Intolerância política x democracia

A Organização Não Governamental SaferNet Brasil fez durante as últimas eleições, um levantamento através de denúncias na hotline da empresa, sobre denúncias de violação dos direitos humanos no período de 17 de agosto a 28 de outubro. Foram 39.316 denúncias envolvendo racismo, xenofobia, LGBTfobia e violência contra a mulher. Em relação às eleições de 2014 o aumento em todos esses tipos de denúncia passou dos 100 por cento.
28/11/2018 17h47

Will Shutter/Câmara dos Deputados

Intolerância política x democracia

“Se considerarmos os 4 dias seguintes ao final do segundo turno, o total passa de 40 mil denúncias. O que estamos vivendo é uma desordem informacional. E tudo começa na falta de educação e acesso à informação de verdade, não a falsa. O Brasil tem 160 milhões de usuários de internet. Deste total, 60 por cento usam pacotes de franquias pré-pagos. Ou seja, quando sai do whatsapp gratuito oferecido pela operadora, para checar a veracidade de alguma informação, são consumidos dados e o pacote acaba. Então, são milhões de pessoas compartilhando informações que, muitas vezes, não são verdadeiras”, explica Thiago Tavares, que é presidente da SaferNet Brasil.

Thiago foi um dos participantes de uma audiência pública da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados (CDHM), nesta quarta-feira (28), sobre crimes relacionados à intolerância política.

Ele afirma que, já nas eleições de 2012 e 2014, houveram ondas de mensagens incentivando a violência através das redes sociais. Tanto que, este ano, enviou ao Tribunal Superior Eleitoral vinte e duas recomendações para evitar a propagação de mensagens violentas ou as chamadas “fake news”.

“Desde que começamos a atuar no Brasil, em 2005, já recebemos cerca de 4 milhões de denúncias, mais de 700 mil páginas foram denunciadas e conseguimos remover 246 mil páginas da internet. Do total de denúncias, mais de 2 milhões estão relacionadas a crimes de ódio. Como 28 por cento envolvendo racismo e 69 por cento, violência contra mulheres”, informa. 

Das ruas para o virtual

Déborah Duprat, procuradora federal dos Direitos do Cidadão, afirma que ficou surpresa com a proporção que esse tipo de crime tomou nas eleições.

“ São violências de todos os tipos, não só nos corpos, mas também nas palavras. Uma das análises que faço muito rapidamente, é que um dos grandes problemas que causaram essa onda, está na reforma eleitoral. Houve uma higienização das campanhas eleitorais. Não pode show, não pode certo tipo de comício ou santinho. Tiraram o debate das ruas, onde tudo pode ser dito sem subterfúgios e com direito à defesa na hora, para as discussões no espaço virtual onde as pessoas ficam invisíveis e escondidas. O contrário das ruas onde tudo é visível, frente a frente”, pondera Déborah.

A procuradora defende que os atos devem ser investigados e punidos. Mas sem a ideia punitivista de que tudo é crime no direito penal. “Temos que cobrar do judiciário. Todos fomos pegos num cenário pouco conhecido e que isso sirva para nos tornarmos mais fortes e, consequentemente, uma democracia também mais resistente”.

 “As minorias que se adaptem”

Everaldo Bezerra Patriota, presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil, sugere uma reorganização das forças democráticas.

“Em 1988 construímos um novo contrato social através da Constituição, com o foco principal na garantia dos direitos dos cidadãos. Porém, um discurso de intolerância, liderado pelo principal mandatário eleito, tornou a sociedade doente. Diga-se de passagem, um discurso admitido pelo Supremo Tribunal Federal. Junte a isso a demonização da classe política que, mesmo com todos os problemas, é a nossa cara. Mas o resultado das urnas está aí. Direitos humanos não são de esquerda nem de direita, são uma conquista civilizatória”, dia Everaldo.

“E para esse novo governo eleito e grande parte do Congresso, as minorias que se adaptem. Se é gay, que procure uma ‘cura’. Se é índio, que se aculture. Se é negro, clareie a pele. A escola não é mais para ensinar a pensar. Não se pode mais nada. A matriz do pensamento é a negação da liberdade. Se isso não for freado, vamos viver em guetos. Temos que cobrar dos eleitos o respeito à Constituição. E não é só jurar na hora da posse. Tempos difíceis e tenebrosos vêm pela frente, mas nós sobreviveremos”, alerta Patriota.

O retorno de Saturno 

“Foram criados conflitos em arenas virtuais. Grupos de famílias e amigos se dividiram e atingiram níveis preocupantes. A dimensão que isso vem tomando é alarmante. E tudo isso coincide com os 30 anos da Constituição. É um verdadeiro desafio esse ‘retorno de Saturno”. Não precisamos reinventar a roda, mas voltar às nossas bases legais. É o momento de valorizar tudo que já existe, que já conquistamos. Não vamos aceitar a institucionalização da intolerância patrocinada pelo Estado”, coloca Eduardo Nunes de Queiroz, procurados da Defensoria Pública da União.

Para os astrólogos, o “retorno de Saturno” é quando estamos perto desta data de fazer 28, 29 ou 30 anos. Essa fase é marcada por uma pressão para que tenhamos estrutura. É como se fosse a hora que ficamos adultos mesmo e que realmente começamos a perceber o que queremos na nossa vida e o que não queremos mais. E principalmente a vida em si começa a nos impulsionar para deixarmos de lado algumas posturas e comportamentos que não cabem mais na nossa vida.

Gilberto dos Santos, do Conselho Nacional dos Direitos Humanos, defende que foram abertos diversos espaços para um bom combate.

“Nessa guerra virtual e também real, com a morte de pessoas, houve desde a absurda divulgação de um suposto kit gay até o assassinato de uma mulher trans em São Paulo. É inegável o clima de violência contra mulheres, LGBTs, negros, índios e quilombolas. Ataques que ganharam guarida no discurso do candidato vencedor à Presidência e que repercutiram na sociedade brasileira. O discurso do governo eleito legitima e a impunidade é como se fosse um carimbo autorizando a violência”, afirma.

Relatório da CDHM

A Comissão de Direitos Humanos e Minorias elaborou um minucioso relatório sobre os casos de violência envolvendo a intolerância política nas últimas eleições e que vai ser encaminhado à Comissão Interamericana dos Direitos Humanos e a Organização das Nações Unidas. O documento traz números e a descrição de casos de violência.

“Os direitos humanos sempre foram muito mal conceituados no coração e na mente da nossa população,seguindo conceitos elitistas. A CDHM sempre foi uma trincheira da defesa desses direitos para todos. Não podemos perder a esperança da ousadia, além da indignação e da coragem. Medo a gente tem, mas não usamos”, afirma o deputado Luiz Couto (PT/PB), presidente da CDHM.

“As instituições democráticas, inclusive esta Câmara dos Deputados, não podem se render às forças que denigrem a dignidade humana. Temos que discutir medidas eficazes contra a agressão a direitos, mediante ofensas, discriminação, ameaças ou mesmo violência física. Por causa disso fizemos debate. Precisamos fortalecer nossa democracia”, conclui Luiz Couto.

Pedro  Calvi / CDHM