Rádio Câmara

Reportagem Especial

Especial Marchinhas 2 - Temática: crônica social em forma de música (10'02'')

08/02/2010 - 00h00

  • Especial Marchinhas 2 - Temática: crônica social em forma de música (10'02'')

"O teu cabelo não nega mulata
Porque és mulata na cor
Mas como a cor não pega mulata
Mulata eu quero o teu amor..."

Era 1932 quando o carioca Lamartine Babo compôs "O teu cabelo não nega", a partir de um refrão dos pernambucanos Irmãos Valença. A música exaltava a beleza da mulata brasileira. Como a mulher sempre esteve no pedestal da inspiração dos carnavalescos da época, Lalá depois viria também a homenagear a "Linda Morena", no carnaval de 1933, e "A melhor das três", composta, anos mais tarde, para reverenciar as loirinhas. O sucesso foi estrondoso nos bailes carnavalescos e impulsionou a criação de novos clássicos do gênero, como lembra o pesquisador musical Ricardo Cravo Albim, fundador do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro.

"As marchinhas começam, especialmente na década de 20, a tomar conta do país. Quando chega a era do rádio, quando o disco sai da gravação mecânica para a elétrica, as marchinhas tomam as ruas e tomam os carnavais como por um milagre. E aí aparecem grandes compositores, especialmente Braguinha, Lamartine Babo e Ary Barroso fazendo as mais deliciosas marchinhas para o carnaval. Marchinhas que sempre comentam, de uma maneira muito livre, o cotidiano das ruas, do país e dos costumes do povo de sua época".

"As águas vão rolar
Garrafa cheia eu não quero ver sobrar
Eu passo mão na saca saca saca rolha
E bebo até me afogar
Deixa as águas rolar..."

Em Pernambuco, Capiba compôs, em 1935, o frevo "Manda embora essa tristeza". Era um desabafo do compositor diante do fora que havia tomado da namorada, influenciada pela família conservadora da época. A marcha-frevo foi gravada por Aracy de Almeida, então com 21 anos de idade, bem antes de se tornar a intérprete preferida de Noel Rosa.

"Manda embora essa tristeza
Manda, por favor
Pode ser que essa tristeza
Mate o nosso amor
Tu pensas que eu levo, de inverno a verão,
A dançar e cantar com o meu violão
Mas não é verdade, te digo afinal,
Eu só faço isso pelo carnaval..."

A historiadora Rosa Araújo e o pesquisador musical Sérgio Cabral ouviram mais de 1.300 composições para criarem o espetáculo teatral "Sassaricando: e o Rio inventou a marchinha". Apenas 87 músicas entraram na peça, que percorreu quase o país inteiro ao longo dos quatro anos em que está em cartaz. Como verdadeiras crônicas do cotidiano da época, as marchinhas abordavam praticamente todos os assuntos: comportamento, vida doméstica, família, economia, clima, serviços urbanos, história do Brasil, entre outros.

"Sassassaricando
Todo mundo leva a vida no arame
Sassassaricando
A viúva o brotinho e a madame..."

Rosa Araújo avalia que, sem abrir mão do bom humor debochado, as marchinhas também acabavam revelando muitos dos preconceitos que estavam arraigados na sociedade brasileira das décadas de 1920 a 70.

"As marchinhas eram muito preconceituosas, politicamente incorretas. Elas tinham preconceito contra a preferência sexual, tinham preconceito de raça, tinham preconceito contra o careca, contra o barrigudo, contra o baixinho, contra o velho."

"Se veste de baiana
Pra fingir que é mulher
Vai ver que é, vai ver que é
No baile do teatro,
Ele diz que é Salomé
Vai ver que é, vai ver que é..."

Essa marchinha se chama "Vai ver que é", de Carvalhinho e Paulo Gracindo. Ouça também como os barrigudos sofreram com a sátira de Haroldo Lobo e Cristóvão Alencar.

"Você já viu barrigudo dançar?
Não?
Quá, quá, quá, quá, quá...
Quando ele dança, ui,
Sacode a pança, ui,
Quá, quá, quá, quá, quá"

Algumas marchinhas, de tão irreverentes e picantes que eram, acabavam escondendo o forte conteúdo de conhecimento cultural de seus autores. O músico e pesquisador Zuza Homem de Mello revela, por exemplo, como João de Barro, o Braguinha, se inspirou no existencialismo francês para criar "Chiquita Bacana", no carnaval de 1949.

"Quando se falou em existencialismo - e o existencialismo, falava-se, vinha da França -, o Braguinha rapidamente faz ´Chiquita Bacana´. E qual era uma das marcas do existencialismo? A nudez, a pouca roupa. Então, a Chiquita Bacana se veste com uma casca de banana nanica. Esse é apenas um exemplo. Ao percorrer as marchinhas desse período, praticamente tudo - a guerra, a bebida, os amores, as tristezas e, sobretudo, a influência do Arlequim, do Pierrô e da Colombina, que têm uma origem italiana - acaba também oferecendo motivação para que os compositores exercitassem a sua visão, de uma forma muito peculiar".

"Chiquita bacana lá da Martinica
Se veste com uma casca de banana nanica
Não usa vestido, não usa calção
Inverno pra ela é pleno verão
Existencialista com toda razão
Só faz o que manda o seu coração..."

Já que Zuza citou personagens da "commedia dell´arte" italiana, poderíamos mostrar aqui um trechinho de "Pierrô Apaixonado", que uniu dois mestres do samba, Noel Rosa e Heitor dos Prazeres, na composição de uma marchinha clássica, na qual a Colombina, já meio bêbada, entra num botequim e manda o Pierrô "tomar sorverte com o Arlequim". Mas, que tal utilizar o mesmo tema para começarmos a falar da marcha-rancho?

"Tanto riso, oh quanta alegria
Mais de mil palhaços no salão
Arlequim está chorando pelo amor da Colombina
No meio da multidão..."

Dalva de Oliveira gravou "Máscara Negra", de Zé Ketty, para o carnaval de 1967. Com um ritmo mais cadenciado do que as marchinhas tradicionais, a melodiosa marcha-rancho sempre vinha enfeitada por versos mais elaborados, românticos e saudosistas. O mesmo Noel Rosa de "Pierrô Apaixonado" se uniu ao mestre Braguinha para compor um dos clássicos da marcha-rancho: "Pastorinhas".

"A estrela d´alva
No céu desponta
E a lua anda tonta
Com tamanho esplendor
E as pastorinhas
Pra consolo da lua
Vão cantando na rua
Lindos versos de amor..."

A versão pernambucana da marcha-rancho é a marcha de bloco ou o frevo de bloco, marcado por acompanhamento de orquestra de pau e corda e predominância de coro feminino. O tom é sempre nostálgico, como esse "Frevo n° 1 do Recife", que o poeta e cronista Antônio Maria compôs em 1951, para falar da saudade que um recifense sentia ao passar o carnaval longe dos blocos de sua terra natal. Quem canta aqui é Maria Bethânia.

"Ai, ai, saudade
Saudade tão grande
Saudade que eu sinto
Do Clube das Pás, do Vassouras
Passistas traçando tesouras
Nas ruas repletas de lá
Batidas de bumbos
São maracatus retardados
Chegando à cidade, cansados,
Com seus estandartes no ar..."

As tradicionais marchinhas cariocas e o autêntico frevo pernambucano, que são irmãos em termos de técnica rítmica, expressaram os costumes cotidianos de uma época recente, às vezes com irreverência debochada, noutras vezes com nostalgia, e quase sempre em forma de pequena crônica musical.

De Brasília, José Carlos Oliveira

A abordagem em profundidade de temas relacionados ao dia a dia da sociedade e do Congresso Nacional.

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