Carta Aberta do I Acampamento Marcus Matraga: um tributo à Vida

Carta aberta enviada por ativistas a autoridades baianas em protesto pela morte do professor aposentado da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Marcus Vinicius, conhecido como Marcus Matraga, na comunidade de Pirajuía. De acordo com os ativistas, o professor foi o quarto assassinado na região em três meses, e sua morte pode estar relacionada à prática da grilagem de terras na área de influência do estaleiro Enseada do Paraguaçu. Assinam o documento: familiares de Marcus Vinícius; o Diretório Acadêmico Marcus Vinicius Oliveira, do Diretório Acadêmico de Psicologia (DAPSI/UFBA); o Levante Popular da Juventude; e a Organização Não Governamental Justiça Global
18/07/2016 16h11

 

Ao Governador do Estado da Bahia, Ruy Costa

À Presidente do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, Maria do Socorro Barreto Santiago

Ao Secretário da Segurança Pública do Governo do Estado da Bahia, Maurício Telles Barbosa

 

Com cópia para

Procuradora Geral de Justiça do Estado da Bahia, Ediene Santos Lousado

Presidente da Seccional Baiana da Ordem dos Advogados do Brasil, Luiz Viana Queiroz

Secretário de Meio Ambiente do Governo do Estado da Bahia, Eugênio Spengler

Secretário de Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento Social do Governo da Bahia, José Geraldo dos Reis Santos

 

Srs. e Srª,

 

No dia 07 de junho, foi entregue ao Governador do Estado da Bahia, Ruy Costa, à Presidente do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, Maria do Socorro Barreto Santiago, ao Secretário da Segurança Pública do Governo do Estado da Bahia, Maurício Telles Barbosa, com cópia para a Procuradora Geral de Justiça do Estado da Bahia, Ediene Santos Lousado, ao Presidente da Seccional Baiana da Ordem dos Advogados do Brasil, Luiz Viana Queiroz, e ao Secretário de Meio Ambiente do Governo do Estado da Bahia, Eugênio Spengler uma Carta Aberta informando que o assassinato do Marcus Vinícius, o Marcus Matraga, professor aposentado da UFBA e ícone da Luta Antimanicomial brasileira, pode estar relacionado à prática da grilagem de terras na área de influência do Estaleiro Enseada do Paraguaçu, obra ligada ao Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e à Iniciativa de Integração da Infraestrutura Regional Sul-americana (IIRSA).

A Carta foi assinada por familiares, pela Reitoria da Universidade Federal da Bahia (UFBA), por diversos Conselhos Regionais de Psicologia do Brasil, por Instituições nacionais e estaduais de Psicologia, de Saúde Mental, da Luta Antimanicomial e pelo Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos, composto por 13 importantes entidades de Defesa de Direitos Humanos no país, como a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e o Conselho Indigenista Missionário (CIMI).

O assassinato do professor Marcus está entre os casos que justificaram o informe feito pelas entidades Justiça Global, Terra de Direitos, Conselho Indigenista Missionário, Comissão Pastoral da Terra, Artigo 19 e Sociedade Maranhense de Direitos Humanos à Organização das Nações Unidas (ONU) e à Organização dos Estados Americanos (OEA) sobre o alarmante número de Defensores e Defensoras de Direitos Humanos assassinados nas regiões Norte e Nordeste do país, em 2016[1].

Na Carta, informamos ainda que, em solidariedade à comunidade de Pirajuía e para cobrar celeridade nas investigações policiais, realizaríamos o Acampamento Marcus Matraga: um tributo à Vida, nos dias 11 e 12 de junho, na referida comunidade, no sítio Lanterna dos Afogados, local onde o professor Marcus residia, e que solicitávamos apoio policial para os dias de realização do Acampamento. No dia 09 de junho, representantes do coletivo organizador do Acampamento estiveram em audiência com o Delegado-Geral da Polícia Civil, Bernardino Brito Filho, e com o delegado Rusdenil Franco, diretor adjunto do Departamento de Polícia do Interior da Bahia (Depin), designado pela Secretaria da Segurança Pública para dar assistência às investigações. O Acampamento aconteceu contando com o apoio das Polícias Civil e Militar do Estado da Bahia.

O Acampamento contou, assim, com o apoio das Polícias Civil e Militar do Estado da Bahia e, também, de familiares de Marcus Vinícius, do Coletivo Baiano da Luta Antimanicomial, da Associação Metamorfose Ambulante de Usuários e Familiares dos Serviços de Saúde Mental do Estado da Bahia (AMEA), da Universidade Federal da Bahia, do Conselho Regional de Psicologia da Bahia, do Coletivo Iara Iavelberg – Psicólogas pela Democracia, da Prefeitura Municipal de Jaguaripe -Ba, do Centro de Estudos e Terapia de Abuso de Drogas (CETAD/UFBA), da vereadora Aladilce Souza, do Instituto de Psicologia da UFBA, do Instituto de Saúde Coletiva (UFBA), do Jornal A Tarde, da Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais do Estado da Bahia, do Conselho Pastoral da Pesca, contando também com a receptividade e participação da comunidade de Pirajuía.

Nesses dois dias de acampamento, várias atividades foram realizadas com a comunidade, dentre elas a projeção do documentário "Sambajuía ou Samba de Fia”, dirigido pelo próprio Marcus Vinícius, retratando o famoso Samba de Dona Fia, grande amiga do “Professô” – como ele era conhecido na comunidade - e matriarca do Samba de Roda do Recôncavo Baiano. Foi emocionante ver as pessoas se (re)conhecendo na filmagem e (re)vivendo momentos importantes de sua vida. Aquela foi uma oportunidade deles se verem tal como apareciam aos olhos do Marcus Vinícius e esse foi um momento muito simbólico do Acampamento. Espontaneamente as pessoas foram se levantando e prestando homenagens ao “Professô”, demonstrando com sorrisos, choros, memórias, a boa relação que com ele mantinham.

Nas rodas de conversa, pudemos perceber que a segurança foi um tema que apareceu com frequência, mobilizando angústias, medos, dores e silêncios das pessoas que nela vivem. Marcus foi a quarta pessoa assassinada, em um período de três meses, em uma comunidade com menos de 5 mil habitantes. Compreendemos que a onda de violência que avassala Pirajuía encontra na impunidade o seu principal combustível. O clima de terror que segue à sua morte na comunidade, com as ameaças e represálias sofridas por moradores que, por medo de perderem as suas terras ou mesmo de terem as suas vidas interrompidas, têm vivido acuados, parece ser o início das consequências advindas de certos interesses econômicos em vias de instalação na comunidade. Porém, observamos também que a comunidade tem esperanças de que a justiça se faça no caso do professor Marcus, talvez pela notoriedade e repercussão que este caso teve no país. Percebemos que, para além de saber quem matou o “Professô”, é uma esperança de que a comunidade de Pirajuía não se torne uma “terra de ninguém”; uma “terra sem lei” onde impera a impunidade; onde não seja possível viver em paz. Assistimos, durante o Acampamento, crianças irradiando alegria, mulheres e homens pulsando a coragem do seguir em frente, pessoas que desde aquele lugar tecem as suas relações, constroem os seus horizontes e caminham buscando manter vivas as relações de solidariedade e o compromisso com a Vida.

Vale lembrar que Pirajuía se encontra a cerca de 17 quilômetros do Estaleiro Enseada do Paraguaçu. Este empreendimento, embora tenha tido as suas atividades paralisadas em 2015, já tem emitido sinais de retomada[2], mobilizando interesses políticos e econômicos naquela região. Pela comunidade de Pirajuía passa a principal estrada que liga o Estaleiro Enseada do Paraguaçu à BA-001, sendo esta última importante via de acesso ao Porto de Ilhéus. Nesse contexto, há grande expectativa de retomada dos fluxos de capital na região, conformando, junto com os “baixos” preços das terras por ali e com a potencial abertura de novos mercados, o complexo cenário do assassinato do Marcus Vinícius e de aumento da violência na comunidade de Pirajuía.

O Marcus Vinícius ficou conhecido na comunidade também por ter acionado o IBAMA e ter se interposto entre o manguezal e a instalação de tanques de carcinicultura há alguns anos na comunidade. Esta foi a segunda vez que este tipo de empreendimento fora interditado por órgão de proteção ambiental na comunidade. Embora seja uma área da aquicultura bastante rentável, este tipo de empreendimento traz consigo uma série de impactos sociais e ambientais[3] negativos, recaídos, via de regra, sobre os moradores locais. Atualmente, a comunidade tem deparado novamente com esta ameaça, assistindo a construção do que supostamente será um grande empreendimento de carcinicultura em terreno ao lado da propriedade do Marcus Vinícius, chegando até a borda do manguezal que, em vida, ele tanto protegeu.

Por meio dessa carta, assim, viemos dizer que não culpamos a comunidade da Pirajuía pelo acontecido com o professor Marcus Vinícius. Não culpamos a comunidade de Pirajuía pelos outros três assassinatos ocorridos lá entre os dois meses que antecederam a execução sofrida pelo Marcus Vinícius. Compreendemos que Pirajuía e os seus moradores são as maiores vítimas desse contexto de terror e violência. Na nossa luta por Justiça, seguiremos solidárias e solidários à comunidade de Pirajuía, pois compreendemos que o Marcus Vinícius, ao ser assassinado, morreu como morreria qualquer outro morador da Pirajuía que, como ele, representasse um empecilho a certos interesses que negam a comunidade na sua diversidade e na sua história; que negam o direito das pessoas à Vida; que negam as áreas de preservação ambiental; que desrespeitam a dignidade das pessoas, como no caso da dona Fia, que teve a amizade que mantinha com o Marcus Vinícius instrumentalmente utilizada para enredá-lo na torpe emboscada que lhe tirou a Vida.

Seguiremos em luta para que a justiça seja feita! Não nos calaremos e não descansaremos enquanto a comunidade de Pirajuía continuar vivendo em clima de terror e impunidade. Um homem de bem; um morador querido da comunidade de Pirajuía foi executado friamente! Reafirmamos aqui que continuaremos em luta e na resistência! Toda solidariedade à comunidade de Pirajuía!

 

Nossa luta é por Justiça. Nossa luta é pela Vida. Por nossos mortos, nem um minuto de silêncio!

 

 

Figura 1. Acampamento Marcus Matraga: um tributo à Vida. Pirajuía, 12 de junho de 2016.

Foto: Nanna Teixeira

 

Salvador, ____ de julho de 2016

Assinam este documento:

Familiares de Marcus Vinícius

Diretório Acadêmico Marcus Vinicius Oliveira – DAPSI/UFBA

Levante Popular da Juventude

Justiça Global



[1] Portal Justiça Global. Brasil tem número alarmante de defensores de direitos humanos mortos em 2016. Disponível em: https://www.global.org.br/blog/brasil-tem-numero-alarmante-de-defensores-de-direitos-humanos-mortos-em-2016/. Último acesso em 04 de julho de 2016.

[2] Portal Tribuna da Bahia. Grupo pode trazer de volta Estaleiro Paraguaçu. Disponível em: https://www.tribunadabahia.com.br/2016/06/04/grupo-pode-trazer-de-volta-estaleiro-paraguacu. Último acesso em 20 de junho de 2016.

Portal O Petróleo. Urgente! Reativação de Estaleiro vai gerar milhares de empregos. Disponível em: https://m.opetroleo.com.br/urgente-reativacao-de-estaleiro-vai-gerar-milhares-de-empregos/. Acesso em 20 de junho de 2016.

[3] Portal Ciência e Cultura. Cultivo de camarões em manguezais ameaça fauna e flora. Disponível em: https://www.cienciaecultura.ufba.br/agenciadenoticias/noticias/destaques/cultivo-de-camaroes-nos-manguezais-ameaca-a-fauna-a-flora-e-o-homem/. Último acesso em 20 de junho de 2016.