Texto

DEPARTAMENTO DE TAQUIGRAFIA, REVISÃO E REDAÇÃO

 

NÚCLEO DE REDAÇÃO FINAL EM COMISSÕES

 

TEXTO COM REDAÇÃO FINAL

 

PROGRAMA MEMÓRIA POLÍTICA TV CÂMARA

EVENTO: Entrevista                   

N°: ESP012/00

DATA: 05/05/2000

INÍCIO:

TÉRMINO:

DURAÇÃO: 01h06min

TEMPO DE GRAVAÇÃO: 01h6min

PÁGINAS: 33

QUARTOS: 14

 

 

DEPOENTE/CONVIDADO - QUALIFICAÇÃO

 

RACHEL DE QUEIROZ – Escritora.

 

 

SUMÁRIO: Entrevista com a escritora Rachel de Queiroz.

 

 

OBSERVAÇÕES

 

Há palavras ininteligíveis.

Conferência da fidelidade de conteúdo – NHIST 03/03/2010
            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - A impressão é que vou chamar minha filha que chama-se Rachel também!

Rachel, queríamos que você começasse a contar como foi a sua infância, como foram seus pais, etc.

A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Eu gosto de responder perguntas, não sei ficar contando a história.

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Como foi sua infância?

A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Tive uma infância feliz. Viajamos muito. Mudamo-nos para o Rio, depois para o Pará e voltamos para o Ceará. Havia três irmãos homens que eram os meus companheiros, tanto que eu era menina que não brincava de boneca, porque não havia com quem brincar. Depois, quando eu já tinha 16 anos, nasceu a minha última irmãzinha, a Maria Luiza. Foi como minha filha, que me deu dois netos.

O  SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) -  Como eram seus pais? Qual era a profissão do seu pai?

A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Meu pai era bacharel, era fazendeiro principalmente. A minha casa era uma casa de intelectuais. Havia muitos livros, lia-se muito. Eu me criei nesse ambiente. Quando comecei a escrever, não era de se admirar.

O  SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Como foi essa identidade intelectual que a senhora teve, naqueles tempos, com o trotskismo?

A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Eu era comunista, depois briguei com os comunistas. Descobri os trotskistas, porque os comunistas eram muito burros, muito certos, muito fechadinhos, muito apertadinhos, e os trotskistas tinham uma visão mais ampla. O Trotski que era o puxador da corrente. Era um homem de grande talento e escrevia muito bem. Dessa forma, passei muito cedo para os trotskistas. O resultado foi que, sendo de esquerda, de vez em quando me prendiam, mas eu não tinha nenhuma ligação com o Partido Comunista.

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Com que idade a senhora começou a sua atividade política?

A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Muito novinha, com 18 anos.

O  SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) -  Dona Rachel!

A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Rachel.

O  SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) -  Rachel, que influência teve sobre a sua vida essa seca de 1915? A senhora era uma criança de 5 anos...

A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - De 4 anos. Eu tinha 4 anos quando houve a seca de 1915. Isso quer dizer que eu não me lembrava dela, mas eu situei o rumo em 1915 porque a (ininteligível) moral das secas. Eu já tinha visto tantas secas! Vi  a seca de 1919 e vi várias outras secas, tanto que escrevi O Quinze em 1939, quando eu já tinha um grande currículo de secas. Eu já tinha assistido a várias secas, sabia perfeitamente o que era uma seca.

Nasci em 1910, no final de 1910. Da seca de 1915 eu ainda tinha lembranças de infância, do pessoal pedindo esmola, do tal campo de concentração. E em 1919, ano também de seca, eu já tinha entre 8 e 9 anos. Assisti a tudo. Creio que os meus testemunhos de seca são mais da seca de 1919.

O  SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) -  Essa mudança da sua família para o Rio, e posteriormente para Belém, ocorreu em função da seca de 1915?

A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - O meu pai era bacharel, não gostava de ser juiz, então foi tentar a vida. Vieram essas secas grandes de 1919, etc., e ele resolveu vir para o Rio. Ele tinha um irmão que era professor da universidade. Ele veio para cá, já tinha estudado aqui no Rio, mas não se colocou bem. Ele queria ser fazendeiro mesmo e resolveu ir para o Pará. Passamos dois anos no Pará. De lá ele voltou para o Ceará. Disse: “Nunca mais vou sair do Ceará.” Na verdade, não saiu mais.

O  SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - A senhora tem lembrança de algum livro ou algum momento em que a senhora decidiu que seria uma escritora? A senhora foi uma escritora tremendamente precoce.

A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Eu tinha o impulso de escrever, naturalmente, como se tem o impulso de pintar e de tudo mais. Eu comecei a escrever poesias. Havia um jornal no Ceará, O Ceará, cujo Diretor, Júlio Ibiapina, era muito amigo de meu pai. Uma vez eu mandei uma carta para o jornal, e eles a publicaram. Houve um certo alarido, e eles me abriram as portas para escrever jornalismo. Até hoje não parei mais.

O  SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - A senhora teve algum livro que a influenciasse, alguma obra, algum escritor que fosse importante para a senhora?

A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Mestre (ininteligível). Quando eu comecei, eu lia Júlio Verne e alguns romances de José de Alencar, de Machado de Assis e tal, mas ainda sem muito discernimento. Fui adquirindo isso com o jornal principalmente, porque logo eu comecei a trabalhar em jornal até o dia de hoje. Nunca parei.

O  SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - A senhora falou que os comunistas eram muito burros. O Osvaldo Peralva contou-me que há uns trinta anos foi escolhido pelo Partido Comunista para dirigir um jornal cujo título foi colocado pelo Estado. “Por uma democracia popular, pela paz e pelo socialismo”  era o título. E foi para Bucareste com um pessoal — inclusive um dos intelectuais era da KGB — para vigiá-los e aos outros todos. Ele disse: “Vamos mudar esse título de jornal, porque é um título muito grande, quilométrico. Tem que ser um título jornalístico, que diga alguma coisa.” O russo, mais velho que ele, estava perto e disse: “Camarada, quem botou o título desse jornal foi o camarada Stalin. Isso já é suficiente para não se mudar.”

A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Era isso que todos nós que começamos como comunistas, essa estreiteza mental, essa escravidão intelectual...

O  SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Dogmática.

A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - ... que o partido exigia que sentíamos como intolerável. Nós éramos socialistas, queríamos o comunismo e o socialismo, mas não queríamos esse pessoal. Então, foi por isso que ficamos trotskistas quase todos.

O  SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Quantos anos a senhora ficou no partido?

A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - No partido eu fiquei até... Eu entrei no partido em 1939, fiquei mais ou menos de fora. Fiquei até uns 35 ou 34, mas já como muito poucas ligações. Eu fiquei submissa ao partido muito pouco tempo, uns dois anos.

O  SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - A senhora logo saiu?

A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Eu brigava muito com eles. Não nos submetíamos. Era muito difícil conviver. Você ou era escravo deles ou não era admitido.

O  SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - A senhora esperava que O Quinze tivesse o sucesso que veio a ter, sendo resenhado por figuras importantes da literatura brasileira, como o poeta Augusto Schmidt? A senhora não ficou um pouco perplexa diante da repercussão que teve?

A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Fiquei. Nunca acreditei muito no sucesso. Sempre achei que o sucesso é passageiro. Sempre tive a maior inquietação quanto à minha reputação literária, nunca tive a menor confiança.

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Quem foram os críticos do livro?

A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Quando o livro saiu, os críticos no tempo eram...Quem eram?

O  SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Álvaro Lins.

A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Não, o Álvaro Lins veio depois.

O  SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Schmidt.

A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - O Tristão de Athayde, o Schmidt. Quem fez a maior onda comigo, a meu favor, foi o Schmidt. Ele ficava com o livro na porta da livraria chamando o pessoal para ler.

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Uma coisa que acho muito curiosa é que em O Quinze a senhora...

A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Me chame de você.

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Desculpe-me.

Você aborda com muita precisão os sentimentos do Chico Bento, que é um vaqueiro, um personagem mais rude, e o do proprietário, que é o...como é o nome do personagem? É......

A SRA. RACHEL DE QUEIROZ – Desculpe-me, mas eu não me lembro. (Risos.)

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Eu tenho anotado. (Pausa.) O João Vicente, que é uma figura urbana e tem muito sentimento, tanto ele quanto o Chico Bento, que é uma pessoa mais rude. Como a senhora, aos 20 anos, com a sua trajetória de vida, mocinha ainda, conseguiu descrever com tanta fidelidade, com tanta riqueza?

A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Eu não sei, mas eu já era uma menina muito lida, porque a minha mãe era uma intelectual e lia muitos livros, e boas coisas. Meu pai lia muito. Eles eram devotos de Eça de Queiroz e dos equivalentes. Dessa forma, criei-me numa casa de literatos, em que escrever não era uma novidade, e ler, muito menos. Eu era familiar com toda essa gente, com todos os bons escritores. Minha mãe, minhas tias, meu pai, lia-se lá. O Eça era o deus da casa! (Risos.)

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Além de Eça, quem mais se lia?

A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Machado, por exemplo. Eu, por exemplo, brigava muito com elas porque eu era mais machadiana. Machado e aqueles escritores da época: Anatole... Eles liam muito em francês também, não liam em inglês. Nesse tempo ninguém lia em inglês.

O  SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) – Dostoievski...

A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Dostoievski era o deus da mamãe! Eu traduzi por causa de mamãe. Traduzi uns três Dostoievski. Quando eu vivia de fazer traduções, traduzi muito Dostoieviski.

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - O Quinze foi lançado em 1930?

A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Foi.

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Em 1932, a senhora lançou o seu segundo romance?

A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Foi.

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - João Miguel?

A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Foi.

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) – É o drama de um presidiário.

A SRA. RACHEL DE QUEIROZ – De um presidiário.

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Parece que aflora toda a sua riqueza nos diálogos, não é? Eu queria saber, também, de onde vem essa habilidade?

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Eu não acho, não. Eu tentava, mas eu sempre achei os meus diálogos fracos. Eu sempre tentei e ainda hoje eu tenho dificuldade em encarar bem os meus diálogos.

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Não é o que a crítica fala.

A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Não sei não. Estou sabendo por você.

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Não, mas os seus diálogos são extremamente ricos.

A SRA. RACHEL DE QUEIROZ – Que bom! Que bom!

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Essa habilidade de tecer conversas...

A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Eu acho que você nasce escritor como nasce pintor. Tem que ter a vocação para aquilo. Quer dizer, uma pessoa tem uma certa facilidade e outras, que têm outras habilidades, não a têm. Você escreve com facilidade, por isso dá para escrever. Tem uma relativa facilidade e vai cultivando aquilo, como outros que têm voz para cantar, não é?

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Quando a senhora lançou O Quinze tinha 20 anos?

A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Não, tinha 19. Eu nasci em novembro de 1910 e lancei O Quinze em 39.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - E veio para o Rio de Janeiro, fixou residência no Rio?

A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Amigos meus do Ceará me deram uns endereços para eu mandar aqui para o Rio. Logo que eu lancei o livro mandei para uns 10 nomes de escritores e eu mandei sem conhecer. Antônio Sales, que era um escritor cearense, um romancista, que era muito chegado a mim e me queria muito bem, foi um dos que me deram os endereços para eu mandar.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O Djacir Menezes?

A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Nesse tempo, Djacir ainda era muito moleque, muito rebelde, ainda não ajudava ninguém nisso não. Ele atrapalhava. Era muito danado.

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Rachel, você escreveu esse romance com 19 anos.

A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Antes, não é? Publiquei com 19.

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Publicou com 19 anos e teve um tremendo sucesso. Você entrou para o Partido Comunista, depois rompeu com o partido, tudo isso muito jovem e na condição de mulher. Você se considera uma precursora desse feminismo, de uma mulher independente? Como você se sentia?

A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Não, no grupo que eu andava já havia muitas mulheres, como a Nise da Silveira, Eneida, já tinha muitas mulheres aqui no Rio.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) – Maria Eugênia, não é?

A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Maria Eugênia Álvares Moreyra, Maria Eugenia Celso. Já tinha muita mulher.

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Você sentia algum tipo de dificuldade por ser mulher e tomar todas essas atitudes?

A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Não, pelo contrário. Esse negócio de ser uma mocinha, quase uma menina, ajudava-me muito. Eles todos ficavam me paparicando.

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Você chegou a usar algum pseudônimo?

A SRA. RACHEL DE QUEIROZ – Rita de Queluz.

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) – Como?

A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Na imprensa do Ceará, Rita de Queluz, mas por muito pouco tempo.

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Por que Rita de Queluz?

A SRA. RACHEL DE QUEIROZ – RQ, não é?

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) – Rachel de Queiroz. Dentro desse meio literário, você foi bem aceita também pelo fato de ser mulher, no Ceará?

A SRA. RACHEL DE QUEIROZ – Eu sempre disse que fui muito paparicada. Esse negócio de ser mulher e encontrar dificuldade é lenda. A gente é muito paparicada pelos escritores. Eles não têm coragem... uma mocinha que está começando... todos ajudam, abrem espaços. Então, sempre fui muito paparicada.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Quais foram as figuras do meio literário daquele tempo das quais você se aproximou?

A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Lá no Ceará, Antônio Sales era o nosso mestre, o nosso guru, e aquelas pessoas em torno dele, Jader de Carvalho, Djacir Menezes, etc. No Rio, fui apresentada a Augusto Frederico Schmidt, que se tornou logo meu editor, o José Olympio ainda não era editor, mas já fazia livros. Eu fui apresentada a José Olympio, que me propôs publicar um livro. Fiquei com José Olympio até eles morrerem, no ano retrasado. Nunca mudei de editora.

Foi uma coisa muito fácil, muito camarada. As rodas literárias não são fechadas, herméticas, e quando chega uma moça os homens têm boa vontade, ensinam as coisas, elogiam. Realmente eu não tive calvário nenhum.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Como é que foi a sua relação, por exemplo, com uma das figuras mais importantes da literatura brasileira, que era o Graciliano Ramos?

A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Graciliano foi talvez um dos meus maiores amigos. Quando o conheci, era casada com o meu primeiro marido, José Alves, e fui morar em Maceió. Lá Graciliano era diretor de uma instituição pública, tinha um cargo lá. José Lins estava lá. Era Graciliano, eu, José Alves, meu marido, éramos um grupo muito constante, porque não havia outras pessoas. José Lins fazendo aquelas loucuras dele, que era o nosso extremo, de forma que foi uma amizade natural que se prolongou até eles morrerem. Infelizmente morreram primeiro do que eu.

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Ele era considerado uma pessoa difícil.

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Ele era uma pessoa difícil, mas era muito terno, carinhoso. Quando ele queria ver, quando era amigo, ninguém era um amigo mais delicado e gentil do que Graciliano.

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - E o fato de ter sido até o fim da vida um comunista, e um comunista é.....isso o atrapalhou?

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Quando começamos a ser comunistas, ele não era. Levava a gente na prosa. Ficou comunista depois, e foi aquela prisão que o amargurou. Mas isso nunca afetou as nossas relações. Eu já era trotskista — fiquei muito cedo — e nunca houve debate entre nós.

Na verdade, eles não eram ideólogos, nem José Olympio nem Graciliano nem José Lins. Éramos todos contra o Getúlio e a ditadura daqui, de forma que não tínhamos uma ideologia política determinada. Éramos vagamente comunistas, mas brigávamos muito com o partido, porque o pessoal do partido era muito burro, muito fechado e tínhamos os maiores choques. Acabei me aproximando dos trotskistas para me livrar (Ininteligível.) do partido.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Mas o Graciliano veio a romper também com o Partido Comunista. O Drummond...

A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Todos romperam. Todos rompiam. Não era possível, porque o pessoal do partido era muito burro, eram muito estreitos e queriam da gente uma submissão servil. Foram exigir de Graciliano ler um livro para que publicasse. Graciliano não se submeteu,  ele foi um dos que não se submetia. José Lins, que ainda era comunista, (Ininteligível.) e José Olympio que era o nosso editor comum nos defendia e nos dava guarida, a todos.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O Graciliano contava que eles fizeram uma crítica ao romance dele.

A SRA RACHEL DE QUEIROZ - Pois é. Era para ele trocar a lista, aquilo tudo!

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - E ele disse: “Olha, levantamos. Eu não vou mais discutir com vocês porque não entendem disso.” Levantou-se e foi embora. E aí, o Drummond, que contou essa história numa crônica do Jornal do Brasil, levantou-se e o acompanhou sem dizer nada.

A SRA RACHEL DE QUEIROZ - Pois é. Era assim. Nesse tempo, eu já estava expulsa. Era a traidora, era isso e aquilo, nessas brigas de Graciliano. A gente tem a fase de entusiasmo, depois a de briga e a fase de horror. Eles são muito burros. É uma coisa impressionante.

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Dizem que o Partido Comunista sempre teve uma grande influência sobre a mídia, os jornais, devido ao grande número de intelectuais. Você teve alguma dificuldade por ter rompido com o partido? Sentiu-se patrulhada?

A SRA RACHEL DE QUEIROZ - Nunca, nunca. Eu era patrulhada pelo pessoal do partido, mas eles não tinham poder dentro dos jornais para (Ininteligível.) assim José Lins, Graciliano, eu, etc fazer a nossa caveira. Eles não tinham poder para isso.

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Foi durante o Estado Novo que escreveu Caminho de Pedras, que é o seu livro mais à esquerda mesmo, não é?

A SRA RACHEL DE QUEIROZ – Foi porque a inspiração foi aquela. Eu nunca escrevi nada por convivência com o partido.

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Mas a senhora foi criticada pelo livro, que foi perseguido. Você teve que se submeter à censura?

A SRA RACHEL DE QUEIROZ - O livro foi lançado pelo Schmidt editor, e o partido, no tempo de Getúlio, não abria o bico na imprensa. De forma que, nas nossas costas, eles falavam, mas era no tempo da ditadura do Getúlio, e eles não tinham como.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Estavam na clandestinidade, não é?

A SRA RACHEL DE QUEIROZ - É, estavam na clandestinidade. Nós que tínhamos que manter lealdade a eles para não parecer que os estávamos denunciando. Nós que não éramos mais do partido, tínhamos que ter o maior cuidado e manter as melhores relações para não nos denunciarem à Polícia, o que eles eram capazes de fazer.

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Como a senhora viveu esse período da ditadura Vargas, um período de censura e sem debate intelectual? De grande censura? Como a senhora se sentiu?

A SRA RACHEL DE QUEIROZ - Os amigos se encontravam, não é? A ditadura Vargas era mais no campo político. Os amigos se encontravam, a gente trabalhava, a gente comia. José Lins, Graciliano e eu tínhamos emprego.

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - A senhora fazia o quê?

A SRA RACHEL DE QUEIROZ - Trabalhei com uma firma no Ceará, depois vim para o Rio e, em geral, trabalhava em traduções para José Olympio.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Mas a senhora trabalhou também no jornal como uma militante, não é?

A SRA RACHEL DE QUEIROZ - Não, nunca trabalhei em redação de jornal.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) – Não? Nunca trabalhou?

A SRA RACHEL DE QUEIROZ – Nunca trabalhei porque eu fazia colaboração, contos, etc. Eu não precisava ir para o jornal. Eu nunca me interessei pelo trabalho jornalístico, o dia a dia do jornal.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Que é estiolante, não é?

A SRA. RACHEL DE QUEIROZ – É, eu já tinha as minhas coisas, a minha vida, ganhava a minha vida e tal!

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - De que a senhora se lembra da convivência com o Estado Novo? A senhora era uma intelectual jovem, lançada nesse burburinho do Rio de Janeiro, na vida cultural e literária do Rio de Janeiro. Como a senhora sentia o regime? O regime lhe tolhia os passos?

A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - As cidades são muito grandes, e o Governo não tinha poder para interferir, para saber com quem eu conversava, quem ia na minha casa. Eles não tinham soldado para colocar um na porta da casa da gente. Tinha mais inimizade com os políticos democráticos comuns do que com os políticos de esquerda. Estes não tinham poder; os políticos comuns tinham poder, o seu eleitorado, as suas políticas, as suas coisas. De forma que o Getúlio era mais eles do que nós. Nós éramos os subinimigos. E a gente se comportando bem, não fazendo comício, eles deixavam a gente em paz. Aparecia uma polícia aqui, vinha aqui, fazia perguntas, ia embora, então, não atrapalhava muito a nossa vida.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - E o fato de ter saído do Partido Comunista também deve ter lhe ajudado a, pelo menos, não ser perseguida.

 A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Eles não acreditavam não. Eles pensavam que era nosso golpe político por estar brigado com o partido. Eles diziam: “A senhora não venha com essa não, porque essa a gente não acredita.” De vez em quando aparecia um, vinha uma intimação para depor, era preso um amigo, queriam fazer um encontro da gente com o amigo que ia preso. De vez em quando eles pegavam, mas de certa forma eram corteses e não me lembro de ter sofrido indignidade nenhuma na mão deles.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Chegaram a censurar artigo seu alguma vez?

A SRA. RACHEL DE QUEIROZ – Ah! isso sim. Artigo, sim.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Várias vezes?

A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - No Cruzeiro, foi censurado. Foi sempre censurado. Mas em geral o artigo saía. E, aí, eles não podiam fazer mais nada.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Agora a senhora depois veio a ser amiga do General Castelo Branco.

A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Era meu parente. Nós éramos amigos muito antes dele ser o General. Nós o conhecemos já General mas,  o velho Salú veio dizer que descobriu que era meu parente. E a gente se chamava de primo. Mas ele vinha nos visitar. Eu e meu marido éramos muito amigos dele. Ele estava sempre por aí, nos comandos por aí e, quando veio morar no Rio, já foi nesse tempo mais adiantado.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Como é que a senhora, como intelectual, uma pessoa com grande e extenso relacionamento com os intelectuais do Rio, como analisou e interpretou a intervenção militar em 64, depois do Sr. João Goulart?

A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Nós não gostávamos do Jango, de forma que derrubá-lo foi uma boa ideia. Depois, se não fosse a derrubada do Jango, não se teria chegado, depois, à Constituição, à consolidação da liberdade do País, não é? A derrubada do Jango e do Janguinho, que eram os que sobraram do Getúlio, era condição sine qua non para poder se voltar ao Estado de Direito normal.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Mas não foi uma intervenção demasiado longa? Não passaram muito tempo no poder, os militares?

A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Isso aí já é outra história. Aliás, eu era grande amiga do Presidente Castelo Branco, mas, se virem na minha folha de ofício, eu nunca tirei a menor vantagem, ou emprego, ou comissão ou qualquer coisa de qualquer dos governos militares.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) – Ah...eu também não fiz nenhuma alusão, nenhuma insinuação.

A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - A gente se tratava de (Ininteligível.).

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Era uma amizade de igual para igual.

A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Era. A gente não dava confiança a eles de pedir. Eu nunca pedi uma coisa a um presidente. Castelo era nosso amigo muito antes de ser presidente, já era nosso amigo. E Presidente não ia brigar com a gente, não é?

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Ele frequentava muito a sua fazenda, né?

A SRA. RACHEL DE QUEIROZ – Pois é!

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Qual é a impressão pessoal que a senhora tinha do General Castelo Branco? Qual era a impressão do amigo que a senhora tinha? Que tipo de pessoa ele era?

A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Ele era muito inteligente, extremamente lindo e curiosamente um espírito muito aberto. Ele não falava: “Aquele sujeito é fascista, é comunista.” Ele era muito inteligente. A nossa conversa era mais... eles descobriram que eram nossos parentes,  lá do Alencar. Vieram de Humberto de Alencar Castelo Branco. A família de minha mãe é toda Alencar.

            A nossa conversa era mais de amizade, de visita. Dava-me muito com Argentina.

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - A senhora também é parente de José de Alencar?

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Sou. José de Alencar é parente de 2 ou 3 lados da minha família. Minha mãe é Alencar de pai, mãe, avô, avó. Ela não usava o nome. Usava o Franklin, do pai dela, que também era Alencar, mas só usava Franklin.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O Memorial de Maria Moura –– deixa-me voltar a um tema, também, importante –– foi inspirado em fatos reais, né?

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Não.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Não?

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Não.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - É pura ficção?

             A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Quando você escreve um romance, você não pode inventar pessoas. Então, num personagem, eu boto um tique seu, outro de fulaninho. As pessoas são criações, mas a gente não inventou o ser humano. Então, tem de confiar num tique de uma pessoa que você lembra. É sempre assim. É da vida real, mas não é retrato leal.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Eu digo isso, porque o Memorial de Maria Moura se compadece com a tradição do Nordeste.

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Pois é.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - ...existiam aquelas mulheres. Até há pouco tempo, no Jaguaribe, existia uma das Diógenes que é uma senhora que andava com um papo amarelo no cavalo, ela montava.

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Pois é. No Crato tinha uma dama dessa espécie, que foi uma das que mais me inspirou.

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Recentemente, foi adaptado para a televisão o Memorial de Maria Moura.

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Uma parte.

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - E foi fiel?

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ – Não foi não. A televisão é muito ruim, pelo menos para você, autor, porque ela não vê com os seus olhos o personagem. Vê com a sua memória e história. Então, aqui eles pegam o personagem, a história, e a televisão é muito imediata. De forma que eles passam aquilo e mesmo não sendo um livro seu, um livro que você ama, você fica às vezes revoltado com o que fazem na televisão.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Acha que foi violentada, não é, a obra?

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Pois é, a história.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O caso também é um pouco hollywoodiana, a produção hollywoodiana.

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Você vai ver um livro que você ama gravado em Hollywood, você fica danado, tem vontade de tirar o sapato e atirar na tela.

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Foi isso que a senhora sentiu quando viu Maria Moura na televisão?

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Eles fizeram pouca coisa, fizeram parte, sim, e a moça que fazia Maria Moura estava muito gorda. Era a ….. 

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) – Glória Pires!

             A SRA. RACHEL DE QUEIROZ – Glória Pires. Ela estava muito gorda. Foi só uma inspiração, eles usaram mais o nome do que a história. Aliás, como na televisão é costume.

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Como é que a senhora... Quer dizer, nós estamos na era da Internet, do computador, da globalização, numa era muito audiovisual. A senhora é uma escritora, sobretudo uma escritora. A senhora se considera uma espécie em extinção, o escritor?

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Você sabe que eles sem a gente não vivem, eles não fazem nada. A gente é que tem de escrever tudo para eles. Quando eles querem qualquer tema, qualquer tratado, ou vêm um escritor funcional ou vêm com o que eles pagam, que eles têm e que eles sustentam. Se há uma coisa que depende de quem escreve é a mídia, tanto a eletrônica quanto a jornalística.

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Então, a senhora acha que vai ter sempre um papel para o criador?

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Quem vai inventar para eles? Eles têm que chamar a gente.

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Eu tenho uma curiosidade. Nesse dicionário de mulheres, que foi lançado agora pelo Zahar, há um verbete no seu nome e há um dado muito curioso, que eu não entendi, não sei nem o que é.

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Como é o nome do dicionário?

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Dicionário de Mulheres!

             A SRA. RACHEL DE QUEIROZ – Ah....saiu?

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) – Saiu. 

             A SRA. RACHEL DE QUEIROZ – Da Zahar?

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida)  - Da Zahar. E no seu verbete fala da sua biografia, bem sucinta, e diz que a senhora, dos 5 aos 12 anos, praticou ginástica dinamarquesa. O que é isso?

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - É uma ginástica dessas comuns. O meu pai me obrigava, obrigava a nós. Acho que eu fiquei tão forte e sadia por isso. Foi dos 5 aos 12. Quando eu fui para o colégio das irmãs, foi que paramos a ginástica do papai. A gente tinha de fazer muita ginástica, de J.P. Müller, era a nossa ginástica, a Ginástica Dinamarquesa de J.P. Müller. Papai se entusiasmou com esse Müller e nos obrigava a fazer ginástica desde pequenininhos. Com 5, 6 anos a gente já estava na ginástica. Aqui, no colégio, eu era uma das estrelas da ginástica. Quando a ginástica entrou no colégio das irmãs, por causa da Escola Normal, então a ginástica entrou e eu era uma das estrelas da ginástica. Eu tinha feito Ginástica Dinamarquesa .

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - A senhora teve uma orientação religiosa? A senhora estudou em colégio de freira?

A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Estudei 5 anos no Colégio Imaculada Conceição e me formei lá, mas não sou religiosa. Minha mãe não era, isso influi muito, não é? A minha família não era religiosa.

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - E, hoje, qual é a sua relação com o transcendental, vamos dizer assim? A senhora acredita, a senhora tem fé?

A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Infelizmente eu não tenho fé. Eu não tenho orgulho disso, tenho até vergonha, confesso com tristeza. Não tenho fé. Gostaria de ter. Muitos amigos meus tinham fé. A minha melhor amiga, a Alba Frota, que morreu no desastre em que morreu Castelo Branco, era muito religiosa. Eu dizia: “Albinha, reze por nós duas”. Então, eu me criei em colégio de freiras, e tenho aquela ternura...eu nunca fui uma antirreligiosa. Eu não tenho fé porque Deus não me deu. Mas eu acho isso uma falha da minha personalidade e me faz muita falta. Quando eu passo por uma dor, eu perco pai, perco mãe, perco um filho, é terrível você não ter um santo, uma coisa em que você se acolha. Porque é muito solitário e muito triste não ter fé.

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Mas a senhora acabou de falar assim: “Eu não tenho fé, porque Deus não me deu”.

A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Pois é. Eu espero que Deus me dê a fé!

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Então, a senhora tem fé em Deus (risos).

A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Eu estou querendo as provas, não é?

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Quais os escritores que a senhora acha que a influenciaram mais? Quais os mais marcantes, brasileiros e estrangeiros?

A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Meu pai tinha religião pelo Eça de Queirós. Lá em casa o Eça de Queirós era o autor predileto. Todos já sabiam. Quando diziam um escritor? A gente dizia: o Eça, porque era o escritor predileto do meu pai, de minha mãe, do meu avô, minhas tias, tia Beatriz, tia Zulina. Era o escritor predileto. Havia o Machado. Eu tive um monte de pupilado em matéria de escritores. Eles só me davam para ler coisas boas.

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) – E em termos de incentivo, quem é que mais lhe incentivou?

A SRA. RACHEL DE QUEIROZ – Ninguém. Todo o mundo... No começo levava uma coça, depois respeitavam, mas quando eu já estava sendo presa e comunista, ninguém me incentivava, esperando que eu baixasse a crista um pouco. Minha mãe gostava que eu escrevesse.

O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Qual o sentido para a senhora da fazenda lá do Quixadá, a fazenda “Não me Deixes”? Qual a importância que ela tem para a senhora?

A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Não foi a Fazenda “Não me Deixes” Foi a fazenda “Junco” que era a fazenda do meu pai. O “Não me Deixes” era um terreno perto do “Junco”, quando a minha mãe morreu nós dividimos, a fazenda dela era muito grande. Ficou uma parte para minha irmã, que se chama Arizona, para mim (Ininteligível.). De forma que o papai tinha muita terra, deixou dividir entre os filhos, mas na verdade a casa dela do “Junco”, que ficou com o meu irmão Roberto, que era o mais velho, era o Juiz, que era o símbolo da fazenda da minha mãe. De modo que quando eu herdei “O não me deixes”, quando minha mãe morreu, eu fui com ele para lá, fizemos casa, fizemos tijolo, situamos a fazenda de acordo com os parâmetros da terra.

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida)- Não me Deixes é o nome do seu último livro; é um livro de receita, não é?

A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Não, porque o Não me Deixes é de receita e do “Não me deixes”, era a receita que trouxe de lá da minha fazenda.

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - É um livro de culinária?

A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - É.

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - A senhora gosta muito de cozinhar?

A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Sou muito melhor cozinheira do que escritora.

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - E qual é a sua melhor receita?

A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Não sei. Isso é coisa de profissional.

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Diga uma coisa, depois de tanto tempo na profissão –– a senhora está com 80 anos, praticamente....

A SRA. RACHEL DE QUEIROZ – 90!

A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) – 90!

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) – 90 anos e 70 anos que lançou o seu primeiro livro.....

A SRA. RACHEL DE QUEIROZ – Pois é!

O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos)  - Depois de tanto tempo nessa profissão, qual é o sentido que tem escrever para a senhora?

A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Eu lhe confesso que nunca gostei muito de escrever. A gente escreve; é uma certa imposição íntima. De noite eu estou acordada, pois sofro muito de insônia, e de repente começo a pensar uma história. Antes de eu escrever, penso uma história e tal. De manhã, quando a coisa é boa, às vezes levanto e começo a escrever, tomo nota para eu não perder. EEEu não sei, acho que você nasce com aquela vocação, tem que ter a vocação, né? Se não tivesse, não daria para agüentar.

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Mas não é uma coisa muito prazerosa para a senhora?

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Não, escrever não é prazeroso. Escrever é cansativo, imperioso, não é prazeroso. Se eu morrer agora, você não encontra uma página nova aqui dentro de casa que já não tenha sido vendida.

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Qual a sensação que a senhora tem quando a senhora acaba de escrever um livro?

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ – Alívio! Eu não o releio logo. Leva um tempo entre acabar o livro e entregá-lo ao editor. Eu nunca conto ao editor que eu acabei o livro, porque ele começa a cobrar. E eu ainda vou mexer muito nele. De forma que o José Olympio vinha às vezes fuxicar para ver se eu tinha acabado alguma coisa e estava escondendo dele. O José Olympio era meu irmão. Nós nos amávamos muito, éramos muito amigos. Enquanto ele viveu, foi meu editor.

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Dentro dessa carreira de 70 anos, quais foram as figuras — o José Olympio a senhora acabou de citar...

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - O José Olympio foi um dos meus melhores amigos.

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Que figuras importantes houve dentro dessa carreira literária, pessoas que a apoiaram ou que foram referências importantes dentro dessa trajetória literária?

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - De um modo geral, o meu jeito de escrever é muito solitário. Eu não dependo de quase ninguém. Escrevendo e tendo um editor, a coisa passa por um processo normal. É como que não tive influência de alguém. Naturalmente, os meus amigos ajudavam muito. Como já tínhamos um editor, escrevíamos, entregávamos o livro ao editor. O livro saía. Eles gostavam ou não gostavam. Ficávamos muito contentes quando eles gostavam. E pronto.

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Quer dizer que a senhora não submetia os originais a ninguém?

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - A ninguém. Só a meu marido. A única pessoa que lia o meu original era minha mãe e, quando ela morreu, o meu marido.

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Eles faziam críticas?

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Era uma crítica severa. Mamãe fazia uma crítica severa.

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - E o marido?

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - O marido, menos. Mas ele não era tão profissional quanto a mamãe era de leituras. Mamãe era uma literata...

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Meticulosa.

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - É.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Agora, no seu entender, já morreu o romance regional. Para a senhora, quais são os maiores escritores brasileiros?

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Olha, o romance regional não sei se morreu. Os autores do romance regional é que se esgotaram mais ou menos. Mas aí surge um menino doido de Minas, ou do Ceará, ou do Amazonas, renovando o gênero, e quem sabe?

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Mas, no entendimento da senhora, quais são os maiores escritores brasileiros, romancistas e escritores brasileiros?

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Acima de tudo o Machado e, depois, Djacir Menezes, que foi um grande escritor, um grande romancista. Quem mais? Vai dizendo os nomes.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Guimarães Rosa.

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ – Claro! Guimarães Rosa.

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - A senhora foi a primeira mulher a entrar na Academia Brasileira de Letras. Que significado isso teve para a senhora?

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Todos os meus amigos estavam lá. De forma que foi tão natural entrar para a Academia como fosse para a casa de um amigo, porque estavam todos lá.

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Mas o fato de ser uma representante feminina na Academia...

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Nunca assumi o negócio de ser mulher e ter de fazer algo para a mulher, ser representante feminina, não. Mulher é um bicho muito traiçoeiro, muito esquisito. Nunca me associei muito com mulheres, não. Você sabe, nós temos muito mais amigos homens do que de mulheres. Com mulher sempre ficamos com o pé atrás.

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Mas a senhora não sentiu um certo receio de entrar numa casa de homens?

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Todos eram meus amigos. Estávamos na rua conversando no botequim, e, na hora de ir para a Academia, Adonias e os outros, antes de irem para a Academia, iam me deixar no meu carro, porque eu não podia ir com eles. Eles ficavam injuriados porque eu não podia ir.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - A propósito, como a senhora viu, como a senhora analisou esse movimento feminista? A senhora acha que houve muitos excessos?

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Eu nunca fui feminista, nunca entrei para os grupos feministas, nunca fui feminista. Eu sempre disse: a mulher é igual ao homem, mas é diferente. Quer dizer, as coisas que fazemos não são as coisas que homem faz, porque nem faz parte do nosso interesse. Escrever é uma das poucas coisas, ou ser médica. Há outras poucas coisas. Com resto o que vamos fazer? Coisas de homem? Não. O homem tem de trabalhar muito, ganhar dinheiro, sustentar os filhos que a mulher tem, porque, quando está grávida e tem um filho pequeno, não pode trabalhar para sustentá-lo, e ele têm que sustentá-lo. Acho que a contribuição dos homens é permanente porque eles não têm os ônus que nós temos.

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida)- A senhora disse que não é feminista, mas a senhora foi a primeira mulher a entrar na Academia Brasileira de Letras. A senhora foi também delegada do Brasil na Assembleia Geral da ONU e trabalhou na Comissão de Direitos do Homem, não é?

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Direitos humanos.

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Como foi essa experiência?

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Como eu lhe disse, eu sempre fiz muitos amigos. Nós éramos os intelectuais, os escritores, os diplomatas que se interessavam por isso. De forma que fui para lá por meio de amigos, estive sempre no meio de amigos, não me senti deslocada nem diferente. É um trabalho comum, bom.

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Qual foi o trabalho que a senhora fez nessa comissão?

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Veja, a pergunta  sobre o trabalho na ...

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Na ONU?

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Na Comissão de Direitos Humanos.

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Na Comissão de Direitos Humanos da ONU, havia muitas mulheres de outras nacionalidades, eu não era a única. E lá trabalha-se muito pouco, conversa-se muito mais. Faz-se lá muita coisa inútil, como relatórios. Gasta-se muito tempo nisso. Gostei do trabalho, mas principalmente da companhia, dos amigos que fiz lá.

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Rachel, qual dos seus livros você gosta mais?

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Não gosto de nenhum. Se eu pudesse... Não precisa ler, porque tenho vergonha.

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - E se você fosse para uma ilha deserta, qual era o livro que você levaria para lhe fazer companhia? Só poderia levar um.

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Não sei, talvez levasse a Bíblia, né?

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Mesmo sem ter fé, a senhora gosta de ler a Bíblia?

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ – Claro, né! A Bíblia é a Bíblia, é o livro. A obra bíblica quer dizer “o livro”. Eu não sou inimiga de nenhuma religião, eu não tenho a graça de ter fé, só isso. Não recebi a graça de ter fé. Eu gostaria imensamente de ter fé. Quando eu perco um ente querido meu, não posso rezar, não posso pensar que vou encontrar com ele. É muito doído, é muito ruim não ter fé.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Doloroso.

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - É muito ruim, é muito solitário. Eu não tenho o menor orgulho de não ter fé. Pelo contrário, eu acho uma falha, que fui privada de uma coisa que é boa. Eu me lembro da minha avó Rachel, que era religiosa. Quando ela tinha um desgosto, ela pegava o rosário e rezava, rezava, rezava até não poder mais. Eu não posso fazer isso.

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - A senhora foi personagem e foi testemunha de 90 anos de história desse País — não é verdade? —, de praticamente todo o século XX. Como é que a senhora vê o Brasil hoje? Como é que a senhora enxerga este País? A senhora é uma pessoa esperançosa?

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Eu não sei se é porque eu amo profundamente o Brasil, tenho a maior esperança. Até vivo procurando sinais de um progresso como eu imagino. Quando observo esses meninos hoje, meus netos, vejo que são tão sabidos, falam inglês correntemente, fazem coisas que não fazíamos. Acho que a mocidade melhorou muito. Tenho muita confiança no Brasil. Acho que o Brasil vai longe. Talvez ainda demore, mas vai longe. É um povo inteligente. Não sei, sou suspeita porque somos brasileiros, mas eu gosto do brasileiro.

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - E a senhora é uma romancista, uma artista, criou personagens, digamos assim, inesquecíveis. A senhora disse que não tem a fé religiosa. E a fé no homem a senhora tem?

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Eu acredito no ser humano, sim. Acredito no ser humano e acredito nessa centelha que o homem tem que faz ele criar civilizações, inventar aventuras, atirar-se nos vales desconhecidos, adorar subir no espaço. O homem é um ser superior, é um ser muito dotado. Tenho fé no homem e amo o homem. Tenho muita fé nele.

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Eu queria voltar à questão da fé. A senhora tem muita fé e ao mesmo tempo se queixa da falta de fé. Mas na sua bibliografia há uma biografia, que é de Padre Cícero.

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ – Pois é! Ele era meu amigo.

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Era seu amigo?

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Houve revolução em 1915, no Ceará, que foi chefiada por ele. Padre Cícero era um inspirador, e meu pai um dos coronéis, um dos tenentes que brigaram em 1915, que derrubaram o Governador do Estado.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Invadiram Fortaleza.

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Invadiram. Papai era de lá, e o Padre Cícero era o chefe. Padre Cícero me recebia, lá em Juazeiro — fui duas vezes ao seminário —, como uma filha querida. Mandou armar, para eu me sentar e  conversar com ele, uma rede especial que ele tinha ganhado de não sei de quem. E depois me deu a rede.

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - E que tipo de impressão a senhora guarda desse homem, que é um homem tão contraditório?

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Olha, primeiro, ele não era ignorante. Tinha toda a cultura que ele pôde receber no seminário, que nesse tempo era muito mais exigente. Ele era um homem de cultura. Vocês estão falando do Padre Cícero, não é?

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Padre Cícero.

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Era um homem de cultura, que não era ignorante e que não promovia a ignorância do povo, a adoração ao corpo. Ele se irritava até com isso. Ele gostava, naturalmente, de ser praticamente aquele Deus —  somos humanos —, mas ele não se embevecia com isso. Adorava conversar comigo sobre temas que não fossem locais ou religiosos. Ele gostava muito de mim. Eu me lembro que, quando eu fui a primeira vez à Europa, eu tive que contar a ele tudo o que eu tinha visto. Ele tinha estado na Europa, mas antes da última guerra. Então, eu fui contar para ele como estava Paris, que não tinham bombardeado isso, não tinham bombardeado aquilo. Ele me confessou que gostava da Europa. Ele gostava muito de mim.

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - A que a senhora atribui essa legenda em que o nome dele se transformou, essa adoração, essa transformação dele num mito?

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Olha, não há muita explicação do porquê as pessoas se transformam num mito. Mas ele foi ser vigário em Juazeiro e era muito caridoso, muito virtuoso. Ele nunca teve mulheres, nunca teve casos, nunca teve uma coisa reprochada, do ponto de vista pessoal da vida dele, como padre. Era extremamente caridoso. Na casa dele, não havia nada. A casa dele era tão modesta quanto a casa de um caboclo. Era extremamente modesta a vida dele.

            Agora, eu tenho a impressão que ele gostava de ter o poder que ele tinha sobre os políticos. Às vezes ele dizia uma brincadeira, uma coisa sobre os políticos, porque o pessoal adorava ele. Ele era meu padrinho. Vinha gente de longe, do Pará, do Amazonas para vê-lo. Um sujeito veio até do Maranhão para tomar a benção do meu padrinho. Eu estava lá quando esse sujeito do Maranhão chegou.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Agora, que ele era uma figura contraditória, era, não é? Padre Cícero, por exemplo, armou o Lampião, deu patente de capitão ao Lampião para que combatesse a Coluna Prestes. Isso é um fato histórico.

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - É, ele mudou a patente, porque a Coluna Prestes era uma ameaça para todo o sertão. Todo o mundo tinha medo do Prestes. O que ele podia fazer? Ele não armou o Lampião. Lampião se armou. Lampião fazia a maior tumulto. Era um sujeito que entendia de polícia, que fazia o maior tumulto e tudo o mais. O que o Padre Cícero fez foi preparar Juazeiro para enfrentar a Coluna Prestes, assim como todos os chefes políticos do interior do Nordeste se prepararam.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - A senhora sabe que o Lampião frequentava regularmente Juazeiro e o Padre Cícero.

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Não era assim. Eu estive em Juazeiro muitas vezes, porque era afilhada do Padre Cícero também. E o Padre Cícero se preocupava muito com esse negócio de cangaço, com esse negócio de matar. Não é verdade. O Lampião podia dizer o que ia  fazer, mas não ia ver o Padre Cícero. Se fosse, o Padre Cícero ia botar o Lampião de joelho, para se confessar,  arrependendo-se dos seus pecados. O Padre Cícero era absolutamente sincero e virtuoso.

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Rachel, aos 90 anos, tendo vivido tanto, e vivido tão intensamente como você viveu, como você vê a vida? Você falou agora do seu neto com encantamento. Como é que você vê isso?

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - A vida é um milagre, não é? A vida é um milagre. Não me importo de morrer a qualquer hora. Já vivi muito, já me cansei, já perdi aqueles que eu mais amava. Mas a vida é um milagre. Vocês gostam de viver? Vocês têm filhos? Então, vocês sabem.

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Você disse, num artigo seu, que deveríamos ter o direito de escolher a idade.

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Pois é.

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Por quê? A idade modifica o ânimo?

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Olha, é tão ruim ficar velha! Você não sabe como é ruim ficar velha. Você olha sua cara. Sua carinha, que era bonitinha, está cheia de ruga. Seu cabelo vai ficando, além de branco, fica duro, ruim. O seu corpo se deforma completamente. Ficar velho é muito ruim. Perdemos os dentes. É muito ruim ficar velho. Deveríamos viver 40 anos e morrer, novos ainda.

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - E essa sabedoria que se diz que a ganhamos quando amadurecemos, quando envelhecemos?

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - É mais amargura, é experiência. Existe tanto velho doido! Você não conhece tanto velho doido, irresponsável e tal? Eu acho que as pessoas sensatas já são sensatas de jovem.

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Mas a velhice também tem qualidades...

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Eu não estou achando ruim ficar velha, não. Eu pensei que eu ia resistir mais. Ao contrário, a velhice está me dando uma segurança. Primeiro, sabemos que vamos morrer, o que é muito bom. Pensar que se vai viver toda a vida não é muito bom. Depois, você não se apaixona mais, não tem mais aquelas coisas de desgaste. Você vai vivendo de acordo com a vida, trabalhando, vivendo um pouco. Dá para tirar.

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - E o coração?

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Eu perdi o meu marido, que eu adorava, há pouco tempo. Ainda não me recuperei dessa perda.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O desaparecimento de um ente querido é uma coisa que machuca muito.

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Machuca muito para quem não tem fé. Quem tem fé pensa que ela vai para o céu e tudo o mais. Mas, para quem não tem fé, é muito ruim.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Depois dessa atividade literária em que, inegavelmente, a senhora teve grande sucesso no Brasil — e continua a ter —, quando olha para trás, desde aquela menininha que escreveu O Quinze, como é que a senhora avalia essa trajetória toda?

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Eu tenho um olho muito crítico.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Crítico?

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Eu não me comprazo com as coisas que eu fiz. Eu fico pensando como é que eu fiz ruim aquilo. Tanto que eu não releio meus romances, porque, quando eu releio, eu fico indignada e quero substituí-los. O Schmidt, que era meu editor, não queria que eu relesse os meus livros, porque eu voltava com o livro, para outra edição, todo remendado, todo consertado. (Risos.)

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - A senhora tem obras enjeitadas? Hoje a senhora se arrepende de ter escrito alguma coisa?

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Não, porque eu escrevi muito pouco. Romances só escrevi aqueles conhecidos, e o resto é artigo de jornal, que eu depois compilei. E eu faço uma seleção severíssima.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Não, mas há o Memorial de Maria Moura...

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Pois é, só esse é romance.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - O Memorial é romance.

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - A senhora fez literatura infantil.

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Isso eu gosto de fazer. Quando eu comecei a ter neto, fiz um livrinho para criança. Mas não saiu grande coisa, não. O autor para criança precisa ter um dom. Nasce-se com ele, e eu acho que não tenho.

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - E a senhora tem projetos literários?

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Não, nenhum.

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Não quer escrever mais nada? Não pensa em...

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Não, Deus me livre! Já estou muito velha.

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - É inteligente!

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Bem, se eu estivesse burra, ainda era pior. (Risos.)

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Mas a senhora está com uma lucidez tão grande, com observações tão sensatas. Será que não valeria a pena escrever um livro de memórias? O que é um memorialista? O memorialista é aquele que consegue guardar só o que é importante.

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Vou lhe fazer uma confissão. Eu tenho uma preguiça horrível de escrever. Eu escrevo um artigo por semana, porque eu preciso do dinheiro do artigo, né! Toda semana eu escrevo para O Estadão, que distribui aí pelo Brasil. Se você abrir aquela minha secretária, onde eu escrevo, não encontra uma folha, um papelzinho, uma coisa com nada escrito. Se eu quiser publicar alguma coisa inédita aqui, eu não tenho.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - A senhora escreve em computador ou à mão?

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Eu estou com problemas nesta minha mão direita e estou escrevendo mal agora, mas eu escrevo à máquina.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - À máquina?

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - É.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Computador a senhora ainda não acompanhou, não?

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Eu ganhei um computador, mas é uma máquina. A Letícia, minha secretária, é que usa o computador, passa o dia namorando no computador. Para mim, é uma máquina de escrever como as outras.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Mas com esses novos meios de comunicação,  por exemplo, a Internet, a senhora chegou a...

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Não tenho nem noção de como funciona,

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Não tem nenhuma familiaridade com ela?

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Não, nenhuma.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Como é que vê essa inovação?

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Olha, eu gosto de progresso. Todas as coisas nessa área é muito bom. Eu gosto do progresso, gosto das coisas novas. Quando aparece um avião que voa mais do que os outros, eu fico entusiasmada. Eu gosto do progresso. É sinal de que o homem não morreu, de que o homem está tocando.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Mas há quem diga que o progresso é o mal do homem, é a desgraça do homem.

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Você acha que era melhor quando você era índio, que vivia no mato?

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Quando vivia nas cavernas, né!

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Não, índio. Não precisa nem ir às cavernas, não, veja o índio, aqui no Brasil. A vida de índio é a vida mais estúpida do mundo. Os índios passam fome, não têm muita previdência. A vida do índio é horrível. Eles são loucos por civilização. As índias, quando damos um vestidinho a elas, ficam entusiasmadas. Eu andei vendo uns índios de Goiás. Eu convivi um pouco com eles e vi que são sedentos de civilização. Então, eles ficam muito satisfeitos.

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Se a senhora tivesse que dar um recado a um escritor que estivesse começando hoje, um jovem, que recado a senhora lhe daria?

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Só escreva se você fizer isso por compulsão irresistível. Não se obrigue a escrever. Só escreva quando você sentir que está precisando escrever. É o conselho que eu dou.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Existe muita gente que escreve também até por compulsão.

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - É.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - E outros escrevem por profissão, são obrigados a escrever.

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Eu. Se eu morrer agora, vocês não encontram uma frase inédita na minha casa. Eu mandei um artigo hoje, o desta semana. Quer dizer, nem o artigo da semana eu tenho. (Risos.)

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Então, diga uma coisa, D. Rachel...

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Chame de Rachel.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Aliás, Rachel, a senhora diz que não tem fé. Quer dizer, a senhora é atéia, não é?

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Bem, eu não gosto de me definir como atéia, porque inclusive eu acho a palavra muito feia.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Ou agnóstica?

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Eu não tenho fé. Não acredito nem em Deus.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Então, me diga uma coisa: essa visão material da vida, uma visão que não comporta nenhum apelo ao misticismo, nenhum apelo ao transcendente, porque até a obra de Shakespeare, que é um sujeito que nunca revelou nenhuma...

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Ele acreditava em Deus.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Mas ele nunca revelou nenhum apego por religião...

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Misticismo.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - ...nada, por nada! Não demonstrou ter nem a favor, nem contra.

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - É.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Então, até esse sujeito, toda a obra dele está permeada de apelo ao transcendente. Até no Hamlet, um dos personagens é um fantasma, é uma alma do outro mundo, que é a alma do pai, o espectro do pai. Depois do irmão que até tomou a mulher dele. Pois bem, esse escritor genial, porque realmente Shakespeare era um escritor genial, tem apelo ao transcendente. Como é que a senhora, cearense, que veio de uma região sofrida, que a senhora retratou no romance, O Quinze, um clássico hoje, não tem nenhum tipo de apego ao que é transcendente, ao que está fora do plano da realidade?

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Eu tenho o maior desgosto com isso...

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - A vida não fica muito triste, não?

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Faz falta.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - A vida não fica triste?

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Fica muito mais ligada ao material, não é? É muito ruim não ter fé.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Muito restrita, né?

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Quanto eu tenho um desespero, uma coisa, como no dia em que a minha filhinha estava morrendo, eu não tinha a quem pedir nada. Só podia chorar. É muito ruim. Quem tem uma fezinha pequenininha que possa cultivá-la, águe, adube, faça tudo para a sua fezinha render, porque é um dos dons que mais auxiliam, que mais apoiam. Quem não tem fé é uma pessoa infeliz, não tem aspirações. É muito ruim. Mas você também está diante deste dilema: simular que tem fé? Não vou fazer isso, né!

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Mas a senhora, que é de uma família tradicional do Ceará, a senhora...

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - A família de minha mãe não era religiosa; a de meu pai, sim.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Mas certamente a senhora conhece histórias dos caboclos, histórias de parentes.

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Pois é, isso é justamente uma falha. Eu tenho a impressão de que quem não tem o sobrenatural em si, é como se tivesse um buraco na cabeça, uma falta. Mas o que podemos fazer? Fingir o que não somos? É muito difícil. Eu nunca escrevi uma palavra contra religião, nunca escrevi uma coisa contra padre. Fui educada num colégio de irmãs de caridade. Nunca nas minhas memórias do colégio fiz uma referência proclamada àqueles que me educaram. Sou muito ligada à minha avó Rachel, que era religiosíssima. Eu a adorava. De forma que tinha tudo pronto. Quem sabe que eu ainda tenha fé um dia.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Como foi estudar num colégio de freiras — o Imaculada Conceição era um colégio de freiras...

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Eu estudei lá 5 anos.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Como foi estudar num colégio de freiras sem acreditar em Deus?

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Eu não ia discutir isso com as irmãs. Eu ficava quieta, né! (Risos.) Eu rezava tudo, ia à missa, fazia tudo o que elas faziam.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Mas não acreditava?

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Já não acreditava. Eu ainda era muito jovenzinha, mas já não acreditava. Minha mãe não acreditava em nada. Acho que, na fé, bebemos do leite materno.

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - É verdade.

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Rachel, só para encerrar, continuando a falar da fé, por que a senhora escreveu a biografia do Padre Cícero? Foi por forte regionalismo...

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Eu não escrevi a biografia do Padre Cícero.

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Escreveu.

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Não.

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Escreveu, em 1958.

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - A biografia do Padre Cícero eu escrevi, sim,  mas foi em artigo. Mas um livro, não.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) – Foi um ensaio?

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Um ensaio, não. Escrevi muitos artigos sobre ele, mas nunca fiz um livro.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - A senhora conhece um clássico do Padre Sobreira sobre o Padre Cícero, não conhece?

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Não. Como é?

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Do Padre Isaias Sobreira.

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Não.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) -  Padre Cícero,  Patriarca de Juazeiro?

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Não conheço.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - É um clássico, um livro clássico sobre o Padre Cícero.

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Qual é o nome do autor?

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Isaias Sobreira, é um padre!

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Ele é contra ou a favor?

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Ele é um admirador do padre!

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Havia padres que eram do lado dele e padres que eram ferozmente contra ele.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Mas é considerado uma das melhores...

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ – Porque ele foi suspenso de ordem. Você sabe que o Padre Cícero era suspenso de ordem.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Muito supersticioso.

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Não, era suspenso de ordem.

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Suspenso de ordem.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Ah, sim, ele foi suspenso de ordem por causa do caso da Maria...

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Da Maria de Araújo.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) – Da Maria....da beata, né?

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Aquela do caso da hóstia que se transformava em sangue. O Padre Cícero tinha uma fé profunda. Ele era muito meu amigo, ele gostava muito de mim.

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Para encerrar, gostaria que a senhora falasse sobre um outro aspecto. A senhora teve uma militância política de esquerda, a senhora foi ligada a políticos. Como é que a senhora vê a atividade política? Que importância a senhora dá a ela? Como a senhora vê a atividade política nos dias de hoje? A senhora acha que o Brasil está bem servido?

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Não, não está. O Brasil está atravessando um momento até difícil. Não estamos vendo grandes homens apontando. Você vê algum? Quem é seu ídolo agora? Está vazio, o panorama está muito vazio.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Agora, essa pobreza não aconteceu por causa dessa massificação que houve no País? A senhora vê que a bancada de Minas, que era uma bancada brilhante, hoje é uma coisa assim anódina, descaracterizada.

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Acho que é porque a classe governante tem um fenômeno bom: está recebendo muito os grupos inferiores. Então, não há mais aquele ambiente, assim, governado....

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) – De elite.

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - como o que tínhamos em Afonso Arinos, nas causas deles.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Pedro Aleixo.

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Esses ambientes assim já não há mais. Então, o povo está melhorando muito. Veja lá no sertão, no interior, se você não fizer uma escola para os meninos, as mães vêm praticamente exigi-la de você.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - E esse sentimento de indignação da população quanto ao problema moral? Como a senhora vê essas denúncias de corrupção, essas denúncias que comprometem a imagem da elite política perante a opinião pública?

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Olha, quando estou muito desgostosa com os políticos atuais, vou ler um pouco do que foi no século passado, que era pior! (Risos.) Era pior porque não era tão desmascarado como hoje, quando tudo se descobre,  tudo se diz. De forma que eu acho que ainda foi pior.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Já foi pior.

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Acho que sim.

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) - Vamos lá?

            A SRA. ENTREVISTADORA (Ana Maria Lopes de Almeida) - Vamos. Está muito bom.

            O SR. ENTREVISTADOR (Ivan Santos) – Está ótimo essa.....!

            O SR. ENTREVISTADOR (não identificado) - A senhora gosta de lá?

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Andei tudo por lá. Passei uns tempos, uns fins de semana lá.

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) - Lá é a zona sul do Estado, é a região mais úmida.

            A SRA. RACHEL DE QUEIROZ - Se não está verde lá, não está verde em lugar nenhum. Agora em Quixadá, de onde eu sou, está tudo seco!

            O SR. ENTREVISTADOR (Tarcísio Holanda) – Lá é o semiárido mesmo, não é?