Legislação Informatizada - LEI Nº 9.882, DE 3 DE DEZEMBRO DE 1999 - Exposição de Motivos

LEI Nº 9.882, DE 3 DE DEZEMBRO DE 1999

Dispõe sobre o processo e julgamento da argüição de descumprimento de preceito fundamental, nos termos do § 1º do art. 102 da Constituição Federal.

Justificação


     A Carta Politica de 1988 conferiu ao Supremo Tribunal Federal a competência de "precipuamente" guardar a Constituição (art. 102). Esta atribuição que lhe foi conferida pelo legislador constituinte originário importa em reconhecer nesse ramo o Poder de Estado o papel de moderador de controvérsias entre os demais poderes entre as distintas esferas politico-administrativas do Estado Federado.

     Nisso efetiva-se o principio de controles recíprocos (checks and balances), tão caro ao regime democrático e essencial ao sistema de governo presidencialista.

     Campos Sales, Ministro da Justiça do 1° Governo Republicano, ao propor ao Marechal Deodoro da Fonseca a criação da Justiça Federal - o que se concretizou com a edição do Decreto n° 848, de 11-10-1890 - assinalou, em sua Exposição de Motivos, o novo papel do Judiciário, em comparação com o exercício da função jurisdicional no Império. Destacou, na ocasião, que, a exemplo do que ocorria com a judicatura nos Estados Unidos da América, "com razão se considera o Poder Judiciário como a pedra angular do edifício federal e o único capaz de defender com eficácia a liberdade, a autonomia individual". Ao influxo de sua real soberania desfazem-se os erros legislativos e são entregues à austeridade da lei os crimes depositários do Poder Executivo (apud SILVEIRA, José Neri. Aspectos institucionais e estruturais do Poder Judiciário brasileiro. In: "O Judiciário e a Constituição". São Paulo, Saraiva, 1994, p. 03, grifos nossos.)

     Como se sabe, a legislação dessa atribuição judicante ganhou foros de verdade a partir de 1803, no famoso caso Marbury vs. Madison, quando o Chief Justice John Marshall estabeleceu a primazia da Constituição ante leis que com elas fossem incompatíveis.

     De difuso - ou "em concreto" - o controle de constitucionalidade, pelo qual "desfazem-se erros legislativos", evoluiu neste século, para o sistema concebido por Kelsen e denominado concentrado, ou "em abstrato".

     Fato é que, tanto em um como em outro sistema - ou em modelos mistos como na tradição constitucionalista brasileira - o principio da separação dos poderes tem condicionado a judicial review à conclusão da norma sujeita ao crivo de verificação de conformidade como texto constitucional, quer em face de vício material, quer em face de vício formal. Nos caso brasileiro, o exame judicial de questões politicas, embora admitido, tem se limitado às violações de direito subjetivo, por exorbitância da esfera de discricionariedade, ou por violação direta do texto constitucional, mas sempre a posteriori, ou seja, com a conclusão dos procedimento legislativos, embora haja possibilidade jurídica, como se aqui demonstra, de um controle de constitucionalidade abstrato preventivo, ou seja no curso do processo legislativo, como já se verifica pela interveniência das Cortes Constitucionais no labor legiferante, por exemplo, na República Portuguesa e na República Federal da Alemanha.

     Em outras palavras, à doutrina e jurisprudência relativas ao controle de constitucionalidade apenas após desfecho do processo normativo já vêm sendo questionadas, para admitir-se o controle abstrato incidental no processo legislativo. Isso, contudo, deve ser feito com toda a cautela - como aliás, é o objetivo da proposição, ao estabelecer que a parte interessada há de ser conformada por pelo menos um décimo de parlamentares -, para que não haja uma ruptura com a participação do poder, requisito de funcionalidade do Estado Democrático de Direito. Curiosamente, o movimento que endossamos vem campeando a partir do constitucionalismo alemão, quando é notório o temor reverencial que, em sistemas parlamentaristas, os órgãos judiciais de controle de constitucionalidade dedicam à autonomia parlamentar (cf. HOLZER, Praventive Normenkontrolle durch das Bundesverfassungsgericht, apud MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de Constitucionalidade. São Paulo, Saraiva, 1994). Mais razão haveria, portanto, em inserir esse instituto em nosso regime politico, que é de natureza presidencialista, onde a separação de poderes é incontrastável.

     Assim, se, formalmente, não tem sido reconhecido aos parlamentares um direito público subjetivo à observância do devido processo legislativo na elaboração das normas, têm eles, pelo menos, o interesse jurídico, conforme salientou o Ministro Carlos Mário Velloso, em voto proferido no julgamento do Mandado de Segurança n° 22.503-3 (STF, julgamento em 8-5-96) de ver as Mesas do Senado Federal e da Câmara dos Deputados observarem os respectivos regimentos internos e normas constitucionais relativos ao processo legislativo.

     É esse interesse jurídico que se quer regular pela presente proposição, tomando de empréstimo o conceito tedesco de "queixa constitucional" (Verfassungsbeschwerde), legitimando-se para ação determinada fração parlamentar, tal como prevê a Lei Fundamental Alemã (art. 93, I, n° 2), e ajustando o que se propõe à Lei n° 8.038/90, que institui normas procedimentais para os processos perante o STJ e o STF.

     Vale lembrar que, para efeito de controle concentrado de adequação de atos à Constituição, não se impõe a verificação de direito subjetivo, mas simples interesse. Gilmar Ferreira Mendes ensina que "a admissibilidade de processo de controle abstrato está apenas vinculada a um interesse público de esclarecimento ou a uma necessidade pública de controle" (Jurisdição Constitucional. São Paulo, Saraiva, 1996, p. 91).

     Com efeito sendo o Supremo Tribunal Federal o guardião-mor da Constituição - art. 102, caput, CF - e dispondo o § 1° do referido art. 102 que "a arguição de descumprimento de preceito fundamental, decorrente desta Constituição será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma da lei" a proposta deve ser acatada, porque o respeito a devido processo de elaboração das normas legislativas (arts. 59 e 60 c/c arts. 51, inciso III e 52, inciso XII, CF), pressuposto formal da própria garantia basilar do devido processo legal é, com certeza, principio erigido em preceito fundamental e, enquanto tal, passível do controle judicial a que se refere o art. 102, § 1° da Constituição.

     Embora acreditemos que o disposto no art. 102, § 1°, CF seja norma de eficácia contida, e não de eficácia contida, e não de eficácia limitada, consoante os ensinamentos de José Afonso da Silva, em seu imprescindível "Aplicabilidade das Normas Constitucionais". São Paulo, Revista dos Tribunais, 1998), tomamos a iniciativa de propor a presente regulação da matéria, não apenas para que se desfaça a mora legislativa, como também para que o STF possa exercer, sem receios, o ativismo judicial que a Constituição, fruto primeiro da soberania popular, em sede de poder constituinte originário, lhe outorgou.

     Pareceu-nos, por último, que a hipótese seria, no que concerne à fixação do adequado instrumento processual, de adaptação ao processo legislativo do instituto da reclamação, previsto na alínea I do inciso I do art. 102 de nosso Estatuto Politico (note-se que esse dispositivo não dita que as reclamações devam ser feitas apenas contra decisões judiciais), e regulamentado na legislação infraconstitucional mencionada neste projeto (a Lei n° 8.038/90, tampouco restringe instituto da reclamação a impugnações de deliberações judiciais) pois o que se tem em questão, em verdade, é a preservação da competência do STF como guardião da Constituição, "pedra angular do edifício federal", efetivo e definitivo poder moderador, quando no exercício de sua atribuição de jurisdição constitucional.

     Destarte, apontando o próprio texto constitucional para horizontes ainda não descortinados, mas que precisam ser alcançados para que, de fato, prevaleça o Estado Democrático de Direito, esperamos o acolhimento da presente proposição.

     Sala das Sessões, 19 de março de 1997 - Deputada Sandra Starling.    


Este texto não substitui o original publicado no Diário da Câmara dos Deputados de 20/03/1997


Publicação:
  • Diário da Câmara dos Deputados - 20/3/1997, Página 7500 (Exposição de Motivos)