Educação, cultura e esportes

Niède Guidon: arqueologia com preocupação social

29/06/2007 - 20:50  

Ela preside a fundação responsável pelo único parque das Américas considerado pela Unesco como patrimônio cultural da humanidade, o Parque Nacional Serra da Capivara, em São Raimundo Nonato (PI). E foi ela quem descobriu partes do esqueleto mais antigo do Brasil, que data de 13 mil anos atrás. São mais de três décadas dedicadas ao estudo dos primeiros humanos habitantes da Terra. Niède Guidon, uma das cientistas mais conhecidas no mundo e a mais importante arqueóloga brasileira, foi entrevistada pelo programa Personalidade.

Participaram da entrevista o pesquisador do Centro-Oeste Bismarque Villa Real, o jornalista da Rádio Câmara José Carlos Oliveira e a jornalista da TV Câmara Isabele Carvalho.

Isabele Carvalho: A senhora nasceu em Jaú, interior de São Paulo. Como foi parar no interior do Piauí e como foi a criação do Parque Nacional Serra da Capivara?
Niède Guidon: Nasci em Jaú e estudei História Natural na USP. Depois fiz um concurso e comecei a lecionar. Posteriormente, resolvi ir para a França, estudei Arqueologia em Paris. Voltei para São Paulo e passei a trabalhar no Museu Paulista da USP.
Certo dia, um grupo que foi visitar o Museu Paulista para ver uma exposição sobre pinturas de Minas Gerais pediu para falar comigo, em junho de 1963. E me informaram: "Na nossa terra, no Piauí, tem uma dessas pinturas, desses desenhos de índio". E mostraram uma fotografia. Eu vi que era completamente diferente das pinturas de Minas e de tudo o que se conhecia. Tomei nota sobre como chegar lá e sobre a cidade mais importante da região, que era São Raimundo Nonato.
Em dezembro, peguei um Fusquinha, subi a Rio-Bahia e cheguei a uma cidade pequena, depois de Petrolina. Havia chovido muito, era dezembro, uma ponte havia rodado e era impossível passar por ela. Voltei para São Paulo. Em março de 1964, deixei o Museu Paulista e fui embora para a França, definitivamente, onde recomecei a minha carreira.
Em 1970 vim ao Brasil, em uma missão francesa, ver os índios de Goiás. E ainda tinha aquilo na cabeça. Então, quando terminou a missão, eu disse: "Vou voltar pelo Piauí, porque quero ver aquelas pinturas". E pude ver que eram algo completamente diferente e ignorado de toda a comunidade científica. Voltei para a França e solicitei oficialmente a criação de uma missão de pesquisa do governo francês no Piauí. Consegui, e em 1973 houve a primeira missão.
Assim, nas minhas férias em Paris eu vinha ao Piauí com os meus estudantes. Vinham também alguns colegas da USP. Instituímos uma missão franco-brasileira e começamos a perceber a importância da região, e ampliamos a pesquisa no sentido de incluir, além do foco em arqueologia, aspectos interdisciplinares que reuniram zoólogos, botânicos, geólogos e o pessoal da Fiocruz especializado em pesquisa de parasitas e doenças.
Fizemos um documento para o governo federal pedindo a criação de um parque nacional — isso foi em 1978. Em junho de 1979, o Parque Nacional Serra da Capivara foi criado.

Isabele Carvalho: Qual a importância dos achados no Parque da Serra da Capivara?
Niède Guidon: No começo eu achava que ali, acreditando no que estava escrito, o homem tinha chegado muito tarde. Havia autores que diziam que a região da caatinga era inóspita e que o homem pré-histórico não tinha chegado lá, só muito tardiamente.
Nas nossas pesquisas encontramos datações de 18 mil anos, e já me assustei, e com isso ampliamos as escavações para obter mais vestígios. Chegamos a escavações de até 8 metros de profundidade e encontramos vestígios da presença humana, pedras lascadas, fogueiras estruturadas, porque eles fazem como nós fazemos, põem as pedras e fazem o fogo ali no meio, e chegamos até datações da ordem de 100 mil anos.
Tudo isso criou uma discussão muito grande, principalmente porque os colegas norte-americanos — os europeus aceitaram isso facilmente — defendem a teoria de que o homem só chegou à América por volta de 18 mil anos atrás, que entrou por Bering, passou pela América do Norte, depois pela América Central e só chegou à América do Sul muito tardiamente. Essa era a teoria aceita, mas as nossas pesquisas demonstraram o contrário.
Essa discussão toda, de uma certa maneira, chegou ao fim em dezembro de 2006, quando reunimos, lá na região, todos os especialistas em povoamento das Américas. Houve discussões, eles viram o material, inclusive trouxemos especialistas da Europa em material lascado, arqueólogos que trabalham na China com o homem de Chu-Ku-Tien, que é um dos mais antigos, e a decisão foi definitiva: no mínimo há 60 mil anos o homem já estava ali. A datação de 100 mil não foi aceita, porque foi feita por termoluminescência, que, segundo alguns físicos, é uma técnica que pode dar erros. Mas, de toda maneira, temos aqui 60 mil anos e mais 1 metro e meio para baixo em que continuamos encontrando vestígios da presença humana.

José Carlos Oliveira: Apesar da importância histórica para a arqueologia mundial, o parque ainda carece de infra-estrutura. Quais as principais dificuldades?
Niède Guidon: A principal é que infelizmente, aqui no Brasil, os parques têm poucos funcionários. Aquele que tem maior número de visitação e que funciona melhor é Iguaçu, mas porque foi terceirizado. Na Austrália, um parque como o nosso, que tem pinturas e que é patrimônio da humanidade, tem 600 funcionários, toda uma infra-estrutura, veículos. Se um turista se fere, um helicóptero vai buscá-lo.
Em 1991, quando estive lá, eles já tinham uma renda líquida anual de US$ 10 milhões, ou seja, o parque é auto-suficiente, se mantém, amplia as suas estruturas.
Aqui no Brasil, o Ibama tem poucos funcionários. Tive alunos que fizeram doutorado comigo e pensei que iríamos trabalhar juntos. No entanto, foram embora para as capitais. Por quê? Porque viver no interior, no Brasil, é difícil. As estradas são ruins, a qualidade de vida é ruim. Dessa forma, ninguém quer ficar lá.

Bismarque Villa Real: Como a população local foi inserida nesse projeto? Em muitos sítios arqueológicos no Brasil as pessoas, inadvertidamente, pegam alguma peça, levam para casa, criam seu museu particular. Houve alguma relevância de peças que foram tiradas de lá?
Niède Guidon: Algumas pessoas têm peças, inclusive vêm nos vender. Mas são poucas. Como chegamos muito cedo e fizemos muita pesquisa, está tudo no nosso museu, cujo acervo passa de um milhão de peças.
Quando comecei a trabalhar lá, era uma região extremamente pobre. Uma parte da população morava no fundo da caatinga, não tinha ido sequer a São Raimundo Nonato. Era um isolamento total. Ficou evidente que com uma situação econômica e social desse tipo era impossível garantir o patrimônio. Lembro-me até hoje de uma explicação que dei para uma pessoa no fundo da caatinga, onde fazíamos tudo a pé e chegávamos a andar 60 quilômetros. Encontrei uma casa com crianças que nunca tinham visto outras pessoas além dos familiares. Expliquei para um senhor, que tinha acabado de matar uma belíssima jibóia, que ele não podia matá-la pois era uma área de parque. Ele ainda não tinha sido indenizado, estava morando dentro do parque. Ele disse: "E por que o Governo se importa tanto com uma cobra e deixa os meus filhos morrerem de fome?" É difícil responder a essas questões.

Isabele Carvalho: Quais projetos a Fundação implantou para tentar melhorar a vida dessas pessoas?
Niède Guidon: Desde o momento em que se definiu que tínhamos de conseguir uma mudança econômica e social, fizemos um estudo de três anos para definir as atividades economicamente rentáveis. Para se desenvolver uma região, tem-se de criar trabalho. Não adianta levar as pessoas embora nem "ajudar um pouco".
Duas atividades seriam altamente produtivas: primeiro, o mel. Mesmo quando chove pouco, há flores da caatinga que, além de serem maravilhosas, dão um mel muito bom. Segundo, o turismo. O Banco Interamericano nos ajudou. Fizemos um projeto e trouxemos técnicos que ensinaram o pessoal de lá a cultivar as abelhas de uma maneira racional, pois eles colhiam o mel queimando a colméia, matando todas as abelhas. Dessa forma, distribuímos as caixas e hoje o Piauí é o maior exportador do Nordeste. Na região, muitos exploram o mel. Fizemos a casa de mel para fazer a filtragem, a embalagem e depois passamos para uma firma particular.
Com relação ao turismo, a Fundação conseguiu em Brasília, em 1996, recursos para um aeroporto internacional e, em 1998, foi liberada a primeira parcela, de R$ 15 milhões. Imediatamente, a Fundação contratou uma firma suíça que fez todo o projeto para o turismo, o estudo da viabilidade econômica e definiu as áreas de maior atrativo que deveriam ser criadas. Eles nos aconselharam: "Comprem agora essas terras porque elas são as mais bonitas para implantar um hotel. Comprem esta terra aqui para fazer um parque arqueológico, onde o turista possa aprender a lascar pedra, a ver como os homens pré-históricos faziam as pinturas". Isso tudo foi feito acreditando-se que o aeroporto seria construído. Mas nada foi feito. Portanto, foi um investimento muito grande, cuja finalidade era nos liberar completamente da necessidade do Orçamento da União, que não deu certo.

Bismarque Villa Real: Com relação ao envolvimento da comunidade, estive lá, há uns 4 anos, e vi que o trabalho de cerâmica é muito rico. Gostaria que a senhora explicasse a origem desse trabalho.
Niède Guidon: Quando começamos a pensar no turismo, percebemos que a região era tão pobre que nem havia uma indústria de souvenir, que a população nem tinha o que vender para o turista. Pedimos o auxílio do Banco Interamericano. O então presidente Enrique Iglesias acreditou que o parque era um exemplo de como, por meio da conservação do meio ambiente e da cultura, pode se chegar ao desenvolvimento. A partir daí, criamos essa oficina de cerâmica. Trouxemos, primeiro, um professor japonês e, depois, um italiano para formar as pessoas da comunidade. Depois que elas aprenderam e já estavam trabalhando, passamos esse trabalho para uma firma que hoje já exporta as cerâmicas.

José Carlos Oliveira: Vocês têm um extenso núcleo de apoio à comunidade. Quantas pessoas participam desse projeto de inclusão social?
Niède Guidon: Chegamos a ter 5 escolas, com 750 crianças na zona rural, e a ter 270 funcionários. Hoje as escolas estão fechadas. Só estamos conseguindo manter um programa social, para que as crianças, que só têm duas horas de aula por dia na escola pública, tenham depois para onde ir. E estamos reduzidos a 120 funcionários. A nossa ação diminuiu bastante.

Isabele Carvalho: A saída seria buscar recursos da iniciativa privada ou correr atrás do Governo para que ele faça a sua parte?
Niède Guidon: Precisaríamos colocar os técnicos do Ibama e do Iphan, especialistas tanto do meio ambiente quanto da cultura, trabalhando juntos, porque também somos patrimônio da humanidade e nacional, reconhecido pelo Iphan. O terceiro setor não pode substituir integralmente o governo. Hoje estou lá, mas daqui a pouco posso não estar, e quem vai querer morar no interior do Piauí? Compete ao governo criar recursos e desenvolver a região, e não fazer o que faz com os parques nacionais, como a Serra das Confusões. Só em 15 dias, descobrimos lá mais de 100 sítios com pinturas maravilhosas, diferentes das nossas. É outro atrativo turístico fantástico, mas completamente abandonado, inclusive já com nomes escritos sobre as pinturas.
Precisamos ter, no mínimo, 200 funcionários do Iphan e mais 200 do Ibama para fazer daquilo um parque nacional digno desse nome.

Bismarque Villa Real: Existem dados numéricos em relação ao turismo?
Niède Guidon: Há algum tempo, chegamos a 18 mil visitantes por ano. Depois, houve um ano em que choveu demais e as estradas foram completamente destruídas. Lá, o pessoal brinca dizendo que a estrada é de Sonrisal: choveu, derreteu. Então, derreteu tudo e agora os turistas não vêm mais porque ficou muito difícil.
Recebemos uns pesquisadores espanhóis, que, quando chegaram, depois de uma viagem de 300 quilômetros de Petrolina até lá, perguntaram: "Mas, no Brasil, estrada é isso?" É terrível. Dessa maneira, não vamos poder realizar esse projeto.

Isabele Carvalho: A importância do parque é conhecida mundialmente. Por que ainda não foi implantado um projeto de turismo efetivo nesse e nos outros parques? Será que é simplesmente falta de decisão política?
Niède Guidon: Creio que sim. É uma estrutura muito difícil. Por exemplo, para o aeroporto da Serra da Capivara, em 1998, foram liberados R$ 15 milhões e, em 2004, R$ 6,5 milhões. Tenho as fotos aéreas, inclusive, do aeroporto atual, depois desse dinheiro todo: observamos um desmatamento, e o pouco de terra foi embora com a chuva. O País gastou tanto dinheiro com isso e, agora, foram liberados mais R$ 14 milhões, que estariam na Caixa Econômica de Teresina esperando uma nova licitação para retomar as obras. Espero que, desta vez, façam algo decente, porque, com R$ 14 milhões na minha mão, entregaria o aeroporto em 6 meses. Vamos ver se dessa vez sai.

José Carlos Oliveira - A senhora identifica essa falta de vontade política em outros setores, em outras necessidades urgentes para o desenvolvimento do País?
Niède Guidon: Infelizmente, muitas das classes que dirigem o País pensam que uma população ignorante e pobre é mais fácil de ser conduzida do que uma que pensa, que conhece seus direitos e deveres. E todos temos de conhecer as duas coisas. Acham que um povo educado é um povo perigoso.
Eu mesma vi, ninguém me contou, numa eleição municipal, uma banca em que todo mundo chegava e ganhava R$ 10 para votar no fulano. O sujeito tem uma família grande, as famílias lá são grandes, então, quantos votos dariam? Quer dizer, é baratíssimo! Eu vi isso lá e vejo sempre essa prática. A que isso leva? Qual é o futuro dessa população?

Bismarque Villa Real: Como estão os outros sítios do Brasil? Como está a política nesse sentido?
Niède Guidon: Esse potencial da arqueologia é reconhecido no mundo todo. A arqueologia, hoje, é um dos maiores atrativos. Na França, há uma cidadezinha com apenas 4 sítios que recebe 25 milhões de turistas por ano. Espanhóis que vieram nos ver contaram que, nas Astúrias — uma província extremamente pobre, onde o solo é ruim e chove pouco, logo, a agricultura não vinga —, não há grandes atrativos turísticos, somente a paisagem, que é muito bonita. O governo espanhol construiu o chamado Parque da Europa com reproduções das pinturas de Lascaux, da França, e de Altamira. Fizeram, então, as pinturas pré-históricas dentro daquela serra, como a nossa Serra da Capivara, para atrair turistas, por ser uma região pobre.
E, hoje, temos mais de 1.100 sítios esperando o turista, não vai precisar fazer uma réplica, pois lá estão os originais. É isso que é difícil explicar. Talvez, as pessoas responsáveis não tenham atração especial por essa área. Por isso é que contratamos uma firma suíça. Apesar do tamanho do seu país, os suíços campeões de visitação turística. E eles realizaram um estudo muito bem-feito. Daria para trazer 3 milhões de turistas por ano, quer dizer, seria o fim da miséria e da situação caótica da região. É triste ver que isso não acontece por falta do aeroporto de que tanto precisamos.

Isabele Carvalho - O Estado, nos anos 80, foi o grande depredador desses vestígios arqueológicos, quando se construíam hidrelétricas e estradas sem mapeamento arqueológico. E, mesmo sabendo da existência desses vestígios, não se interrompiam as obras. Isso mudou?
Niède Guidon: Não mudou muito. Nunca me chamam para fazer essas investigações, porque, em geral encontro coisas e isso atrasa as obras.
Começaram a fazer uma adutora na região sem qualquer estudo e exatamente dentro da área vizinha ao Parque Nacional, onde trabalho. Fui lá e disse: "Não, a lei existe e vocês vão cumpri-la". Eles responderam que não tinham dinheiro para isso. Finalmente, fizemos o trabalho, eles só pagaram as despesas, encontramos sítios e levantamos o material, que está no museu.
Mas o problema é que, mesmo em Floriano, não na região, que é muito pobre, foram feitas várias obras. Outro dia, fui trabalhar num sítio que estava completamente destruído pela passagem de uma linha de alta tensão. Dizem que um arqueólogo do Rio Grande do Sul veio realizar o trabalho e não viu o sítio, que foi destruído. Mas, se estamos lá e temos uma concentração de arqueólogos especialistas na região, por que trouxeram alguém do Sul para fazer esse trabalho?

José Carlos Oliveira - Falta alguma tradição ou percepção maior das autoridades em relação à importância da arqueologia?
Niède Guidon: Acho que sim.

José Carlos Oliveira - Só existe um curso de arqueologia, hoje, no País?
Niède Guidon: É. Federal, só existe um em São Raimundo Nonato, no nosso campus, criado pela Universidade Federal do Vale do São Francisco. Existe pós-graduação em Pernambuco e na USP, creio que também no Museu Nacional do Rio de Janeiro e em Goiás. A arqueologia, no Brasil, não chegou à sua real importância, porque não temos grandes ruínas, como as da Grécia e de Roma, e nossa civilização só dá importância ao que é reflexo de um poder material. O brasileiro não conhece a tradição indígena. E ela é riquíssima, basta ver essas pinturas.
Em relação às pinturas, às pedras lascadas que temos lá, existem colegas que dizem: "Nossa, é igual ao que há na Europa". Quer dizer, esses homens que chegaram aqui desenvolveram uma cultura igual àquela. É o que eu digo: o Piauí, na pré-história, era Primeiro Mundo. Temos lá peças belíssimas, mas o brasileiro não sabe disso. Eu já vi pessoas dizerem que os índios eram bichos que andavam nus. Os índios tinham uma cultura fantástica.

Isabele Carvalho: Que turismo precisamos implantar nesses locais? O turismo pode ser também uma atividade que causa grande impacto ao local, ele pode ser depredador.
Niède Guidon: O que tem de ser feito precisa ser programado. E não só pelo técnico em turismo, mas também pelo arqueólogo e pelo botânico, todos juntos. O que fizemos foi um projeto no qual as trilhas são numerosas, visitam-se muitos sítios. Hoje, temos 128 e estamos aprontando mais 60, para que se espalhe o turista, para que ele não faça aquele bloco, todos no mesmo lugar, o que causa impacto. Estudamos a capacidade de carga e espalhamos o turista em toda a parte visitável.

Isabele Carvalho: No governo brasileiro, existe uma briga comum entre as pastas de Meio Ambiente, de Agricultura e de Ciência e Tecnologia, porque cada uma tem suas metas, não é um trabalho integrado. Também há falta de continuidade dos projetos com as mudanças de governo. O que é pior?
Niède Guidon: O desenvolvimento do País exige que haja uma mesma meta e que todos trabalhem juntos. É isso o que procuramos fazer. Já vim a Brasília, já houve uma discussão muito grande, e foi criado um comitê interministerial. Demonstrei que dependemos de ciência e tecnologia, mas também de educação, de meio ambiente e de cultura. Foi criado esse comitê, mas nunca houve reuniões nem decisões. Houve uma primeira reunião e depois acabou.
Se não houver uma integração, nada vai acontecer. E todo esse imenso tesouro corre risco. Se não houver uma oferta de trabalho digno, educação digna, se eles não virem que esse parque está trazendo mudanças para a vida deles, o que vão continuar fazendo? Vão desmatar e fazer a queimada anual, com resultados terríveis. Às vezes, venta muito, e o vento entra e queima. Outro dia, no Parque Nacional Serra das Confusões, 80 mil hectares foram queimados por causa do vento.

Isabele Carvalho: O projeto de corredores ecológicos, tão antigo, para ligar as áreas protegidas, iria ser implantado também na Serra da Capivara, ligando-a à Serra das Confusões. Como está isso?
Niède Guidon: Não foi feito nada. Quando criaram a Serra da Capivara, não havia ninguém ali, nem nas Confusões. Hoje, está invadido. Há muita gente lá, muito desmatamento.
A situação hoje é muito mais difícil. Tínhamos pensado justamente que, como na Serra das Confusões também existem esses sítios, no corredor, as famílias que já estão lá poderiam fazer o que se faz na Europa e na Austrália: ensiná-los, fazer com que construam uma casa bem feita, aceitem turistas, façam pousadas o que traria dinheiro para eles. E seria uma outra maneira de receber, porque há turistas que gostam de ficar num hotel 5 estrelas e há os que gostam de ficar em casas. Um povoado pertinho do parque já está fazendo isso. Fizeram um banheiro, já existem quartos e estão recebendo turistas. Mas é preciso que o governo direcione seus esforços nesse sentido.

Bismarque Villa Real: A senhora falou a respeito do desmatamento Nestes anos todos que está no Piauí, a senhora percebeu uma mudança drástica?
Niède Guidon: Quando chegamos lá, a Serra tinha acesso muito difícil, não havia estrada, era muito bem conservada. Ainda há no parque restos, vestígios de florestas, porque conseguimos demonstrar que até 9 mil anos atrás chovia muito lá. Existiam rios imensos, como o Amazonas, e havia botos. A chuva diminuiu a partir de 9 mil anos, mas a floresta continuou nas partes baixas. Quando cheguei, os rios corriam. Tudo isso foi o resultado da abertura das estradas.
As terras são públicas, porque aquela região não foi de capitanias, foi povoada tardiamente. Mas as terras foram invadidas, desmatadas; e florestas que vi hoje não existem mais. Daí, no lugar veio essa caatinga secundária, baixinha. E o calor aumentou muito.

José Carlos Oliveira: A senhora é autora de um artigo no qual fala que teríamos até passado dos limites de utilização, de avanço tecnológico e que o homem está entrando numa rota de depredação da natureza.
Essa rota é sem volta, ou os alertas da ONU, sombrios em relação às mudanças climáticas e ao aquecimento global, podem despertar algum tipo de conscientização que nos faça mudar o comportamento?
Niède Guidon: Ainda não vi nenhuma política adotada para isso. Veja, por exemplo, o comportamento dos animais, porque dizem que nós, os Homo sapiens, somos inteligentes; os outros, não. Então, veja o comportamento dos animais. A televisão japonesa fez um filme belíssimo com os macacos-prego. Quando existe pouca caça, um ano que não chove muito e não tem frutas, eles não se reproduzem. Eles sabem que quando se põe no mundo um bebê, é preciso dar-lhe comida, e se não existe comida, como vai ser?
Então, a nossa política, infelizmente, visa ao lucro: mais consumidores; quanto mais gente houver, mais os empresários vão ganhar. Então, existem governos que têm essa política de aumentar a natalidade. Tenho um funcionário que é analfabeto, ganha um salário mínimo e tem 23 filhos.
Então, precisamos nos conscientizar. Há terra para produzir comida para todas essas pessoas? E agora, que ela vai produzir combustível, onde vamos plantar? Tem que desmatar tudo. E qual o resultado disso? Acaba a biodiversidade. Já tivemos a prova disso em vários países que começaram a praticar grandes monoculturas, mas quando vem uma praga acaba com tudo. Aqui, no Brasil, aconteceu uma vez com o café, acabou com tudo.
Mas parece que o homem não aprende. Tudo isso partiu do momento em que se criou a propriedade e a questão do dinheiro. O que é o essencial para a sociedade de hoje? Ser rico, ter benesses. Hoje, para uma criança que assiste à televisão, o que é bacana? É ter todas aquelas coisas que estão ali, nas novelas. É isso o que ensinamos, e é esta a política: continuar a crescer; crescer e povoar o mundo, só que o mundo já está povoado.

Bismarque Villa Real: Perdemos a oportunidade de aprender muito com os índios. E ainda estamos perdendo com o que resta dos índios.
Niède Guidon: Os índios também praticavam, quer dizer, conversei com muitos deles, que diziam: "Dois fazem dois". Eles sabiam, viviam da terra, da natureza. E se começa a ser demais, não tem jeito. Hoje, infelizmente, as tribos adotam a nossa política, porque entenderam que é preciso ter muito eleitor, para contar. Vejam os países que praticam a superpovoação. Os problemas essenciais da África decorrem de uma população muito grande, e no Brasil é a mesma coisa. Entre os índios não havia isso.

Isabele Carvalho: E as pinturas que a senhora analisou no Parque Nacional, o que elas nos trazem sobre a vida desses primeiros habitantes?
Niède Guidon: São muito narrativas. A maior parte das figuras são humanas. Há figuras realizando atos da vida, de todo o dia: caçando, fazendo sexo, parto. Há outras fazendo alguma coisa, como cerimoniais e danças, que não é possível identificar. Percebemos que era um cerimonial, mas não se sabe o porquê disso. Há figuras ornadas com pinturas, penas na cabeça, cocares. É uma arte muito alegre. Eram povos que tinham abundância, que não passavam necessidade. Eles eram caçadores-coletores, e todos os caçadores-coletores que conhecemos, mesmo nas primeiras sociedades de agricultores, eram de sociedades igualitárias, estavam juntos e faziam as mesmas coisas. O chefe era chefe porque tinha mais conhecimento, era mais velho; era chefe para ajudar os outros. Se o índio fica doente, todos levam comida para a família dele. Ele não passa fome. Há um sentimento de coesão social de que hoje sinto falta. É isso o que a nossa sociedade perdeu. E em uma sociedade sem coesão, sem que todos se ajudem, não é possível ir para a frente.

Isabele Carvalho: Como o governo e a sociedade brasileira vão se portar agora que a mídia resolveu dar visibilidade à questão do aquecimento global? As pessoas vão se conscientizar?
Niède Guidon: Talvez, mas muitas pessoas acham que os cientistas são um bando de doidos. Acontece que isso é uma realidade que presenciamos. Como se pode pensar em desmatar um lugar cujo solo é raso, com 10, 20 centímetros de areia, e logo abaixo existe pedra? Como desmatar isso? Como assentar gente lá e para plantar o quê? Os assentados, este ano, não colheram nada.
Existem soluções, mas elas exigem que se pense, que sejam colocados técnicos para resolver problemas. É um engano pensar que a decisão tem de ser política, para agradar. Não. Se você faz um técnico trabalhar, ele vai trabalhar com o conhecimento de uma maneira consciente; você vai obter um resultado definitivo, concreto, que vai mostrar às pessoas que aquilo foi feito da maneira certa.

José Carlos Oliveira: Como a senhora analisa a legislação nesse setor? Ela é avançada?
Niède Guidon: O Brasil tem leis excelentes, mas ninguém as cumpre. E se você cumpre a lei, as pessoas ficam com raiva. Se um guarda do Ibama prende um caçador dentro do Parque Nacional, o que é proibido pela lei, mal ele chega à cidade e já há políticos dizendo que tem de soltar, coitadinho.
Basta obedecer as leis que tudo entrará na ordem. As queimadas são proibidas e continuam fazendo.

Bismarque Villa Real: Com relação à questão técnica, as universidades geram os profissionais em quantidade correta para atender toda essa demanda?
Niède Guidon: Estou muito longe da vida universitária. Dou aulas na pós-graduação em Recife, mas a maior parte dos meus alunos são pessoas conscientes, que têm vontade de trabalhar, cada um no seu campo, dando o possível. Em nosso programa social, os pesquisadores são os voluntários.
O Brasil tem excelentes universidades e deveríamos guardar isso. O CNPq é um dos pilares que apoiou a nossa pesquisa desde o começo. A pesquisa deu certo por causa do CNPq e da França. Sempre recebemos dos dois lados.

Bismarque Villa Real: Mas esse técnico vai para o interior, fica e gosta?
Niède Guidon: Tenho alguns que ficam lá. Inclusive, há pessoas de São Paulo que ficaram. O interessante é que são os nordestinos que não querem ficar no interior. Eles querem ir embora para as capitais.

Isabele Carvalho: Para encerrar, gostaria que a senhora fizesse uma rápida avaliação do governo brasileiro em relação às políticas públicas de preservação e falasse qual é a sua expectativa para o futuro.
Niède Guidon: Não sigo muito o movimento político, só vejo o resultado na região. Tudo o que foi feito até hoje não foi o certo, porque são coisas circunstanciais, resolve-se um problema agora, mas não se dá aquele avanço definitivo. O Brasil poderia fazer muito melhor. Existem pessoas capazes de realizar tudo isso, precisamos somente que o governo acredite em nós e nos deixe fazer aquilo que é um projeto. Pode ser diferente, mas vai dar certo.

A reprodução das notícias é autorizada desde que contenha a assinatura 'Agência Câmara Notícias'.