Texto

                 DEPARTAMENTO DE TAQUIGRAFIA, REVISÃO E REDAÇÃO

 

                 NÚCLEO DE REDAÇÃO FINAL EM COMISSÕES

 

                   TEXTO COM REDAÇÃO FINAL

 

ENTREVISTA COM O SR. FERREIRA GULLAR - REALIZADA  EM 15/11/2001

EVENTO: Entrevista                   

N°: ESP004/01

DATA: 15/11/2001

INÍCIO: 09h00min

TÉRMINO: 10h50min

DURAÇÃO: 02h51min

TEMPO DE GRAVAÇÃO: 02h51min

PÁGINAS: 41

QUARTOS: 23

 

 

DEPOENTE/CONVIDADO - QUALIFICAÇÃO

 

FERREIRA GULLAR – Jornalista.

 

 

SUMÁRIO: Entrevista com o jornalista Ferreira Gullar.

 

 

OBSERVAÇÕES

 

A entrevista não se encerrou formalmente.

Conferência da fidelidade de conteúdo – NHIST  05/12/2008 (TT)

 

 

 A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Ferreira Gullar não é seu nome, é pseudônimo.

            O SR. FERREIRA GULLAR - É um pseudônimo. Meu nome é José de Ribamar Ferreira. Como todo maranhense, sou Ribamar. Na Ilha de São Luís, tem um santo chamado São José do Ribamar. O pessoal da cidade era muito devoto desse santo. A festa desse santo é em setembro. Mais ou menos, não é no dia exato em que eu nasci, mas é na proximidade. Eu nasci em 10 de setembro. É por isso que meus pais me deram o nome de José de Ribamar.

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - E como chegou ao pseudônimo?

            O SR. FERREIRA GULLAR - Quando eu comecei a escrever, a fazer poemas e tal, e publicar lá no Maranhão, eu assinava Ribamar Ferreira. E tinha lá, como todo mundo é Ribamar, uma porção de poetas. Um era Ribamar Pereira, outro era Ribamar da Costa, outro era Ribamar da Silva, outro era Ribamar...

            Um dia, saiu um poema do Ribamar Pereira sobre as monjas. Ele era um rebelde e escreveu um poema sobre as monjas. Quando saiu aquele poema com o meu nome — trocaram os nomes, em vez de sair Ribamar Pereira saiu Ribamar Ferreira —, fiquei furioso e me considerei ofendido. Eu era locutor da Rádio Timbira, na época.

            Naquela época, a gente fazia o que queria. Eu dei uma nota na rádio, dizendo que aquele poema não era meu, era do outro cara e que, a partir daquele dia, eu ia mudar de nome. E mudei de nome naquele dia.

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - E o Gullar foi uma opção?

            O SR. FERREIRA GULLAR - Porque minha mãe se chama Alzira Ribeiro Goulart. Depois ela ficou Ferreira. Então, tinha Goulart no nome dela. Então, eu peguei esse Goulart, que é o Goulart francês, deformei, botei G-u-l-l-a-r, para evitar qualquer confusão posterior. E ficou Ferreira Gullar.

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - O senhor foi locutor de uma rádio?

            O SR. FERREIRA GULLAR - Da Rádio Timbira, do Maranhão. Transmitindo por uma antena de 1.490 quilociclos (Risos.), Ondas de 201,3m

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O senhor decorou?

            O SR. FERREIRA GULLAR - Sei de cor até hoje isso daí.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Era dos Diários?

            O SR. FERREIRA GULLAR - Não, era do Estado, do Governo do Estado. Era a única rádio que havia. Depois, surgiram outras rádios. Mas a única rádio que havia na época era essa, que era do Governo do Estado.

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Gullar, você se lembra de como a poesia, pela primeira vez que você tomou conhecimento da poesia, como é que você foi tocado?

            O SR. FERREIRA GULLAR - É difícil ser uma coisa. Livro de colégio, na Gramática Expositiva, de Eduardo Carlos Pereira, no final tinha uma porção de poema lá, de Camões até Ronald de Carvalho. Ali que eu comecei a ler poesia. Mas eu não era muito chegado a poesia, não, porque lá na minha terra eu era pivete de rua. Era uma trinca: eu, Esmagado e o Espírito da Garagem da Bosta. Nós éramos 3; vivíamos roubando copo de botequim e jogando pedra na casa dos outros. Então, a poesia para mim era coisa de veado. Ou era doido ou veado. Isso é que era a noção que eu tinha de poesia. Depois, todo mundo vai mudando, vai se domesticando. Depois eu terminei... Eu me apaixonei por uma Teresinha lá, e vai virando outras coisas.

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Quer dizer que a poesia começou como um instrumento de conquista, de sedução?

            O SR. FERREIRA GULLAR - É uma mistura de... Não é nem de sedução, porque ela nunca conheceu os poemas, não. (Risos.)

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Quando é que o senhor se deparou com a poesia, que revelou o gosto pela poesia? Quando é que foi isso?

O SR. FERREIRA GULLAR - Nessa época, eu comecei ... O primeiro poema que me chamou a atenção, que realmente me fez pensar que eu podia ser poeta, foi um poema horrível — hoje, eu acho horrível — publicado no jornal do colégio onde eu estudava, que era a Escola Técnica de São Luís, porque eu não estudei em ginásio, estudei em uma escola profissional, profissionalizante.

Era um poema cretino, falando sobre a chuva pingando e tal. Aquilo me impressionou e eu achei legal. Poesia ruim também desperta. (Risos.)

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Você falou que era rebelde. Mas eu acho que li em algum lugar que você tinha horror ao mundo adulto, que não...

O SR. FERREIRA GULLAR - Não é que eu tivesse horror. Eu, garoto como eu era, criado na ilha de São Luís, solto, pegando passarinho, arrastando camarão...

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Moleque de rua, não é?

            O SR. FERREIRA GULLAR - ... moleque de rua, tomando banho na prainha, no cais e tal, andando de canoa com o meu irmão... Quer dizer, na hora em que acabou essa festa, você vira adulto, a responsabilidade, vai ter que trabalhar, vai ter que ganhar a vida, vai ter... Então, quer dizer, não é uma coisa consciente, mas eu acho, eu me lembro que eu não reagi muito bem a essa expectativa de virar adulto. Então, no fundo, o artista, o poeta, era uma mistura de coisas. Mas uma das coisas que existe, eu acho, que é uma... Porque o mundo é maravilhoso quando você descobre o mundo. Depois, ele vai virando uma coisa comum, não é?

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Um pesadelo.

            O SR. FERREIRA GULLAR - Não. Vai virando convencional, burocrática, rotineira e tal. Mas, para uma criança, uma formiga é uma maravilha. E é uma maravilha. Nós é que, cretinos, não olhamos mais. O que é uma formiga? Um bicho estranho andando num negócio... Nasceu para quê? Está fazendo o quê? O que  que é? Quando vê, é uma maravilha. Quando a criança olha, é uma maravilha. Ela está sempre espantada com a maravilha do mundo. Nós é que já... É tudo formiga e tal, está tudo explicado. Não está explicado nada. Só que ninguém pode viver, também, na indagação permanente do mundo, nem dentro da maravilha. Ninguém pode viver...

            Eu digo que ninguém suporta a maravilha por muito tempo.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Como é que foi a tua formação, tua instrução, tua formação intelectual? A tua profissão foi sempre o jornalismo no início?

            O SR. FERREIRA GULLAR - Foi. Eu comecei em escola pública, depois passei para um colégio muito bom lá no Maranhão, o Colégio São Luís de Gonzaga, onde eu fiz o primário. O curso primário foi lá nessa escola. Depois, eu fiz exame de admissão para o Ateneu Teixeira Mendes, que era um colégio excelente, mas eu não pude continuar estudando lá porque o meu pai entrou em parafuso. Lá, não pode continuar pagando colégio, aí eu fui para a Escola Técnica de São Luís, que era gratuita, que era uma escola para formar profissionais. Aí, lá tinha curso de alfaiataria, marcenaria, sapataria, funilaria. E todos os alunos iam. Em cada período, iam para uma oficina dessas. Eu aprendi na sapataria, na marcenaria, na alfaiataria. Não aprendi nada, porque o meu objetivo não era esse. Mas, se eu quiser, faço uma meia sola no seu sapato aí. (Risos.)

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O senhor nunca fez?

            O SR. FERREIRA GULLAR - Não. Pregar botão, eu sei pregar botão. Se complicou muito a coisa aqui, eu resolvo um problema qualquer. Aqui, em casa, eu só chamo o profissional em última hipótese. (Risos.)

            Depois, eu virei jornalista, naquela época em que não era preciso ter diploma de jornalista. Porque, se tivesse que ter diploma, eu não ia virar jornalista, não.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Nós somos do tempo do registro?

            O SR. FERREIRA GULLAR - É, do tempo do registo. Então, eu, lá em São Luís, com esse negócio de fazer poema, publicar e tal, locutor de rádio, comecei... O Neiva Moreira tinha um jornal lá. Era um jornal que... Ele era ligado ao Adhemar de Barros, Partido Progressista, não era isso?

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Não, PSP.

            O SR. FERREIRA GULLAR - PSP. Então, tinha lá um jornal e ele me convidou para fazer umas reportagens. É porque eu me meti em uma confusão lá. Eu não era político. Eu não queria saber de política, não.

            Mas, na época, em 50, houve a campanha para a eleição de Presidente da República, e o Getúlio terminou ganhando, não é isso? E o Adhemar de Barros fez a campanha do Getúlio. Ele foi a São Luís do Maranhão...

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Indicou o candidato a vice.

            O SR. FERREIRA GULLAR - Pois é. Ele foi fazer a campanha no Maranhão, que era udenista o governo de lá. Quando ele chegou para fazer a campanha lá, o que aconteceu? Desligaram... Primeiro, proibiram ele de fazer na Praça João Lisboa, que é a praça central da cidade, onde se faziam todos os comícios. Proibiram, fecharam a praça, puseram polícia na praça. E ele teve de fazer em uma outra praça menor. Quando eles estavam fazendo, desligaram a energia elétrica e do alto-falante não se ouviam os discursos. (Risos.) Coisa democrática, não é? Tudo bem. E eu estou lá, não estou me metendo naquilo. Eu cheguei lá, olhei. Desligaram a luz — nego revoltado. Dentro da minha cabeça, sem ter nada a ver com aquilo, eu falei: “Pô, Isso é uma esculhambação, escrotidão”. Não gostei daquilo, com meu espírito democrático. Não gostei daquilo. Tudo bem.

            Eu era o locutor da rádio, fui para a rádio com o meu pai em um bonde. Quando  nós chegamos na Praça João Lisboa, o que tinha acontecido? Já era de noite. O comício tinha terminado, eles tinham ido para o Hotel Central, que ficava próximo à Praça João Lisboa, fizeram lá um banquete, jantaram e tal, onde estava hospedado... O Adhemar de Barros ia ficar lá. E a massa, depois que terminou o jantar, veio caminhando na direção da Praça João Lisboa, que estava cercada de polícia. Quer dizer, o pessoal ia tirar a forra. Não fez o comício, mas ia invadir a praça. E tanto fazia, qual era o problema? Quando eles entraram na praça, tinha um grupo de policiais escondido numa esquina, que saiu atirando; feriram várias pessoas e mataram um cara. No momento que eu chegava, houve o tiroteio e eu me joguei no chão com o meu pai. Quando terminou o tiroteio, tinha um cara morto, era um operário que tinha morrido.

            No dia seguinte, eu fui para a rádio. Chegando lá, tinha uma nota do Governador. “O Governador informa que nos incidentes de ontem à noite os comunistas mataram um operário...” e tal. Eu li aquela nota e a coloquei de lado. “O sabonete Regina é uma maravilha. Vamos ouvir agora a música tal.” Não li a nota. Dali um pouco, veio o secretário da rádio: “A nota. Lê a nota!” Eu disse: “Royal Briar, o perfume que deixa saudade.” (Risos.) Não li a nota. Dali a pouco veio o diretor da rádio: “Ô, Ferreira. A nota aí, cara. Você não vai ler a nota?” Eu disse: “Não. Não vou ler, não.”“Por que não vai ler?” – ”Não vou ler porque é mentira.”“Escuta aqui, essa nota é do Governador.”– “É mentira do Governador.”“Rapaz, você não tem nada com isso. Você é locutor de rádio.”– “Eu tenho. Como é que eu não tenho? Eu estava na praça e vi. A polícia matou o cara, e eu não vou ler.”– “Então, eu vou ser obrigado a te demitir.” – “Então, me demite.” Aí, ele me demitiu. (Risos.)

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Ele te demitiu.

O SR. FERREIRA GULLAR - Claro. A primeira confusão em que me meti foi essa. (Risos.)

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Depois não parou mais. (Risos.)

O SR. FERREIRA GULLAR - Não, parei. Bom, aí, quando saí de lá, eu desci da rádio, eu não vou nem continuar a falar. Vou chamar outro cara para falar no Royal Briar. “Lê a nota você”, eu disse para ele. “Você não é o diretor? Você não é empregado do Governo? Lê a nota”. Aí eu saí e fui embora. Daqui a pouco, todo mundo já sabia disso. E na Praça João Lisboa, nos botecos, eu chegava e contei para os meus amigos: “Esse filho da mãe aí...” Aí criou-se uma onda. A Oposição, sabendo disso, me transformou num herói. (Risos.) Aí, cara, eu virei a figura popular da cidade. Eu não podia tomar café que nego pagava. (Risos.)

O que aconteceu? Eu terminei chamado para participar da campanha política da Oposição no Agreste Maranhense, lá onde tinha a Prefeita Noca Santos, o Senador José Neiva que me convidou. Eu me meti lá, foi uma encrenca. Era tiro, era um negócio bravo, e eu me meti na confusão também, quase que morro. E não tinha nada a ver com aquele negócio, porque não concordava com aquele troço. Já arrumei uma encrenca com ele lá também, porque eles fizeram a campanha dizendo que iam fazer escolas, fazer isso, fazer aquilo e tal. Aí, eu fiquei lá até o fim da campanha. No fim da campanha, eu falei assim: “Cadê as escolas?” “Não. Isso a gente fez aí... Depois a gente vai...” (Risos.) Aí, eu disse: “Pô, vocês são uns mentirosos”. Eu disse outra palavra que não vou dizer aqui. Aí eu já briguei com o cara de novo.

Aí eu voltei para São Luís, e o que tinha acontecido? O Saturnino Belo, que era o candidato da Oposição, tinha ganho. Estava na frente. Aí, eles pararam a publicação do boletim eleitoral.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Mudaram o mapa.

O SR. FERREIRA GULLAR - Ficavam 3 dias sem publicar o boletim eleitoral. Aí, quando publicaram, no quarto dia, quem estava na frente era o candidato do Governo.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O Eugênio de Barros.

O SR. FERREIRA GULLAR - O Eugênio de Barros. Então, fomos para a rua, eu com o pessoal todo da Oposição, estudantes. Aí começou uma confusão dos diabos, e terminei preso.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Houve em revolução em São Luís.

O SR. FERREIRA GULLAR - Depois. Resultou em revolução. Eu fui preso e mais alguns cabeças desse protesto. Eu me lembro que o Major Moscoso, que me prendeu, perguntou: “Vem cá. Você não é filho do Newton Ferreira?” Eu disse: “Sou”. E ele: “O que você tá fazendo metido nisso?” “O que tem eu ser filho do Newton Ferreira?” Aí eu fiz um discurso, e o cara me soltou. Não tinha nada. Era só para me amedrontar.

Resultado é que o pessoal foi para a rua, a cidade inteira foi para a rua, a Praça João Lisboa passou a ser ocupada pela população...

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Morreu muita gente, não é?

O SR. FERREIRA GULLAR - Não, não morreu muita gente.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Depois houve um levante e... Morreu muita gente...

O SR. FERREIRA GULLAR - Nós... É engraçado esse negócio. De repente, num dia, apareceu marchando pela cidade um pelotão, encabeçado por um cearense que estava trabalhando conosco lá na rádio. Era daquele tipo de gente que conseguia anúncio no comércio e inventava uns programas fajutos. O cearense resolveu entrar na briga também e organizou um pelotão de gente que não tinha arma, não tinha nada, mas sairam atrás de um sujeito chamado Jaime “Cu Suado”, que dizia que tinha arma. Aí foram para a casa do cara pedir as armas, porque ele estava tão... (Risos.) Isso era uma coisa anedótica, uma mistura de... Parece o ... (Risos.) Como é aquele negócio? (Risos.)

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O Exército Brancaleone.

O SR. FERREIRA GULLAR - Brancaleone. Pois é. (Risos.)

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Batedores de lata. (Risos.)

O SR. FERREIRA GULLAR - Aí, começaram a dar tiro. Na Praça João Lisboa tinha um jornal chamado Diário de São Luís. Começaram a dar tiro, apareceu um velhinho com um trabuco de 2 canos (risos), dando tiro na fachada do jornal. (Risos.) Invadiram o jornal, eu ajudei a invadir o jornal. Tocamos fogo no jornal. Bom, eu sei que, no final, nós resolvemos avançar em cima do Governo, em cima do Palácio do Governo, que ficava perto da Praça João Lisboa. Aquela turma de malucos. Bom, quando nos aproximamos do Palácio, era metralhadora, e aí eu desisti dessa batalha. (Risos.)

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Ninguém é leão.

 O SR. FERREIRA GULLAR - Tratei de descer pela rua da Lapa. Falei: “Vou sumir disso, porque já tá engrossando demais.” Bom, na verdade, é que terminou tendo que ir para lá representante do Governo Federal, porque o pessoal pedia intervenção federal...

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O Negrão de Lima, o Ministro da Justiça.

O SR. FERREIRA GULLAR - O Ministro da Justiça foi para lá. Chegou lá, fez um discurso, dizendo... Evidente que o Getúlio não ia fazer intervenção federal no Estado depois da fama de ditador que ele tinha tido. Acabava de ser eleito democraticamente, não ia fazer intervenção lá.

Mas, na verdade, o Governador não tomou posse, e, aí, o Presidente da Assembléia Legislativa assumiu o Governo. Nessa altura, como eu tinha sido demitido da rádio, o normal era que me devolvessem o meu emprego, agora que o Governo era outro, era Governo inclusive de Oposição, porque o Presidente da Assembléia era da Oposição e me conhecia inclusive. Aí, um dia eu encontrei com ele na praça e lhe disse: “Me diz uma coisa? Nós fizemos essa guerra toda, ganhamos, e eu continuo desempregado. Que dizer, vocês não devolveram meu emprego! “– “Ih, cara. Nós vamos devolver.” (Risos.) Mas, nessa altura, eu já estava com as malas prontas para ir para o Rio de Janeiro. Eu fiquei lá mais 1 mês e vim me embora.

O SR. ENTREVISTADOR - E essa decisão de vir para o Rio de Janeiro já tinha, de alguma forma, ligação com o início de atividade política?

O SR. FERREIRA GULLAR - Essa minha atividade política aí é meramente eventual. Eu não sou político. Eu me meto na confusão. Na hora em que o pau canta, eu acho que eu tenho que me meter. Em geral, eu me dou mal. (Risos.) Mas só me meto assim. Eu sou o chamado Dom Quixote. (Risos.)

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Qual foi o teu primeiro contato com o Partido Comunista? Quando é que se estabeleceu a tua relação... Eu te conheci mais ou menos na década de 60. No início da década de 60 tu eras copydesk do Jornal do Brasil e depois do Estado de S.Paulo, trabalhava com o velho Prudente. Ali, você já estava ligado ao partido, não é?

O SR. FERREIRA GULLAR - Não, não. Não estava.

 O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Você foi depois.

O SR. FERREIRA GULLAR - Eu inclusive fui um dos cabeças da greve que se fez. Você se lembra daquela greve?

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda)- Lembro.

O SR. FERREIRA GULLAR - Fazia 50 anos que jornalista não fazia greve.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda)- Lembro.

O SR. FERREIRA GULLAR - Eu fui um dos cabeças daquela greve. Fui demitido do Jornal do Brasil. Eu e o Sérgio Cabral, que éramos do Jornal do Brasil, como outros de outros jornais também foram demitidos. Nós fomos demitidos. O Sérgio Cabral, na época, veio me cantar para eu ir para o Partido Comunista, mas eu não aceitei entrar para o Partido Comunista. Eu trabalhava, batalhava, mas não entrava para o partido. Depois eu fui trabalhar... o Jânio foi eleito, o José Aparecido e o Carlos Castello Branco foram para Brasília. O Carlos Castello Branco era meu amigo, eu tinha trabalhado com ele no Diário Carioca. Ele me chamou para ir trabalhar em Brasília, dirigir a Fundação Cultural de Brasília. Eu fui o primeiro presidente da Fundação Cultural. Ela não existia, era um papel, só um estatuto. Fui eu que transformei a Fundação em entidade real. Ela era estatuto.

Aí, o Jânio renuncia, eu volto para o Rio e entro para o CPC da UNE, o Centro Popular de Cultura da UNE, que era dirigido pelo Vianinha, Carlos Estevam e aquele pessoal, e participava o Leon Hirszman e o...

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Paulo Pontes?

O SR. FERREIRA GULLAR - Não, nessa época não era o Paulo Pontes.

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Quem era o Presidente da UNE?

O SR. FERREIRA GULLAR - O Presidente da UNE eu não me lembro quem era.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Era o José Serra.

O SR. FERREIRA GULLAR - Depois. O José Serra foi o Presidente eleito na véspera do golpe, não chegou a tomar posse. Mas o CPC existia desde 62.

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Em 62 era o Aldo Arantes.

O SR. FERREIRA GULLAR - Aldo Arantes, exatamente. Aldo Arantes era o Presidente da UNE.

Bom, o CPC era um órgão do Partido. O assistente do Partido que dava assistência ao CPC era o Marcos Jaimovich. Eu cheguei a ser Presidente do CPC e não era do Partido. Sabem o dia em que entrei para o Partido? Foi 1º de abril, à noite, dia do golpe. Quando o golpe se consumou, eu entrei para o partido. Houve uma reunião, à noite, na casa do Carlinhos Lira, Vianinha, eu, Tereza, Marcos Jaimovich, Paulo Pontes. E, lá, na reunião ... estava o Leon Hirszman ... para avaliar o que a gente ia fazer, porque estava todo mundo atordoado. E nesse dia eu pensei, qual foi o meu raciocínio? Primeiro, bom, eu tenho que brigar contra esses caras que estão tomando o poder. E eu vou brigar sozinho? Não vou. Os meus companheiros são eles. Então, eu vou entrar para o Partido. Falei para o Marcos Jaimovich: “Informa o pessoal que a partir de hoje eu faço parte do Partido.”

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O primeiro trabalho importante do CPC público foi aquele do Teatro Opinião, não foi? Depois do golpe.

O SR. FERREIRA GULLAR - Não. O CPC acabou com o golpe. Você está dizendo uma coisa que é quase isso. Deixa eu explicar. O CPC acabou com o golpe. Tocaram fogo na UNE, e não podia continuar uma entidade subversiva como era o CPC. Então, nós, os membros do CPC, decidimos continuar, primeiro, a nossa atividade cultural e política, mas não podia ser com o nome do CPC.

Então, nós decidimos... Havia ali, na Rua Siqueira Campos, o Shopping Center da Rua Siqueira Campos, que ainda não estava terminado e que tinha sido construído pelo pai do Collor, o Arnon de Mello, ele que era o empreendedor daquilo. Então, tinha lá um espaço que ia ser uma boate, tinha um espaço que ia ser um teatro, que estava só o buraco, e o espaço que ia ser uma boate, onde o Teatro de Arena tinha apresentado Eles não usam black-tie, Chapetuba Futebol Clube, há 1 ano. Aí, o Vianinha se lembrou desse negócio e falou assim: “Vamos ver se eles nos alugam, e a gente monta lá um teatro de arena, um negócio qualquer”. Aí, fomos falar com o Arnon de Mello, ele topou. Um tio do Vianinha tinha um cinema, que faliu, tinha umas cadeiras de pau velhas de cinema, lá em São Paulo, nós fomos apanhar as cadeiras, estavam todas cheias de lama, lavamos as cadeiras todas e montamos o teatro, fizemos o teatro com a ajuda de 2 marceneiros. Mas não podia  aparecer o nosso nome nem o nome do CPC. Então, nós montamos o show Opinião, com Nara, Zé Keti e João do Vale...

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Eu fui lá.

O SR. FERREIRA GULLAR - ... mas aparecia assim: produção do Teatro de Arena de São Paulo, mas não era. Era produção nossa, mas apareceu como produção do Teatro de Arena de São Paulo.

Depois do sucesso, porque foi um sucesso, o show Opinião passou a lotar. Um mês antes já estava lotado, o espetáculo já estava lotado com um mês de antecedência.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Foi um sucesso.

O SR. FERREIRA GULLAR - Pois é. Quando terminou o show, nós adotamos, no segundo espetáculo, que foi Liberdade, Liberdade, uma montagem de textos feita pelo Flávio Rangel e Millôr Fernandes, do Grupo Opinião. Aí nós achávamos que já tínhamos direito à legalidade, aí mostramos a cara lá e tal.

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Gullar, lamentavelmente, toda essa geração, você estava citando os nomes, eu estava vendo: Paulo Pontes, Vianinha, Leon Hirszman...

O SR. FERREIRA GULLAR - Armando Costa.

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Armando Costa, Flávio Rangel.

O SR. FERREIRA GULLAR - Jabor, Arnaldo Jabor. Arnaldo Jabor era membro do CPC, claro. Inclusive ele escreveu o Formiguinha, vários textos para o CPC. Ele era um ativo militante do CPC.

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - E da maioria das figuras dessa geração talvez você seja um dos poucos sobreviventes.

O SR. FERREIRA GULLAR - Ah, é, morreu tudo.

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Todo mundo, não é verdade?

 O SR. FERREIRA GULLAR - Eu sou um dos poucos sobreviventes.

 O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - E, com a perspectiva do tempo, agora, que tipo de lembrança você tem dessa época e desse trabalho que você fazia?

 O SR. FERREIRA GULLAR - Olha, eu me sinto privilegiado de ter conhecido e trabalhado com essas pessoas. Eram pessoas maravilhosas. Há uns 2 anos, montaram um show sobre Nara Leão. Em um certo momento, esse show lembra o Show Opinião. Aí aparece fotografia do Vianinha, do Armando, do Paulo Pontes e textos e coisas ditas por ele. Eu olhei aquilo e fiquei comovido de ver a entrega, o interesse pelo País, a visão transformadora, uma coisa legal. Realmente, é maravilhoso ter uma geração com a visão desse pessoal, a entrega que eles tinham, porque era uma coisa desinteressada. O Vianinha largou o teatro, largou tudo, e foi trabalhar, sem ganhar nada, no CPC da UNE, só com o objetivo de mudar o País, de lutar pela reforma agrária.

 O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Depois vocês partiram para aquele jornal. Eu vivia muito como ... O jornal do partido, se lembra? Em 68...

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Força Operária?

 O SR. FERREIRA GULLAR - Não, não. Como era o nome ... Era o jornal Folha Carioca.

 O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Não era esse, não.

 O SR. FERREIRA GULLAR - Mas eu me lembro. Foi um jornal que durou muito pouco.

 O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Muito pouco. A polícia fechou. Relembra isso aí.

 O SR. FERREIRA GULLAR - Quem fechou ...Espera aí. Como era mesmo o nome do jornal? Outro dia mesmo eu estava falando sobre esse jornal. Trabalhavam lá o Maurício Azedo, o Ivan, o Sérgio, eu. O Poerner deu o nome para ficar como diretor do jornal, o diretor responsável, porque tinha que ter.

 O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Ficava ali na Presidente Vargas.

 O SR. FERREIRA GULLAR - É, ali na Presidente Vargas que era a redação. Mas aí, quando veio o Ato Institucional nº 2 , fechou o jornal.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Depois, teve a tua convivência com o Prudente.

 O SR. FERREIRA GULLAR - Sim.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O Prudente era um conservador, mas era um patriarca da esquerda, era um homem muito liberal. Às vezes, eu bebia um chope com ele ali no Simpatia. Ele era um filósofo, um ensaísta brilhante, escrevia bem demais, e você foi muito protegido pelo Prudente. Eu me lembro que você foi para o exílio e eles ficaram te pagando, a Teresa recebia. Conta um pouco dessa fase depois do Ato 5. Até o Ato 2, era mais ou menos, mas no Ato 5 a coisa engrossou.

 O SR. FERREIRA GULLAR - Veja bem, quero prestar uma homenagem ao Prudente, então eu vou começar um pouco de antes. Eu conheci o Prudente no Diário Carioca. Eu trabalhei na Manchete, em 1955, com o Otto, com o Armando Nogueira, com o Darwin, com o Borjalo, com o Jânio de Freitas, com o Amílcar. Então, nós saímos de lá, todo mundo brigou. Aí eu fui para o Diário Carioca, que já estava meio fazendo água, não pagava direito os salários. Lá, o chefe de redação era o Prudente de Morais, que era uma figura realmente incrível. Ele era essa figura conservadora, mas era uma pessoa ligada à música popular brasileira, ligada a figuras bem populares, era um homem afetuoso...

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - E erudito.

O SR. FERREIRA GULLAR - Erudito. Nessa época, eu publiquei A Luta Corporal. Ele leu o livro. Adorou o livro. Ele tinha uma simpatia muito especial por mim. Aí, eu saí do Diário Carioca, a conselho do editorialista do próprio jornal. Lá, quem trabalhava era o Evandro Carlos de Andrade, que chefiava a redação, e o editorialista era o Carlos Castello Branco, que chegou para mim e falou... Eu  fiz o Jornal do Brasil com o Reinaldo Jardim, que foi o começo da renovação do jornal. Aí condessa decidiu renovar todo o jornal e chamou o Odilo. E o Odilo começou a montar a equipe. Nessa hora, chegou o Carlos Castello Branco e falou para ele: “Chama o Gullar; ele é redator da primeira página do Diário Carioca, ele vai ajudar muito vocês”. E disse para mim: “Vai para lá, porque aqui eles não vão te pagar, não”. Eu realmente não recebia direito o salário. Aí, fui para o Jornal do Brasil. Depois eu acabei sendo demitido. Eu sempre fui demitido dos lugares; na minha história toda, eu estou sempre sendo demitido. A minha ultima demissão foi da TV Globo. Eu estou sempre sendo demitido, de modo que estou sempre esperando. Já faz parte da minha expectativa ser demitido. Aí, quando eu fui demitido, o Prudente mandou me chamar para trabalhar na sucursal do Estadão, onde já trabalhavam Mário Cunha e Villas-Boas. Era uma patota de gente legal, amiga. Fiquei trabalhando lá. Para mim era ótimo. Porque eu já tinha decidido — cheguei a ser chefe do Copydesk do Jornal do Brasil — eu já tinha decidido nunca mais aceitar cargo de chefia em jornal algum. Eu queria ser anônimo, ficar trabalhando num lugar em que ninguém ambicionasse o meu cargo nem quisesse me demitir mais. Então, ficar obscuro era melhor e mais seguro, porque eu sempre quis estar seguro para fazer a minha poesia. Eu nunca tive nenhuma ambição de ser nada. E o Prudente se revelou amigo legal.

Quando veio o golpe, e eu era Presidente do CPC da UNE e vivia sempre metido em agitação, ele ligou para mim e falou: “Não vem trabalhar aqui, some por algum tempo e depois a gente vê como é que fica”. Aí eu sumi. Fui com o Zé Silveira e o Jânio para muitos lugares, por dentro do Estado do Rio. Fugimos para um sítio. Eu ligava para ele: “Prudente, aqui é o Gullar”. E ele respondia: “A temperatura está alta e há promessa de chuva e tempestade”. (Risos.) E eu sumia de novo, até que tive de ir para o exílio. Entrei na clandestinidade, e a clandestinidade não pode durar muito, por isso terminei tendo que ir para o exílio. Era a única forma de escapar mesmo.

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Isso foi em que ano?

O SR. FERREIRA GULLAR - Isso foi em 68, 69, 70.

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Depois do AI-5?

O SR. FERREIRA GULLAR - Sim, depois do AI-5. Aí o Prudente ficou me dando cobertura lá por um tempo, como ele podia, junto à direção do jornal. E vocês sabem que o Estadão tinha uma tradição que nasceu em 1932, quando o Júlio Mesquita teve de ir para o exílio com outros jornalistas. Ele, que era rico, se virava, mas os outros jornalistas, que ficaram sem nada, tinham de se virar, uns como chofer de taxi, outros como pintor de paredes etc. Então, ele viu que o exílio era uma barra pesada para quem não tinha dinheiro. Então, toda vez que um jornalista do Estadão tinha de enfrentar uma barra dessa, ele achava que a empresa tinha de pagar o salário. Foi o que eles fizeram comigo: eles ficaram pagando o salário. Quando eu cheguei do Chile, que a situação estava preta, mas jornalisticamente estava ótima, promissora, então eu mandei avisar: “Eu estou aqui e posso escrever.” — eu ficava com medo de que eles me demitissem. “Não, não, não. Nós não queremos. (Risos). Não queremos que você escreva nada. Queremos distância de você”.

O SR. ESTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - A situação não era fácil.

O SR. FERREIRA GULLAR - “Fica quieto aí.”

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Naquela fase, o jornal O Estado de S.Paulo teve uma atitude muito elegante. Enquanto o Dr. Mesquita estava vivo, o jornal publicava sonetos inteiros de Camões na primeira página.

O SR. FERREIRA GULLAR - Toda vez que censuravam uma matéria, eles faziam isso.

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Você organizou a Passeata dos Cem Mil. Não foi você o cabeça.?

O SR. FERREIRA GULLAR - Eu fiz parte da passeata e, modéstia à parte, como membro do Partido e muito mais graças ao Partido do que a mim, nesse sentido o nosso papel foi importante para a passeata porque... Veja bem, a coisa começou quando, numa daquelas manifestações de rua, na Avenida Rio Branco, jogaram uma máquina de escrever (risos), em cima de um policial.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Mataram ...

O SR. FERREIRA GULLAR - Sim, o policial morreu. No dia seguinte, o Comandante da Polícia disse: “Agora é olho por olho, dente por dente”. Se o negócio já estava preto, agora vai comer feio. Então, houve uma reunião para se discutir esse assunto. Eu, Vianinha e Paulo Pontes tínhamos nos reunido na casa do Flávio Rangel e entramos em contato com o pessoal de São Paulo, com a Cacilda Becker e com o pessoal lá de São Paulo, articulando as coisas. Saímos de lá para uma reunião numa casa na Avenida Atlântica. Estava lá todo mundo, o pessoal todo. Nós chegamos um pouco atrasados. Quando nós chegamos, já havia uma proposta do meu amigo Jabor que era a seguinte: que a gente deveria ir para a rua no dia seguinte, sábado, para fazer uma manifestação em frente à delegacia geral de Polícia, na Rua da Relação. Aparentemente eu não sou, mas sempre fui sensato. Então, eu virei e falei assim: “Sábado, no centro da cidade, não tem ninguém. Nós vamos ser massacrados”.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Não tem massa da manobra

O SR. FERREIRA GULLAR - “Vamos ser massacrados. Isso aí é servir de bucha de canhão. Eu sou contra isso. Eu acho que temos de fazer seguinte. Minha proposta é a seguinte: primeiro, vamos ao Governador do Estado, Dr. Negrão de Lima, que foi eleito por nós, que assumiu um compromisso conosco.” Quando nós fomos conversar com ele, ele assumiu um compromisso dizendo que ia respeitar a democracia e os direitos humanos dentro do Estado. Ele falou o seguinte: “Podem confiar que, no meu Governo, quando tocarem a sua campainha às 6 da manhã, não é a Polícia, é o leiteiro. Então nós vamos cobrar dele essa frase”. Então, o meu plano era ir primeiro ao governador. “Mas — disseram — esse Governador não manda!” Então, ele tem de dizer para nós que não manda. Para nós, ele é o governador. Nós o elegemos, e ele é o governador. Eu não quero saber quem manda, ele tem de dizer que não manda.

            Era a primeira etapa. A segunda etapa era armar no teatro uma barraca de protesto e vamos chamar a população. Quem quiser protestar contra essa situação, venha para cá. Essas eram as minhas duas propostas. O Jabor disse que aquilo era fechadismo, que esse negócio de ficar teatro fechado era fechadismo.. Eu disse então: “Olha, Jabor, fechadismo? Eu não conheço essa categoria política!”

 Bom, a verdade é a seguinte, a minha idéia foi aprovada.

No dia seguinte, nós fomos ao Governador. E, para surpresa nossa, a adesão a essa proposta chegou ao ponto de que até Clarice Lispector foi. Foi gente de tudo que é área. Quando eu vi Clarice Lispector lá, eu falei: “É a vitória total, é a glória”. Clarice nunca saia de casa, não tomava conhecimento de nada. Tudo bem. Nesse momento o nosso jornalista e editoralista, que hoje tem um artigo no O Globo, que já foi Deputado...

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Márcio Moreira Alves.

O SR. FERREIRA GULLAR - Sim, o Márcio. O Márcio tem umas coisas esquisitas. Nós adestramos o Hélio Pellegrino. Fomos para a casa do Joaquim Pedro de Andrade, eu e o Jânio de Freitas, chamamos o Hélio Pellegrino e falamos: “Você é que sabe discursar aqui. Você vai dizer isso, isso, isso e isso. Vai cobrar do Governador o compromisso, mas não esculhamba o Governador, não insulta o Governador. Você só vai cobrar e dizer que confia nele”. E ele vai ter que... O que ele vai fazer? Nós elegemos ele! Então. ficou tudo acertado. E o Hélio fez um discurso brilhante. O Governador, primeiro, disse: “Entra uma comissão.” – “Não comissão, não. O governador tem de falar aqui, no salão, onde está todo mundo. Não tem esse negócio de comissão não.” Aí, o Hélio fez o discurso, e o Governador de cabeça baixa: “O senhor disse que, quando tocassem a companha, não era a Polícia, era o leiteiro” — e ele, de cabeça baixa. “E agora a Polícia diz que é olho por olho, dente por dente.” E aí Marcito: “O senhor é um assassino, o senhor é...

 Esculhambou tudo, esculhambou com o nosso plano. O negócio é o seguinte: “Bin Laden não dá.” Os radicais, os porras-loucos, não dá. São só para estragar, só ajudam o inimigo. O que o Bin Laden conseguiu até agora? Acabar com o Talibã. E graças a Deus que acabou, mas não era a intenção dele. Então, o radical... porque o homem é dotado de uma coisa chamada  inteligência, que ajuda a viver e a conduzir as coisas. Quando vira paixão e fanatismo, só dá errado e anda para trás.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Irracionaliza, não é?

O SR. FERREIRA GULLAR - Claro, porque aí vem o caos, a confusão. A grande força do homem é a de organizar as coisas. Existe uma coisa chamada entropia, que vive trabalhando para desagregar e desorganizar o nosso trabalho. O trabalho da humanidade inteira é organizar. Então, os porras-loucas só servem para desorganizar. Então, tudo bem. Aquilo foi um momento. O Marcito é um jornalista brilhante e hoje não está mais fazendo esses discursos.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Você se lembra que, na Passeata dos Cem Mil, o filme que estava passando no Cine Pathé era A Noite dos Generais, com Peter O’Toole.

O SR. FERREIRA GULLAR - (Risos. ) Mas, vejam bem, então desse negócio resultou que nós saímos do Palácio, de qualquer maneira, foi um sucesso a reunião pela quantidade de gente de alto prestígio que estava ali, e aí fomos para o Teatro Glauco Gil, que era o teatro da praça. E aí começou a adesão de tudo quanto é gente, de tudo quanto é área. Aí surgiu a idéia da passeata. Mas, quando surgiu a idéia, os estudantes, cujo líder era Vladimir Palmeira, que estava clandestino, os estudantes porras-loucos, o Chaim e outros professores, queriam brigar com pedra com a Polícia. E nós: “Gente, o problema não é esse; nós temos é de botar o povo na rua, porque brigar com a Polícia na esquina a gente já fez e está fazendo. Não adianta. Temos de juntar as pessoas que ainda não estão participando da luta”.

Enquanto isso, por trás, o Partido e o pessoal moderado foi falar com associações de mães, foi falar com associações de professores, foi conversar com padres e com a Igreja, foi articular lá fora. E eu ficava aqui, nesse palco, discursando para impedir a votação final do negócio que era a de fazer a passeata de qualquer maneira. Aí o pessoal do Partido chegou de carro, me chamou e fomos para a esquina da Rua Toneleros. “Os professores aderiram, os padres, está tudo armado, pode anunciar a passeata.” Então, tudo bem. Eu fui para o palco — eles já estavam votando. “Um momento. Quero anunciar o seguinte: a associação de mães aderiu ao nosso movimento.” Silêncio e palmas. “A Igreja apóia a passeata que nós vamos fazer. Agora, só tem uma condição: nós vamos fazer a passeata de acordo com o entendimento feito com o Governo, de fazer a passeata pela Avenida Rio Branco e voltar pela Uruguaiana. E só.”: – ”Não.” – ”É isso que vai ser”. Vamos botar em votação. Ganhamos.

O Chaim, que era radical, disse: “Deve ter alguma coisa por trás disso, porque eles eram contra a passeata e agora estão a favor”. – “Não, nós éramos contra a passeata isolada e radical que vocês queriam fazer. Essa passeata com o povo todo é a nossa passeata.”

 E saiu a Passeata dos Cem Mil. A passeata saiu por isso, pelo trabalho do Partido, e eu, como elemento que fazia o contato, falava e coordenava todo o negócio. Então, nesse sentido, eu dei a minha contribuiçãozinha.

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - O Gullar, quando você chegou — você devia esta lá desde o começo — quando você viu as proporções que a coisa tomou, como é que você se sentiu, porque ninguém imaginava que aquilo...

O SR. FERREIRA GULLAR - Não, não imaginava, foi uma coisa maravilhosa. Incrível porque ... Mas é isso, quando você percebe que a posição que você toma realmente corresponde à posição da maioria, ou de um grande número, você tem de tomar atitude que realmente dê confiança a essas pessoas de que é realmente o intérprete delas. Se você estreitar e ficar querendo botar a sua visão radical, o outro se afasta, não vem, não é verdade? É o PT. Se o PT quer defender a sociedade, quer defender o trabalhador, não pode ficar na posição que adota, porque, no fundo, termina sendo a defesa de meia dúzia de gente que constitui o partido. Então, não pode ser isso, não é verdade?

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Se isola.

O SR. FERREIRA GULLAR - Se isola, porque o radicalismo isola. Radicalismo jamais ampliou. O sectarismo, o radicalismo isola . Então, essa é a lição que nós aprendemos.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Como é que ...

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Desculpe, Tarcísio. Eu queria antes que você contasse para a gente esse dia, como é que foi esse dia.

O SR. FERREIRA GULLAR - Eu lembro do discurso do Hélio Pellegrino. Como foi ele quem fez o discurso para o Governador, ele se tornou o orador principal dessa grande manifestação lá na Cinelândia, naquele palanque que foi armado em frente à Câmara de Vereadores. Aí, o Hélio radicalizou, porque saiu do nosso controle e começou a gritar: “Nós vamos tirar esses milicos do Governo a tapa!” (Risos.) O cara viu uma multidão grande, era grande a multidão, mas naquela altura o Brasil já devia ter uns 120 milhões de habitantes, quer dizer, não era tanta gente. (Risos.) O cara se entusiasma e acha que está com tudo. Estamos com a massa: “Vamos tirar esses milicos a tapa”. Eu falei: “Ih!”

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Ave, Maria!

O SR. FERREIRA GULLAR - Depois, no meio disso, enquanto a passeata ia na direção da Candelária, e na volta, o pessoal fazia uma porção de coisa radical no meio do caminho. Mas como a massa era grande, não permitia que o isolado, o sectário ganhasse. Aí me lembro que eles começaram a gritar: “Só a luta armada derruba a ditadura!” E nós nos juntamos e tal.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O povo organizado...

O SR. FERREIRA GULLAR - Não. Aí alguém  — um gênio, que eu não sei quem foi — falou: “O povo unido jamais será vencido! O povo unido jamais será vencido!”  Outro dia, li uma matéria sobre uma manifestação na França em que as pessoas gritavam, em francês, essa frase.  Mas essa frase nasceu lá. Eu não fui seu autor, não sei quem foi. A gente estava caminhando e algumas pessoas diziam: “Só a luta armada derruba a ditadura!” Aí alguém começou a falar: “O povo unido jamais será vencido! O povo unido jamais será vencido!” E essa foi a palavra de ordem que ganhou a massa toda.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Eu participei dessa passeata entre os jornalistas. O pessoal se deu as mãos.

O SR. FERREIRA GULLAR - Sim, é claro.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Mas como chegou esse teu momento de produzir? A partir dessa passeata, o processo se tornou muito rápido, foi vertiginoso.

O SR. FERREIRA GULLAR - Foi vertiginoso. Isso foi em junho de 1968.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Aí, houve a morte do estudante no calabouço, o Edson Luís.

O SR. FERREIRA GULLAR - Também nessa aí a minha sensatez virginiana funcionou.

 

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Eu estava em Brasília. Não sei se você estava aqui.

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Não, não estava não.

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - A gente só leu e depois viu a história que contaram, as pessoas que participaram... Mas aquela coisa da emoção. O que é participar de uma passeata de 100 mil pessoas?

O SR. FERREIRA GULLAR - Foi isso que falei. Na frente da passeata, estavam o Chico, o Caetano, de mãos dadas e tal. Queriam me levar para lá, mas eu não queria. Eu não apareço em foto alguma. Eu tinha consciência de minha função subversiva e clandestina. Eu achava que não podia estar na frente das coisas. Eu só devia organizar, coordenar, mas não aparecer. Tanto que, durante algum tempo, isso dificultou localizar... Eu tinha uma função que era ligada ao partido, evidentemente. O partido confiava em mim, achava que eu era uma pessoa sensata, que podia conduzir as coisas. Então, eu tinha uma ligação que tinha que preservar. Não podia expor as coisas, e através de mim poderia se chegar a outros setores importantes da resistência. Eu não era um intelectual, tinha já deixado de ser o poeta Gullar. Eu era um político, um...

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos)- Um militante.

O SR. FERREIRA GULLAR - ...um militante político, um subversivo. Quer dizer, um resistente. Essa era a minha posição e eu tinha consciência disso.

Mas quando mataram o Edson Luís, fizeram uma reunião em um salão que fica na parte de cima da Câmara de Vereadores. O corpo dele estava embaixo e em cima havia a reunião. Estavam lá o Hélio Pellegrino, eu, líderes estudantis etc. E surgiu de novo a idéia: “É dia 26 de março, em 1º de abril vamos fazer uma manifestação na rua e botar para quebrar”. Disse: “Não adianta ficar jogando pedra na Polícia, cara. Escuta aqui, nós temos um defunto, eles mataram uma pessoa. Eles estão enrascados. E nós temos um morto. Qual é a coisa legal que ninguém pode proibir? Enterrar o morto. Podem proibir enterro?” “Não”. “Então, o enterro, cara! É preciso ter noção das coisas. A manifestação política é o enterro. A outra vai ser uma coisa ilegal: ou eles vão proibir e você vai brigar ou ninguém vai, porque fica com medo. Mas ao enterro todo mundo vai. Então, nós vamos fazer o enterro, e vamos convocar todo mundo para o enterro. Um enterro de protesto, claro. E a segunda coisa é a missa de sétimo dia. Podem proibir a missa de sétimo dia? Não podem. Então, nós vamos fazer enterro e missa de sétimo dia. É isso que é. Quem manda eles matarem o cara?” (Risos.) E terminamos ganhando de novo.

A sensatez às vezes funciona. Ganhamos. No enterro havia gente para burro. Um pessoal estava na frente com uma faixa enorme: “militares assassinos”. E não podem fazer nada, porque é isso mesmo, militares assassinos. Era a verdade. Eles mataram e não podiam fazer nada.

Naquela época, onde era o antigo Palácio Monroe funcionava o Estado‑Maior das Forças Armadas. Os caras de lá olhando e nego ó! Claro! Eles não podiam fazer nada. Ficavam de lá da janela. Fecharam a janela. Esculhambamos com eles, mostramos que eles eram assassinos. E eles eram mesmo, não tinham saída. Então, nessas horas, tem de saber lutar, não é?

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Só uma coisa. Eu lembro que depois disso foi uma comissão à Brasília, não sei se foi mesmo à Brasília ou...

            O SR. FERREIRA GULLAR - Brasília. Depois, da passeata, no final da passeata.

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - O Costa e Silva chamou uma comissão...

            O SR. FERREIRA GULLAR - Reivindicou-se ir lá.

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Exatamente. Para negociar uma série de coisas, porque o Governo estava se sentindo meio...

            O SR. FERREIRA GULLAR - Na verdade, é o seguinte. O pessoal faz uma passeata daquelas e qual é a conclusão? Faz a passeata e qual é a conclusão? O resultado qual é? Bem, eles se reuniram e disseram assim: “Vamos exigir uma audiência com o Presidente da República”. Mas iam pedir o quê? Iam dizer: “O senhor está demitido, Presidente, entregue o poder”? O que iam pedir? Que ele acabasse com a ditadura? Fazer o quê? Não discutiram o que iam pedir.

Foram para lá. Ninguém sabia... Eu não fui para lá, não tinha nada a ver. Eles foram para lá.

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Quem foi?

            O SR. FERREIRA GULLAR - Eu creio que foi o Hélio Pellegrino, foi o... Não me lembro bem.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Franklin Martins.

            O SR. FERREIRA GULLAR - É, Franklin Martins. E um pessoal que fazia parte da área universitária e alguns intelectuais. E a primeira coisa que o Costa e Silva fez foi o seguinte: “Só entra de gravata. Sem gravata não entra.” Isso para criar problemas para os caras. Tinham que arrumar gravata e paletó. “De manga de camisa e sem gravata não entram”, para falar com o Presidente. Começaram a criar uns problemas para eles. Mas depois chegou uma hora e perguntou: “O senhor é Hélio Pellegrino? O senhor é funcionário da Rádio MEC, não é? O senhor não trabalha, não é? O senhor recebe...” (Risos.) O negócio é complicado. Eu sei que deu em nada a reunião. Porque não era isso. Não tinham nada que ir falar com o Presidente da República.

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Qual era a avaliação que vocês faziam depois dessa passeata, depois do enterro do Edson Luís, depois dessas manifestações imensas de contestação da ditadura? Que tipo de avaliação vocês faziam da situação política? Os militares estavam fracos? Podiam cair? Como vocês avaliavam?

            O SR. FERREIRA GULLAR - Escute aqui: nesse “vocês” eu não estou nisso, porque eu não comandava nada, eu não participava. Eu era membro do Comitê Cultural do partido e membro do grupo Opinião. A gente se reunia lá. Na hora das assembléias, a gente ia e atuava, mas a nossa avaliação era que a ditadura era forte e que tínhamos que conseguir que a opinião pública se organizasse. E que nós tínhamos que ganhar pelo voto. A nossa posição, que era a posição do partido, era que  tínhamos que fazer... Porque eles eram militares, tinham tropa, tanques, aviões, canhões, e nós não tínhamos nada. Qual era a parte fraca deles? Era que eles tinham tomado o poder sem o consentimento do povo. Eles não tinham sido eleitos, eles eram usurpadores do poder, por isso tinham de manter um regime antidemocrático, cerceado em todos os aspectos, censurando jornal e tudo o mais. Então, nós tínhamos que forçar o povo a reivindicar as liberdades democráticas. É aí que eles não poderiam... Primeiro, eles não poderiam negar, nem poderiam dar. Se negassem, mostravam sua face autoritária; se dessem, se arrebentavam. Por aí é que tinha de ser.

Mas aí surgiram os heróis que usaram luta armada. Desafiaram o inimigo, e o campo do inimigo era forte. O inimigo tinha armas e sabia lutar. Aí se ferraram. Enquanto não tinham se ferrado, fazendo propaganda da luta armada e tal e coisa, que empolga os imaturos — a doença infantil, como dizia Lenin —, na hora de votar eles não votavam, votavam nulo ou em branco. Assim, a ditadura, com um terço do eleitorado, ganhava. E a gente juntava nosso voto, o voto nulo e o voto em branco, e dava dois terços. E eles, com um terço, ganhavam. Como sempre, os radicais ajudando o inimigo. E aí os caras apareciam publicamente, internacionalmente, como sendo um governo democrático, consentido, eleito pela população.

            Até que as sucessivas derrotas — Caparaó, a morte de Marighella, de Mário Alves e tal — acabaram com a luta armada, e em 1974 eles sofreram a derrota eleitoral: 16 Senadores eleitos pela oposição. Eles tiveram que começar a chamada abertura, controlada e tal. Mas aí começou a derrota e acabou. Porque em 1974 já tinha morrido todo o pessoal. Quem não estava preso estava morto. Não restava senão aquilo que a gente dizia desde o começo: votar. Vota e derrota o cara.

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Você se aproximou muito do Gregório Bezerra.

            O SR. FERREIRA GULLAR - Em Moscou, quando eu estava exilado, ele morava lá e nós ficamos amigos. Ele estava escrevendo as memórias dele, e eu fiz a revisão do primeiro volume das memórias. Ia conversar com ele, e ficamos amigos.

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Eu queria que você contasse como é que foi esse processo do seu exílio, como é que isso aconteceu, como é que você chegou a essa decisão, como é que as coisas te empurraram para isso.

            O SR. FERREIRA GULLAR - Em 1970, no dia 10 de setembro, eu fiz 40 anos. No dia 11, telefonou para mim o Leandro Konder e disse: “Gullar, o Walter caiu, foi torturado e entregou todo mundo do Comitê Cultural. Você, eu, Dias Gomes, todo mundo. Veja o que você faz. A sua situação é mais complicada porque você é membro da direção estadual.” Eu era membro da direção estadual de araque. A luta interna fez com que o pessoal me elegesse membro da direção estadual contra a minha vontade. Eu não sou político, eu não quero ser dirigente, mas, para ganhar a luta contra o Mário Alves e o Marighella dentro do partido, eles me elegeram membro da... Eu nunca participei de nada da direção estadual, eu nunca fui da direção estadual. Mas constava que eu era. Então, o pessoal disse: “Os outros do Comitê Cultural podem se apresentar, mas você não pode, porque eles sabem que você é da direção estadual. Eles vão te torturar e vão querer que você fale coisas que você não sabe, porque você não é. Então, você tem que ir para a clandestinidade.” Aí eu fui para a clandestinidade.

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - E daí para o exílio, como é que foi?

            O SR. FERREIRA GULLAR - Na clandestinidade, ou você vive como viveu o Prestes, com toda uma infra-estrutura partidária para te manter na clandestinidade — assim você pode viver anos na clandestinidade —, ou você vai para a casa de um amigo, de um conhecido. Isso termina minando e daqui a pouco você não tem mais condição de ficar na clandestinidade. Eu mudei para 3 casas. Chegou uma hora em que eu não tinha mais condição. Aí o Renato Guimarães, que era companheiro nosso e fazia a ligação entre mim e a direção do partido, me disse: “Olha, Gullar, a minha idéia é você ir para Moscou. Vai lá. Tem um curso do partido em Moscou. Você vai e fica um tempo lá, até que eles julguem o teu processo. Aí você volta.” Eu falei: “Tudo bem”. Ele propôs isso à direção do partido, a direção aceitou e eu fui. Saí clandestino e tal. E fui para Moscou. Fiquei lá 1 ano. Chega uma hora também que tem um limite, eu não podia ficar lá o tempo todo. Eu tinha que voltar, e não para o Brasil, porque eu não podia voltar, porque até aí não tinha sido julgado o meu processo. Aí eu escolhi ir para Santiago do Chile.

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Mas me diga uma coisa. E Moscou, e a Rússia, que era, vamos dizer assim, o eldorado...

            O SR. FERREIRA GULLAR - A União Soviética.

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - União Soviética, exato. Era o eldorado comunista. Qual foi a tua impressão quando você chegou a Moscou? Como é que isso bateu em você?

O SR. FERREIRA GULLAR - Eu saí daqui e fui parar em Paris, antes de ir para Moscou. Aqui era a ditadura. Na América Latina inteira era a ditadura. Em Paris era sirene e polícia, soando sem parar e confusão, luta nas ruas, repressão etc. e tal. Aí chego em Moscou era a paz, a tranqüilidade. Não tem polícia na rua. Eu falei: “Engraçado, não é? Dizem que isso aqui é ditadura, mas não tem polícia na rua.” Nunca vi um policial na rua lá. Eu achei legal aquilo. Aí comecei a conversar com as pessoas, a conhecer pessoas e tal. Veja bem, alguns problemas importantes tinham sido resolvidos. Todo mundo tinha casa para morar. O cara pagava de aluguel um quinto do seu salário. Não podia ser mais do que isso. Se só havia você e sua mulher, tinha que morar em um apartamento de um quarto. Não poderia morar em um apartamento com 2 quartos. Se havia mais gente e você morava em um apartamento com 3 quartos, pagava um quinto do seu salário. Não importava quanto você ganhava nem que apartamento, o tamanho do apartamento, o bairro onde estava. É evidente que pagar de aluguel um quinto do seu salário sobra mais dinheiro para comer e fazer outras coisas. No metrô se pagava 50... Esqueci o nome. Como era? kopeks. Custava 5 kopeks ou coisa assim. Era uma insignificância. Livros, quase de graça; discos, o long play, quase de graça. Hospital, tratamento médico, praticamente de graça. Férias... Havia isso. Não havia mendigos na rua. Aos domingos, via aqueles grupos de garotos com instrumentos, com saxofone, com tuba, com vários instrumentos musicais indo tocar nas orquestras que havia nos bairros. Então, havia uma vida, assim, legal. Agora, é evidente que isso aí eu estava em Moscou, não sabia do resto, o que estava acontecendo.

Algumas coisas me chamaram a atenção, como o fato de o partido dominar todas as áreas do Governo, do Estado, não é? Uma vez fui me encontrar com um poeta soviético. Eu escolhi. Perguntaram se eu queria conversar com algum poeta. Eu disse que queria conversar com o poeta fulano. Aí fui conversar com ele e perguntei: “Se o cara fizer uma poesia que discorde do regime, ideológica ou formalmente, seja uma poesia inventiva, que não esteja de acordo com o regime, o que acontece?” As revistas literárias eram todas do partido ou do governo. Ele disse assim: “No seu país, quem dirige as revistas e os suplementos literários? É o Carlos Drummond de Andrade? É o Graciliano Ramos? É um escritor secundário, não é? Pois é, aqui também não é o Evtuchenko, é um escritor secundário que resolveu ser burocrata. Então ele, evidentemente, não vai publicar alguma coisa que saia dos quadros. Não publica. Também não publica porque tem medo de ser demitido. Se ele publicar na revista x, a revista y esculhamba com ele e pede a cabeça dele.” Então, eu disse: “Não tem liberdade artística e literária”. Ele respondeu: “Não, publica no mimeógrafo”. Eu digo: “Mimeógrafo é livro?” Ele disse: “É. Quem quiser publicar, publica por sua conta.” “E na editora?” “A editora também não aceita”. Então, havia esse tipo de problema.

Havia coisas como, por exemplo: publicaram uma enciclopédia da literatura mundial, um negócio que iria ter, sei lá, 50 volumes. Cada volume tinha de 2 a 3 mil páginas. Assim: A Literatura Árabe. E havia tudo. Os maiores especialistas, com textos fundamentais, com notas de página, com introdução. Eu vi um dos volumes lá, que uma amiga tinha comprado. Abriram assinaturas para comprar a enciclopédia. Duzentos mil exemplares na primeira edição. Esgotou tudo, não tinha mais. Quando saiu, já havia assinatura de 1 milhão de pessoas que queriam, mas só havia 220 mil. “Bom, se deixar, serão 10 milhões querendo comprar, e nós não teremos papel para editar isso. Não há papel, porque outras obras também têm de ser publicadas.” Da obra de Evtuchenko, de um poema de Evtuchenko eram tirados 500 mil exemplares. Com duas edições, eram 1 milhão, 2 milhões de exemplares para um livro de poesia, algo absolutamente impensável no Brasil, no Ocidente! Poesia, 1 milhão de exemplares, não existe em país algum. Então, esse tipo de coisa existia lá, a coisa cultural. Todo mundo tinha uma biblioteca em casa. Mas havia essas limitações de caráter, de liberdade, de experimento e tal.

E tinha, sobretudo, o problema econômico, que resultou na derrocada do sistema. Na verdade, a impressão que eu tenho é que isso tudo existia em função de o Estado prover os órgãos que tornavam isso viável. Isso era, na verdade, subvencionado. Quer dizer, a sociedade não produzia riqueza suficiente para manter isso, entendeu? E o resultado é que a economia ia sendo minada por dentro. Sem contar que havia a corrida armamentista e que a maior parte do dinheiro era gasta com a construção de foguetes e armas, o que os Estados Unidos provocavam, de propósito. O Reagan deu um xeque-mate na União Soviética quando criou a Guerra nas Estrelas, e foi impossível para a economia soviética acompanhar aquilo. Terminou com a economia soviética chegando a um colapso. Eu tenho a impressão... Vou dizer um negócio aqui que... Eu sei que o pessoal que foi do partido e que lutou por isso tem dificuldade de aceitar o que aconteceu. Eu não tenho essa dificuldade. Fiquei espantado. Na época, quando caiu todo o sistema, eu disse assim: "Nem o Roberto Campos imaginava que isso fosse possível”. (Risos.) Ele podia odiar, mas imaginar que iria ver isso, nunca imaginou. Realmente foi algo surpreendente.

A verdade é que Marx concebeu o comunismo como resultado de um processo evolutivo, que ele descreve. O escravismo, o feudalismo, o capitalismo, uma coisa evolutiva. Então, dentro dessa coisa evolutiva que vai cada vez criando órgãos mais complexos, você chegaria ao socialismo. Por isso ele imaginava que os países capitalistas mais desenvolvidos seriam os primeiros a se transformar em socialistas, pela própria evolução da economia. É a própria economia que cria a riqueza suficiente para poder dividir e poder criar a sociedade em que todo mundo... a cada um segundo sua necessidade e não a cada um segundo a sua capacidade, como é o capitalismo. Cada um segundo a sua necessidade. Se você tem 10 filhos, necessita de mais, tem que ter tudo para 10 filhos. Supõe-se, então, que a sociedade tem de criar riqueza suficiente para permitir isso. Porém, isso começou em um país subdesenvolvido, a Rússia, e com nações que não tinham alfabeto, não tinham literatura escrita, não tinham linguagem escrita. Então, houve um esforço brutal para desenvolver essa enorme comunidade que se transformou na União Soviética, um negócio gigantesco, em contradição com a própria natureza do projeto original.

Tenho a impressão de que houve um atalho e que se não tivesse havido esse atalho, quem sabe aquela transformação se desse orgânica e evolutivamente, como Marx tinha sonhado. Não sei se é verdade, talvez seja, para que eu continue acreditando que um dia o socialismo virá, porque, dentro da atual perspectiva, não virá. De modo que, revolução e tal, não se pode mais ficar pensando nisso.

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Quando você voltou para o Brasil definitivamente?

            O SR. FERREIRA GULLAR - Eu fui para o Chile. Eu estava lá quando o Allende foi morto. Fiquei em palpos de aranha, quase fui levado para o Estádio Nacional.

            Mas estou traçando aqui o meu retrato de homem sensato. Quando cheguei do Chile, havia duas ABIs no Chile, uma de esquerda, outra de direita. Eu falei que queria entrar na de direita. Disseram: “Você ficou maluco?” “Não, não estou maluco não. Eu estou sensato.” Eu quero entrar na de direita. E entrei na de direita. Quando a polícia invadiu a minha casa, com arma e tudo, eu disse: “Sou membro da ABI da direita.” Quando o cara olhou: Colégio de Periodistas del Chile. Era de direita. Ele disse: “Não pode ser!” Eu respondi: “Como, não pode ser? Liga para lá.” Ele ligou e viu que era. Ele disse: “Porra, você é esperto.” Eu falei: “Eu? Esperto? Não, eu sou do Colégio de Periodistas del Chile.” E teve de me largar lá, sabendo quem eu era. “O senhor é um subversivo!” Eu digo: “Eu sou correspondente”. Estava escrito na minha porta: Co-responsável estrangeiro de O Estado de S.Paulo. (Risos.) Aí, o cara: “Isso deve ser um panfleto subversivo”. “Meu amigo, esse é o mais conservador órgão da imprensa brasileira e você está dizendo que é panfleto subversivo? Se o Dr. Júlio Mesquita sabe disso, você vai se dar mal.” E o cara teve que me largar lá. Um outro veio e invadiu a minha casa de novo. Aí eu cheguei e falei: “Já esteve um aqui, cara. Vocês estão querendo o quê? Já esteve um cara aqui.” (Risos.) Eu sei que terminaram me dando uma autorização para eu ir pegar um salvo-conduto. Tinha de ir à Extranjería pegar o salvo-conduto. Só que lá na Extranjería eu tinha entrado com um processo para poder trabalhar, e eu ia trabalhar no Chile Hoy, a revista mais subversiva que havia no Chile. Havia até um ofício da Chile Hoy dizendo que estava disposta a me dar um trabalho e tal. Porque para trabalhar lá você tinha que mostrar que já tinha trabalho, mas para ser aceito tinha de mostrar que o governo permitia. Então, era assim: se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. O método era o seguinte: você conseguia do jornal uma declaração de que estava disposto a te contratar, apresentava lá e conseguia autorização para trabalhar. E aí tudo bem. Na hora em que fui buscar o salvo-conduto, o meu medo era que aparecesse essa carta da Chile Hoy, e aí eu iria em cana em vez de ter o salvo-conduto, porque ia trabalhar no jornal mais subversivo do país, um jornal superesquerdista. Fui para lá gelado. Isso foi logo depois do golpe, 20 dias depois do golpe, mais ou menos. Eles ainda não tinham mudado os funcionários, que eram do Partido Socialista. Aí a moça que me atendeu falou assim: “Você não é amigo do Armênio?” Eu falei: “É.” Porque ela tinha me atendido antes, com recomendação do Partido Socialista. Ela disse: “Tudo bem”. Foi buscar a minha pasta. Eu a vi tirar a pasta do escaninho e sumir com ela lá para dentro. Até achei estranho: “Por que ela não veio para cá, foi lá pra dentro?” Ela foi tirar a carta do Chile Hoy. Ela foi examinar, porque ela sabia que eu ia trabalhar em alguma coisa subversiva, que na época era legal, mas que tinha virado subversivo. Quando ela veio com o documento e o entregou para o cara que estava me atendendo no balcão, vi que não tinha a carta do Chile Hoy. E me deram o salvo-conduto. Aí eu fui e consegui,  não vou contar isso, como eu saí da minha casa e fui para o aeroporto, e as horas que passei esperando o avião, a chamada para entrar no avião e ir para Buenos Aires. Enquanto isso, eu podia ser preso a qualquer momento. Toda vez que ouvia aquele “Senhores, atenção, aqui fala a Diretoria não sei de quê” eu gelava. Até que entrei no avião. Aliás, quando fui saindo, na porta, apresentei meu talão de embarque, o cara destacou o pitoco de todo mundo. Saí andando para o avião. Quando estou no meio do caminho, fazem: “Psiu! psiu!” Eu não olhei. Um cara olhou e falou assim: “É o senhor que ele está chamando”. “Eu, não!” “É o senhor”. Eu olhei, e o cara: “Venha cá!” Voltei para lá. Quando chego, o cara fala assim: “Cadê o pitoco do seu talão de embarque?” Eu falei: “Eu não sei, ué. Eu tenho o meu talão de embarque, agora...” “Não, sem isso o senhor não embarca”. Aí, eu olhei para o chão. Estava no chão. O cara destacou, caiu no chão, e eu entreguei a ele. “Está aqui!” Entrei, fui para o avião e disse: “Bom, agora, dentro do avião, estou salvo”. O avião começou a parquejar e parou. E o cara disse assim: “Senhores passageiros, lamentamos informar que por um defeito elétrico teremos que esperar 20 minutos”. (Risos.) Para mim, tudo isso, 20 minutos, era porque não havia defeito elétrico, eles estavam querendo é me pegar, está entendendo? Você fica paranóico. Aí, rapaz, dali a pouco, demorou 5 minutos, o avião entrou, foi para a cabeceira da pista, e eu só tomando conta de tudo. Tomando conta. E o avião começa a disparar. Eu esperava a hora em que a roda descolasse do chão. Quando descolou do chão, eu peguei e dormi, na mesma hora. O avião subia, eu descia. (Risos.) Eu estava pensando: “Mas por que eu me meti nisso? Eu não tenho nada a ver com isso, eu sou um poeta, cara. Em que eu me meti?” Eu achava estranho. “O que eu fui fazer?” (Risos.) “Eu não sou subversivo, eu não sou revolucionário, não sou coisa nenhuma! O que eu estou fazendo aqui?! O filho de Dona Zizi se meteu nessa, no meio do mundo. Regime socialista, querer mudar o mundo, eu quero mudar o mundo!” (Risos.)

Fui parar na Argentina. Primeiro fui para o Peru. O Peru, realmente, é um desastre. Lá, realmente, é inviável. A sombra dos incas paira sobre o país. Não dá para viver lá. Aí eu fui para a Argentina. Eu ia trabalhar na universidade lá na Argentina, mas no dia seguinte deram o golpe. (Risos.) O pessoal já dizia assim: “Não vem para cá, cara, pelo amor de Deus!” (Risos.) Aonde você chega, o burro vira.

Deram o golpe lá e começou a inhanha, prender gente e tal. Começaram a cair meus amigos, meus conhecidos: argentinos que eu conhecia, exilado chileno que eu conhecia, uruguaio... E eu comecei a achar: daqui a pouco sou eu. O meu passaporte estava esgotado. Fui à embaixada do Brasil em Buenos Aires: “Eu quero um passaporte novo”. O cara foi lá para dentro e disse assim: “Não tem passaporte para o senhor, não, o seu passaporte vai ficar aqui”. Eu falei: “O quê?! Vai ficar preso o meu passaporte? Olha aqui, você pensa que está tratando com quem? Passaporte é documento pessoal meu. O senhor me devolve o meu passaporte ou então eu vou à imprensa denunciar vocês agora. Aqui não é ditadura, não,” — ainda não era ditadura — “eu vou denunciar vocês agora!” Aí o cara disse: “Não, um momento.” E voltou com o passaporte. Só que o passaporte estava carimbado, em cada página, desse tamanho assim: cancelado. Cancelado em todas as páginas. Quer dizer, eu não tinha passaporte, porque eu não podia... Se o passaporte estivesse vencido, não estivesse assim, você poderia ainda... Mas o passaporte estava com todas as páginas canceladas.

Então, eu não podia sair para a Europa e não podia sair para nenhum país em volta, porque com carteira de identidade você, hipoteticamente, poderia sair, mas o Uruguai era ditadura, o Paraguai era ditadura, o Chile era ditadura, a Bolívia era ditadura. Tudo era ditadura. Então, eu não podia sair para parte alguma. E começaram a prender as pessoas em volta de mim. Então, eu achei que eu ia ser preso e que, possivelmente, essa minha aventura ia terminar ali em Buenos Aires. Foi aí que eu escrevi o Poema Sujo.

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Em Buenos Aires?

O SR. FERREIRA GULLAR - Escrevi assim: bom, vou escrever a última coisa. O poema foi escrito com essa... Eu vou escrever a última coisa. Enquanto é tempo, eu vou dizer tudo o que eu tenho que dizer. Eu escrevi o poema assim.

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Quanto tempo levou?

O SR. FERREIRA GULLAR - Meses. Eu nunca me meti num barato... Eu sou uma pessoa que não escreve em estado normal. Eu não escrevo. Eu acho que todo poeta é assim. Fora João Cabral, que dizia que não era assim, o que é mentira dele também. Se você está em estado burocrático, não escreve. Não é nenhuma coisa divina, nem genial, nem nada; é só que você tem que estar emocionado, tem que estar num estado mais aberto às coisas do que enquadrado na rotina de sua vida. Enquadrado na rotina não sai poesia, porque a rotina é o contrário da poesia.

            Eu, que sou uma pessoa banal e racional, tenho muita dificuldade em virar poeta. Eu peso mais do que um Boeing 707. Tem que ter turbinas poderosas para me levantar do chão. É por isso que eu escrevo muito pouco. Quando me perguntam: “Você que é o Ferreira Gullar?” Eu digo: “Às vezes”. Porque, na verdade, eu sou José Ribamar Ferreira. Noventa e nove por cento da vida eu sou José Ribamar Ferreira; às vezes, sou Ferreira Gullar.

            Então, numa dessas vezes, eu escrevi o Poema Sujo. A diferença é que, em geral, isso demora pouco. O Poema Sujo demorou meses. A vez em que eu fui Ferreira Gullar mais demoradamente foi quando eu escrevi esse poema. Fiquei meses escrevendo, no maior barato. Saía pela rua... Eu cozinhava, comprava tudo para mim. Eu fazia tudo na casa. E eu saía para fazer compras, mas ficava com o poema na cabeça, comprando laranja e pensando. Quando chegava em casa, escrevia o poema. E foi até terminar o poema. E terminei. Foi isso.

            Vinícius chegou lá — Vinícius de Moraes estava para fazer um show lá. Eu, que era amigo dele, falei: “Vinícius, o pessoal exilado quer estar contigo. Vamos fazer um jantar com os amigos na casa do Boal. Você conhece o Boal?” “Não, eu conheço de nome, não conheço pessoalmente”. “Então vamos lá e tal, a gente convida uns amigos. Vai ser bom para o pessoal. O pessoal vive triste aqui.” (Risos.)

            Aí fomos para a casa do Boal com uns amigos, e o Vinícius foi a esse jantar. Lá, o Boal falou: “Você sabe que o Gullar escreveu um poema aí? Ele anda dizendo que escreveu um poema muito longo, mas não mostra para ninguém.” Eu falei: “Não, não é bem isso. É um poema longo. Vou mostrar como?” E o Vinícius fala assim: “Não, você pode ler. Vem ler aqui para nós. Amanhã, você”... E  Boal: “A gente convida uns amigos, convida um grupo grande e tal.” Convidaram e, no dia seguinte, eu li esse poema para esse pessoal. E o pessoal ficou muito comovido, porque o poema envolve todo aquele problema, a situação do exílio e tal. Vinícius ficou muito comovido, com os olhos cheios d’água. Quando terminou, ele falou: “Eu tenho que levar esse poema para o Brasil”. Eu falei: “Então eu vou tirar uma cópia, porque eu só tenho esse aqui, esse texto, que é o original. Eu vou tirar uma cópia xerox e te dou amanhã.” “Não, não. Não quero cópia, não. Eu quero que você leia o poema como você leu aqui e a gente vai gravar. Eu vou arrumar gravador, tudo, e você vai gravar o poema. Eu vou levar o poema na tua voz. Isso que aconteceu aqui vai acontecer no Rio”.

            Aí trouxe o poema para o Rio, juntou gente na casa dele e mostrou o poema. O pessoal se comoveu e disse assim: “Quero cópia também.” Começaram a tirar cópia do poema e a lê-lo em casas diferentes, fazendo reuniões assim. E o Ênio, que foi um desses a ouvir o poema, ligou para mim e falou assim: “Eu quero publicar o poema agora, manda o texto e tal”. E eu mandei o texto para ele. Isso foi no final de 1975. Em 1976, o Ênio publicou o Poema Sujo. Mas o poema já era bastante conhecido através desse processo das fitas, das leituras. Quando foi publicado, o poema teve uma repercussão grande, realmente. Então, começaram a sair notas em jornal, colunas e tal: “O poeta tem que voltar. Gullar tem que voltar, é um absurdo, não sei o quê!” Essas manifestações.

            Elio Gaspari e Jurandir tomaram a iniciativa de falar com o Golbery, por conta deles, sem me dizer nada. Foram falar com o Golbery. Depois avisaram a Tereza que tinham falado com o Golbery. Levaram o Poema Sujo para o Golbery. O Golbery leu e falou assim: “Esse poema é meio obsceno, mas tudo bem. Ele devia dizer menos pornografia. Eu não tenho nada a ver com isso. Se ele quiser voltar, por mim, está tudo bem, mas eu tenho que falar com o Chefe do SNI”. Que era quem? Figueiredo.

Quando eles voltaram lá, a resposta foi a seguinte: “Figueiredo não concordou”. Falou: “Não quero esse comunista aqui”. Contaram para Tereza, Tereza me ligou e falou: “Figueiredo disse que não quer esse comunista aqui”. Eu falei: “Ele é dono do Brasil? Pois eu vou voltar. Por causa dessa frase eu vou voltar. Eu vou voltar. Eu estou absolvido, eu fui julgado e fui absolvido, eu vou voltar”. Ela disse assim: “Bom, olha bem o que você vai fazer”. “Deixa comigo”.

Eu estava montado no Poema Sujo. O que é que eu fiz? Liguei e disse: “Olha, você procure aí Villas-Bôas Corrêa. Diz para ele falar com o pessoal do jornal, falar com a ABI, falar com o Comandante do Primeiro Exército, falar com o Ministério da Justiça. E falar assim: ‘Ferreira Gullar vai voltar para o Brasil no dia tal’. Eu não vou voltar clandestino, vou voltar dizendo... Diz para todo mundo que eu vou voltar. A gente tem que assumir a responsabilidade do que vai acontecer.”

Então, eu voltei assim. Voltei. Quando desembarquei, no lugar onde nego mostra o passaporte, estava escrito assim: “José Ribamar Ferreira ou Ferreira Gullar: prender”. Estava escrito na parede assim, preso num papel. Eu disse: “Tereza, sai aí e avisa o pessoal que tem uma ordem para me prender ali. Deixa que eu fico para pegar as maletas. Você vai, sai na frente e avisa lá.” Aí eu fiquei. Não me prenderam. Mas chegou lá fora, estava Glauber, Zuenir, não sei quem, vários escritores, Villas-Bôas, Mário Cunha, outras jornalistas e tal. Eu abracei o pessoal.  Fomos para um restaurante, festa e tal.

No dia seguinte, fui para a praia, a primeira coisa que eu fiz. Eu morava em Ipanema na época e fui para à praia. Estou na praia, chega o Mário Cunha, de paletó e gravata, atrás de mim, e fala: “Gullar, a Polícia Marítima fez um contato com o jornal avisando que você deixou de assinar um documento ao desembarcar”. Eu falei: “Querem me prender. Tudo bem.” “Então, você tem que ir lá na Polícia Marítima hoje à tarde. Eu vou com você.” “Tudo bem”.

Fomos para a Polícia Marítima às 2 da tarde. Ficamos até as 5 lá. Ninguém dizia nada. Quando foi às 5, chegaram 3 caras do DOPS: “Nós vamos com o senhor para o DOPS”. (Risos.) “Fazer o quê no DOPS?” “Não sei, meu amigo, eu cumpro ordens”. Mário Cunha falou: “Eu vou com ele”. “Não, o senhor não vai”. Eu disse: “Bom, ou ele vai ou eu não vou. Aí vocês vão ter que me dar porrada aqui.” “Não, tudo bem, então ele vai”. Chegando lá, o delegado — esqueço o nome dele — nos recebeu lá, virou para o Mário Cunha e falou assim: “Ah! o senhor é Mário Cunha, não é? O senhor andou aí metido com... assinando uns manifestos.” (Risos.) Porque o Mário Cunha era desses. (Risos.) O cara só conversava coisas que não tinham nada a ver, está entendendo? “O senhor escreveu um poema e tal?” “Como é, cara? Poema o quê?” “Imundo, poema Imundo.” “Não, é Poema Sujo.”

Começou às cinco e meia e já eram 8 da noite. Eu falei: “Mário Cunha, vai embora, porque esse cara vai ficar conversando à-toa enquanto você estiver aqui. Vai embora porque, senão, chega a noite, eles me prendem aqui no escuro. Então, vamos resolver logo isso”. Mário Cunha disse: “Eu vou, mas vou ficar lá embaixo”. Eu disse: “Mas sai”. Claro, foi Mário Cunha sair e eles me levaram para uma sala: “Como é Moscou?” — aí começou o negócio. “Eu não sei, nunca estive em Moscou”. “Esteve, sim.” “Eu nunca estive.” “Ah, você não vai falar? Então vamos aqui, desce aqui comigo.” Aí desceram comigo, levaram-me para o pátio. No pátio, chegou um camburão, puseram-me uma venda nos olhos e uma algema que eu nunca tinha visto, uma algema pequenininha, que só prende os 2 polegares, com um parafuso em cada uma, para torturar. Aperta o parafuso (risos), vai apertando o parafuso. Aí me puseram dentro do camburão e me levaram. Eu não sabia para aonde estava indo, só ouvia barulho lá fora, carro, buzina. “Para onde será que eu estou indo?” Tentava localizar, não sabia. Andou, andou, andou, até que chegou num lugar onde eles pararam e entraram de ré — era um lugar inclinado, um aclive. Aí, levaram-me por uns corredores e tal. E eu só percebia que estava sendo levado. Quando chegou numa sala, tiraram a venda. Eu estava numa sala escura com um holofote. E uns caras, no escuro, disseram assim: “Agora tira a roupa”. Disse: “Não tiro, não”. “É membro do partido, da direção, gente da direção reage assim, é rebelde e tal”. (Risos.) “Tira a roupa.” “Não tiro.” “Ah! Fulano, tira a roupa dele lá.” Aí puseram em mim um macacão de manga curta e calça curta, sentaram-me na cadeira, ligaram o ar, que começou a ficar gelado, cada vez mais gelado, e começaram a fazer perguntas.

            Esse negócio durou 72 horas. Eles mudavam e eu continuava o mesmo, sozinho. Era eu mesmo sempre e eles mudando. Amanhecia, anoitecia e cada hora era um grupo diferente que me interrogava. Até que chegou uma hora que eles falaram: “Você não vai falar, não? Então, vamos trazer um cara aqui. Nós não queríamos trazer, mas vamos trazer. Ele esteve com você em Moscou, então...” Eu digo: “Vocês façam o que quiserem”. Aí trouxeram o cara. O cara tinha sido chefe do Coletivo em Moscou. Ele tinha sido torturado. Já havia sido liberado, mas tinha falado, porque foi torturado e tal. Aí, o cara chegou e falou: “Gullar, o que você vai fazer, cara. Diz logo”. (Risos.) Aí, dei uma que até me arrependo: “Você devia se envergonhar, cara, de estar falando isso. Eu te conheço”. Pô, Gullar,  pára com isso”. (Risos.) Bom, aí o cara saiu.

            E eu descobri o seguinte: que eu estava numa sala que eu olhava para fora e não via nada. Tinha vidro, mas não eu não via. De fora eu era visto e de dentro não se vê. Sabe como é? Um tipo de vidro cego que permite a visão de fora e quem está dentro não vê. Era altamente sofisticado o lugar onde eu estava. Será que foi algum sargento que mandou fazer aquilo ali, ou foi um general? O que você acha? Sargento faz isso no quartel? Se faz uma coisa dessas sem o Ministro saber? Você acha que faz? Entra no quartel e faz um equipamento sofisticado desses, com todas essas coisas, todo esse recurso sem o Ministro da Guerra saber, sem o General saber? Não, os generais eram os torturadores. A tortura foi instituída oficialmente no Brasil, e se algum sargento era obrigado a fazer toda essa outra coisa, tinha até tarado que fazia, mas quem instituiu a tortura e era responsável por ela era o General Figueiredo, o Geisel. Todos eles. Eles são os torturadores. E a história do Brasil tem que registrar isso. Que as Forças Armadas Brasileiras praticaram a tortura no Brasil. Não é tenente, nem sargento, nem nada.

Tudo bem, aí terminou depois de 72 horas. Eles me soltaram e tal e fui entregue em casa devidamente pelo tal delegado. Aquele delegado me levou em casa. “Quero mostrar que ele está intacto, que ninguém bateu nele.”  Uma pessoa que ficou 72 horas sem dormir, sem comer, sem beber. (Risos.) Realmente é uma piada. Mas é isso.

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida)  - Você não ficou em cela coletiva com outros presos, não? Só ficou nessa sala?

            O SR. FERREIRA GULLAR - Não, fiquei sendo interrogado 72 horas sem parar, dentro de uma câmara à prova de som. Eu podia berrar ali se quisesse que ninguém ouviria. Um estúdio, uma coisa sofisticada, como um sofisticadíssimo estúdio de gravação, onde não entra som, não sai som. Era isso.

            Mas isso aí é uma tortura para intelectual, não é aquela tortura de tirar as unhas do cara, dar choque. Teve um amigo meu que levou um choque que caiu a dentadura. Os dentes caíram dentro da boca. São civilizadas, as Forças Armadas são civilizadas. Todos formados na Academia das Agulhas Negras. (Risos.)

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - E a partir daí, como ficou?

            O SR. FERREIRA GULLAR - Eu voltei para o jornal, para o Estadão. Aliás, o Villas Boas, quando foi me receber no aeroporto, já chegou dizendo: “Olha, o seu lugar no Estadão está lá esperando por você”. Em seguida, acabou essa confusão e eu voltei. Fui para o Estadão trabalhar. Fiquei trabalhando lá até entrar o Augusto e demitir todos nós. Todos os funcionários antigos do jornal. (Risos.) Ele chegou e prestou esse serviço à imprensa brasileira: demitiu todo mundo.

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Em termos de militância, como foi a sua vida a partir daí?

O SR. FERREIRA GULLAR - A direção do partido estava no exterior. Não havia mais atividade nenhuma. Tudo já havia sido desarticulado. Ainda estava em vigor a ditadura que depois fez água, acabou. Quando foi, em 1980?

            O SR. ENTREVISTADOR  (Ivan Santos) - O processo de anistia ocorreu em 1979.

            O SR. FERREIRA GULLAR - É, em 1979, por aí. E não havia mais atividade política. As atividades eram assim: reuniões em favor da democracia, para criação do centro democrático. Coisas com o objetivo de retorno à democracia.

            Lá no Teatro Casa Grande nós fizemos encontros, debates. O Lula era um líder que estava surgindo. Nós fizemos um encontro com empresários e líderes, inclusive com o Lula, no sentido de voltar ao regime democrático. Foi isso. E terminou voltando, felizmente.

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida)  - Mas você continuou em atividade política. O movimento Diretas Já...

            O SR. FERREIRA GULLAR - Não, aí, sim, mas como todo mundo, porque não tinha mais organização. Eu não participava. E nem havia, o partido estava desativado, não tinha mais nada. Havia o CEBRADE, Centro Democrático. Era esse tipo de atividade. Como falei, para o retorno da democracia. Mas aí não tinha mais nada além disso.

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Outro dia, eu estava conversando com um militante desse tempo. E ele disse que achou ótimo viver numa democracia, mas não sabia que ela era tão chata. (Risos.)

            O SR. FERREIRA GULLAR - Não, se ele gosta de emoção, bota a ditadura para ele. Ele vai ser torturado. É bom.

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Não, não é bem isso. É porque ele achava que com a democracia haveria uma explosão criativa, que as coisas caminhariam de outra forma, que o País floresceria, vamos dizer assim. E não foi exatamente isso o que aconteceu.

            O SR. FERREIRA GULLAR - Mas isso não tem nada a ver com a democracia. As dificuldades do Brasil decorrem da estrutura econômica arcaica e da sociedade dominada por determinados grupos e pelo capitalismo brasileiro, que inclusive é atrasado. É isso. O País tem setores florescentes, desenvolvidos, mas conta com uma massa enorme de pessoas famintas, miseráveis, abaixo da linha de necessidade e tal. Isso é que faz haver dificuldade no Brasil. Mas o regime democrático não tem culpa disso. Quem tem culpa é a desigualdade e o sistema econômico predominante.

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos)  - Acho que ele quis dizer o seguinte: você citou aí uma série de pessoas — você, Vianinha, enfim, toda essa geração...

            O SR. FERREIRA GULLAR - Eu não me citei.

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Não, eu estou citando. Toda essa geração extremamente brilhante. De repente, estamos vivendo a plenitude democrática e, do ponto de vista cultural, há quem diga que o País sofreu tremendo empobrecimento. O que você acha disso?

            O SR. FERREIRA GULLAR - Não sei se sofreu ou não, mas digo que isso não tem nada a ver com democracia. Ninguém explica por que em determinados períodos da história surgem gênios da pintura, da música, da literatura e em outros não surge nada. Isso não tem nada a ver com o regime democrático ou não. É outra coisa, um fenômeno que não se explica. No final do séc. XIX, havia na França enorme número de artistas, pintores geniais, como Renoir, Cézanne, Pissarro, Toulouse-Lautrec. Em seguida, veio outra geração: Vlaminck, Matisse, Picasso, Braque. E hoje não há nenhum. E aí, quem é o culpado por isso? Como se explica a França hoje não ter nenhum pintor de expressão? E não é só de agora. Em 1920 não tinha, em 1930 também não. Como se explica isso? Não se explica e não tem nada a ver com regime democrático ou não. Agora, não se pode ficar culpando a democracia por coisas de que ela não tem culpa. A democracia é o melhor regime que existe. Como dizia Churchill: “É o pior regime que existe, depois de todos os outros”.

Temos de entender que os problemas não se resolvem facilmente. É difícil resolver até os nossos, quanto mais os de uma sociedade. É muito difícil resolvê-los, tem que ter paciência. Uma vez Kafka disse uma frase importante: o homem perdeu o paraíso não foi por outro pecado senão o da impaciência. Tem que ter paciência. Quem não tem paciência vira Bin Laden. Tem que ter paciência, saber que tem de ir passo a passo, devagar, que volta, que vai para frente, para trás e que você pode morrer e não conseguir resolver e que o outro fica. É assim, devagar, difícil. É isso mesmo. Quem quer Bin Laden, ou vai para a macumba, ou vai se desgraçar a praticar atentados terroristas que não conduzem a nada, a não ser piorar a situação ainda mais. Porque só piora, não melhora em nada. O povo diz: quanto mais pressa, mais vagar. O povo não diz isso? É uma verdade indiscutível. Não tem que ter pressa, tem que ter paciência.

Eu costumo dizer o seguinte, resultado de pensar sobre tudo o que já vivi na vida: quem reconhece a complexidade do mundo, da vida, da realidade não é sectário, não é fanático. Não pode. Se você reconhece que as situações são complexas e difíceis por natureza não pode ser sectário e não pode querer inventar soluções rápidas. Para você virar um fanático, um cara que acredita que um gesto de terrorismo resolve  alguma coisa, é preciso imaginar que a vida é simples e que esse seu gesto é capaz de resolver o problema. Mas não resolve. Cria um estouro, um trauma, mata uma porção de inocentes e dá em nada, porque o capitalismo continua intacto. Os Estados Unidos estão mais poderosos do que antes, porque agora contam com a solidariedade do mundo inteiro, eles entraram pelo cano, estão sendo arrasados e vão acabar. Esse foi o milagre conseguido pelo Bin Laden com a loucura praticada em Nova Iorque. Então, é isso.

Como foi a luta armada aqui no Brasil? A mesma coisa. Permitiu que a linha mais dura da ditadura, o setor militar mais duro, assumisse o controle da situação e reprimisse todo mundo. E aí reprimiu não apenas os que faziam a luta armada como todos os outros, intelectuais, aqueles que lutavam pela liberdade democrática. É evidente que só beneficiou a ditadura, não ajudou em nada. Isso é burrice, tem  que se saber que o buraco é mais embaixo. É difícil mesmo. Ninguém é gênio, nem milagroso, nem coisa alguma. Temos que ir devagar e tal.

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Como você vê o Brasil depois de todo esse tempo?

O SR. FERREIRA GULLAR - Está melhor que antes. Só o que contei aqui já mostra que está melhor do que antes. Eu poder falar isso para uma televisão da Câmara? Imagina! do Congresso Nacional? Imagina! Quando eu podia pensar nisso? Não falava nem para a televisão da esquina, quanto mais... Imagina! Não tenho dúvida alguma, melhorou muito. Está muito longe de ser o País que queremos. Agora, que melhorou, melhorou.

E as coisas têm de ser feitas com a consciência de que é difícil. É muito fácil o cara que não está no Governo dizer que ele é incompetente, que está tudo errado, que não faz nada. Mas quando assume o Governo, não consegue resolver o problema. Como ocorre com a Marta Suplicy, coitada! É uma mulher inteligente, mas não se faz milagre. Ela vai ter que conhecer a dureza do que é administrar uma cidade. Esse é o problema.

            O cara fica de fora. Ele tem de cumprir o papel de criticar e tal. Devia criticar mais objetivamente. Isso é o ideal, mas estou sonhando. A Oposição devia reconhecer o que o Governo faz de legal e criticar apenas o que ele faz de errado. E o Governo já faz muita coisa errada, não é preciso inventar mais. Basta criticar o errado. Agora, o que está certo tem que ser dito, para o povo poder prestigiar, acreditar em você. O cara foi beneficiado por uma medida do Governo, você chega e diz que a medida está errada, ele diz assim: “Esse cara tá de sacanagem!” Tá entendendo? Não pode. Mentir não conduz a coisa alguma. A verdade é revolucionária, já disse um cara que eu prefiro não citar aqui, porque senão este programa fica subversivo demais. (Risos.)

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda)- Estou satisfeito.

[encerrada a entrevista - corte no áudio]

            O SR. FERREIRA GULLAR - Bom, eu vou ler aqui a parte final do Poema Sujo. Como se sabe, o Poema Sujo tem como tema básico a cidade de São Luís do Maranhão, que é a cidade onde eu nasci. Escrevi o poema na cidade de Buenos Aires, no exílio. Isto é bom que se saiba, porque explica um pouco o que eu digo no final dos versos:

“O homem está na cidade

como uma coisa está em outra

e a cidade está no homem

que está em outra cidade

mas variados são os modos

como uma coisa

está em outra coisa:

o homem, por exemplo, não está na cidade

como uma árvore está

em qualquer outra

nem como uma árvore

está em qualquer uma de suas folhas

(mesmo rolando longe dela)

O homem não está na cidade

como uma árvore está num livro

quando um vento ali a folheia

a cidade está no homem

mas não da mesma maneira

que um pássaro está numa árvore

não da mesma maneira que um pássaro

(a imagem dele)

estava na água

e nem da mesma maneira

que o susto do pássaro

está no pássaro que eu escrevo

a cidade está no homem

quase como uma árvore voa

no pássaro que a deixa

cada coisa está em outra

de sua própria maneira

e de maneira distinta

de como está em si mesma

a cidade não está no homem

do mesmo modo que em suas

quitandas, praças e ruas”.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Muito bonito. Lindo.

            O SR. FERREIRA GULLAR - “E de maneira distinta de como está em si mesma.” Sabem de onde é que nasce isso?

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - É o pensamento dialético, não é?

            O SR. FERREIRA GULLAR - Ah, bom, é isso mesmo, porque a folha parte da árvore, a árvore é o todo da folha, então, folha da árvore, o universal é árvore, quer dizer, a totalidade, e a folha parte da árvore. O particular está no universal, uma coisa está em outra. Aí eu estou na cidade.