termo às cátedras para criar os departamentos universitários, numa visão democrático-cultural que foi da maior significação para a vida brasileira.

            Lamento que, após tantas realizações universitárias de vulto, tenhamos caído numa situação de crise como aquela que estamos vivendo, em que, a pretexto de diferença de vencimentos, os estudantes e os professores se acham em greve.

A SRA ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Eu queria falar em uma outra atividade que o senhor exerceu. O senhor participou durante 15 anos do Conselho Federal de Cultura. Como foi a sua atividade? O senhor teve contato direto com a censura? Como foi a sua experiência?

O SR. MIGUEL REALE - Depois da minha vida universitária, a minha vida mais importante, o meu período de vida mais feliz foi durante os 15 anos do Conselho Federal de Cultura, ao lado de personalidades como Gilberto Freyre, Afonso Arinos de Melo Franco, Pedro Calmon e assim por diante. Era um grupo que tinha, na realidade, bem a consciência do que havia de necessário para implantar no País um programa de vida que fosse, na realidade, adequado ao País. De maneira que eu considero esses 15 anos no Conselho Federal de Cultura o período que veio iluminar a minha vida e dar-lhe sentido.

A SRA ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - E a Academia?

O SR. MIGUEL REALE - Bom, a Academia não poderia ser esquecida, evidentemente, porquanto eu sou hoje o segundo acadêmico mais antigo - mais antigo do que eu somente Josué Montello, que entrou muitos anos antes da minha entrada, que foi em 1975. Mas, depois de 75, não houve acadêmico mais antigo. Eu sou o segundo depois da morte de Barbosa Lima. Eu sou o segundo não em idade, mas em antigüidade na entrada na Academia.

A Academia é algo de substancial na vida brasileira. Eu compreendo o interesse que há quando surge uma vaga na Academia, porquanto nela se pode realizar um destino. Tanto se pode passar pela Academia em branca nuvem, como nela realizar algo de significativo para o País.

Eu tenho consciência de que, como acadêmico, apesar de não ter participado pessoalmente, semanalmente, das reuniões da Academia, continuei assumindo uma responsabilidade, a responsabilidade de pôr o Brasil em um diálogo universal.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Como o senhor, com a sua experiência de reitor em duas oportunidade, com uma velha experiência de cátedra de professor universitário, vê a crise da universidade brasileira? O senhor não pode desconhecer que ela existe.

O SR. MIGUEL REALE - É claro. E não só existe, sei que ela existe, como a tenho lamentado.

Eu acho que tem havido muitas aspirações indevidas neste momento. Num momento de crise econômica como o que estamos vivendo e estamos imersos, quando o operário é obrigado a contentar-se com um salário mínimo ridículo, eu não posso compreender que um professor possa se queixar dos vencimentos que percebe.

Tudo tem de ser olhado no seu contexto global e geral, de maneira que a responsabilidade do professor é, em primeiro lugar, perante a cultura; em segundo lugar, perante seus interesses.

            Eu não estou pretendo que a minha aposentadoria seja alterada. Eu me conformei com o congelamento da minha aposentadoria durante esses 8 anos porquanto... É verdade que eu continuo na minha atividade profissional, que é bastante compensatória, mas ainda que esta não houvesse, eu tenho consciência que não faria greve. A greve é um direito do trabalhador, mas não pode ser estendida a quem presta um serviço fundamental para a formação do espírito.

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Só uma última pergunta para encerrar: o que mudou do Miguel Reale integralista para o Miguel Reale de hoje?

O SR. MIGUEL REALE - Eu digo que não mudou nada, porque fui integralista com dedicação e espírito público, e essa dedicação e espírito público nunca me abandonou.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Brilhante depoimento.

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Foi ótimo.