Texto

DEPARTAMENTO DE TAQUIGRAFIA, REVISÃO E REDAÇÃO

 

NÚCLEO DE REDAÇÃO FINAL EM COMISSÕES

 

TEXTO COM REDAÇÃO FINAL

 

ENTREVISTA COM O EX-DEPUTADO JOÃO AMAZONAS - REALIZADA EM 21/11/2001

EVENTO: Entrevista                   

N°: ESP002/01

DATA: 21/11/2001

INÍCIO: 09h00min

TÉRMINO: 10h35min

DURAÇÃO: 01h36min

TEMPO DE GRAVAÇÃO: 01h36min

PÁGINAS: 28

QUARTOS: 20

 

 

DEPOENTE/CONVIDADO - QUALIFICAÇÃO

 

JOÃO AMAZONAS – Ex-Deputado Federal e ex-Presidente de Honra do PCdoB.

 

 

SUMÁRIO: Entrevista com o ex-Deputado Federal João Amazonas.

 

 

OBSERVAÇÕES

 

Há expressões ininteligíveis.

Há falha na gravação.

 

Conferência da fidelidade de conteúdo – NHIST  24/03/2009

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Sr. Amazonas, nós gostaríamos que o senhor começasse falando dos seus pais, da sua origem social, dos primeiros tempos de estudante; por que o senhor, aos 18 anos de idade, ingressou na Aliança Nacional Libertadora?

O SR. JOÃO AMAZONAS - O meu pai era padeiro; a minha mãe, uma mulher doméstica. Tiveram 8 filhos: 3 mulheres — foram as primeiras, depois 5 homens; e eu sou o primeiro dos homens. Nasci em 1º de janeiro de 1912.

Passamos uma vida, é natural, uma vida difícil porque se pode imaginar que, com o salário que ganhava o meu pai, numa família tão grande, a vida não fosse tão risonha como se podia pensar, muito difícil, né!. Estudamos em grupo escolar. Depois, o meu pai morreu, no dia 15 de novembro. Nós todos estávamos numa cidadezinha do interior, passando uns dias para ver se ele melhorava de saúde. E eu e outro irmão fomos lá fazer uma visita a ele. Chegamos lá, ele começou a morrer. Daí a umas 2 horas ele estava morto. Foi terrível; um abalo grande para todos nós. Ele chegou a me dizer, caminhando conosco na rua: “Agora você tem de assumir a chefia da casa. Você é o homem da casa”. O que é que se vai fazer?

Estudei em grupo escolar, já disse. E depois entramos para uma escola prática do comércio, porque o ensino era de noite e de graça. Então, eu trabalhava até as 7h da noite, e a escola era das 7h às 9h. Então, podíamos freqüentar essa escola de comércio. Chegamos a nos formar em guarda-livros, contabilista.

Não tive maior acesso à própria profissão que eu adquiri porque entrei para o partido em abril de 1935. E, desde que entrei para o partido, dediquei a minha vida toda à atividade partidária. Eu não pensava em outra coisa que não fosse o partido.

Não preciso dizer que esse período de 1935 foi um período de grandes movimentos revolucionários no mundo e também de grandes perseguições por toda  parte. No Brasil, a Aliança Nacional Libertadora teve apenas 3 meses de legalidade. Depois foi fechada. Em seguida, cometeu-se um erro, eu acho, de descambar para o golpe militar, para a ação militar. Ainda não se havia enraizado o movimento nas massas citadinas, sobretudo no campo. Era muito precário ainda. Os comícios eram gigantescos; comícios enormes, imensos. E foi por isso que Getúlio, com 3 meses de Aliança, fechou a Aliança. Ela tinha à frente elementos que já eram de destaque, como o Comandante Sisson, da Marinha e o Prefeito do Distrito Federal também participava da direção da ANL.

Era um momento de grande movimentação em todo o mundo o ano de 1935. Hitler tinha subido ao poder na Alemanha e preparava abertamente a guerra. O fascismo tomava feições muito complexas. No Brasil, isso foi de uma evidência muito grande. No Brasil nós tivemos páginas terríveis na nossa história. Torturas... Foi preso Harry Berger, um combatente revolucionário alemão que tinha estado na China durante muitos anos, que tinha muito experiência e veio ao Brasil para ver se nos ajudava também a como levar o movimento à vitória etc. Foi preso. E se cometeram atos terríveis.

Foi preso o Prestes, e Getúlio entregou a mulher de Prestes à Gestapo. Uma coisa monstruosa; uma mulher grávida, por cima de tudo. Anita Prestes nasceu na prisão. Depois, a avó conseguiu retirá-la etc.

Quer dizer, foi um período difícil, duro demais, bárbaro. Em todo caso, o partido mostrou que não estava afeito ao combate a pessoas em si mesmo. Getúlio aparecia como inimigo monstruoso, digamos assim.

Veio o problema da guerra, e a Alemanha atacou a União Soviética, que era o país do socialismo. E nós nos mobilizamos todos para ver se participávamos desse grande combate, de luta contra o fascismo e contra o nazismo.

E Getúlio, que tinha cometido crimes inomináveis contra os nossos companheiros — muitos assassinados; grande número de companheiros assassinados —, viu-se pressionado pelos americanos também, e o Brasil acabou participando da guerra. Os submarinos que até hoje não sabemos bem se eram alemães ou americanos puseram alguns navios brasileiros a pique. O que é certo é que o Brasil declarou guerra. O nosso partido, que tinha Getúlio como inimigo visceral, mas nós não tivemos dúvida de organizar o povo brasileiro para participar da Segunda Guerra Mundial, como um dever nosso, e compreendendo que as mudanças democráticas no Brasil iam depender da vitória contra o nazismo. E por isso tivemos um grande movimento popular nesse sentido.

Getúlio acabou aderindo ao movimento de participação na guerra, pressionado pelos americanos, já disse, e nós não tivemos dúvida também em mudar a nossa posição frente a Getúlio. Não era um problema pessoal, era um problema político sobretudo.

O que é certo é que mais adiante nós conseguimos, nessa luta, nessa batalha contra o nazismo, já no final, a anistia dos presos políticos. Foi uma grande vitória. Saíram da prisão Prestes, Marighella, Crispim, Lacerda, Duarte, aqui de São Paulo, muita gente que estava encarcerada já fazia muitos anos.

Criou-se um movimento popular de envergadura. E Getúlio parecia, então, um cara que havia assumido a direção também desse novo código político no Brasil. E, por isso, as Forças Armadas não tiveram dúvida: ali Dutra já jogava um papel importante nas Forças Armadas. Veio o golpe, de outubro; tirou Getúlio do Governo e convocou, o Presidente (ininteligível), que era Linhares, no dia 02 de novembro convocou as eleições para o dia 2 de dezembro; quer dizer, 30 dias para que se realizassem as eleições para a Assembléia Nacional Constituinte no Brasil. Era um espaço muito curto, muito difícil, mas participamos da eleição. Legalizamos o partido, abrimos a sede. A figura de Prestes, na época, tinha grande destaque etc. E conseguimos eleger 15 Parlamentares: 14 Deputados Federais e 1 Senador. Foi um grande êxito político, importante na Assembléia Constituinte, que tinha 330 Constituintes, mais ou menos isso. Eu fui um dos Constituintes; fui eleito pelo Rio de Janeiro, junto com Grabois e Batista Neto, que eram operários do Arsenal de Marinha.

Marighella tinha sido eleito também, pela Bahia; 3 outros tinham sido eleitos por Pernambuco. Abílio Fernandes foi eleito pelo Rio Grande do Sul. E assim se constituiu uma bancada que era motivo de muito interesse de quem visitava o Rio. Quem viajava para o Rio, que era a Capital da República, tinha a obrigação de ir à Câmara, sobretudo para ver a cara dos comunistas. Não aturavam os comunistas, é certo. As galerias estavam sempre repletas, cheias de gente; era difícil encontrar vaga para botar uma pessoa a mais lá.

Quer dizer, esse foi o nosso trabalho. Nós atuamos como Constituintes. Promoveu-se a Carta de 1946. Nós fomos signatários, sem restrições, da Carta de 1946. E, depois de tudo isso, fez-se a eleição para Presidente da República, e Dutra se impôs como candidato oficial. Ele conseguiu ser eleito Presidente da República. Foi o pior Presidente que este País já teve, pela ignorância, pela brutalidade, pela falta de sensibilidade humana. Era um tipo perverso.

Foi um período difícil que se abriu para nós. Foram assassinados, nessa época, 34 comunistas, inclusive 1 jornalista, mulheres etc. Quando terminou a Constituinte, em 1947, nós todos fomos cassados. Dutra foi para o tribunal pedir a cassação do registro do partido. Mas os 5 juízes... 3 a 2 a nosso favor. Então, não teve dúvida: tirou um que era a nosso favor e botou outro. Então, ficou 3 a 2 contra nós. Com isso, cassou o registro do partido. Depois cassou o mandato de todos os Deputados Constituintes e foi decretada a ordem de prisão preventiva de toda a direção do partido. Essa ordem de prisão preventiva durou de 1948 a 1957...

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Desculpe-me, Dr. João Amazonas.

Qual foi o argumento que Dutra usou? Porque o partido estava na legalidade; o partido estava participando da Assembléia Constituinte. Qual foi o argumento que ele encontrou para cancelar a legalização do partido?

O SR. JOÃO AMAZONAS - O velho esquema: era um partido subversivo. O que você quer? Não tinha outro argumento, compreende?

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos)  - Não houve um fato ou episódio que tenha...

O SR. JOÃO AMAZONAS - O quê? Não teve nada. Ali valeu foi a força mesmo.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Parece-me que eles sustentaram que o Regimento Interno real do partido não era o que tinha sido registrado na Justiça Eleitoral, mas um outro secreto.

O SR. JOÃO AMAZONAS - É. Então, tinha essas coisas.

Quando veio a campanha de Juscelino, com o fim do mandato de Dutra, eu tive um encontro com Juscelino, clandestino. Fui eu e foi o Lincoln Oest que fomos conversar com Juscelino. E Juscelino disse assim para nós:

“Mas vocês são, no Brasil, o quê? Trezentos mil votos.  Não é mais do que isso. Numa eleição presidencial, 300 mil votos não têm importância nenhuma. Agora, eu quero dizer a vocês o seguinte: por princípio democrático, se eu for eleito, eu vou mandar suspender essa perseguição jurídica que há aí contra vocês. Eu vou acabar com isso”.

Acontece que Juscelino foi eleito com menos de 300 mil votos. (Risos.) Mas cumpriu a promessa: liquidou as perseguições de ordem jurídica contra nós etc., e nós entramos num período de semi-ilegalidade e legalidade; atuação mais aberta, mais pública, etc., no Governo de Juscelino.

            São esses os fatos históricos.

Brasília atravessou fases muito difíceis. E, por isso, a mim me parece até hoje que os militares no Brasil... Sempre eu digo: nós não somos revanchistas, mas nós achamos que as Forças Armadas têm o dever de fazer um pronunciamento público, de que se cometeram abusos e até crimes, e que isso jamais se repetirá.

Isso é importante porque as Forças Armadas, em circunstâncias de defesa da independência nacional, precisam de apoio do povo. E como contar com o apoio do povo se não forem capazes de tomar uma posição? Que pelo menos reconheçam que haviam cometido faltas graves contra o nosso povo. Isso não foi feito até hoje; até hoje não foi feito.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda)  - Conte esse episódio sobre o general; o diálogo que o senhor manteve com o general.

            O SR. JOÃO AMAZONAS - Eu não me lembro quem foi, mas foi lá na Câmara, num encontro lá. Eu disse a ele: Eu acho que vocês deviam, pelo menos — nós não somos revanchistas, quero dizer isso, não estamos aqui querendo fazer revanche —, mas nós achamos que vocês deviam fazer uma declaração de que ocorreram abusos e crimes, e que isso jamais se repetirá. Eu disse: Isso é fundamental para que as Forças Armadas possam gozar do respeito e do apoio do povo brasileiro.

Ele não disse nada. Fiquei calado.

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida)  - Como começou a crise interna no Partido Comunista?

            O SR. JOÃO AMAZONAS - Bom, aqui os problemas já são de outra natureza.

É claro que Prestes, com a personalidade dele, como Comandante da Coluna que foi, um grande combatente no Brasil para mudar de rumo o País etc., tinha muito prestígio. Mas Prestes, parecia-me a mim e aos outros companheiros, era um seguidista muito grande. Ele vivia de olhos voltados para a União Soviética. O que se fazia lá ele achava que aquilo era o certo, que tinha de repetir pura e simplesmente, sem levar em conta a realidade do nosso País.

            Então, as coisas no Brasil se agravaram com o problema da morte de Stalin. Sobe o Khrushchev. E, na realidade, sou de opinião de que houve um golpe de Estado na Rússia, na antiga União Soviética, dado pelo Khrushchev, que acabou tomando conta de tudo; botou aquilo na mão dele também e tomou uma posição que, na nossa opinião, era um problema que levava à liquidação do movimento revolucionário.

Essa afirmação histórica, que alguns outros partidos fizeram, nós capitalizamos como uma declaração correta do nosso partido: “Essa posição do Khrushchev, nesse golpe que ele deu lá, isso vai levar à liquidação do socialismo e à liquidação dos partidos comunistas”. Nossa opinião foi essa. Não tivemos a menor dúvida disso.

            Acontece que o Prestes não aceitou isso e achou que devia seguir as posições do Khrushchev. Na realidade, convocou o Congresso às pressas, destituiu metade do número de membros do Comitê Central e criou uma direção apropriada, sei lá. Não representava a maioria do partido nem os interesses maiores do partido. Com isso criava outro partido, mudava o nome, passou a ser Partido Comunista Brasileiro. Liquidava com os princípios, e a idéia do internacionalismo proletário também era posta de lado.

            Então, com isso nós não concordamos. Nós quem? Um punhado de elementos: era o Grabois, era eu, era o Oest, que veio um pouquinho mais tarde, o Giardini, o Pomar. Nós não concordamos com isso. Nós achamos que essa era uma posição que levava ao liquidacionismo, isso leva à liquidação do partido. Nós não aceitamos isso.

            Por isso, fizemos uma carta, assinada por 100 militantes, pedindo para que fosse revogada a decisão tomada pelo Prestes e pelos outros companheiros lá, porque senão nós teríamos que tomar outra atitude.

            Eles não consideraram em nada a carta que havíamos escrito, e por isso nós não tivemos dúvida também. Convocamos uma conferência nacional para reorganizar o partido, o Partido Comunista do Brasil, que achávamos que tinha sido abandonado e liquidado, havia desaparecido.

            De fato isso aconteceu, porque, mesmo depois, brigas lá com o coisa, o Prestes acabou largando o partido e esse partido fez um congresso e desse congresso saiu o PPS. Aparecem, hoje, uns herdeiros do PCB, um grupo menor, mas a decisão da maioria do partido foi transformar-se. Acabou-se com o partido, e por isso reorganizamos o Partido Comunista do Brasil, com muitas dificuldades, imensas dificuldades.

            Na verdade é o seguinte: a posição histórica e correta nossa nos conduziu à vitória, à consolidação do partido e às vitórias que conseguimos. O Partido Comunista do Brasil, hoje, é reconhecido pela população brasileira. Pela primeira vez na sua história, ele goza de 16 anos de legalidade, é um partido que elegeu um Vice-Governador no Piauí, elegeu uma Prefeita na cidade de Olinda, que tem importância de cidade média, elegeu o Vice-Prefeito de Recife, o Vice-Prefeito de Aracaju, temos 10 Deputados Federais, 11 Deputados Estaduais, 170 Vereadores, além de que, através da UJS, dirigimos o movimento estudantil há muitos anos. Tudo isso mostra a importância grande que o partido alcançou com essa posição que tomou.

            É claro que com isso tudo, também, nós rompemos com aquelas idéias. Sempre pareceu que era um partido subversivo, era um partido que estava sempre na ordem do dia, ter que criar uma situação de subversão pública, etc. Mas apagamos isso, que não é a finalidade do partido. O partido na legalidade não é um mal, é um bem. Temos interesse em que a grande maioria do povo conheça as nossas idéias, e não só as nossas idéias, mas a nossa prática, como atuamos, e que faça suas críticas, que nos ajudem a fim de que o partido cresça.

            Então, mudamos um bocado os rumos nesse sentido, e acho que hoje o partido está bem situado. Agora estamos realizando nosso décimo congresso, e creio que com uma bagagem grande de sucesso me parece, ainda não é o que desejamos, mas tem uma significação grande e histórica.

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Eu queria saber o seguinte: o que levou o PCdoB a se decidir pela organização do movimento guerrilheiro no Araguaia? Que fatos levaram o PCdoB a fazer opção pela guerrilha rural?

            O SR. JOÃO AMAZONAS - Aqui o problema é esse. Nós atuamos segundo a realidade. A ditadura, implantada no Brasil em 1964, é brutal, 21 anos, e os crimes que se cometeram são inomináveis. Responderam ao movimento de rebeldia, de protesto, era como assassínio público, mataram-se dezenas a centenas. Nas cidades, o Marighella por exemplo, que era um grande líder popular, um homem respeitado, foi barbaramente assassinado. O problema da Lapa está fazendo 25 anos. Então, localizavam uma reunião do partido e — como disse um general, que era o comandante do Segundo Exército: “nós fomos informados que na casa ficavam duas pessoas, que era o Amazonas e o Arroio”; de fato isso acontecia; Acontece que tinham me mandado para a China, e eles não sabiam —  a ordem era a seguinte: “Entra lá e mata os 2 que ficaram na reunião”. Mataram o Pomar e o Arroio. O Pomar tinha ficado na reunião por acaso também e aí foi fuzilado estupidamente. Quer dizer, são crimes bárbaros e até hoje não aconteceu nada.

Vemos que se fez um processo contra o Pinochet, que na Argentina muitos almirantes chegaram a ser condenados por alguns crimes que cometeram, também na Espanha e em outros lugares houve alguma movimentação, que eles alegam, em defesa dos direitos humanos. No Brasil, não aconteceu nada disso, ninguém foi punido por ter assassinado publicamente os comunistas por toda a parte.

            Ora, numa situação como essa, nós chegamos à conclusão do seguinte: nós somos de um partido pequeno e a verdade é que não temos condições, os brasileiros não têm condições, de travar uma luta com êxito nas cidades. A situação é completamente desfavorável para nós enfrentarmos a reação na cidade. É por isso que tomamos a decisão de organizar um movimento guerrilheiro no campo. O campo é mais propício, reúne melhores condições para organizar a resistência. É por isso que fomos para o campo. O Araguaia se transformou numa página histórica de importância na vida brasileira, porque as Forças Armadas fizeram uma mobilização igual a que fizeram na 2ª Guerra para combater o inimigo.

            Aqui o mal é esse: as Forças Armadas sempre consideraram como inimigo, o povo. Em toda parte, as forças armadas consideram o inimigo principal, estrategicamente sempre apontam o inimigo principal. Mas, no Brasil, o inimigo principal é sempre o povo, é o povo brasileiro. Por isso foi tratado da forma que conhecemos, com uma brutalidade sem limites. Um movimento sem prisioneiros.

A denúncia que faz o Cel. Cabral, no livro Xambioá, é correta. Os prisioneiros que eles pegaram já no final da campanha, uma campanha com muita dificuldade, eles mataram todos, assassinaram friamente todos eles e depois pegaram os corpos, levaram para a Serra das Andorinhas e queimaram junto com pneus, usaram gasolina etc. Atearam fogo em tudo. Era a operação limpeza.

            Isso não desaparece da história do País. Não desaparece! Podem passar 50, 100 anos, e não desaparece! E um dia esse problema ainda vem a público para ser examinado, no devido tempo e lugar que compete, com a necessidade de examinar com frieza o que aconteceu.

            O Araguaia é uma página gloriosa, como se diz, da luta do nosso povo. É uma história de jovens decididos.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Quantos combatentes do PCdoB?

O SR. JOÃO AMAZONAS - Ali tínhamos uns 72, 73 combatentes nossos. E tivemos mais uns 20 camponeses que aderiram quando a guerrilha surgiu. Então, o movimento tinha uns cento e poucos, 105, 110, por aí.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O senhor disse que o Exército mobilizou, fez uma grande mobilização igual a que fez na 2ª Guerra Mundial. Quantos homens o Exército levou para lá?

O SR. JOÃO AMAZONAS - Ao que se sabe, 25 mil.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Vinte e cinco mil homens?

 O SR. JOÃO AMAZONAS - Vinte e cinco mil homens.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Durante quanto tempo?

O SR. JOÃO AMAZONAS - Sei lá. Durante anos. Foi de 1972 a 1975. Eles fizeram uma primeira incursão em 1972, saíram sem resultado algum, saíram derrotados. Depois, organizaram uma segunda expedição para ver se liquidavam o movimento e saíram derrotados também. Então, na terceira, eles mobilizaram tudo, Exército, Marinha, Aeronáutica, forças poderosas, superiores a tudo, construíram estradas dentro da mata, coisa que o valha, e foi só assim que conseguiram terminar, levar ao final o movimento do Araguaia. Essa é uma página brilhante de como nosso povo é capaz de resistir nas piores condições. Nas piores condições! O movimento do Araguaia não foi de comunistas, foi do povo brasileiro. Foi uma forma de resistência da nossa gente a uma ditadura terrível. Terrível! Uma ditadura de 21 anos.

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Quantos companheiros morreram?

O SR. JOÃO AMAZONAS - Como?

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida)  - Quantos companheiros morreram na linha?

O SR. JOÃO AMAZONAS - Eu acho que morreram todos, quer dizer, escapou o Zezinho, que anda por aí; escapou uma companheira, a Criméia, que engravidou e saiu porque estava grávida; a Elza Monerat e eu. Que eu saiba são esses 4.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda)- O Genoíno.

O SR. JOÃO AMAZONAS - O Genoíno foi preso. Ele nem começou o movimento, quando começou o movimento, na primeira expedição violenta deles, o Genoíno tinha ido de um posto a outro para avisar que o Exército tinha atacado e foi preso. Foi preso, teve uma posição de capitulação, de inimigo etc. e tal. Com isso, só ficou nisso, não mataram. Quer dizer, ele capitulou, ele colaborou. Escreveu uma carta de próprio punho dizendo que o pessoal podia se entregar que o Exército tratava todo mundo bem etc. Eles imprimiram essa carta e pregaram nas árvores, em toda a mata, para chamar a atenção. Isso aí não teve maior importância.

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida)  - O senhor poderia dizer quais as repercussões do movimento para o fim da ditadura militar?

O SR. JOÃO AMAZONAS - Como?

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida)  - Repercussões desse movimento para o fim da ditadura militar.

O SR. JOÃO AMAZONAS - Dentro da ditadura?

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida)  - Para o fim da ditadura.

O SR. JOÃO AMAZONAS - Há o livro Os Anos de Chumbo, escrito, se não me engano, por 4 ou 5 generais. Um deles que diz abertamente: “Nós chegamos à conclusão de que a Guerrilha do Araguaia mostrava que o movimento de resistência tinha chegado a um ponto perigoso e que o melhor era pormos um termo a esse estado de coisas”. Ele dizia isso. E a polícia, então, confundiu ele e tomou a iniciativa de convocar um Colégio Eleitoral, que foi logo repudiado por todo mundo. Mas, por nós, ele convocou o Colégio Eleitoral para eleger o Presidente da República e mudar o sistema. O candidato deles era o Maluf. E tivemos a clarividência de procurar o Tancredo, que era Governador de Minas Gerais, para convencê-lo de que deveria ser candidato das forças populares e democráticas na eleição marcada pelo Colégio Eleitoral. Encontramos muita resistência. Nossa opinião era essa: vamos passar pelo Colégio Eleitoral para acabar com ele. É preciso passar por lá para acabar com ele. Senão não acaba, e o Maluf ia ganhar, etc.

            Assim foi feito. O Tancredo teve uma grande vitória, esmagadora vitória no Colégio Eleitoral. Infelizmente o Tancredo morreu e assumiu o vice dele, o Sarney, que não tinha história maior, não era conhecido de coisa nenhuma. Eu acho que o Sarney realizou um governo democrático. Não tinha muita experiência, mas fez um governo democrático. Foi no Governo dele que conseguimos a convocação de uma Assembléia Constituinte. Eles queriam, o Exército queria, as Forças Armadas queriam que apenas a Constituição Militar, que estava em vigor, sofresse umas reformas. Só isso. Nós pelejamos pela convocação da Assembléia Constituinte. Isso foi vitorioso. O Sarney convocou a Constituinte.

            Na convocação, eu estive presente. Eu e o Deputado Haroldo Lima fomos convidados e estivemos presentes ao ato oficial, no Palácio, de convocação da Assembléia Constituinte. Depois disso pelejamos, procuramos o Governo Sarney. Depois de eleito, o Tancredo morreu, assumiu o Sarney e fomos lá cobrar as coisas. Fomos lá no Governo exigir e reclamar o seguinte: “Olha, há 500 sindicatos sob intervenção no Ministério do Trabalho, e nós estamos aqui para reivindicar que sejam abolidas essas exigências e que sejam convocadas eleições livres em todos os sindicatos”. O Sarney tomou nota de tudo, etc. e tal. Ele fez isso. Oito dias depois convocou eleições em todos os sindicatos que estavam sob intervenção do Ministério do Trabalho. Primeiro êxito importante.

            Depois batalhamos pela convocação da Assembléia Constituinte, no governo dele. Disse: “Não, esse negócio de governo de reforma ajudará. A Carta Militar não é certa etc. e tal”. Não sei em que medida outras forças também ajudaram, mas acabou se conseguindo a convocação da Constituinte.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Voltando à Guerrilha do Araguaia, o senhor esteve exilado em Tirana? O senhor era convidado do Governo Hoxha, o Presidente da Albânia, não é?

O SR. JOÃO AMAZONAS - Sim, mas o que tem isso?

A SRA. ENTREVITADORA (Ana Maria Lopes de Almeida)  - Em 1976.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O senhor se exilou na Albânia ou em Paris? O senhor ficou em Paris?

O SR. JOÃO AMAZONAS - Não. Eu fiquei em Paris. É porque...

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O senhor falava, às vezes, pela rádio de Tirana, da Albânia.

O SR. JOÃO AMAZONAS - Até hoje os militares querem saber como a Rádio Tirana dava notícias do Brasil sobre a guerrilha e sobre a ação militar, quais eram os instrumentos que utilizávamos. Eu não sei, até hoje eu não sei e digo para eles: “Não sei como é que foi isso aí”. Acontecia. A Rádio Tirana dava ajuda nesse sentido, porque transmitia informações do Brasil.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Como é que iam as informações?

O SR. JOÃO AMAZONAS - E eu sei? O Exército quer saber disso. Vive querendo saber até hoje como é que acontecia isso. Eu não sei, não tenho a menor idéia.

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida)  - Foi em 1976 que o PCdoB rompeu com a linha chinesa e passou a ter um vínculo maior com a Albânia?

O SR. JOÃO AMAZONAS - É por aí. Mas eu tinha passaporte de outro país, que não me lembro qual era, parece que era Portugal, e fui para Paris. Porque se se quisesse fazer algum trabalho... A minha impressão era a seguinte: eu quero voltar para o Brasil. Se eu ficasse na Albânia, seria mais difícil voltar para o Brasil. Por isso que fui para Paris. Primeiro, porque era mais fácil o contato com o Brasil e, segundo, porque eu criei as condições para voltar ao Brasil.

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida)  - O senhor tinha muitos companheiros em Paris, muitos brasileiros? 

            O SR. JOÃO AMAZONAS - Havia muitos brasileiros em Paris. Quando saiu a anistia, todos nós fomos ao consulado brasileiro pedir passaporte. Havia muitos brasileiros exilados em Paris.

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida)  - Quando o senhor voltou, parece que fez uma declaração segundo a qual seria contrário à unificação do PCB com o PCdoB. Isso é fato?

            O SR. JOÃO AMAZONAS - Não me recordo disso. Sei que sempre defendi a posição do PCdoB. A vida tinha comprovado a presteza das nossas posições, que deveriam ser levadas adiante.

            A linha adotada pelo PCB produziu a liquidação do partido, (ininteligível), em que queriam transformar Doralice em uma outra coisa, e isso não ia dar muito certo. O Roberto Freire é o herdeiro do velho PCB.

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Sr. João Amazonas, o senhor ficou quanto tempo exilado, no final do Araguaia? Foi até 1979, não é?

            O SR. JOÃO AMAZONAS - Acho que foram uns 3 anos. Eu estava na China, quando aconteceu, aqui, o ataque à Lapa.

O SR. ENTREVISTADOR (não identificado) - Foi em 1976.

O SR. JOÃO AMAZONAS - Mataram os companheiros. Então, volto da China, vou a Tirana e de Tirana desloquei-me para Paris, eu diria que mais perto do movimento. Isso foi feito. Procuramos entrar em contato com o partido, através da Rádio Colatina etc. para continuar a organização do partido.

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Quando se deu efetivamente a legalização do partido?

            O SR. JOÃO AMAZONAS - A legalização se deu no Governo do Sarney.

             O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Foi logo no início do governo?

            O SR. JOÃO AMAZONAS - Foi logo no início do Governo do Sarney. É preciso dizer que a Roseana, em uma das comemorações do aniversário do partido, já na legalidade, fez um discurso no Congresso, entre os muitos que fizeram, e disse que se alegrava de ter-se esforçado junto ao pai para que o partido fosse legalizado. Um bom sinal.

             O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Como o senhor viu a derrubada do muro de Berlim, o desmantelamento dos regimes comunistas no leste da Europa?

            O SR. JOÃO AMAZONAS - Eu assisti como todos os outros. Primeiro, tínhamos uma posição historicamente correta. Desde o início, dissemos que essa posição adotada pelo Khrushchev... Já dizíamos que na época do Stalin cometeram-se erros, cometeram-se até crimes, etc., e tudo isso deve ser condenado e examinado, mas a bandeira do socialismo não caiu da mão deles. A União Soviética continuava uma grande potência socialista. Quem liquidou com o socialismo na União Soviética foi justamente o Khrushchev, Gorbachev, etc. São esses os que liquidaram com o socialismo na União Soviética.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Mas eles alegaram que a economia soviética estava falida.

            O SR. JOÃO AMAZONAS - Ao contrário. O Churchill fez uma declaração — não sei se o Churchill ou outro daqueles líderes ingleses, não me recordo — dizendo que ele achava que o socialismo teve maiores êxitos na reconstrução, depois da guerra, do que os países capitalistas. Fez uma declaração desse tipo. A União Soviética fez a reconstrução muito rapidamente. Passou da economia de guerra para a economia de paz. Então, não é assim, não. Eles fizeram isso.

            Francamente, acho que esses problemas de socialismo são ainda... Às vezes, pensamos — eu, pelo menos, com a minha juventude — que encontramos o socialismo ao dobrar uma esquina, encontramos o socialismo feito e acabado. Mas o socialismo é toda uma fase histórica de longa duração, com altos e baixos, com avanços e recuos etc. Que o caminho é a vitória do socialismo, não tenho a menor dúvida. Tenho convicção histórica, fundamentação teórica a esse respeito. Não tenho a menor vacilação. Acho que o futuro do mundo é o socialismo mesmo, não tem jeito. Qualquer que seja a circunstância, o futuro do mundo é o socialismo.

            O capitalismo é um dos sistemas que existiram no mundo, mas está em sua fase final.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda)  - O senhor diz o socialismo. Como o senhor define o socialismo? Como a coletivização dos meios de produção?

            O SR. JOÃO AMAZONAS - Sim, o socialismo tem as suas formas. A socialização dos meios de produção é uma forma de transformarmos o modo de produção, tirando os meios de produção das mãos do capitalista e colocando nas mãos do povo. É uma das formas. Agora, a maneira de como se faz isso é um processo muito complicado. Mesmo na China, foram cometidos muitos erros. O Mao Tsé‑tung, que tinha um grande apoio da massa camponesa, tentou implantar comuna no campo. E foi um erro grave. Foi difícil, foi duro. Ele pagou um preço alto.

            Temos de procurar as formas, porque estamos lidando com a sociedade no seu conjunto. Tem-se de manter as formas econômicas, políticas e sociais que ajudem a mudar o regime, a mudar o sistema. Agora, a base é esta: em vez da produção estar nas mãos do capitalismo, a produção tem de passar para as mãos do socialismo.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Mas a China comunista, um modelo do regime comunista no mundo, depois da destruição desses países do leste europeu, promoveu uma abertura muito grande para o capitalismo. A China hoje tem grandes províncias que os capitalistas elogiam: Xangai e várias províncias com grandes concentrações de investimentos capitalistas.

Isso não representou uma decepção para o senhor? O senhor continua um socialista que espera coletivização dos meios de produção?

O SR. JOÃO AMAZONAS - Você sabe que não é fácil querermos ditar regras para outros países. Mas pense: 1 bilhão e 300 milhões de pessoas num determinado território — velho, antigo —, numa terra cansada! Você olha aquela terra e vê que já deve ter sido trabalhada há anos e anos, historicamente. É uma terra cansada. Como se fazer para alimentar 1 bilhão e 300 milhões de pessoas? Não são problemas simples nem fáceis.

A China procurou, sem abandonar o ideal do socialismo e a luta para reforçar o sistema socialista, caminhos intermediários. Em alguns casos, tem buscado caminhos intermediários. Por exemplo, Hong Kong fez um acordo com a sociedade existente ali por 50 anos. Por 50 anos, Hong Kong não muda de regime. Chega-se a Hong Kong e vê que o regime capitalista que existia lá continua existindo. Claro que há o problema de segurança: já são tropas chinesas que estão lá. A China já influi política e decisivamente (ininteligível) em Hong Kong. Mas o sistema é o mesmo que havia antes. Não mudou nada. Ali continua um sistema capitalista.

E há aquela declaração do Deng Xiaoping, que é um problema que a história vai confirmar ou não. O Deng Xiaoping dizia que estamos vivendo uma fase primária de construção do socialismo. Ele fez essa afirmação teórica. Nós estamos vivendo uma fase primária de construção do socialismo. Essa fase vai durar 100 anos. Já ultrapassou 50 anos, ainda faltam 50 anos. Quer dizer, é uma fase primária de construção do socialismo, porque os meios de produção são atrasados ou são avançados. Os meios de produção na China são os mais atrasados que se pode imaginar. Botar aquilo na mão do povo não muda nada. É preciso elevar aquilo. Então, a batalha hoje é vencer essa primeira fase que eles chamam de criar as bases materiais de construção da nova sociedade. É isso o que estão fazendo.

Você pega Xangai e aquela outra província junto de Xangai que era uma colônia de pescadores, hoje é um grande centro econômico, financeiro e industrial da China. A China tem zonas paupérrimas, como você disse, e tem zonas prósperas. Com tudo isso, vão surgindo problemas que eu imagino. Você imagina um sujeito que... porque uns ganham mais do que outros. E os que ganham mais do que os outros, você (falha na gravação) planejou a vida.

Na China, os franceses chegaram lá e abriram cabarés. O americano chegou lá e abriu outras lojas de comida, de moda moderna, etc. Isso vai influenciando. É há uma luta do partido para educar o partido e o povo, para compreender que isso são os velhos vícios de uma sociedade condenada, mas são vícios que essa sociedade não tinha chegado nem a ver, e agora criam-se condições que propiciam a possibilidade de que apareçam as entradas negativas desse terreno.

Por isso me parece que a China enfrenta grandes batalhas. Nós temos 170 milhões de habitantes. Se chegarmos ao socialismo aqui, nós vamos ter muitos problemas, mas são muito menores do que tem a China, muito menores.

Nós não temos essa carga. A maioria esmagadora da população da China é de camponeses. E hoje a China é o país do mundo que mais cresce: 9%. A China cresce 9% ao ano. É o país que mais cresce.

Vamos ver. Tem que ter um pouco de paciência e dar tempo ao tempo. Por mais que se tente apressar o processo sem uma base correta técnica, científica etc., é um desastre.

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Sr. João Amazonas, o senhor acredita que, a esta altura, depois desses acontecimentos todos a que o senhor se referiu, essas mudanças, essas alterações todas no quadro político mundial, sobretudo no seio do socialismo, a democracia é um instrumento, um meio para se chegar ao socialismo, ou a democracia é uma condição essencial para a própria sobrevivência, para a própria consolidação do socialismo?

O SR. JOÃO AMAZONAS - Você vê a contradição que isso expressa. A democracia, quando serve ao capitalismo, eles batem palmas e aplaudem a democracia. Mas a democracia às vezes atua contra eles. E aí eles não têm dúvida de implantar golpes militares, implantar violência etc. Então a democracia apresenta esse aspecto.

Por exemplo, hoje, no Brasil, nossa democracia é precária, pobre ainda, mas ela permite que nós, com dificuldade, cheguemos às grandes massas do povo para dar a conhecer o que é o Partido Comunista, o que é o socialismo e como lutamos pelo socialismo.

É importante ter democracia no País. E eu acho que, quando nós conquistarmos o poder, tem que ter uma democracia do povo! Agora, se você me diz que há uma democracia que permite aos militares dessa época aqui ir para a rua também para pregar contra o novo regime, isso não tem, isso não existe. Isso seria ilusão, seria absurdo, porque não seria liberdade para o povo, seria liberdade para os opressores, para os tiranos. Mas sou a favor da democracia mesmo.

Esse negócio de pensar que os socialistas têm todas as receitas na cabeça, não! Tem também a contribuição do povo.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Quando nós chegamos aqui, o senhor disse que Lenin era a grande figura do comunismo na União Soviética. Eu pediria ao senhor que fizesse uma relação dos comunistas que os senhor considera heróis do movimento comunista e aqueles que o senhor considera traidores do movimento comunista, tanto no Brasil quanto no exterior, na Rússia.

O SR. JOÃO AMAZONAS - Não compreendi muito, não.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Quando nós chegamos aqui, o senhor elogiou Lenin como a grande figura de um organizador, um contribuidor. Eu pediria ao senhor que dissesse quais são, na sua visão, os grandes heróis do movimento comunista internacional e brasileiro e quais são os traidores, as piores figuras desse movimento, tanto aqui quanto lá.

O SR. JOÃO AMAZONAS - Internacionalmente, na minha opinião é que — já disse isso —, se se examina o período de Stalin, vê-se que se cometeram muitos erros, alguns erros duros, grosseiros. Com esse problema, muita gente foi para a Sibéria, muita gente foi perseguida injustamente. Isso não se pode admitir, de forma alguma. Eu tenho que respeitar que, mesmo havendo opiniões distintas, é preciso tratá-las como tal, e não pela força querer calar a boca dos outros. Mas eu penso que os grandes responsáveis por essa situação são Gorbachev e o golpe. Aquela direção do Partido Comunista, depois da morte do Stalin, mostrou que era uma direção também sem grande personalidade política e socialista mesmo. (ininteligível) Mas o resto todo — com licença da palavra —, sei lá, entregou-se. Eu podia usar um termo mais brutal, mas se entregou mesmo. Ele não vê a responsabilidade que tem na mão.

Nós, dirigentes, devemos sentir o seguinte: a responsabilidade que temos na mão é preciso ver em função das massas, do povo. Você pode fazer algumas coisas que não dizem respeito a você, mas à massa, ao povo. Você tem que ver as conseqüências que pode trazer para a população.

Por isso, parece-me que na Rússia os grandes responsáveis foram esses. Ali, salvo Molotov, o resto daquela direção virou político do Partido Comunista da União Soviética. Foi um fracasso total. Aquilo ali se entregou mesmo. E o Khrushchev foi o grande realizador dessa façanha. Foi um dos realizadores. Depois veio o Gorbachev, que trazia a Perestroika, que era não sei o quê. Você sabe que Gorbachev foi à Romênia e, em pessoa, ajudou a matar os dirigentes do partido romeno.

Aquele e aquela ali, eram um casal, marido e mulher, ajudaram a matar os 2 na Romênia. Quer dizer, são forças brutais. Não é assim que vão se resolver os problemas. Não é dessa forma. Está incomodando? Tira da frente. Não dá!

Eu acho que assim...

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - E aqui no Brasil?

O SR. JOÃO AMAZONAS - Aqui no Brasil eu acho que o nosso partido... O Brasil é um país culturalmente muito atrasado. Você vê que a universidade no Brasil mesmo só aparece depois de 1930. A universidade já é antiga no mundo e no Brasil, só surge depois de 30.

Eu me lembro de que aqui nós tínhamos uma Faculdade de Direito em Recife — quem quisesse estudar no nosso setor ia para Recife — e uma Faculdade de Medicina na Bahia. Quem quisesse estudar para médico ia para a Bahia estudar na Faculdade de Medicina.

Culturalmente o Brasil sofreu uma opressão muito forte — ainda sofre hoje. Você pega muitos canais de televisão e de certa imprensa, e são orientados, financiados e ajudados para transmitir idéias e defender pontos de vista que não conferem com os verdadeiros interesses nacionais. Essa é uma evidência. Por isso eu acho que, naquela época, houve responsáveis. E os responsáveis foram aqueles que não estiveram à altura.

E mais. Eu acho que a maneira como estava organizado o partido, a maneira como se dirigia o partido, também não era mais correta, porque não houve um levante. Eu acho que, numa situação como essa, um partido revolucionário tinha se levantado: “Não, não se permite isso”.

Eu vou lhe dizer um detalhe: quando o Khrushchev deu o golpe na Rússia, eu estava lá, eu tinha ido levar umas informações do Brasil. Era comum nossa freqüência de troca de opiniões e etc. Eu estava na União Soviética, e houve aquelas coisas terríveis. E eu fui visitar uma companheira nossa que trabalhava no rádio de Moscou. Enganei-me com a porta. Bati numa porta, apertei a campainha. Quando abriu a porta, vi uma mulher em lágrimas. Nunca me esqueci dessa imagem. Eu vi uma mulher em lágrimas, uma coisa terrível. Ela fechou a porta, eu pedi desculpas. Eu vi que tinha me enganado e bati na campainha da nossa companheira. Eu perguntei o que tinha acontecido, porque bati em outra porta e vi uma mulher em lágrimas, uma coisa terrível! Nunca vi uma cena assim! Ela disse: “Se você bater em todas essas portas, você vai ver a mesma coisa.” O povo não compreende como é possível ter acontecido isso com Molotov, que é uma grande figura para eles. Estavam chorando a sorte de Molotov, claro. Então, essa é a forma de reagir, meu amigo. Mas é um detalhe a que eu pessoalmente assisti.

Eu não sei, eu acho que temos organizar o partido de maneira que, numa situação como essa, se os traidores chegam através de um golpe de força, o partido tem que ir para a rua, o partido tem que ir para a luta e não permitir que seja o povo golpeado da forma como foi feito na União Soviética.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O que o senhor achava do Prestes?

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Isso que eu queria perguntar. O Prestes é considerado uma figura quase mítica dentro do movimento comunista no Brasil. Muitas pessoas divergem dele, divergem da atuação política dele, mas há todo, vamos dizer assim, um cuidado e não se fala claramente qual foi o papel que ele teve. Como é que o senhor avalia o papel de Luís Carlos Prestes dentro do movimento comunista brasileiro?

O SR. JOÃO AMAZONAS - Nós fizemos uma apreciação na nossa VI Conferência, em 1956, mais ou menos... Não.

O SR. ENTREVISTADOR (não identificado) - Em 1966.

O SR. JOÃO AMAZONAS - Em 1966. E fizemos uma apreciação do papel do Prestes. O Prestes representa os 2 lados. Nós, de um lado, achamos que Prestes era figura que tinha grande prestígio no nosso País — grande prestígio, grande influência —, e que, quando ele veio para o partido, esse fato de que ele tinha muito prestígio trouxe muitos elementos para o partido. Não tenho dúvida nenhuma. É bom a gente considerar esse fato, compreende?

Agora, por outro lado, eu penso assim: Prestes era um homem que não estudou o marxismo; Prestes nunca estudou o marxismo. Prestes era um homem muito ligado a essa cultura burguesa e seguidor, digamos assim; era um seguidista em relação à União Soviética. Se a União Soviética tivesse seguido por um caminho certo, Prestes teria ido pelo caminho certo. Acontece que entrou num atalho errado, e Prestes entrou também no atalho errado, compreende como é? Não tinha essa formação teórica, essa formação de convicção das coisas; não tinha.

E acabou com um final triste, porque um homem como ele, que tinha feito história no País etc., acabou como? No enterro de Prestes... Prestes foi enterrado com a bandeira do PDT, de Brizola, no caixão. O homem, então, já era Brizola, que deixou esse partido. Já era Brizola.

Quer dizer, é isso aí. Mostra que a gente não deve apoiar pura e simplesmente. Nós devemos lutar para que as pessoas adquiram consciência das coisas e ajam dessa maneira.

Agora, nós não somos, vamos dizer assim, inimigos raivosos de Prestes. Analisamos do ponto de vista histórico a figura que ele representou etc. Não adianta nada querer ser inimigo raivoso. Por quê? Acho que ele cometeu graves erros; gravíssimos erros. Interessa-me mais ver a causa dos erros, por que cometeu erros, do que, enfim, a figura em si, do que ele era.

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida)  - Para encerrar, porque Pedro está falando da reunião que eles têm aqui: o PCdoB sempre apoiou o PT nas eleições. Eu queria que o senhor falasse o porquê desse apoio ao candidato Lula. E uma segunda pergunta, continuação dessa: se o senhor acredita na reunificação das esquerdas no Brasil, pois é uma coisa de que se fala muito, mas que se pratica muito pouco. O senhor acredita que é possível a reunificação?

Mas, primeiro, eu gostaria que o senhor conceituasse também como vê a questão dos partidos dos trabalhadores e falasse do apoiamento do PCdoB em relação a Lula.

            O SR. JOÃO AMAZONAS - Começo assim: não é verdade que nós sempre apoiamos nas eleições... que em todas as eleições apoiamos sempre o PT. Não. No Rio de Janeiro, nós apoiamos Garotinho, que era Brizola, não era PT, compreende como é? Em outros lugares... no Piauí, nós apoiamos Mão Santa, que era PMDB, não era PT.

Eu acho que o PT é um partido social-democrata que procura encontrar soluções desse gênero para o Brasil, que se esforça para apresentar soluções desse gênero. E nós consideramos que é o maior partido de oposição no Brasil. O maior partido de oposição hoje no Brasil, é preciso reconhecer, é o PT. E isso não significa que por ser o maior, é o que tem a posição mais justa, não quer dizer. Eu acho que, em alguns casos, tem posições justas; e, em outros, não tem posições justas. E que a crítica, nesse sentido, é razoável e justa; só é preciso fazer.

Nós somos pela união das forças democráticas e progressistas no nosso País. Nós somos a favor disso, porque temos a convicção de que não vai ser um partido — fosse o nosso ou fosse o PT — que vai resolver esses problemas do nosso País. São problemas muito complicados, muito difíceis. Nós precisamos ver se construímos uma ampla frente de forças com um programa de reconstrução nacional; abrir novos caminhos para o nosso País.

Então, esse é um fator novo que se coloca no País; não é o velho, mas também não é a íntegra do socialismo. Tem gente que acha que nós tínhamos de estar ali, espreitando a hora em que o inimigo se equivocasse, para dar o salto e implantar o socialismo. Nada disso. Isso tudo é errado. São compreensões mecanicistas.

Nós achamos que, no caso brasileiro, é preciso reunir, agrupar o maior número possível de forças que são pela reorganização nacional, pela defesa dos interesses nacionais, pela democracia e pelos direitos do trabalhador. Nós somos a favor disso. Nessa área, aparece aí o PT, mas aparece também o PSB, de Arraes, de Garotinho etc.; e aparece o PDT também — está enfraquecido, cada vez mais, mas aparece também; e aparecem mesmo de outros partidos.

Há elementos democráticos — e considero que talvez seja um pouco avançado fazermos uma declaração dessa. Eu acho que, mesmo em certos partidos, como o PMDB e até em certos casos no PSDB, podem existir elementos democráticos. Elementos. Como partido, não. Mas elementos democráticos.

O senhor olhe o Governo de Goiás. O Governo de Goiás é PSDB, mas o Governo de Goiás pelo menos é um governo democrático. Se a gente se satisfaz só com isso, é outra coisa. Nós precisamos ir além disso, nós precisamos de realizações, nós precisamos fazer avançar o País etc. Mas é um governo democrático.

Por isso, nós estamos aí numa disputa muito grande, agora com as eleições de 2002. O que vai dar aí? Ainda não se sabe. Ainda não se sabe o que pode dar desse problema. Apareceu uma candidata como a Roseana. A Roseana não é uma candidata fraca, é uma candidata que sobe nas pesquisas. Apareceu como segunda colocada nas pesquisas. Nós temos Lula, que luta contra essa tentativa, que ele chama diversionista, de fazer prévias no partido. Nós temos Garotinho, que não sei se vai até o fim, se é por aí. Nós vemos que a candidatura de Itamar já esteve um pouco mais alta do que está hoje. Ela sofre uma certa queda, como sofre a de Ciro também, uma certa queda.

Quer dizer, vão se formar ainda novos elementos. Nós estamos atentos a isso, compreende, e lutando para ver se unimos as nossas correntes todas para dar uma solução correta para o Brasil, uma solução que não fosse a vitória de um partido, mas a vitória de uma frente com idéias claras, para todos nós nos unirmos e trabalharmos para modificar esta situação do nosso País. O Brasil tem condições excepcionais para progredir e se transformar em um grande país. O Brasil tem essas condições. Não é porque sou brasileiro, mas o nosso povo tem qualidades: é um povo trabalhador, é um povo que gosta da experiência, gosta de buscar caminhos, de encontrar saídas etc. Tem qualidades o nosso povo.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O senhor acha que o Brasil corre risco de um retrocesso, de um novo golpe, de uma intervenção militar? Ou o senhor acredita que a democracia está definitivamente consolidada no Brasil?

            O SR. JOÃO AMAZONAS - Olha, os golpes não estão na moda. No mundo, não estão na moda. Ao contrário: há condenação, por enquanto, dos golpes. Essa é a realidade que tem aí. Se surgir uma situação diferente, repercute aqui. Mas, por enquanto, não estão nos golpes.

Por outro lado, eu penso que nós estamos vivendo uma fase em que o capitalismo atravessa grandes dificuldades e encontrando obstáculos muito grandes para progredir, para continuar avançando. O emprego do neoliberalismo, por exemplo, é um fracasso em todo o mundo. O neoliberalismo é condenado pelos povos do mundo inteiro, não é verdade?

A globalização: muita gente pensa que nós somos contra a globalização. Não! A globalização é um fenômeno objetivo. A macroeconomia do mundo vai crescendo, crescendo e se interligando. Você não pode fugir disso. A globalização, em si, não é o problema. É a forma como é utilizada a globalização pelo capitalismo. Isso, sim. E, por isso, eu acho que nós estamos vivendo uma fase em que se procuram saídas.

Não sei. Não quero arriscar nenhum palpite para a situação de hoje, mas você vê os Estados Unidos, hoje, são uma sociedade que vive em pânico porque um Bin Laden, ou coisa que o valha, pegou uns aviões e matou um bocado de gente; destruiu, em plena Nova Iorque, 2 grandes edifícios, cartões de visita de Nova Iorque etc. e tal. Não sei. Eles andam em pânico. Agora, esse avião que se destruiu não está explicado. Explicaram que chegaram à conclusão de que foi um acidente. Mas esses aviões são muito bons. Ou ele foi derrubado mesmo? Ninguém sabe o que aconteceu. Tem o negócio do “pózinho”: recebem uma carta com um “pózinho”, todo mundo sai espirrando. Então, é uma sociedade em pânico.

Eu não sei até aonde isso vai. Nós condenamos esse processo terrorista. Terrorismo não é a melhor forma de luta, não é uma forma de luta. A forma de luta é a de massa. O terrorismo é a forma pessoal, individual, fechada, de grupo pequeno; não é uma forma de luta de massa. Então, o terrorismo não deve ser apoiado por nós como uma coisa correta.

Mas eu penso assim: nós precisamos estar muito atentos porque estamos vivendo uma fase em que vai haver modificações; eu acho que vai haver transformações. Em que tempo e para onde eu não sei ainda.

Não acho tão fácil o voltar atrás, para implantar regime fascista, ditadura etc. Eu estou achando que isso está meio desmoralizado. Mas sempre encontram os caminhos de regimes de força, sempre encontram. Não querem largar o poder.

Vamos a ver.

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos)  - Amazonas, para encerrar, o senhor contou uma história para nós que é extremamente interessante, que foi a história da sua filiação. Todo mundo acha que o comunista é sempre alguém que é influenciado ou levado, está entendendo? E o senhor tem uma história original, de interesse próprio. E o senhor até complementou dizendo que na primeira reunião a que assistiu não entendeu nada, absolutamente nada.

Então, nós queríamos que o senhor contasse essa história também para nós, porque achamos que é um dado muito interessante da sua biografia. Como aconteceu o seu interesse pela ideologia e o seu ingresso no partido? O senhor poderia contar para nós? Gostaríamos de fazer também este registro.

O SR. JOÃO AMAZONAS - Eu sei assim, meu amigo: vai fazer 67 anos que eu sou comunista; e a minha atividade é ininterrupta. Não tive nenhum período em que se dissessem: “Ficou fora do partido não sei quantos anos”. Não, eu sempre estive em atuação.

Também, para mim, o negócio do socialismo apareceu porque me emprestaram um livro sobre Medicina na Rússia. Eu, jovenzinho, e aquilo...

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos)  - O senhor era estudante? Era operário? Qual era a sua...

O SR. JOÃO AMAZONAS - Eu não era operário. Eu era funcionário, trabalhava no setor de exportação da fábrica. Toda a exportação era comigo: fazer os pedidos, mandar embalar aquilo tudo e levar para o armazém, despachar etc. O meu serviço era esse. Trabalhei 9 anos na fábrica.

(Falha/corte na gravação.)

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos)  - Sua mãe? Como foi essa história?

O SR. ENTREVISTADOR (Não identificado) - Como era a história que sua mãe contou?

O SR. JOÃO AMAZONAS - “É um bicho feio aquele bolchevismo”. Mas passou aquilo, eu era garoto, não tinha maior importância. Mas nunca me esqueci daquela coisa.

Como é que eu vim a descobrir essas idéias? Francamente, eu acho que os êxitos da União Soviética apareciam, mal ou bem. Apareciam em livro: nesse que eu digo, de Medicina. Havia um outro, de um engenheiro brasileiro na Rússia. Eu li também esse livro. Eu ganhei um outro mundo, uma outra coisa diferente, compreende? Quer dizer, isso me atraiu, me chamou a atenção para ver as coisas diferentes do que era.

Essa época em que a gente vivia, 1935, era uma época de grande efervescência política no País, de muita agitação no País. Tinha surgido a Aliança Nacional Libertadora, essa coisa toda. Chegou ao Pará. No Pará, os caras da Aliança me convidaram — eu já tinha ingressado no partido — para ir receber uma delegação da Aliança que tinha chegado ao Pará para fazer agitação. Era um jornalista gaúcho — Benjamim Cabello, se não me engano, e o Comandante Sisson, da Marinha; eram as principais figuras de uma delegação que apareceu lá em Belém. Não puderam fazer nada porque, quando eles chegaram, tinham fechado a Aliança Nacional Libertadora. Eles não puderam realizar ato nenhum etc.

Eu acho isso. Eu me encontrei com o partido e achei que era um outro mundo. Aquela situação em que a gente vive, sem esperança, sem nada; uma situação de... nós éramos 8 irmãos, com dificuldades enormes. Então, eu acho que foi por aí que eu fui.

Eu entrei para o partido nessa fábrica. Os patrões, para falar a verdade, na fábrica, do ponto de vista pessoal, comigo — também meu pai trabalhou nessa fábrica, como padeiro etc. —, não posso dizer que eles eram duros com a gente. Não foram duros. Não posso ter uma queixa maior dos patrões que eu tinha lá. Patrão é patrão. Mas você sabe que, às vezes, eram brutais lá com os outros. E eu achava ruim aquilo, mas deixava para lá, não tinha nada com aquilo.

Eu entrei para o partido e achei que a gente devia fazer alguma coisa de destaque; fazer alguma coisa. A fábrica ocupava quase um quarteirão inteiro, e na esquina tinha uma caixa d’água. Era um edifício de ferro, era o pico mais alto da cidade. Lá em cima se colocava uma bandeira brasileira em dias de festa etc. Era vista de toda a cidade.

Eu tinha entrado para o partido e, conversando, falei com os companheiros: Vamos botar uma bandeira? Getúlio tinha anunciado que ia pedir a pena de morte para os comunistas. Eu conversei com os outros companheiros e disse: Vamos botar uma bandeira vermelha nessa caixa d’água aí, para ver o que dá. E lá fomos nós. Falei com uma companheira lá, ela fez a bandeira: uma bandeira grande, que tinha uns 20 metros ou coisa que o valha. Nós escrevemos umas palavras de ordem: “Viva a ANL! Abaixo a pena de morte! Prestes!” Sei lá. Nós dobramos aquela bandeira toda; fazia um volume enorme. Aí eu convidei um outro rapaz, que era sapateiro... Eu disse o seguinte: Eu vou botar a bandeira e quero cortar o fio que puxa a bandeira. Eu ponho a bandeira, e ele cortava o fio que puxa, porque eles não vão poder puxar a bandeira de lá; a bandeira ia ficar tremulando lá.

Organizamos isso. Mas eu não tinha força para fazer. Peguei um sapateiro, que era do partido, fomos ele e eu. Pulamos o muro onde tinha essa caixa d’água e lá fomos nós. Nunca me esqueço: subindo aqueles degraus; era uma centena de degraus, nunca mais que acabavam. Isso de noite, meia-noite, 1h, sei lá. E lá fomos nós subindo, subindo, subindo. E olhando para baixo, e vendo o movimento. A zona do meretrício ficava ali próxima. E a gente vendo aquele movimento, e subindo, e subindo, e subindo. Depois de subir um bocado, chegamos ao topo. Aí, pegamos a bandeira, fizemos como eu tinha pensado: amarramos a bandeira numa ponta e, na outra ponta, cortamos o fio que puxava. Aí puxamos a bandeira, ela foi lá para cima, e depois não teve como fazer arriar a bandeira. Como ia ser? Botamos lá a bandeira e depois viemos descendo devagar. Ainda escrevemos umas palavras de ordem naqueles depósitos de água. E lá fomos descendo.

Quando foi no outro dia, de manhã, rapaz, toda a cidade começou... Onde você chegava tinha gente nas esquinas olhando a bandeira vermelha na caixa d’água. E todo mundo falava. E aquilo foi engrossando, aquele movimento. E eles fizeram todo o esforço para tirar a bandeira. Bombeiros foram mobilizados, mas não conseguiam tirar a bandeira, porque não tinha como puxar. Só no fim da tarde eles conseguiram um moleque, desses trepadores de açaizeiro ou coisa que o valha; o moleque foi capaz de subir naquele mastro de aço. Subiu ali e foi pegar a bandeira lá em cima; e tirou.

Levou o dia inteiro a bandeira lá, com aquela luta. A população toda vivendo aquele problema. Então, foi uma agitação do diabo, dos comunistas. (Risos.)

Então, eu comecei assim: fazendo uma onda que não tem tamanho.

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida)  - Vou fazer a saideira. (Risos). Ao longo da sua carreira, como político, guerrilheiro, dirigente, qual foi a maior emoção que o senhor teve, durante esse período todo?

O SR. JOÃO AMAZONAS - É difícil. É difícil saber, porque cada coisa dessas que a gente faz... Por exemplo: quando houve a resistência de Brizola no Rio Grande do Sul, eu era dirigente do partido — me mandaram lá para o Rio Grande do Sul; eu era dirigente do partido no Rio Grande do Sul. E Brizola organizou a resistência democrática, a luta pela legalidade etc.

E nós tomamos uma decisão interessante: “Vamos organizar batalhões patrióticos”. Era uma coisa esquisita. “Vamos organizar”. Ocupamos um próprio do Governo que tinha ali na Avenida Borges de Medeiros. Ocupamos aquele local, convocamos e organizamos, por categoria, o batalhão patriótico dos metalúrgicos; o batalhão patriótico dos alfaiates; o batalhão patriótico dos portuários, dos ferroviários, da maloca, como eles chamavam lá — maloca é a...

O SR. ENTREVISTADOR (não identificado)  - Favela?

O SR. JOÃO AMAZONAS - Favela... Enfim, nós resolvemos o seguinte: organizamos uns 10 batalhões patrióticos.

E você fala em emoção. Quando foi no outro dia, 2 ou 3 dias depois, fizemos desfile. Você olhar aquilo na rua... De repente, sair em formação militar, com caixa: “Pá, pá, pá, pá”. E marchando aqueles batalhões patrióticos, organizados por nós. Você pode imaginar a emoção enorme que a gente sentiu diante de um troço daquele. Aquilo desfilou, aqueles batalhões patrióticos todos, para fazer a luta contra o Governo Central aqui. Foi o negócio de Jânio. Jânio tinha renunciado, e Brizola queria — e era certo — que Jango assumisse.

Então, esse foi um problema de emoção vivida forte, uma situação como essa. O resto, emoções muito diversas. Muitas vezes, em diversas ocasiões, as emoções surgem porque nós não somos frios. Nós não somos frios; nós sentimos as coisas também; nós sentimos as coisas. Sentimos profundamente quando acontece a morte de companheiros nossos, como Lincoln Oest. Lincoln Oest era um companheiro extraordinário, um homem corajoso, valente e fiel ao partido; organizador do partido por toda a parte. Um troço terrível.

Danielli foi assassinado na prisão. Um coronel do Exército matou o cara! Com um porrete na mão, foi lá e bateu, bateu, na cara, até matar o companheiro na prisão. Uma coisa estúpida. Se você disser isso, ele diz: “Não, não fui eu, não. Não matei ninguém. Pelo contrário: eu respeito”. Mas eram coisas bárbaras.

Esse negócio da Lapa... Um traidor denunciou a reunião, e eles foram lá e disseram: “Matem os 2 que ficaram lá: é o Amazonas e o Arroyo”. Quem estava lá não era o Amazonas, era o Pomar: matou Pomar e matou Arroyo.

Quer dizer, emoção a gente sente em cada combate desse, em cada luta, em cada acontecimento que ocorreu com Grabois, com Lincoln e Cordeiro, com Danielli, com Arroyo. Grandes companheiros, grandes combatentes comunistas. Homens de integridade moral; são pessoas que a gente nunca pode esquecer.

É isso. Vamos parar por aqui, gente? Já falamos bastante, né?

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida)  - Vamos! Está ótimo.